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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A concepção de individualidade em Georg Simmel

"Crepúsculo", obra de George Grosz, 1922

Por Ana Rodrigues - Doutoranda no PPGS/UFPE

É possível afirmar que o surgimento da sociologia é concomitante ao nascimento do indivíduo da modernidade, que se caracteriza por uma transformação fundamental na relação entre indivíduo e sociedade e por um maior espaço conferido àquele nas relações sociais. Assim, muito embora a consolidação da sociologia como disciplina autônoma tenha sido marcada por um esforço em desvendar as determinações sociais na explicação da vida social, sempre houve um interesse, por parte de seus melhores teóricos, pela análise das dimensões individuais (Martucelli, 2007b).
A análise do indivíduo nunca esteve completamente ausente da sociologia clássica. Mesmo Durkheim, que é considerado um autor holista, reconheceu que as sociedades modernas outorgam um espaço mais amplo ao indivíduo, chegando a afirmar que este havia se convertido na religião da modernidade. Em 1898, Durkheim publicou um texto – “O individualismo e os intelectuais” – em que em que apresenta duas concepções de individualismo: uma negativa, que rende homenagem ao indivíduo particular (egoísmo), e uma positiva, que considera cada indivíduo como representante da humanidade e da razão e rende homenagem à pessoa humana. O autor defende essa segunda concepção, denominada como “individualismo abstrato” por Martucelli e Singly (2012, p. 16).
Mas é sobretudo Simmel que destaca a crescente liberação do indivíduo das antigas dependências históricas nas sociedades modernas, buscando desenvolver uma teoria sociológica do individualismo de maneira menos maniqueísta que seu contemporâneo, Durkheim. Em O indivíduo e a liberdade, Simmel identifica dois tipos de individualismo desenvolvidos na cultura europeia a partir do século XVIII, fundamentados em duas concepções distintas de liberdade. De acordo com Martucelli e Singly (2012, p. 20), o interesse da obra de Simmel é que, diferentemente de Durkheim, ele não estabelece nenhuma hierarquia entre esses dois individualismos e desloca os termos do problema, tentando compreender de que maneira essas duas concepções opostas se articulam.
A primeira noção de individualismo desenvolve-se a partir do século XVIII e tem na liberdade a sua motivação mais íntima. Segundo Simmel (2005, p. 108), a liberdade se torna a bandeira universal por meio da qual o indivíduo protege seus mais variados desconfortos e tenta se autoafirmar perante a sociedade. O ideal da liberdade individual defende a liberação do indivíduo das instituições religiosas, políticas e econômicas que constrangem os potenciais da personalidade de maneira não-natural. É necessário, portanto, libertá-lo de todas essas influências e das desigualdades artificialmente produzidas para que o indivíduo possa desenvolver todos os valores internos e externos de sua personalidade.
Essa concepção de individualismo tinha como fundamento a igualdade universal, seja esta fundada na natureza, seja na razão ou na humanidade. O centro do interesse dessa época é o homem abstrato, que constitui a essência de qualquer pessoa particular, ao contrário do homem historicamente situado, singularizado e diferenciado pelos seus pertencimentos sociais. Com isso, Simmel (2005, p. 109) aponta um contexto de pertencimento prévio e mútuo entre direito, liberdade e igualdade, uma vez que o homem genérico, que representa o núcleo essencial do homem individualizado, aparece em cada indivíduo particular sempre que este seja libertado das forças sociais e desvios históricos que violentam sua essência mais profunda. Para Martucelli e Singly (2012, p. 19), a concepção de individualismo como independência individual, apresentada por Simmel, corresponde ao “individualismo abstrato” de Durkheim.
Simmel (2005, p. 111) também destaca que “esse conceito de individualidade implica, em sentido prático, o laissez faire, laissez aller”, uma vez que se em todos os homens é possível encontrar o homem abstrato como sua essência e se pressupõe o seu desenvolvimento perfeito, então as relações humanas não necessitariam de intervenções reguladoras especiais. No entanto, o autor afirma que não se conseguiu eliminar totalmente as sombras da liberdade nos indivíduos, uma vez que a igualdade manifestava-se de maneira muito imperfeita na realidade.  Ademais, a própria suposição de que após a conquista da liberdade, seguiriam-se novas iniquidades e opressões impulsionou o acréscimo da exigência da fraternidade ao de liberdade e de igualdade, pois “apenas a renúncia eticamente voluntária que esse conceito expressa pode evitar que a liberdade fosse acompanhada do oposto da igualdade” (Simmel, 2005, p. 111).
De acordo com Simmel (2005, p.111), se a consciência geral daquela época sobre a essência da individualidade escondeu essa contradição entre igualdade e liberdade, ela aparece novamente no século XIX. Nesse momento, surge uma segunda concepção de individualismo que se contrapõe à síntese do século XVIII e sua fundamentação da igualdade pela liberdade e vice-versa. Nessa concepção, há uma ênfase na desigualdade e a liberdade permanece como o denominador comum também com o correlato oposto. Contudo, é importante destacar que se, por um lado, o autor aponta a contraposição entre as duas concepções de individualismo, por outro, ele busca apreender sua articulação, mostrando que o individualismo do século XIX pressupõe a concepção do século XVIII, fundamentada na igualdade. Nas suas palavras, “tão logo o eu, no sentimento da igualdade e universalidade, sentiu-se forte o bastante, passou a procurar a desigualdade, mas apenas aquela que surgia como uma lei interna” (Simmel, 2005, p. 112).
Simmel (2005, p. 112) afirma ainda que após a libertação dos indivíduos de suas antigas dependências históricas, o movimento segue adiante e estes indivíduos tornados autônomos buscam agora distinguir-se entre si. Nesta segunda concepção, o importante não é o indivíduo como tal, mas sim o que este tem de único e distinto. Desse modo, intensifica-se a procura moderna pela diferenciação, a busca do indivíduo por si mesmo, por um ponto de solidez e ausência de dúvidas, que se torna tanto mais necessária quanto maior a complexidade da vida. E essa busca não pode ser encontrada em instâncias externas à própria alma. Para o autor, as relações com os outros são apenas estações no caminho em busca de si mesmo. Tais relações são importantes seja porque o indivíduo se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças, precisando do apoio desse tipo de consciência, seja porque os outros são importantes na comparação e visão da própria singularidade e individualidade do próprio mundo.
Essa concepção de individualismo encontrou seu filósofo em Schleiermacher, para quem não apenas a igualdade, mas a diferenciação é uma obrigação ética. Simmel (2005, p. 113) denomina esse individualismo de qualitativo em oposição ao individualismo numérico do século XVIII e afirma que o romantismo alemão foi o primeiro canal por meio do qual essa concepção permeou a consciência do século XIX.
Segundo Simmel (2005, p. 114), a primeira concepção de individualismo é o produto do liberalismo racional da Inglaterra e da França, enquanto a segunda é uma criação do espírito germânico. Embora em constante tensão, o autor afirma que essas duas grandes forças da cultura moderna procuram um equilíbrio nas mais diversas esferas. No entanto, até o século XIX, os dois tipos de individualismo só foram unidos na constituição de princípios econômicos. Nesta esfera, a concepção da liberdade e da igualdade fundamenta a livre concorrência, enquanto a personalidade diferenciada é o fundamento da divisão do trabalho. Simmel (2005, p. 115) adverte que as consequências “da concorrência sem peias e da especialização da divisão do trabalho para a cultura interna não se deixam apresentar exatamente como o maior benefício dessa cultura”.
A análise de Simmel do individualismo não se restringe ao esboço da emergência de diferentes ideias filosóficas e suas respectivas raízes culturais, dado que ele também busca apreender as mudanças sociais que possibilitaram seu surgimento. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel mostra de que maneira o desenvolvimento de uma economia monetária possibilitou uma margem crescente de liberdade individual e, consequentemente, um maior domínio da consciência pelo indivíduo.
De acordo com Simmel (1977, p. 348), o desenvolvimento de uma economia monetária conduziu a uma maior objetividade das relações sociais. Na medida em que o dinheiro se torna o mecanismo universal de troca, ele permite determinar a igualdade exata dos valores de troca, devido às suas propriedades de divisibilidade e aproveitabilidade ilimitada. Como ele pode ser somado e dividido de maneira ilimitada, ele permite a adoção de um critério quantitativo na apreensão dos produtos, reduzindo toda qualidade e individualidade à questão: “quanto?”. Portanto, nos mais diversos fenômenos, dentro da economia monetária, os objetos tornam-se cada vez mais indiferentes em sua singularidade e individualidade, carentes de essência e intercambiáveis (Simmel, 1977, p. 361).
O princípio da objetividade adotado pela economia monetária também conduziu a uma transformação da forma real que tomam as relações de dependência, possibilitando o desenvolvimento da liberdade individual. Simmel (1977, p. 338) explica que, enquanto nas formações sociais anteriores, a vinculação e o direito do senhor abrangiam não apenas o produto do trabalho como também a personalidade do trabalhador, a economia do dinheiro conduz a uma separação completa da personalidade como tal frente às relações de dever. A adoção do princípio da objetividade frente ao da personalidade conduz a uma transição em que o limite do tempo de trabalho começa a ser determinado e, em seguida, não se exige mais um tempo e uma força de trabalho determinados, mas um produto determinado do trabalho. Desse modo, não há uma subordinação a outra personalidade subjetiva. O dinheiro despersonaliza as relações.
Do mesmo modo, no sistema de trabalho assalariado, o trabalhador adquire certa independência frente ao empresário isolado, devido à frequência com que a economia monetária muda o empresário e pela possibilidade múltipla de eleger ou substituir a este que a forma do salário garante ao trabalhador, concedendo-lhe uma liberdade completamente nova, dentro de suas ataduras. Contudo, Simmel (1977, p. 359) destaca que a liberdade do trabalhador é também a liberdade do empresário, que não existia nas formas de trabalho mais vinculadas. Em sentido social, a liberdade, como a ausência de liberdade, constitui uma relação entre seres humanos.
Simmel (1977, p. 352) adverte que a economia monetária não possibilitou apenas uma liberação do indivíduo, mas também uma configuração especial das relações de dependência mútua que, ao mesmo tempo, deixa margem para um máximo de liberdade. Isso porque essa economia estabelece uma série de vinculações, inexistentes nas formações econômicas anteriores. A dependência de outras pessoas alcançou esferas completamente novas, devido à crescente divisão moderna do trabalho e a especialização das faculdades humanas que a acompanha, além do aparecimento de técnicas mais complexas e de um número maior de intervenções para atender mesmo às necessidades mais elementares. Mas o outro lado do processo de divisão do trabalho é justamente que, à medida que o sujeito se torna dependente de um número crescente de prestação de serviços, ele se torna independente das personalidades que se encontram por trás destes, porque só permite a ação de uma parte das mesmas, “excluindo por completo as outras cuja conjunção é precisamente o que dá lugar à personalidade” (Simmel, 1977, p. 354).
Desse modo, a economia monetária facilita a separação do elemento pessoal das relações entre os seres humanos através de sua essência objetiva. Se o homem se torna, por um lado, mais dependente de uma grande quantidade de provedores, ele é muito mais independente da pessoa isolada e concreta que lhe presta um serviço e que pode ser substituída com facilidade e frequência. Em consequência disso, o indivíduo recebe como recompensa “a indiferença em relação com as pessoas e a liberdade de intercâmbio com elas” (Simmel, 1977, p. 356).
Para Simmel (1977, p. 357), esta é a situação mais favorável para produzir a independência interior e o ser-para-si individual. É só a partir do exercício desta liberdade, que é possível desenvolver a individualidade, de ampliar o núcleo do eu por meio da vontade e sentimento individuais. O autor destaca que tal individualidade não pode ser percebida como uma ausência de relações, mas, precisamente, como uma relação muito determinada com os demais. Uma relação que pressupõe, como toda relação, elementos de aproximação e elementos de distanciamento. Segundo ele, a configuração mais favorável de ambos os elementos para explicar a independência tanto em sua qualidade de fato objetivo como de consciência subjetiva parece se manifestar quando se dão relações extensas com outros homens, dos quais foram distanciados todos os elementos que são de natureza individual. Nas suas palavras,
“a causa e o efeito destas dependências objetivas, nas quais o sujeito como tal é livre, residem na trocabilidade das pessoas; na troca voluntária dos sujeitos ocasionada através da estrutura da relação se revela aquela indiferença do elemento subjetivo, que leva o sentimento da liberdade” (Simmel, 1977, p. 358).

A personalidade surge, assim, como a contraposição subjetiva das circunstâncias de dependências objetivas e de indiferença impostas pela economia do dinheiro que conduz a um largo processo de diferenciação social, do qual resulta a acentuação da importância do eu, por um lado, e da coisa, por outro. Simmel (1977, p. 361) afirma que o surgimento da personalidade é ao mesmo tempo o processo de surgimento da liberdade, uma vez que tudo o que chamamos de personalidade – a unidade de elementos psíquicos, sua concentração em um só ponto, a insubstituibilidade de sua essência – implica também a independência e exclusão de todo o exterior e o desenvolvimento de acordo com as leis da própria essência – a que se chama liberdade.
Segundo Simmel (1977, p. 362), em ambos os conceitos se manifesta um ponto último e profundo da essência do indivíduo que enfrenta a todo objetivo, exterior e sensorial, que se origina tanto fora como dentro da sua própria natureza. Tanto o conceito de liberdade quanto o de personalidade constituem uma “expressão do fato de que aqui surgiu a contrapartida do ser natural, contínuo e objetivamente determinado, contrapartida cuja originalidade não somente reside na aspiração a uma posição especial frente a ele, senão também na busca de uma conciliação com ele mesmo”.
Além da economia do dinheiro, o crescimento dos círculos sociais, que acompanha o seu desenvolvimento, é percebido por Simmel como uma importante transformação para o aumento da liberdade e da individualidade. O autor tenta compreender de que maneira a personalidade se acomoda nos ajustamentos às transformações sociais advindas com a vida na metrópole, lugar em que essa economia se desenvolve. Simmel (1973, p. 12) busca apreender as condições psicológicas criadas pela vida na metrópole, tendo em vista que a mente humana procede a partir de discriminações entre a impressão de um dado momento e o que o precedeu, e a metrópole extrai uma quantidade de consciência maior que a vida rural. O autor afirma que a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação de estímulos nervosos, resultantes da alteração brusca e ininterrupta de estímulos interiores e exteriores.
Diante do ritmo de vida e da rápida convergência de imagens em mudança na metrópole, o indivíduo metropolitano desenvolve uma consciência elevada e uma predominância da inteligência. Segundo Simmel (1973, p. 13), a reação aos fenômenos metropolitanos é transferida a um órgão menos sensível e bastante afastado da zona mais profunda da personalidade, enquanto a intelectualidade assume a preservação da vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana.
Ademais, as relações emocionais íntimas entre pessoas fundadas em sua individualidade, comuns nos pequenos círculos, dão lugar a relações racionais e anônimas, em que se trabalha com o homem como um número, um ser que é em si mesmo indiferente. Simmel (1973, p. 14) afirma que essa atitude “prosaicista” está tão inter-relacionada com a economia do dinheiro que não se sabe se foi a mentalidade intelectualística que primeiro criou essa economia, ou se esta última determinou a primeira.
O autor também destaca que o caráter objetivo da economia do dinheiro – com suas características de exatidão, calculabilidade, etc. – são introduzidos à força pela complexidade e extensão da existência metropolitana, de modo que ele não está apenas intimamente ligado a essa economia, mas também conduz a uma objetivação crescente de conteúdos existenciais. Desse modo, esse caráter permeia o conteúdo da vida e favorece a exclusão daqueles impulsos irracionais e instintivos, que tentam determinar o modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma de vida geral de fora. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel (1977, p. 347) destaca que é justamente essa capacidade de observação objetiva, de prescindir do eu, que separa os homens, no puramente psicológico, das ordens animais inferiores. E é isso o que impulsiona o processo histórico ao seu resultado possivelmente mais nobre e à formação de valores em que os interesses de uma parte não exclui o outro, senão abre caminho a ele.
Simmel (1973, p. 15) afirma que não há fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto a atitude blasé, que expressa a relação entre uma estrutura da mais alta impessoalidade e, em contraposição, uma subjetividade altamente pessoal. Em princípio, essa atitude resulta dos estímulos contrastantes que são continuamente impostos aos nervos. Mas o autor acrescenta que essa fonte fisiológica da atitude blasé é acrescida de outra que flui da economia do dinheiro e corresponde ao embotamento do poder de discriminar toda qualidade dos objetos, de modo que nenhum objeto merece preferência sobre outro. Para o autor, “esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada” (Simmel, 1973, p. 16).
Simmel (1973, p. 17) explica que na atitude blasé, os nervos encontram na recusa a reagir aos incessantes estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma de vida metropolitana. Assim, a autopreservação da personalidade é alcançada ao preço da desvalorização de todo mundo objetivo; uma desvalorização que no final arrasta a personalidade da própria pessoa para uma sensação de igual inutilidade. Além disso, sua autopreservação em face da cidade exige dele um comportamento de natureza social negativa, como a reserva. Essa reserva assume a forma de um fenômeno mais geral da metrópole, conferindo ao indivíduo uma quantidade e qualidade de liberdade pessoal que não tem analogia sob outras condições.
Esse aumento da liberdade está relacionado ao crescimento dos círculos sociais. Segundo Simmel (1973, p. 19), os pequenos círculos permitem apenas relações restritas com os outros grupos e não podem permitir a liberdade individual e o desenvolvimento interior e exterior próprios, uma vez que guardam as realizações, a conduta de vida e a perspectiva do indivíduo. Mas à medida que o grupo cresce, a unidade interna do grupo se afrouxa, bem como a demarcação original contra os outros grupos, possibilitando relações e conexões mútuas. Assim, o indivíduo ganha liberdade de movimento, ao mesmo tempo em que adquire uma individualidade específica, decorrente da divisão do trabalho tornada necessária com o crescimento do grupo.
O caráter extensivo da metrópole para além de suas fronteiras físicas e a independência individual contribuem para que o aspecto quantitativo da vida seja transformado em traços qualitativos de caráter. Simmel (1973, p. 21) afirma que “o homem não termina com os limites do seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente”. Deste modo, a liberdade que acompanha este processo não deve ser entendida apenas no sentido negativo, como liberdade de mobilidade. O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade que todo ser humano possui sejam expressas de alguma forma na elaboração de um modo de vida. A liberdade no sentido de o indivíduo estar seguindo as leis de sua própria natureza só se torna óbvio para ele e para os outros se as expressões dessa natureza diferirem das expressões de outras. A pessoa se volta para diferenças qualitativas, buscando atrair de alguma forma a atenção do círculo social, explorando sua sensibilidade e diferenças. Do mesmo modo, a crescente divisão do trabalho na cidade moderna compele o indivíduo a se especializar em uma função na qual não possa ser prontamente substituído por outros. Esse processo conduz a uma diferenciação crescente (Simmel, 1973, p. 22).
Portanto, a individualidade para Simmel decorre de condições externas, como o pertencimento a diversos círculos sociais separados entre si e, ao mesmo tempo, do trabalho interior, íntimo. Apesar da grande contribuição teórica de Simmel para pensar o crescente processo de individualização na modernidade, ele foi praticamente esquecido depois da Primeira Guerra Mundial e maioria dos sociólogos abandonou a ênfase dos clássicos na importância das formações psíquicas particulares dos indivíduos na explicação da vida social.
Contudo, Martucelli e Singly (2012, p. 23) destacam que a concepção de individualidade desenvolvida por Simmel se torna central quase um século depois para uma corrente sociológica denominada de “Sociologia do Indivíduo”, que defende a necessidade de uma nova abordagem teórica à escala individual, haja vista a intensificação do processo de individualização na sociedade moderna, a partir da segunda metade do século XX – o que muitos teóricos chamam de segunda modernidade. Esses teóricos afirmam que, diante desse processo, o indivíduo não pode ser mais definido apenas pelos vínculos herdados e pelas determinações sociais. Faz-se necessário prestar mais atenção no trabalho que o indivíduo realiza sobre si mesmo. Simmel torna-se um dos principais precursores dessa corrente pela sua ênfase, por um lado, na crescente divisão interna dos indivíduos e a independência entre as diversas partes de seu ser e, por outro lado, na existência de um conflito interior entre essas partes (Martucelli e Singly, 2012, p. 34).

Referências bibliográficas

MARTUCELLI, Danilo (2007a). Cambio de rumbo: la sociedade a escala del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
____________. (2007b) Lecciones de Sociología del Individuo. Santiago.
MARTUCELLI, Danilo & SINGLY, François de (2012). Las Sociologías del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
SIMMEL, Georg. (1977). Filosofia Del Dinero. Madrid: Instituto de Estudios Politicos.
_____________(2005). “O Indivíduo e a Liberdade”. In: J. Souza e B. Oelze (Orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasilia: Ed. UnB.
____________ (1973). “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
___________ (1950). “The Stranger”. In: WOLF, Kurt H. The sociology of Georg Simmel. New York, Knickerbocker Printing Corp.



quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Georg Simmel, Max Weber e o Trágico





Por Alyson Freire (Mestrando no Programa de Ciências Sociais – UFRN)

“Mas não é trágico que o homem seja levado pela divindade a experimentar o terrível, e sim que o terrível aconteça por meio do fazer humano” (SZONDI, 2004, p. 89).

“As épocas em que predominam crenças comparativamente estáveis não produzem tragédias de nenhuma intensidade, (...) O seu cenário histórico mais usual é o período que precede à substancial derrocada e transformação de uma importante cultura” (WILLIAMS, 2002, p. 79).


A Sociologia é um campo discursivo, formado não apenas por teorias, conceitos heurísticos e categorias científicas especializadas, mas igualmente por pressuposições gerais inarticuladas cujo caráter transcende o domínio dos valores e das regras estritamente vinculadas à prática científica. As generalizações teóricas e o conhecimento empírico sociológico existem, também, referidos a um horizonte de sentido prévio em relação aos quais os esquemas analíticos e proposições da Sociologia ganham significado, segundo determinadas concepções tácitas sobre a natureza da ação humana, da ordem social, da história, entre outras mais (ALEXANDER, 1986).

Nesse sentido, os repertórios simbólicos das Artes, das religiões e das filosofias, enfim, da cultura em geral fornecem um pano de fundo inarticulado de muitas das pressuposições fundamentais das teorias sociológicas sobre o mundo social e as condutas humanas.

Alvin Gouldner (1973), por exemplo, defende que a sociologia existe numa tensão entre uma concepção iluminista do moderno e uma concepção romântica do moderno. Num trabalho formidável e instigante sobre o florescimento dessa disciplina na Alemanha, França e Inglaterra, Wolf Lepenies (1996) não perdeu de vista esta ambivalência das origens intelectuais e culturais da sociologia, perseguindo o enredo de suas disputas e proximidades com as tradições artísticas e literárias nacionais e suas elites intelectuais.

Essas pressuposições tácitas integram o corpo de tradições de ideias e crenças que formaram e estruturam ainda hoje a imaginação conceitual da Sociologia e suas grandes linhas divisoras. São, com efeito, bem mais do que meras pré-condições históricas para o desenvolvimento desta ciência da ação e dos fenômenos sociais. Elas constituem dimensões inarticuladas do campo discursivo da Sociologia; “estruturas profundas”, como chama Alvin Gouldner (1973), as quais ainda não se tem dedicado à devida atenção no que diz respeito ao seu peso na configuração e alimentação dos esquemas cognitivos e metodológicos e das premissas normativas das diferentes formas de praticar sociologia e de pensar sociologicamente.

Essas dimensões latentes da Sociologia não se esgotam, todavia, no Classicismo racionalista e no Romantismo. Existem outras “estruturas profundas” inarticuladas, oriundas de tradições culturais e estilos de pensamento cujas fontes e repertórios de ideias e crenças não necessariamente coincidem ou derivam das destacadas por Gouldner em seu clássico artigo. Como, por exemplo, a visão trágica da existência que, do teatro grego até as filosofias neoromânticas da cultura passando pela dramaturgia renascentista e clássica, acompanha a cultura do Ocidente.

Neste artigo, proponho-me, de uma maneira despretensiosa e não-exaustiva, a apresentar e discutir em quais componentes do pensamento sociológico podemos identificar a atuação do trágico. Para isso, tomarei como exemplo alguns aportes teóricos de duas grandes figuras da Sociologia, a saber: Georg Simmel e Max Weber. Porém, ressalta-se, de saída, sem a ambição de esgotar todas as possibilidades e ocorrências em que se poderia verificar as afinidades eletivas dos conceitos e das análises desses autores com a sensibilidade trágica.

Tragédia e Trágico

Sem entrar nos detalhes das relevantes diferenças entre “tragédia” e “trágico”, entre a tragédia como gênero literário dos antigos e o trágico como filosofia dos modernos, entre arte trágica e teoria do trágico, basta-nos aqui, segundo nossos propósitos, acentuar que esses distintos elementos expressivos e argumentativos do campo do espírito encontram-se profundamente relacionados a uma tradição cultural, no caso da Grécia Antiga. E que, a despeito das especificidades e ênfases relativas, formam uma visão de mundo compartilhada, pois, seja no teatro grego, nas filosofias pré-socráticas e nas sistematizações teóricas dos românticos e nos aforismos nietzscheneanos, encontramos uma “estrutura profunda” relativamente comum, ou seja, pressuposições normativas e cosmológicas partilhadas, tais como a ideia de caos e de contingência do mundo, o agonismo da vida e a necessidade ética de enfrentamento do destino, a vulnerabilidade da liberdade e do conhecimento humano e os imperativos morais de uma ética heroica aristocrática, entre outros (LESKY, 2006).

Em linhas gerais, o trágico diz respeito a uma “concepção de mundo como sede da aniquilação absoluta de forças e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente” (LESKY, 2006, p. 38).

Como visão de mundo ou ontologia, o trágico designa um tipo peculiar de entendimento e sensibilidade acerca do lugar do homem e da ação humana face as inesgotáveis, imperscrutáveis e irremediáveis forças e poderes do universo e do destino, inclusive daquelas desencadeadas pelo finito engenho humano. Este entendimento e sensibilidade são traduzidos numa concepção da existência segundo a qual esta última é regida e selada pela experiência do paradoxo e da tensão entre intenções e forças irreconciliáveis em que a vida, o homem, a liberdade e o juízo humanos são expostos ao acaso, à contingência, ao inesperado.

É essa concepção do devir e do sentido do curso do mundo que pretendemos localizar nas interpretações da configuração da cultura moderna elaboradas por Simmel e Weber. Nosso propósito sobre o trágico consiste, com efeito, nesses conteúdos metafísicos e representações da existência, da condição humana e do curso do mundo que formam esta singular tradição cultural, e não os aspectos estéticos, históricos ou teóricos que vigoram e perpassam as formas artísticas e algumas filosofias da cultura do Ocidente.

Vejamos, então, como e onde este singular ponto de vista sobre a existência e a ação humana, o “ponto de vista trágico”, opera nos esquemas de análise das teorias sociológicas de Simmel e Weber, particularmente na interpretação dos autores acerca do desenvolvimento da cultura moderna.

Partiremos do pressuposto segundo o qual, tanto Simmel quanto Weber tomam a história e o processo de formação da cultura moderna como portadores e desencadeadores de paradoxos essenciais e distintivos. A nosso ver, o ponto de vista trágico repousa, precisamente, sobre este entendimento particular acerca da complexidade constitutiva da modernidade ocidental, isto é, sobre uma forma peculiar de abordar e compreender o desenvolvimento histórico e os processos sociais constitutivos da cultura moderna.

Simmel e o trágico como autocontradição e ambivalência

“O significado da tragédia se deixa conceber mais facilmente no paradoxo” (HOLDERLIN, 1994, p. 63).

O “ponto de vista” trágico na teoria social de Simmel manifesta-se na maneira como este autor compreende os efeitos dos fenômenos estruturantes da cultura e sociabilidade modernas. A modernidade, em Simmel, é modelada por forças sociais, formas significativas e conteúdos contraditórios e ambivalentes entre si, que foram engendradas e provenientes de um mesmo e único processo social. A análise das principais teses dos ensaios em que Simmel examina as tendências socio-históricas e os impulsos vitais da forma de vida moderna revelam, a nosso ver, que a autocontradição e o autoantagonismo - como marcas inerentes dos fenômenos e processos estruturantes da modernidade, tais como o dinheiro, a divisão do trabalho, a cisão radical entre cultura objetiva e cultura subjetiva - formam o selo batido da cultura moderna.

A tese que aqui sustentamos consiste na ideia de que a reflexão sociológica de Simmel assume uma espécie de princípio de autocontradição inerente aos processos e forças do mundo. Tal ideia não nos parece de todo arbitrária, pois, o próprio autor numa assertiva sobre a trágica contradição da condição do mundo afirmou que a existência é, “en ultima instancia una autocontradicción (...)” (SIMMEL, 1986, p. 52).

Jessé de Souza comentando a crítica do mundo moderno elaborado por Simmel, também apreende esta visão trágica da autocontradição que, nas análises do autor de A Filosofia do Dinheiro, está afivelada no seio das próprias coisas e processos do real. Em conformidade a definição de trágico que destacamos acima, diz Souza sobre o trágico em Simmel:
Ao contrário de indicar um destino triste ou desconsolador em sentido genérico, o destino trágico, na significação que nos interessa, aponta para o fato peculiar de que as forças destruidoras mobilizadas contra um ser foram produzidas pelas tendências mais profundas deste mesmo ser (SOUZA, 2005, p. 10).
No ensaio O dinheiro na cultura moderna (SIMMEL, 2005), o sociólogo alemão é contundente e direto com respeito à contradição da época moderna em relação e em oposição à época medieval. O advento e institucionalização da economia monetária ao destruir os constrangimentos orgânicos e comunais típicos do medievo e da propriedade feudal “possibilitou a autonomia da personalidade e deu a ela maior liberdade de movimentos interna e externa incomensurável” (id. Ibdem, p. 23). No entanto, este mesmo fenômeno produziu, em compensação, “um caráter objetivado incomensurável aos conteúdos práticos da vida” (id. Ibdem, p. 23).

O dinheiro é, de acordo com Simmel, o agente fundamental desta “grande transformação” na relação entre personalidade e comunidade, entre indivíduo e os produtos do seu trabalho, entre os indivíduos e suas as formas de associação. É sobre o dinheiro que podemos identificar em Simmel a operação de uma visão trágica como perspectiva explicativa e avaliativa. No dinheiro vige uma espécie de autocontradição fundamental, trágica, pois ele “confere, por um lado, um caráter impessoal, anteriormente desconhecido, a toda atividade econômica, por outro lado, aumenta, proporcionalmente, a autonomia e a independência da pessoa” (id. Ibdem, p. 24).

A autocontradição fundamental do dinheiro consiste em seu papel ambivalente na constituição da liberdade e objetivação modernas. A economia monetária gera, de uma só vez, constrangimentos positivos e negativos sobre a personalidade. Isto quer dizer que, na medida em que liberta esta última, expandido em suas possibilidades de desenvolvimento, vontade e associação, o dinheiro a aprisiona em relações sociais e atividades objetivadas e reificadas que dispensam a totalidade subjetiva da pessoa.

Esta mesma contradição incidente sobre a personalidade ou individualidade pode ser identificada no argumento de Simmel em sua análise dos efeitos da divisão do trabalho sobre a cultura e sobre a relação do indivíduo com os produtos de seu engenho e de sua subjetividade. Na visão de Simmel, os desdobramentos extraordinários da especialização da divisão do trabalho no âmbito da produção dos artefatos da vida em sociedade não acompanham exatamente em seu benefício os desdobramentos sobre a cultura subjetiva, quer dizer, os conteúdos significativos da existência e das capacidades dos indivíduos.

É certo que a divisão do trabalho proporcionou um desenvolvimento, um cultivo sem paralelo das coisas “que envolvem e preenchem objetivamente nossa vida (...), mas a cultura dos indivíduos, pelo menos nas classes altas, de maneira alguma progrediu, em muitos casos até regrediu” (SIMMEL, 2005ª, p. 44).

Assim como no caso do dinheiro, vigora na divisão do trabalho e no avanço da técnica uma autocontradição essencial, geradora da discrepância entre a cultura tornada objetiva e a subjetiva, isto é, entre a capacidade e os produtos da exteriorização humana e a capacidade individual e subjetiva de dotar tais produtos de sentido apropriando-se significativamente deles. Nas palavras do autor: “O acervo da cultura objetiva é aumentado diariamente e de todos os lados, enquanto o espírito individual somente pode estender as formas e conteúdos de sua constituição em uma aceleração contida, seguindo apenas de longe a cultura objetiva” (id. Ibdem, p. 45).

Não é gratuito, portanto, que Simmel intitule este descompasso entre intensificação da objetivação da cultura e a capacidade de apropriação/relacionamento significativo da subjetividade humana, de “tragédia da cultura”. Tragédia, aliás, que se acirra por realizar nos indivíduos, em suas estruturas mentais, o sentimento de que as criações e as construções humanas, que se sofisticam e se renovam cada vez mais, de que elas, em última instância, não coincidem como frutos da criatividade, cooperação e das energias humanas, mas como coisas que se autonomizaram e em face das quais aqueles não se reconhecem nem podem fazer frente em termos de qualidades e potencialidades.

Weber e o trágico como paradoxo das ações

Talvez, Max Weber seja entre os clássicos o mais trágico dos autores da Sociologia. O ponto de vista trágico percorre boa parte de sua obra e interpretação acerca do desenvolvimento histórico da modernidade ocidental. A presença da visão trágica se deixa ver, também, na atitude ética de enfrentamento exigida pelo mundo moderno, um mundo desprovido de fundamentos últimos, sublimes e transcendentes. É no confronto entre ética da responsabilidade e ética da convicção, onde cada qual “tem de decidir qual é para ele o Deus e o qual o demônio” que orienta e controla os “cordões da sua vida” que podemos compreender o quanto Weber abraça, inclusive para si, o espírito trágico (WEBER, 1984, p. 175; 183).

Os paradoxos éticos da responsabilidade e da convicção que pesam e lutam dentro do peito do homem moderno são uma perfeita tradução do trágico transposta dos palcos gregos para dentro da vida cotidiana moderna influenciada pelas diferentes e autônomas ordens da vida que orientam as condutas e posicionamentos valorativos humanos, pois; “o trágico traduz uma consciência dilacerada, o sentimento das contradições que dividem o homem contra si mesmo (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1999, p. 02).

Entre as diversas entradas para apreender o trágico na sociologia weberiana, enfatizaremos o problema da ação, mais precisamente, o tema das consequências não-intencionais da ação – um dos grandes motes de sua teoria e obra. O trágico da existência humana, em Weber, pode ser encontrado no peculiar e sofisticado tratamento que este sociólogo dispensa a ação social, entendida como dotada de sentido e subjetivamente visada (WEBER, 1993, p. 131).

Elucidar, cientificamente, o dilema da relação entre as intenções dos agentes e o sentido histórico de suas ações constitui, como sabemos, um dos propósitos mais caros da empresa teórica e metodológica de Max Weber. Para o autor da Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o mundo é moldado por nossas intenções, mas não da forma como esperamos originalmente. Toda ação possui efeitos imprevistos que ultrapassam a capacidade de cálculo do sujeito e o escopo de seus propósitos.

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é um exemplo contundente do tratamento deste dilema na busca de uma explicação da conexão de sentido entre as concepções religiosas do protestantismo ascético e a gênese de alguns dos elementos constitutivos decisivos do capitalismo moderno e sua cultura – o ethos da empresa racional burguesa de acumulação e de busca do lucro, a organização racional do trabalho, a profissão como dever, como dedicação de si (WEBER, 2004).

Em nenhum momento Weber sugere que a Reforma produziu o capitalismo ou o seu “espírito”, isto é, seu fundamento ético de conduta e comportamento em que se apoia sua significação cultural. Os crentes ascéticos e fiéis protestantes, e menos ainda Lutero ou Calvino, não tinham a intenção de modificar as condutas e instituições econômicas e remover os entraves - colocados pelo tradicionalismo - que pesavam sobre estas. A intenção dos reformadores e seus adeptos era clara e convictamente religiosa: buscar a salvação e o testemunho da graça divina neste mundo mas de olho no outro mundo (WEBER, 2004 p. 74; 81).

Assim, o “espírito do capitalismo” é, na verdade, o efeito não-previsto e não-proposital das ideias e dos comportamentos puritanos da ascese cristã. No entanto, o ponto de vista trágico em Weber e que anima seu clássico ensaio não se encerra no aleatório das ações, que faz das intenções e motivações dos homens um “joguete do destino”.

Quando o “espírito do capitalismo” livra-se dos apoios metafísicos do protestantismo, e passa a se sustentar e a mover-se sobre os seus próprios pés, de forma secular e mecanizada, os motivos, atitudes e concepções ético-religiosas dos ascetas reformados, convertem-se na “jaula de ferro” dos indivíduos modernos. Com amargor e ironia, afiança Weber: “Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço” (WEBER, 2004, p. 165).

Como um cosmos significativo, o capitalismo moderno transvalorou o manto ascético do protestantismo, de sorte que os fundamentos espirituais sublimes da ação e do viver, antes religiosos, morais e éticos foram suplantados por fundamentos econômicos, técnicos, mecânicos e racionais que, se, por um lado, orientam sobre como conduzir a vida, por outro, emudecem acerca do sentido último e significativo do porquê conduzir-se deste modo.

Desta maneira, a busca pela afirmação da glória de Deus, a devoção aos princípios éticos e mandamentos divinos, a confiança na providência, a satisfação orgulhosa e convicta do servir a Deus cedem o passo, no coração e nas mentes dos homens modernos, ao cálculo e utilidade das ações, a eficiência econômica, a satisfação e maximização dos interesses econômicos, a servidão e culto ao dinheiro e a ambição quase esportiva do lucro.

O trágico na análise de Weber consiste, seguramente, como nos revela as últimas páginas do seu clássico ensaio, em como, de modo imprevisto e indesejado, a ética protestante contribuiu, significativamente, para precipitar uma ética do trabalho que agrilhoou a cultura moderna nesta pesada crosta de aço; num tipo de vida em que o homem existe tão somente para seu trabalho ou negócio, para o dinheiro e o lucro, quando, na verdade, deveria ser o contrário conforme preconizava os propósitos iniciais.

A gênese do espírito do capitalismo moderno, apoiada no desenvolvimento cultural que lhe precipita historicamente, tal qual narrada por Weber bem pode ser entendida como a expressão dramática do trágico; pois o que nos ensina as tragédias senão as artimanhas, as ironias e a indiferença do destino, das forças e poderes mundanos e extramundanos em relação aos nossos propósitos e motivações?

Como as tragédias, as relações entre o homem, a ação e o mundo formam parte da questão primordial contra a qual Weber jamais deixou de se confrontar para atingir suas teses, posicionamentos éticos e generalizações teóricas. Para descrever o seu próprio pensamento, o sociólogo de Heidelberg bem poderia ter escrito as palavras abaixo, que estes estudiosos franceses dedicaram, sabiamente, às tragédias gregas:
A ação humana é, pois, uma espécie de desafio ao futuro, ao destino e a si mesma, finalmente um desafio aos deuses que ao que se espera, estarão ao seu lado. Neste jogo, do qual não é senhor, o homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas próprias decisões. Para ele, os deuses são incompreensíveis (VERNANT & VIDAL-NAQUET, 1999, p. 21).
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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da Vida ao Tempo: Simmel e a construção da subjetividade no mundo moderno



Jonatas Ferreira


Introdução

O fato de Simmel ter se mantido em evidência durante a primeira metade do século XX deve-se em grande medida ao interesse que sua obra despertou na sociologia americana, numa época em que os padrões consagrados de produção científica se opunham ao seu brilhante ‘ensaismo’. O seguinte comentário parece representar o tipo de acolhida que sua obra recebeu durante este período: “Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade. Ele é um compilador de pontos de vista com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou estar apto a possuí-la.” Não obstante esta aparente idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou, como o texto sugere, apesar de sua impotência em “possuir” a verdade, a obra Simmel se firmou como referência sociológica das mais importantes. Sua popularização deve sem dúvida ao interesse que a Escola de Chicago demonstrou em alguns de seus traços distintivos, entre os quais eu destacaria uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque predominantemente microsociológico e uma interpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmico entre estruturas simbólicas identitárias e forças de alteridade. Por este motivo, não parece fortuito que ensaios como ‘O estrangeiro’, ‘O aventureiro’ e ‘Conflito’ sejam até hoje presenças obrigatórias nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos Estados Unidos, como pode atestar o Selected Writings editado em 1971 por Donald Levine.

Embora influente e de importância evidente, tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de uma apreciação mais ampla de aspectos fundamentais de seu universo temático. É curioso que um livro tão importante quanto Lebensanschauung. Vier Metaphysische Kapitel, de 1918, reunindo os últimos ensaios produzidos por Simmel, ainda não tenha sido traduzido para o inglês, francês ou português – à exceção do ensaio ‘Caráter Transcendental da vida’, traduzido na década de 70 para o inglês. A importância teórica destes quatro ensaios, todavia, pode ser estimada se tivermos em mente o meio acadêmico no qual eles emergiram e do qual contrastam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade que a tradição neo-kantiana, com a qual Simmel convive intimamente, sonha com um projeto sociológico capaz de se estruturar a partir de uma concepção atemporal de subjetividade, o Lebensanschauung aponta para o reconhecimento do tempo como fator estruturante do ser no mundo e da possibilidade do saber. Se o conhecimento científico não for um “esquecimento” desta verdade ontológica fundamental, de forma alguma ele deverá buscar a “posse” de verdades universais e atemporais como critério e base de validade. Anos mais tarde, Heidegger afirmaria que todo saber autêntico deve abrir-se à indeterminação ontológica do ser-no-mundo – e essa indeterminação surge como conseqüência inevitável do reconhecimento de nossa temporalidade, ou seja, como constatação de nossa finitude, ou como diria Heidegger, de nosso ser-para-a-morte. Se aceitamos, todavia, o tempo como estrutura ontológica fundamental, e consequentemente como determinante da possibilidade do saber, todo o projeto neo-kantiano da escola de Baden (leia-se Windelband, Rickert e o Weber dos ensaios metodológicos), com o qual Simmel tem um contato tão íntimo, entra em colapso. Esta perspectiva induziu Rickert a afirmar de forma infatigável durante sua carreira que aquilo que capacita a verdade científica a ser um valor acima de todos os outros valores é precisamente que a ciência se nega a ser “parte da vida em geral”. Procedendo deste modo, a ciência escaparia à sina dos seres orgânicos que germinam, desenvolvem-se e morrem. O conhecimento para Rickert deve se proclamar transcendental em relação à vida e ao tempo – e nesta afirmação mesma nós constatamos a importância de se pensar a pauta fenomenológica (mais especificamente, seus pressupostos existenciais e temporais) que põe tal projeto sociológico de pé.

[Continuando a publicação de artigos velhos aqui no Cazzo, aí vai mais este. Clique aqui para obter o artigo em PDF tal como foi publicado na RBCS]