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domingo, 7 de julho de 2013

Ágora Eletrônica e Renovação Política (1.0)



 Jonatas Ferreira e Breno Fontes

No dia 20 de junho, estávamos lá, no centro do Rio de Janeiro, Esplanada dos Ministérios, na Conde da Boa Vista, Avenida Paulista, e num grande número de artérias vitais dos grandes centros urbanos do Brasil, confrontando o que surgia nas ruas com o que noticiavam as grandes emissoras de TV. Para quem não estava de alguma forma conectado ou conectada às mídias sociais que povoam a Internet, as manifestações pareceram como um raio em céu azul. Em alguma medida, todos compartilhamos certa perplexidade, todavia. Os governos federal, estadual e municipal, 60% dos domicílios que não têm acesso à Internet, ou os 45% dos indivíduos que nunca acessaram a Internet em suas vidas (ver http://www.cetic.br/usuarios/tic/2012/), e mesmo aqueles que foram às ruas, sensíveis portanto a esse tipo de mídia, não tinham uma ideia muito exata do impacto que a mobilização até então predominantemente virtual poderia ter na vida social e política dessas grandes cidades e do país. Atônitos também estavam e estão as grandes emissoras de TV brasileiras: um famoso âncora de telejornalismo chegou a condenar o que se convencionou chamar de 'vandalismo', mais especificamente, a depredação e queima de um carro da TV Record: era preciso que os manifestantes soubessem que as emissoras de TV têm um papel fundamental na divulgação desses protestos. É verdade. De um modo bastante contundente, era isso mesmo que estava em questão, ou seja, uma forma alternativa de encontrar informação, de tornar visíveis pautas políticas, de mobilizar. Nesse contexto, o que se convencionou chamar 'vandalismo', por mais que o temamos, ainda merece uma explicação. O que significa? Como se tornou possível?
Na Conde da Boa Vista, por outro lado, o ambiente era de uma alegria cívica e tranquilidade comoventes. Os cartazes produzidos pelos manifestantes, em sua pluralidade, no seu caráter francamente artesanal, deram o tom desse clima que um militante carrancudo avaliou alguns dias depois como sendo carnavalesco – muito embora tenhamos que concluir que, força libidinal, energia de vida que busca confrontar formas sociais caducas, o depoimento coletivo que vimos deve ser relacionado intimamente a esse tipo de alegria. Nosso amigo, Alex de Jesus, que também estava na manifestação ocorrida no Recife, cede-nos um vídeo que fez. Registrou a própria participação na passeata, como vimos muita gente fazer – gente que quer se escutada e vista e que parece ter encontrado uma forma de conseguir as duas coisas. No vídeo, podemos ler alguns desses cartazes que transcrevemos: “Verás que um filho teu não foge à luta”, “Desculpe o transtorno, estamos mudando o Brasil!”, “Foda-se a Copa!”, “Saúde, Educação e Respeito”, “Winter is coming”, “Japão, trocamos nossa seleção por sua educação”, “Amor não tem cura”, “Não à PEC-37”, “Saúde padrão FIFA”, “Vem, vamos embora que esperar não é saber”, “E hoje mainha me bota pra dormir de couro quente”, “Dilma, me chama de copa e investe em mim”, “Tem tanta coisa errada no Brasil, que não cabe em um cartaz”, “Armaria! PEC 37, nann”, “Impunidade? Diga não”, “Dez centavos não compra nem um “Dudu””, “Ei, Dudu, pega os dez centavos e enfia lá no SUS”, “#vemprarua”, “São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade”, “Um passo à frente e você já não está no mesmo lugar”, “A gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar”, “Governador, quer ser presidente? Cuida primeiro da gente”, “Quantas escolas cabem em um estádio?”, “De burro, eu só tenho a chibata”, “Abaixo o ato médico”, “Brasil, 500 anos de desigualdade!”, “Homofobia tem cura”, “O gigante acordou”, “Renan Calheiros, não esquecemos de você”.
O que aconteceu, bem sabemos, é um fenômeno relativamente novo, inédito no Brasil. Novo, primeiro, com respeito à sua forma de mobilização: o ativismo das ruas sendo convocado pelas mídias sociais (Facebook, Twitter, entre outras). Esse tipo de evento político, todavia, e os fatos que dele decorrem, vêm se repetindo no mundo - a exemplo das manifestações da primavera árabe, nos países do Noroeste da África; dos protestos em Portugal (“movimento geração à rasca”); na Espanha (“indignados”); nos Estados Unidos (“ocupe a Wall Street”). Em todos esses contextos é possível perceber a perplexidade dos analistas. A dita sociedade da informação estaria produzindo um tipo novo de ativismo, buscando estabelecer uma relação politicamente virtuosa entre virtual e atual? O que esperar dessas grandes mobilizações populares? É possível que este fenômeno se transforme em uma agenda política que possamos traduzir em categorias a partir das quais tradicionamente pensamos o político? Pensar em uma ágora eletrônica implica em ressignificar o conteúdo das nossas instituições, em especial aquelas que operam o modelo de democracia reperesentativa? Como transformar a articulação de demandas tão plurais em uma agenda política também articulada e factivel?
De fato, as novas tecnologias de informação e comunicação constituem-se tecnicamente a partir de uma potência de horizontalidade na interação entre os indivíduos até então desconhecida. A Internet está para as organizações sociais em rede, assim como a televisão e o rádio corresponderam tecnicamente ao modelo político do fordismo, no qual predominava recepção em massa e emissão centralizada. Se, no contexto das novas tecnologias de informação e comunicação, afirmamos que a relação entre emissão e recepção é bem mais simétrica do que o foram as mídias típicas do fordismo, de modo algum afirmamos que essa simetria seja perfeita, e que portanto a topografia que caracteriza o ciberespaço seja pefeitamente plana. A arquitetura da rede, contrariamente ao que inicialmente se pensava, não se estrutura a partir da possibilidade de acesso aleatório aos nós. Todos não são iguais, o ditado “os ricos ficam sempre mais ricos” reflete o fato de que, neste labirinto de conexões, é possível encontrar Hubs, atores centrais, que controlam e organizam o fluxo de informações. Não de uma forma tão centralizada quanto as antigas mídias, mas de forma alguma reproduzindo a utopia de perfeita simetria ou horizontalidade entre os participantes. Fato também que merece destaque é o fenômeno da exclusão digital – ou do autoritarismo digital, como preferem Ferreira, Pinto e Motta (ver, por exemplo, “Resistindo ao Niilismo pelas Novas Tecnologias: experiências de mídias livres”. In Marcos Costa Lima; Thales Novaes de Andrade. (Org.) Desafios da Inclusão Digital: teoria, educação e políticas públicas. São Paulo: Hucitec Editora, 2012). A internet também não espalha seus benefícios entre todos. Idade, classe social, gênero, etnia, divisões importantes nas sociedades contemporâneas, reproduzem-se no mundo virtual. Isso significa que também temos que ser cautelosos em relação à potência reformadora de uma ágora virtual: democracia não é uma mera conquista técnica, mas um chamado político.
Porém, o mais importante neste labirinto virtual são os que chamamos de mídias sociais, espaços cibernéticos onde é possível a interação social direta. Nos diversos fóruns onde a interação é praticada (Facebook, Twitter, blogs, entre outros) são reproduzidos igualmente laços, fortes e fracos, permitindo, com uma potência nunca vista, espelhar, mas também por em xeque, as sociabilidades cotidianas. Esta capacidade de a rede ampliar processos comunicativos implica consequências até hoje não totalmente compreendidas. Como sempre, qualquer tipo de inovação técnica e politica, sejamos claros, não ocorre num vazio político e a síntese que podemos obter entre forças de conservação e forças de transformação é sempre imprevisível.
Do ponto de vista ainda técnico, parece-nos equivocado pensar as dinâmicas sociais associadas às novas tecnologias de informação e comunicação como ocorrendo de forma completamente desterritorializadas – Nicholas Negroponte ajudou a disseminar este mito em seu hoje quase esquecido Being Digital. As mídias sociais ancoradas na Internet, embora apresentem também elementos desterritorializadores, alimentam-se de redes territorializadas. Isso significa que atender ou propor uma convocação é algo que ocorre normalmente em grupos que se apoiam em comunicações face a face. A teoria das redes aqui nos auxilia a entender que a mobilização das manifestações que começaram em junho de 2013 não ocorrem num vazio territorial, nem ocorrem a partir da articulação de indivíduos atomizados e conectados em igualdade política pela rede. Sem por em questão a especificidade dos eventos nos quais estamos envolvidos, este é um fato relativamente conhecido, registrado em outras ocasiões pelos teóricos das redes. A march of Dimes, uma grande mobilização popular que aconteceu nos Estados Unidos na década de 1950, é um exemplo conveniente. O objetivo era arrecadar dinheiro para financiar a pesquisa de uma vacina contra a poliomielite. E o momento de ápice aconteceu quando uma multidão de pessoas, vindas de todas as partes da América do Norte, se reuniu em Washington. Parte importante da campanha foi veiculada por rádio, respeitável veículo na época. Mas as pessoas se organizavam a partir de suas redes ancoradas territorialmente: amigos do bairro, membros de congregação religiosa, entre outros ingredientes de sua trama reticular. Era, então, possível, vislumbrar naquela multidão de pessoas, pequenos aglomerados de conhecidos, compartilhando aquele momento de suas biografias. Da mesma forma, os que foram à Avenida Paulista, Avenida Getúlio Vargas ou Avenida Conde da Boa Vista, em sua maior parte, não estavam sozinhos, mas sim em grupos, que fazem parte da trama reticular cotidiana.
Mesmo para quem participou de mobilizações como as “Diretas Já”, “Fora Collor”, entre tantas outras, impressiona a esmagadora maioria de pessoas com menos de 20 anos de idade que tem levado adiante essas marchas de agenda tão ampla. É de se supor que essa maioria seja também preponderante nas mídias sociais com base na Internet a partir das quais foram articuladas essa infinidade de manifestações enfeixadas nos espaços metropolitanos de todo o país. Nas ruas impressiona, portanto, a pluralidade de bandeiras que se articulavam num sentimento amplo de insatisfação. Basta que nos déssemos ao trabalho de arrolar, numa pesquisa mais exaustiva, as bandeiras levantadas nas ruas nos últimos trinta dias. Falou-se muito acerca de uma forma descentrada de agir politicamente. E as perguntas a que essa constatação deram ensejo não tardaram: como responder a essas inquietações, supondo que haja vontade ou competência institucional estabelecida para fazê-lo? A quem responder? Com quem negociar e exatamente o quê? Por mais que se negue esse fato, aprendemos a pensar política ainda a partir de um modelo em que a questão da soberania é central. “Soberano é aquele que decide entre quem é amigo e quem é inimigo”, ou seja, aquele, ou aquela instituição, ou conjunto de interesses, capaz ou capazes de estabelecer um espaço de pertencimento, de identidade, e contrapô-lo aos interesses daqueles que são considerados outros. Ora, esse tipo de pensar político é fundamentalmente conservador, todos sabemos. Parece inevitável traçar entre esse tipo de formulação política e a estruturação de agendas prioritárias no âmbito dos partidos políticos, ou seja, no contexto em que se decide entre questões ditas fundamentais e questões ditas secundárias, um elo claro. Em sua versão mais crua, cínica, esse tipo de compreensão converte-se facilmente em uma pragmática de como se manter no poder. E esse 'pragmatismo' se torna um elemento político ainda mais preocupante quando constatamos o afastamento hitórico de nossas instituições politicas do cidadão comum. Sintomático desse afastamento talvez seja o tom desesperado mediante o qual um Senador da República, Cristovam Buarque, cuja seriedade não temos razão para contestar, defendeu a dissolução dos partidos políticos e da convocação de uma Assembleia Constituinte para decidir que tipo de modelo político substituiria o tipo de representação que temos diante de nós. A perplexidade não pode ir muito mais longe. Mas devemos lembrar, com preocupação e a propósito, o fato de a hostilização aos partidos ter encontrado espaço nas ruas.
Se é possível entender que a forma como as instituições políticas tem se organizado guarda uma íntima relação com as questões relativas à identidade, ao estabelecimento de agendas prioritárias, de táticas e estratégias que levariam à sua efetivação, e os partidos políticos como materialização disso tudo, o que as ruas trouxeram não pode trazer outra sensação senão o estupor. Como agendas tão distintas podem se tornar objeto de negociação política? Ora, essa pluralidade sempre foi imaginada como fragmentação, como impotência política estimulada por aqueles que desejam governar - e aí vale o clássico ditado latino, divide et impera. No entanto, é inegável que a articulação de uma agenda tão diversa  configurou um acontecimento político de vulto e com algumas vitórias expressivas: a PEC 37, afinal, foi engavetada; o deputado João Campos, a pedido de seu partido, retirou o projeto que autorizava tratamentos psicológicos da homossexualidade – que tornou tristemente célebre o pastor e deputado Marcos Feliciano; fala-se na divisão dos royalties do petróleo entre as áreas de educação e saúde; fala-se, por vezes com incorrigível oportunismo, acerca do que todos sabiam há muito, a necessidade de reforma no modelo político.
Se a articulação de agendas tão distintas, quanto aquelas que se enfeixaram nas manifestações a que assistimos, podem se converter num evento político de consequências imediatas tão evidentes, é necessário que compreendamos um pouco da lógica das redes sociais, e sua dinâmica comunicativa potencializada pelas mídias veiculadas na internet. É necessário que compreendamos outras experiência semelhantes de mobilização política e do que podemos aprender com elas – com sua dinâmica que combina elementos desterritorializadores e territorializadores, uma forma nova de articular laços fracos e fortes etc. Há algum tempo, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe vêm insistindo no que chamam de “democracia radical”, ou seja, a compreensão do conflito como elemento fundamental nos processos democráticos, o entendimento de que o exercício da política pressupõe sempre encarar a questão da hegemonia, de como ela é obtida e como pode ser questionada. Reapropriação da teoria da soberania tal qual ela aparece na obra de Gramsci, esse último pressuposto significa que grupos de interesses diversos podem se reunir em torno de agendas que os beneficiem e representem na busca por influência e pressão política em áreas específicas. De acordo com tal reflexão, há, na luta por hegemonia, um grande espaço para táticas mais contingentes. Trata-se de uma concepção não essencialista do político em que a práxis concebida neste nível desempenha um papel fundamental. É possível, segundo pensamos, tirar aqui algumas lições que lacem alguma luz sobre o que ocorre hoje no Brasil, exemplo de articulação de interesses políticos tão diversos quantos oposição ao ato médico, condenação da homofobia, defesa da probidade na administração pública, melhoria da mobilidade urbana etc. O que impressiona exatamente tem sido o fato de as mídias sociais terem conseguido promover uma articulação de agendas que só podem estar num mesmo campo de luta se tivermos em mente ideias suficientemente amplas para expressar a insatisfação diante de algo que chamaríamos de arrogância e de viés autoritário que ainda definem o exercício da política em nosso país. Em que medida essas agendas continuarão a se articular no médio e longo prazos no contexto de uma luta contra-hegemônica é algo que não podemos avaliar ainda. Mas chama a atenção o fato de vários segmentos da população brasileira terem encontrado um espaço para exercer seu descontentamento, para condenar a distância histórica que separa a política profissional no Brasil de um sentido público, para questionar a dificuldade que os governantes tem tido em dar respostas ao clamor por uma vida mais justa. Essa dificuldade é técnica, política, cívica e moral.
Talvez não seja demais ilustrar com um exemplo o que afirmamos. Ora, diante de todo o clamor que se produziu nas ruas em defesa da probidade administrativa, o que dizer da insensibilidade do presidente da Câmara e do Senado nacionais de, em meio às mobilizações de junho, utilizarem aviões da FAB para atender a seus interesses particulares? O mea culpa do primeiro, Henrique Eduardo Alves, é risível. Retorna aos cofres públicos menos de R$ 10 mil dos R$ 150 mil que teria de pagar, caso fretasse um avião comercial para passar um final de semana com sua família no Rio de Janeiro e assistir ao final da Copa das Confederações. Quanto ao Presidente do Senado, responde-nos que não há ilegalidade no seu ato e que, por isso, nada restituiria. Pode até não ser ilegal, não conhecemos as tecnicalidades jurídicas envolvidas aqui, mas cassar parlamentar depois do AI-5 também não o era. Ambos os atos, porém, são rigorosamente ilegítimos e a sem-cerimônia com a qual Renan Calheiros lança mão do dinheiro do povo brasileiro é uma bofetada nos milhões que saíram às ruas por uma vida mais digna, por um tratamento mais respeitoso por parte daqueles que, hoje, ainda, decidem os destinos do país.

Em tempo: Renan Calheiros, segundo as últimas informações, voltou atrás em sua decisão. Vai pagar R$ 32 mil à Viúva. Caso vocês não saibam de quem se trata, Renan Calheiros é aquele que propôs tornar corrupção crime hediondo.

Em tempo dois: e tem também o Garibaldi Alves, rapaz...


[Nosso muito obrigado a Alex de Jesus, pela gentileza de nos conceder acesso ao registro que fez das manifestações; a Estefânia Gomes, Antônio Neto e a Artur Perrusi, amigos queridos, pelos comentários e por nos incentivarem a postar o texto - que consideramos apenas um esboço para discussão mais ampla].

domingo, 12 de agosto de 2012

A pluralização do campo religioso no Brasil e em Pernambuco segundo o Censo 2010




Gustavo Gilson Oliveira - Professor do Departamento de Fundamentos Sócio Filosóficos da Educação, UFPE.

Os dados sobre religião do Censo 2010 do IBGE (divulgados no final de junho e já discutidos anteriormente no Que Cazzo pelos professores Péricles Andrade e Jonatas Menezes) chamaram a atenção de diversos setores sociais por indicar que a proporção de católicos no Brasil continua decaindo vertiginosamente (de 73,57% em 2000 para 64,63% em 2010) ao mesmo tempo em que se ampliam em diferentes compassos o número de evangélicos (de 15,41% para 22,16%), de “sem religião” (de 7,35% para 8,04%) e de espíritas (de 1,33% para 2,02%). Apesar do interesse despertado pelo visível processo de transformação no cenário religioso nacional, porém, poucas das análises esboçadas têm enfocado os aspectos regionais e locais dessas mudanças. Poucas, igualmente, têm buscado discutir mais qualitativamente sobre os sentidos e as possíveis implicações desse processo para a realidade social, cultural e política no país e especialmente nas diferentes regiões e estados.

Uma leitura inicial dos dados do Censo 2010 sobre religião em Pernambuco indica não somente que o estado tem vivenciado o mesmo movimento de pluralização do campo religioso observado no cenário nacional, mas, parece revelar também que esse processo tem ocorrido de forma mais intensa em Pernambuco (juntamente com a Bahia) que nos demais estados do nordeste. Indica ainda que esse fenômeno ocorreu de forma mais brusca no estado a partir da década de 1990, que se desenvolveu de forma particularmente acentuada na Região Metropolitana do Recife e no litoral, embora também já seja expressivo nas regiões de Caruaru e Petrolina e, especialmente, que vem produzindo um cenário novo no qual um número significativo de munícipios pernambucanos (20) passa a apresentar uma proporção de menos de 50% de católicos, dois dos quais (Rio Formoso e Sirinhaém) já são de maioria religiosa evangélica em 2010.

O declínio da hegemonia católica e a pluralização do campo religioso

Para compreender melhor esse contexto de transformação é importante discutir, primeiramente, sobre até que ponto e em que sentido esse movimento pode realmente ser qualificado como um processo de pluralização do campo religioso, uma vez que ainda se percebe uma distribuição predominante da população do país e do estado entre católicos e evangélicos e, portanto, que os cristãos ainda concentram mais de 86% da população nos dois âmbitos. Apesar do crescimento consistente dos espíritas, da presença constante das religiões de matriz africana e do surgimento e desenvolvimento de outros grupos minoritários, a soma dos demais grupos religiosos (não católicos ou evangélicos) não ultrapassa atualmente os 5,1% no Brasil e os 3,3% em Pernambuco. Deve-se destacar, todavia, que a noção de pluralização não implica necessariamente em um crescimento significativo de todas as religiões nem na tendência a uma distribuição proporcionalmente aproximada da população entre as mesmas.

A configuração de um campo religioso plural (ou pluralista) é mais bem caracterizada, de fato, pelo lugar social relevante atribuído aos diversos grupos ou identidades religiosas e pelo reconhecimento cultural (não somente jurídico) da legitimidade dessa diversidade assim como dos diferentes grupos participantes do campo. A pluralização do campo religioso pode ser pensada, nessa perspectiva, como um processo de transição de uma situação de não percepção, reconhecimento e/ou legitimação da diversidade para um cenário de reconhecimento e problematização da presença de uma pluralidade de grupos e identidades religiosas em uma dada realidade social. Nesse sentido, o crescimento explosivo do número e da visibilidade pública dos evangélicos a partir das décadas de 1980 e 1990 tem se constituído no principal fator de pluralização do campo religioso brasileiro, a revelia das intenções ou objetivos desses atores, ao passo em que vem contribuindo fortemente para a ruptura e o declínio da hegemonia de uma religião civil católica nos contextos nacional e regional.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Identidades e movimentos entre católicos, evangélicos e sem religião

Há ainda outros aspectos que precisam ser considerados para aprofundar a compreensão desse processo de pluralização do campo religioso. Em primeiro lugar, deve-se destacar que a pluralização gera uma mudança nas dinâmicas do campo religioso que passam a influenciar inclusive as próprias religiões e igrejas tradicionais. O próprio catolicismo, por exemplo, vem sendo cada vez mais atravessado por diferentes movimentos (como a teologia da libertação, a renovação carismática e os novos movimentos eclesiais) que constituem diferentes grupos de identidade (ainda não destacados pelo Censo) com diferentes práticas, características e formas de inserção na realidade social. Os evangélicos, por sua vez, já se constituem enquanto uma categoria que aglutina um número indefinido de denominações e igrejas com dezenas de tendências teológicas, culturais, políticas e com complexas articulações entre si. Os movimentos pentecostais e neopentecostais forneceram o maior impulso para o crescimento e visibilidade pública do grupo, mas, as características desses movimentos já se disseminaram e diluíram parcialmente entre as igrejas e denominações e não se percebe nenhuma tendência significativa de centralização.

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), reconhecida pela agressividade midiática e por suas inovações polêmicas, curiosamente apresenta um quadro de pequeno decréscimo em sua participação nacional (de 1,24% em 2000 para 0,98% em 2010) e um pequeno crescimento em Pernambuco (de 0,61% para 0,7%). As Assembleias de Deus, que constituem a maior das igrejas pentecostais, é a única das grandes denominações a crescer expressivamente na última década (de 4,96% para 6,46% no Brasil, e de 7,23% para 9,12% em PE). Observe-se, todavia, que as Assembleias de Deus já se configuram como uma denominação bastante fragmentada em dezenas de ministérios e convenções com diversificados tamanhos e características, não se apresentam como uma igreja orgânica e unificada. Destacam-se, portanto, em 2010, as “outras evangélicas de origem pentecostal” (2,76% no Brasil e 1,71% em PE) e as “evangélicas não determinadas” (4,83% no Brasil e 3,52% em PE), mostrando que ainda há muito a ser pesquisado sobre esses movimentos. É digno de nota também o crescimento marcante dos luteranos em Pernambuco (de 0,01% para 0,07%) e no Recife (de 0,02% para 0,11%), na contramão do decréscimo em nível nacional (de 0,63% para 0,52%).

Outro dado a ser examinado com bastante cuidado diz respeito ao percentual dos sem religião. Ao contrário do que possa parecer, a categoria dos sem religião não representa diretamente o percentual de ateus e agnósticos na população. Neste Censo 2010 o IBGE distinguiu dentre os sem religião (8,04% no Brasil e 10,40% em PE) aqueles que se declaravam ateus (0,32% no Brasil e 0,12% em PE), agnósticos (0,07% no Brasil e 0,06% em PE) e simplesmente sem religião (7,65% no Brasil e 10,22% em PE) confirmando que, como alguns pesquisadores já haviam sugerido (Rodrigues, 2010; Novaes, 2004), a grande maioria das pessoas que se declaram sem religião apontam a sua não filiação ou não identificação (permanente ou temporária) com qualquer denominação ou instituição religiosa, não necessariamente sua ruptura com a religiosidade. Desse modo, a categoria dos sem religião parece constituir-se como mais um índice de pluralização e dinamização do campo religioso, não de seu esvaziamento.
Fonte: IBGE – Censo Demográfico

O crescimento da proporção dos sem religião, que vinha praticamente dobrando a cada década, desacelerou bastante entre 2000 e 2010 (de 7,35% para 8,04% no Brasil, e de 9,46% para 10,40% em PE). Mesmo assim, o índice atingiu um patamar importante e ainda apresentou um crescimento significativo no período. Deve-se ressaltar que Pernambuco e Bahia, mais uma vez, apresentam uma proporção de sem religião muito acima da média dos outros estados do nordeste. Também é interessante perceber que, embora o percentual dos sem religião em Pernambuco esteja bem acima da média nacional, o percentual de ateus e agnósticos fica abaixo dessa média. Esses dados parecem fortalecer a percepção de que vivenciamos ainda um pleno processo de redefinição do campo religioso nesses estados.

A expansão evangélica no litoral e a reconfiguração do campo religioso pernambucano

A discussão específica dos números sobre o campo religioso em Pernambuco é importante para demonstrar que esse processo de pluralização não ocorre de forma homogênea ou bem distribuída no país ou mesmo nos estados. O Atlas da Filiação Religiosa no Brasil (Jacob et al., 2003), ao analisar os dados sobre religião até o Censo 2000, indica que os três principais fatores relacionados à diversificação religiosa no território brasileiro a partir dos anos de 1980 são: a) a colonização por populações protestantes (em algumas regiões do Sul e Sudeste); b) a migração em massa (especialmente em certas regiões do Norte e Centro-oeste); c) A urbanização acelerada (sobretudo no litoral e nos principais centros econômicos). A pluralização do campo religioso em Pernambuco parece estar relacionada principalmente aos dois últimos fatores. Tanto a migração quanto a urbanização são fenômenos que provocam processos de “desenraizamento” ou “destradicionalização” de grandes contingentes de população, demandando a adaptação a novas situações e abrindo espaço para a articulação e propagação de novas alternativas religiosas. Esse espaço foi conquistado principalmente pelos grupos (neo)pentecostais no Brasil, mas, a pluralização religiosa também criou condições para a afirmação de identidades anteriormente negadas ou consideradas como apêndices sincréticos do catolicismo popular, como acontecia com as religiões afro-brasileiras, indígenas e, parcialmente, com o próprio espiritismo.

A origem do pentecostalismo em Pernambuco (entre 1916 e 1918) está relacionada às famílias dos migrantes nordestinos que entraram em contato com os fundadores e primeiros missionários das Assembléias de Deus no Pará. Até o final da década de 1980, entretanto, os católicos ainda representavam mais de 85% da população do estado. Na década de 1980 o percentual dos sem religião triplica em Pernambuco e, na década seguinte, a proporção de evangélicos dobra enquanto o contingente de católicos despenca dez pontos percentuais. A década de 1990 parece marcar, desse modo, o grande ponto de inflexão desse movimento de pluralização do campo religioso no estado. Entre 2000 e 2010 o percentual de católicos cai mais oito pontos (de 74,52% para 65,95), o de evangélicos continua a crescer de forma significativa (de 13,53% para 20,34%), e cresce também o percentual de espíritas (de 1% para 1,4%) e dos que se declaram adeptos do Candomblé (de 0,05% para 0,08%). No mesmo período cai a proporção dos que se declaram umbandistas (de 0,1% para 0,05%) o que pode estar relacionado ao persistente estigma contra a umbanda, em contraposição a uma tendência crescente de valorização cultural do Candomblé. Surge também, em 2010, um contingente de 0,03% da população que se declara como praticante de “tradições indígenas”, o que pode ser um indicativo da presença dos praticantes da Jurema Sagrada no estado. Pode ser notada, ainda, a presença diferenciada dos judeus, com percentual bem acima da média do Nordeste, tanto em Pernambuco (0,03%) quanto em Recife (0,05%).















Fonte: IBGE – Censo Demográfico

A pluralização religiosa não ocorre igualmente e na mesma intensidade em todas as regiões do estado. Ao mesmo tempo em que metade dos municípios do interior permanece com um índice de mais de 85% de católicos em 2010, principalmente nas regiões do Agreste e Sertão Pernambucano, a Mata Pernambucana apresenta atualmente um índice de 61,59% de católicos e a Região Metropolitana do Recife de apenas 50,29% de católicos. Ou seja, praticamente metade da população da Região Metropolitana, hoje, já não se declara católica. Os centros mais urbanizados do interior também apresentaram uma queda acentuada no percentual de católicos na última década, especialmente os municípios de Caruaru (de 77,17% para 66, 37%) e Petrolina (de 80,09% para 73,09%), enquanto a proporção de evangélicos praticamente dobrou nessas cidades no mesmo período. Há ainda outro fator que deve ser levado em conta nessa análise, entretanto, que é a relação entre religião, renda e ocupação territorial urbana. Um fenômeno curioso que se destaca, nesse contexto, é o surgimento de vários municípios na periferia ou no entorno da Região Metropolitana do Recife com proporções entre católicos e outras religiões ainda menores que os registrados na capital.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Em 2000, quatro municípios pernambucanos já apresentavam uma proporção de menos de 50% de católicos (Cabo de Santo Agostinho, 49,54%; Itapissuma, 45,92%; Rio Formoso, 45,84%; Sirinhaém, 43,95%). Em 2010, nada menos que dezenove municípios do litoral continental pernambucano (mais Fernando de Noronha) passaram a possuir menos de 50% de católicos (ver Tabela). Quatro desses municípios exibiram uma queda de cerca de vinte pontos no percentual de católicos na última década (Água Preta, de 64,07% para 41,11%; Ipojuca, de 61,95% para 41,04%; Moreno, de 64,39% para 44,98%; Tamandaré, de 61,19% para 40,43%). Fernando de Noronha, que por suas condições específicas exige um estudo especial, vivenciou uma queda de vinte e oito pontos percentuais (de 73,8% para 45,65%). A partir desse movimento, o Censo 2010 registrou pela primeira vez na história do estado (ao menos desde a expulsão dos holandeses) a existência de duas cidades pernambucanas com população majoritariamente evangélica ou protestante (Rio Formoso, com 35,86% de evangélicos e 34,14% de católicos; Sirinhaém, com 38,51% de evangélicos e 33,22% de católicos). O maior percentual de evangélicos, não obstante, continua a ser o de Abreu e Lima (40,47%).

População por religião em municípios com menos de 50% de católicos em Pernambuco (%)
Município
Católicos
Evangélicos
Espíritas
Umbanda e Candomblé
Outros grupos
Sem Religião
1. Abreu e Lima
41,31
40,47
1,25
0,21
1,76
14,99
2. Agua Preta
41,11
37,45
0,04
--
0,37
20,34
3. Araçoiaba
48,51
27,2
0,1
0,04
2,94
21,19
4. Barreiros
46,43
36,42
0,13
0,1
0,84
15,78
5. Cabo de Santo Agostinho
37,62
36,88
0,54
0,08
2,54
21,75
6. Camaragibe
49,74
31,22
1,29
0,11
2,51
14,93
7. Escada
47,66
29,87
0,34
0,07
1,09
20,89
8. Fernando de Noronha*
45,65
37,78
3,72
0,18
0,37
12,08
9. Igarassu
48,29
35,17
0,57
0,19
2,73
12,79
10. Ipojuca
41,04
35,46
0,28
--
1,32
21,88
11. Itapissuma
43,79
29,22
0,21
0,14
2,76
23,35
12. Jaboatão dos Guararapes
47,34
31,44
2,18
0,16
2,6
16,16
13. Moreno
44,98
36,24
0,43
0,04
1,69
16,56
14. Paulista
49,03
30,23
3,21
0,32
2,46
14,54
15. Ribeirão
45,81
35,02
0,68
0,02
1,17
17,3
16. Rio Formoso
34,14
35,86
0,05
0,12
0,8
29,01
17. São José de Coroa Grande
42,76
36,58
0,44
0,05
0,72
19,45
18. São Lourenço da Mata
49,82
30,42
1,53
0,33
1,44
16,4
19. Sirinhaém
33,22
38,51
0,18
--
2,95
25,14
20. Tamandaré
40,46
37,93
0,07
--
1,02
20,52
Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Em parte, esse fenômeno no litoral continental pode ser explicado pelos processos agudos de urbanização e (re)fluxo migratório desencadeados, sobretudo, pelas obras da Refinaria Abreu e Lima e do Complexo Industrial de Suape. Outro aspecto que parece estar relacionado a esse movimento, porém, é que a maior parte do percentual de pentecostais se concentra nas camadas de menor renda da população, que tendem a ocupar as regiões e cidades periféricas em relação aos grandes centros urbanos (fenômenos semelhantes podem ser observados nos litorais da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro).

Cartograma: Municípios com menos de 50% de católicos em Pernambuco




Torna-se evidente que a transformação sociocultural representada pelo intenso processo de pluralização do campo religioso em diversas regiões de Pernambuco traz, inevitavelmente, implicações importantes para vida social, cultural e política do estado. A primeira e mais visível dessas implicações diz respeito às questões do reconhecimento, da (in)tolerância e da convivência não somente entre os diferentes grupos religiosos, mas, também entre instituições como o Estado, a mídia, a academia e essas “novas” identidades e grupos. Não é por acaso que se tornam cada vez mais frequentes episódios de conflitos entre grupos e personalidades religiosas e, ao mesmo tempo, de desentendimento, estigmatização ou mesmo perseguição contra grupos minoritários, em especial as religiões de matriz africana, inclusive por agentes públicos. Outra implicação que merece destaque está relacionada ao campo da educação. Embora a educação no Brasil tenha sido oficialmente secularizada a partir do processo de consolidação da República, é amplamente reconhecido que a maioria das estruturas curriculares, práticas pedagógicas e dinâmicas escolares vigentes no país foram desenvolvidas ainda em um contexto de hegemonia de uma cultura nacional católica. Nesse contexto, questões como a diversidade de identidades, discursos e práticas religiosas nas escolas, na mídia e na sociedade ainda não eram visível e seriamente reconhecidas como questões prementes para a vida social e para a formação dos sujeitos. Os dilemas despertados pela pluralização religiosa, todavia, não precisam ser tratados necessariamente ou simplesmente pela perspectiva da acomodação dos diferentes grupos em um sistema “multicultural” de diferenças. No qual cada grupo passe a ocupar um espaço social (físico ou simbólico) apartado, estático e pré-determinado como forma de evitar divergências e conflitos. A pluralização do campo religioso pode mesmo contribuir, se não for reduzida ao modelo de um mercado de disputa por fiéis ou de comercialização de bens simbólicos, para um aprofundamento das experiências de participação coletiva e de construção democrática em uma população que foi longamente alijada dessas experiências.

Referências bibliográficas

JACOB, Cesar et al. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Loyola, 2003. 
NOVAES, Regina. Os jovens sem religião: ventos secularizantes, “espírito de época” e novos sincretismos. Notas preliminares. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, p. 321-330, 2004. 
RODRIGUES, Denise. Juventude sem religião: uma crise do pertencimento institucional no Brasil. Teoria e Sociedade, v. 18, n. 1, p. 66-93, 2010.