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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Hegel, os hegelianos e o Romantismo 2: o acarajé absoluto



Jonatas Ferreira

O lugar do Romantismo na História

Em seu livro O Belo e o Destino: uma introdução à filosofia de Hegel, Márcia Gonçalves afirma que a estética hegeliana estaria estruturada em torno de três pressupostos básicos. Em grande medida, essa afirmação sintetiza o que viemos dizendo até aqui e adianta um outro ponto que ainda trataremos. Os eixos teóricos dos textos estéticos de Hegel, assim, seriam os seguintes: “1. O conceito de destino como oposição entre liberdade e necessidade; 2. O conceito de beleza como idealização perfeita do sensível ou como harmonia entre a idéia livre e sensível contingente; 3. O conceito evolutivo de arte como superação crescente do sensível pelo espírito” (Gonçalves, 2001, p. 17). Desses pontos, havíamos já discorrido sobre o segundo e o terceiro. Deixaremos para um próximo post o desenvolvimento do conceito de destino.

Interessa agora compreender como a arte romântica produz uma harmonia particular entre a contingência do material sensível e a “idéia livre”, o conceito, assim como procurar entender o lugar que o Romantismo ocupa no processo de “superação crescente do sensível pelo espírito”. E isso por um motivo muito simples: será a partir dessa apreciação que Hegel entenderá o lugar de sua própria filosofia, e de sua estética, na trajetória de desenvolvimento do Espírito.

Nesse sentido, recordemos o que já dissemos anteriormente: parece suspeito a Hegel qualquer projeto que proponha retirar o ser humano de sua alienação, de sua fragmentação com relação a si mesmo e com relação ao mundo que o cerca, que signifique retornar a uma relação imediata com a natureza. Esse poderia ser o projeto de Rousseau, ou ao menos daquilo que encontramos expresso e malguns de seus textos, mas não o de alguém que defende a realização progressiva do espírito absoluto na terra. Se tal unidade tivesse alguma viabilidade para além do contingente, raciocina Hegel, ela não teria sido superada por uma forma mediada pela razão e pela técnica. O amor romântico pode dar a sensação momentânea de plenitude, mas ela é passageira; do mesmo modo, é possível dizer que uma relação imediata com a natureza em que predominem a harmonia, proporção e o sentimento vital que nos desperta a beleza, é, para Hegel, fundamentalmente instável, incapaz de forjar um projeto civilizador. Ou seja, tal “imediação” é necessariamente contingente e, enquanto, tal afasta o espírito de sua mais alta vocação.
“Uma unidade natural do pensar e do intuir é aquela da criança, do animal, a qual se pode chamar no máximo de sentimento, mas não de espiritualidade. O homem, entretanto, teve de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, passar pelo trabalho e pela atividade do pensamento, para só então, enquanto vencedor desta sua separação da natureza, ser aquilo que é. Aquela unidade unidade imediata é apenas abstrata; verdade que é em si, não verdade efetiva. Não é somente o conteúdo que precisa ser verdadeiro, mas também a forma” (Hegel, apud Gonçalves, 2001, p. 18)

Se nos detivermos no Romantismo alemão, perceberemos, todavia, que a busca de unidade entre o ser humano e a natureza diz muito, mas não diz coisas fundamentais. Tomemos as telas de Caspar David Friedrich que ilustraram vários posts que publicamos aqui – quem não as viu, é só utilizar as palavras-chave do blog. No lugar da integração entre o ser humano e a natureza, vemos, pelo contrário, uma natureza inóspita, seres humanos desamparados em sua pequenez. O Romantismo, argumentamos, não foi apenas o espaço de busca de uma beleza perdida, o gozo de um sentimento de harmonia entre a exterioridade do mundo e a interioridade de nossa capacidade de produzir formas, a nostalgia por “um estado de inocência perdida” (Gonçalves, Ibid. 18). Uma das heranças do kantismo levada adiante pela estética romântica é precisamente o sentimento de desamparo, de finitude, é o centramentro filosófico no humano precisamente naquele espaço onde se percebe sua derrelição.

No que pese essa pequena, mas importante, correção, Hegel apresenta uma síntese dessas possibilidades estéticas modernas de um modo muito mais consciente do que Kant pôde apresentar na Analítica do Sublime. Em sua Estética somos informados com todas as letras que a natureza não deve ser entendida como mais alto parâmetro da beleza. A beleza é sempre de algum modo uma vitória do espírito sobre a exterioridade do mundo natural, ainda que ela não possa prescindir dessa exterioridade para se realizar. É portanto na arte, na produção humana, onde o espírito, a ideia absoluta, pode se tornar consciente de si própria – ainda que ela se exteriorize como natureza. Mas se a ideia absoluta é sempre o horizonte da arte, a pergunta que passamos a fazer é: por que motivo então Hegel não se identifica com de Schiller ou com o idealismo transcendental Schelling?

Schiller e Schelling

Em Schiller, Hegel identifica o mérito de ter em sua poética “considerado as profundidas internas do espírito” (Hegel, 1989, p. 59). De fato, há aspectos importantes a unir os dois autores. Schiller entende que uma das tarefas culturais de seu tempo seria a de procurar elevar cada homem particular à condição de “homem ideal”. Essa idealidade, por seu turno, é representada na figura do Estado que enfeixa e coaduna essas particularidades. Como seria possível alcançar essa situação ideal? Ou o Estado, na qualidade de ente moral, supera as particularidades dos indivíduos, ou as individualidades “se enobreceriam” até chegar à idealidade. “La razón, según Schiller, exige la unidad como tal, lo adecuado a la especie, y la naturaleza pide multiplicidad e individualidad; ambas leyes mandan por igual sobre el hombre” (Hegel, Ibid. p. 60). Isso corresponde perfeitamente ao que julga Hegel com respeito à própria vida, que se particulariza para poder se concretizar, e se perde na mortalidade, para que, na indiferenciação da extinção das indivdualidades, retorne-se à idealidade de uma vida geral, independente da particularidade que ela assume no tempo. A análise hegeliana de Schiller, no entanto, encaminha-se para algo bem mais específico:
En el conflicto entre estas dos partes opuestas, la educación estética debe realizar precisamente la exigencia de su mediación y reconciliación, pues, a juicio de Schiller, tiende a formar las inclinaciones, la sensibilidad, los impulsos y el ánimo de tal manera que la naturaleza se haga racional en sí misma y, en consecuencia, también la razón, la libertad y la sensibilidad salgan de su abstracción, a fin de que, unidas con la parte de la naturaleza, en sí racional, reciban en ella carne y sangre. Lo bello es, por tanto, la formación unitaria de lo racional y lo sensible, entendida como lo verdaderamente real” (Ibid.)

Segundo Márcia Gonçalves, a proposta schilleriana de uma educação estética da humanidade, de uma educação moral com base no ideal exemplar da beleza, toca mais claramente o jovem Hegel, mas é objeto de crítica do Hegel maduro. A arte se encontraria “entre o mundo prosaico da sociedade burguesa, com sua forma alienante de apropriação do mundo natural, e a representação idílica do romantismo, como retorno a um estado original de liberdade imediata na natureza” (Gonçalves, 2001, p. 56). Isso nos retorna a um terreno já percorrido, nomeadamente, a uma crítica da capacidade de encontrar a unidade do espírito através da arte. E nunca devemos esquecer, com salienta Taylor: “O espírito absoluto toma três formas, que são, em ordem ascendente de adequação, arte, religião e filosofia” (Taylor, 1999, p. 466).

É preciso, com respeito ao Romantismo, entender aquilo que Hegel também diz acerca da poesia lírica: ela satisfaz uma necessidade histórica de radicalizar a espiritualidade da arte no sentido da interioridade do ser humano, isto é, no sentido de sua subjetividade. Herdeiro cultural do Cristianismo, na sua valorização da alma do indivíduo, de sua condição de ser moral concebida a partir de sua responsabilidade sobre suas escolhas, pode-se dizer sobre a arte romântica aquilo que é dito sobre a poesia lírica: “O homem, ciente da sua subjectiva interioridade, vê-se a si próprio e torna-se para si mesmo, uma obra de arte” (Hegel, s/d, p. 230). Mas em que sentido o homem transforma a si mesmo em obra de arte? No sentido de que sua idealidade, a espiritualidade que o caracteriza, já não precisa ser projetada sobre o mundo externo, e quando o faz é para encontrar ali apenas um pretexto para reconhecer o sujeito livre, o indivíduo como centro da atividade artística.

É também conhecido o débito que a obra estética de Hegel tem com as reflexões de seu amigo Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. Aqui teremos condições de apontar apenas alguns sinais dessa influência que se operou pela contradição. Ainda estou estudando essa coisa. Mas já posso dizer a partir das próprias observações de Hegel que Schelling é herdeiro legítimo da filosofia transcendental de Fichte, sobre quem já falamos nesse Cazzo. Como Fichte, Schelling procurou fechar as antinomias entre subjetividade e objetividade, ou entre o sujeito que se objetiva e o sujeito objetivado, mediante um princípio absoluto. Em Fichte esse princípio corresponde ao Ato, à própria disposição do sujeito em produzir mundo e conhecimento. Já dissemos aqui o quanto Friedrich Schlegel e sua ideia de uma obra de arte como pura produtividade, com infinita produtividade e imaginação, deve também a esse autor. Schelling encontra sua própria forma de apropriar-se de Fichte. Para ele, o fundamento primordial que cancelaria toda antinomia entre subjetividade e objetividade, espiritualidade e natureza, seria a identidade. Douglas Scott, tradutor de Schelling para o inglês, discorre sobre esse tema da seguinte forma: “Não é o princípio da subjetividade tal como mostrado na consciência humana – sua identidade de si – que constitui aquele primeiro princípio, mas, antes, o princípio da identidade ele próprio implicada naquela configuração” (In Schelling, 1989, p. xxx) . Em outras palavras, o princípio da identidade como categoria ideal se impõe sobre a fragmentação do sujeito. E Scott prossegue: “Não a identidade daquele que conhece e do conhecido [...], mas, antes, a identidade enquanto tal constitui aquele primeiro princípio. Assim, o absoluto se manifesta igualmente tanto nos produtos (reais) da natureza e nos produtos (ideais) do espírito” (Ibid.). O esforço filosófico de Schelling, então, é de encontrar o absoluto que se apresenta tanto na natureza quanto na subjetividade, ou, melhor, que constituiria a essência de ambos, o princípio cósmico, absoluto da identidade entre as coisas. Schelling prepara o terreno para falar de uma “intuição intelectual”, ou seja, de uma intuição que não nos oferece a imediata apreensão do sensível, mas do próprio ato intelectual. A esse respeito, temos as seguintes linhas de Hegel nas Lições sobre a História da Filosofia:
De un modo todavía más fortuito, aparece este saber inmediato como intuición intelectual de lo concreto o identidad de la subjetividad y la objetividad. Esta intuición es intelectual porque es intuición racional y porque, en cuanto conocimiento, forma al mismo tiempo una unidad absoluta con el objeto del conocimiento. Pero esta intuición, aunque sea el conocer mismo, no es todavía nada conocido; es lo no mediado, lo postulado. Debemos tenerla, pues, como algo inmediato; y algo que se puede tener, puede tambíen no tenerse. Por tanto, en cuanto que el supuesto inmediato de la filosofiía es que los individuos tienen la intuición inmediata de esta identidad de lo subjetivo y lo objetivo, esto da a la filosofia de Schelling la apariencia de que su condición exige a los individuos un talento artístico especial, el lenio o un estado especial de ánimo, de que es en general algo fortuito, que sólo se da en los hijos de la fortuna” (Hegel, 1997, p. 492-493)

Para Schelling, portanto, “a objetividade da intuição intelectual é a arte” (apud Hegel, 1997, 495-496). Bem, aparentemente temos aqui algo não muito distante das considerações hegelianas sobre o sentido da arte: o absoluto se objetiva de modo esteticamente, ou melhor, artisticamente. Mas chama nossa atenção na extensa citação acima o fato de que a oportunidade dessa experiência seja dado pela fortuna, conferida a indivíduos talentosos, dotados de gênio. E de pronto já podemos apontas duas coisas: a própria ideia de gênio se choca com aquele pressuposto hegeliano de que nenhum indivíduo é maior que sua cultura e tempo, que o particular não pode ser contraditório com o geral. Safranski (2010) nos sugere que uma tal postura foi bastante conveniente para que Hegel tenha se tornado um filósofo do establishment, no que pese seus pendores iluministas. Porém, há mais aqui. E algo do que há por dizer não é novo em nosso argumento: o espírito não pode ser plenamente expresso na arte. “Éste [el arte] es siempre un modo de la intuición, y esta forma sensible de la existencia no permite que la obra de arte corresponda al espíritu” (Hegel, 1997, p. 497). Mas o que chama atenção na crítica hegeliana é seu alvo romântico: a subjetividade, do gênio, do indivíduo especial que tem acesso a uma intuição intelectual esvaziada da concretude do mundo não pode constituir um fundamento que venha a sanar a alienação, a prosa do mundo, na qual a modernidade se debate. Essa crítica ganha uma dimensão bastante contemporânea quando Hegel critica o que ele chama de “mau infinito” e ironia românticos.

Mau infinito e ironia

Acredito que esses dois temas estão intimamente relacionados na literatura filosófica e sociológica contemporânea, em particular em correntes pós-estruturalistas dessa literatura. E há algo a ser observado logo agora: a ironia é para Hegel fruto de um perspectivismo, de um subjetivismo que corrói a pretensão civilizadora da filosofia por encontrar fundamentos. Estes fundamentos, para ele, derivariam da ideia realizada pela razão no mundo, no concreto do mundo e não à revelia deste. O objeto central de suas críticas aqui é a herança fichteana tal como ela se apresenta no Romantismo e mais particularmente na obra de Friedrich Schlegel. “Fichte establece el yo y, por cierto, un yo abstracto y formal, como princípio absoluto de todo saber, de todo conocimiento y razón” (Hegel, s/d, 61). Mas, ele argumenta, se tomamos como dado de partida esse eu formal e abstrato, “nada es valioso como considerado en sí y para sí” (Ibid., p. 62). (E aqui, por um momento, podemos apreciar de modo aligeirado o quanto o marxismo deve a essa discussão que gira em torno de categorias românticas. Mas passemos adiante.). O que falta à tradição fichteana, ou seja, a Schelling e a Fridrich Schlegel, é exatamente a concretude da objetividade esvaziada por este eu formal.

Mas se nenhum objeto tem um valor intrínseco, um valor que não esteja subsumido no arbítrio do eu, qualquer forma que a expressão filosófica e artística tome será contingente, puro jogo imaginativo, fantasia. Em Schlegel, como já vimos anteriormente, a própria subjetividade não escapa à produtividade infinita da imaginação. Ora, essa subjetividade autopoiética, ou indeterminada, pode agradar ao paladar mais ágil do pensamento pós-estruturalista, mas não a Hegel, um filósofo de sistemas, do fundamento. A análise hegeliana da ironia é nesse sentido bastante atual.
“En aquella posición donde el yo que lo pone y disuelve todo desde sí es el artista, a cuya conciencia ningún contenido se apresenta como absoluto, como válido en y para sí, pues todo contenido se ofrece como aniquilable aparencia puesta por uno mismo, no hay lugar anguno para la mencionada seriedad, puesto que sólo se atribuye validez al formalismo del yo” (Ibid. p. 62)

E mais adiante:
Así, el individuo que vive como artista, ciertamente entra en relaciones con los demás, vive con amigos, personas amadas, etc., prero, como genio, tiene por nula esta relación con una relatividad determinadada, con acciones especiales, así como con lo universal en y para sí, y se comporta irónicamente frente a eso” (Ibid. p. 63)

A ironia romântica seria então fruto de uma imaginação voluntarista, desgarrrada dos objetos como coisas em si e para si. Tendo com tudo apenas uma relação formal, abstrata, pode ironizar tudo, pois nada vale tanto assim. A indeterminação e inquietação formal românticas, base cultural de todo modernismo que virá, é aqui criticada com sendo fundamentalmente niilista. Uma paz confortável com a contingência das formas é inimiga da verdade. A crítica ao subjetivismo, ao niilismo que dele decorre é criticado por Hegel junto com o que ele julga ser um abandono da verdade.
Esa es la significación general de la ironía divina, como concentración del yo en sí mismo, para el cual están rotos todos los vínculos y que sólo quiere vivir en la felcitdad del proprio disfrute. Fue Friedrich von Schlegel el que descubrió esta ironía, y muchos otros han hablado y siguen hablado de ella con mayor o menor acierto o desacierto […] Si el yo se qeuda en esta posición, todo se presenta para él como nulo y vano, con excepción de la propia subjetividad, que con ello es también hueca, vacía y fatua” (Ibid. p. 63).

A ironia torna a distinção entre grande e o pequeno igualmente sem importância, assim como verdadeiro e o falso, bem e o mal. Tudo se encontra, sob sua força corrosiva, borrado sob a mesma fantasia “fátua”. E aqui Hegel faz questão de distinguir entre o irônico e o cômico. Neste último encontramos uma força moralizadora que a ironia desconhece. Essas observações sobre o conhecido traço da obra de Friedrich Schlegel, e que se projeta sobre o Romantismo alemão como um todo, são fundamentais para compreendermos, por fim, a análise dos limites culturais desse movimento cultural. Ele foi fundamental para trazer a interioridade como um momento fundamental de realização do Espírito no mundo, sob sua marca o próprio espiritual na arte se torna mais claro, mas apresenta limites que haverão de ser superados. É necessário que o clássico e o romântico, a adequação formal que fala da verdade do mundo externo e a esta outra que fala da interioridade humana, encontrem-se numa síntese que os supere. Sobre isso falaremos melhor no próximo post.

[publicado sem a mínima revisão: almas generosas , mosamores, identifiquem e apontem meu erros]

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Hegel, os hegelianos e o Romantismo 1: uma empadinha sociológica
















Jonatas Ferreira

Com efeito, se em contraste com os outros materiais sensíveis – madeira, pedra, tinta e som – só a linguagem, a palavra e o discurso constituem o elemento digno de servir a expressão do espírito, também a poesia dramática, por sua vez, que reúne a objectividade lírica, é um género superior, pois apresenta uma acção circunscrita como sendo uma acção real, cujo resultado deriva tanto do carácter íntimo das personagens que a efectuam, como da natureza substancial dos fins e conflictos que a acompanham ou que provoca” (Hegel, Estética. Poesia, s/d, p. 277)

Inveja é uma péssima maneira de começar o ano novo, além de ser uma merda. Mas, para não deixar Artur sozinho, e próspero!, no negócio das iguarias sociológicas, resolvi investir no ramo das empadinhas. É verdade que este é um produto mais perecível que os dropes, alerta-me um amigo empresário. De qualquer modo, dá pra estocar no Kelvinator enquanto o leitor não tiver disposição de consumir o quitute – sobretudo logo após os excessos de final de ano: salsichão, queijo coalho na brasa, franguinho com farofa na praia de Boa Viagem ou alhures; ah, os prazeres da gastronomia, a delícia de escutar Ivete Sangalo, Paulo Diniz nas primeiras horas do ano. Mas, tergiverso. De qualquer modo, tenho de colocar esse texto para fora – temo que o consumo da empadinha se torne ainda menos palatável agora – e dar continuidade ao meu investimento no Romantismo alemão como um campo privilegiado para compreender o surgimento de uma vertente crítica, não positivista no pensamento sociológico.

Assim é que chego a Hegel. E é claro que logo percebemos que a relação inicial que se poderia estabelecer entre o Romantismo de Jena, que viemos trabalhando, e esse grande filósofo seria de oposição. Hegel é um pensador francamente iluminista, defensor qualificado da razão na vida moderna, de uma filosofia científica, um pensador sistemático, e um pensador de sistemas. Como tal, ele antagoniza a sensibilidade romântica, sua ironia, sua crença na estética, na arte como lugar de superação das aporias da vida moderna. Se sob o Romantismo a arte se tornara filosófica, e a partir da poiesis, da produtividade desse espaço, pretendia propor uma superação das antinomias entre razão e entendimento, entre conceito e intuição, entre sujeito absoluto e sujeito objetivo etc., Hegel busca afirmar o papel fundamental, exclusivo, que uma razão científica e histórica teria na busca de superação dessas mesmas fraturas. Ou seja, Hegel reafirma o lugar fundamental da filosofia no projeto moderno. A própria maneira como Hegel apropriou o legado iluminista, bebendo seu cálice de vinho todo 14 de julho e mantendo “ao mesmo tempo uma postura conservadora, fiel ao Estado” (Safranski, 2010, p. 213), o faz suspeitar da ousadia individualista romântica.

Porém, em meio a essas diferenças claras, já encontramos um primeiro ponto de contato entre Hegel e o grupo de Jena – que ele conheceu e criticou tão bem. Se a terapêutica encontrada para certas dificuldades da modernidade difere num e noutro caso, o diagnóstico é amplamente coincidente. A vida moderna radicaliza a tendência que o ser humano tem de se alienar de si próprio, de encontrar-se fraturado entre esferas de exigência díspares. A alienação é um diagnóstico comum tanto ao Romantismo quanto em Hegel - e Hegel e Marx teriam pouco a dizer acerca desse tema sem a contribuição romântica, sem o seu gesto artístico e filosófica de procurar encontrar um espaço fundamental no qual o sujeito possa estar pleno consigo mesmo. Desde Fichte, a palavra alienação entra no vocabulário da cultura alemã. Quem não se lembra a esse respeito do Sistema da Vida Ética, do diagnóstico Hegeliano de que o ser humano é o ser indireto, alienado de si, mas que essa alienação (ou seja, o fato de não estarmos plenos naquilo que fazemos, de sempre colocarmos um intermediário entre o nosso desejo e sua fruição) era histórica e que portanto haveria de ser superada uma vez que ele realizasse em si plenamente a razão, a universalidade do espírito. O Romantismo, como vimos, acreditava que caberia à arte realizar essa tarefa, assim como lutava por uma mudança radical da relação instrumentalizadora, distanciada que o homem moderno passara a estabelecer com a natureza. Acerca desse último tema, temos de Hegel (1989, p. 49) a seguinte passagem:
Cierto que puede asumirse la forma de hablar corriente según la cual el hombre ha de permanecer en unidad inmediata con la naturaleza; pero tal unidad en su abstracción es precisamente barbarie y salvajismo. Y el arte, en cuanto disuelve esta unidad para el hombre, lo eleva con manos suaves sobre la cautividad en la naturaleza”.


Uma segunda maneira de abordar a influência que o Romantismo exerce sobre Hegel é, evidentemente, considerar os seus estudos sobre o belo, sobre a arte. E aqui também teremos o que apreciar. Em Hegel e a sociedade moderna, Charles Taylor considera uma expressão do Romantismo sobre a qual não nos debruçamos até aqui, a obra de Herder, e sua influência na filosofia hegeliana. Comecemos então por considerar a sugestão de Taylor. Tradicionalmente associado ao movimento estético conhecido como “Tempestade e Ímpeto”, Herder opunha-se à análise objetificadora do ser humano que prevaleceria no pensamento iluminsta e que o reduziria à condição de “sujeito de desejos egoístas, em relação aos quais a natureza e a sociedade meramente forneciam os meios de satisfação” (Taylor, 2005, p. 12). No lugar disso, propunha a ideia do homem como “objeto expressivo”. “A vida humana era vista como possuidora de uma unidade mais propriamente análoga à obra de arte, na qual cada parte ou aspecto só encontra seu significado próprio em relação com todos os outros” (Ibid.). Se a vida moderna transforma essa vida num amontoado disparatado de elementos, tais como, “razão e sensibilidade”, “corpo e alma” e se a ciência, raciocina Herder, age de modo a recrudescer essas antinomias, caberia à arte buscar uma síntese expressiva, uma unidade estética da vida.
Hemos dicho ya que el contenido del arte es la idea y que su forma es la configuración imaginativa y sensible de la misma. El arte tiene que hacer el mediador para que ambas partes constituyan una totalidad libre y reconciliada” (Hegel, 1989, p. 66)

Já afirmamos acima que Hegel não compartilhava com a ideia de que a arte seria a mais alta realização do espírito humano, nem que exclusivamente por seu intermédio pudéssemos vencer a alienação inerente a uma vida mediada pelo trabalho e pela técnica. Para ele, a expressão artística, no entanto, fornece ao ser humano uma experiência intelectual e sensível que se diferencia da luta pela sobrevivência, e de um certo nível de animalidade ainda implícita nos cuidados com nossa condição física – muitas décadas depois, Bataille, que estudou Hegel com Kojève na juventude, dirá algo parecido ao analisar as pinturas rupestres das cavernas de Lascaux. E se a arte desempenha aqui um papel tão importante é precisamente porque ela resiste a toda instrumentalização. A arte não é meio para realizar algo que esteja fora de seu próprio sentido; nela o espírito, ou seja, nossa vocação para a universalidade, encontra expressão e, portanto, possibilidade de reconhecimento de sua própria essência. A possibilidade de que cada indivíduo encontre a expressão de sua condição de ser universal, entretanto, só é possível como experiência temporal, o que vale dizer: só é possível dentro de um determinado contexto cultural. E assim: “o Volk como Herder o descreve é o portador de uma determinada cultura e sustenta seus membros, que só podem se isolar ao preço de um grande empobrecimento. Estamos aqui no ponto de origem do nacionalismo moderno. Herder pensa que cada povo tinha seu próprio tema norteador, sua própria maneira de expressão, únicos e insubistituíveis” (Taylor, 2005, p. 13). No expressivismo de Herder, Taylor argumenta, Hegel encontra pela primeira vez uma possibildiade de unidade entre indivíduo e comunidade, corpo e mente. “Como um ser expressivo, o homem tem de recobrar a comunhão com a natureza, que foi rompida pela postura analítica e dissecadora da ciência objetificadora” (Ibid., p. 13 e 14). Para Hegel também, a realização do potencial universal de cada individualidade passa pela cultura nacional onde ela está inscrita. É isso, por exemplo, que constatamos em seu famoso texto dedicado à poesia.
Como a poesia tem por objecto, não as generalidades da abstracção científica, mas todas as ideias da razão individual, encontra a sua principal determinação no carácter nacional que é uma emanação e cujo conteúdo e modo de concepção se torna o seu conteúdo e o seu modo de expressão próprios, o que conduz a um grande número de formas particulares e originais. Com efeito, as poesias oriental, italiana, espanhola, inglesa, romana, grega e alemã diferem umas das outras pelo seu espírito, sentimentos, maneira de conceber o universo, expressão etc”. (Hegel, s/d, p. 37 e 38)

É claro que entendemos os limites da influência de Johann Gottfried von Herder na obra de Hegel. Seu rousseauismo, sua descrença no caráter abstrato do exercício filosófico, na universalidade da razão beira ao irracionalismo. Para ele, o ensino da lógica, da matemática, das ciências, da filosofia com pretensões universais é pedagogicamente artificial e em última instância culturalmente alienantes. A educação do povo deve significar o fortalecimento de cada indivíduo nas lições práticas de sua própria cultura. “O mais alto grau de habilidade filosófica não pode coexistir de modo algum com o mais alto nível de um entendimento sadio; e então a disseminação do primeiro torna-se danoso para povo” (Herder, 11). A especulação filosófica é infinita; sua perturbadora curiosidade opõe-se à tranquilidade do povo. Evidentemente, o anti-iluminismo de Herder não corresponde àquilo que a filosofia hegeliana tem de mais caro, a crença de que a própria razão poderia livrar a modernidade das mazelas da fragmentação, da objetificação e da instrumentalização da vida. Porém, mesmo no irracionalismo de Herder, há lições preciosas a serem aprendidas. Tomemos como exemplo a crítica que ele realiza ao conteúdo abstrato de certas filosofias da ética, sua incapacidade de servir ao homem comum. Há aqui, sem dúvida, ideias muito próximas àquelas que constituíram a base da crítica hegeliana à deontologia kantiana, no que pese uma certa reificação do espírito do povo. Em outras palavras, já encontramos aqui evidência da necessidade de uma realização histórica do espírito, de sua expressão concreta e temporal no mundo. Vejamos o que Herder diz a esse respeito:
Enquanto emitirmos julgamento sobre a perfeição ou imperfeição numa ciência ideal do pensamento sem mostrar essa deusa nas roupas comuns da humanidade, admitiremos muita coisa como bom que, em si mesmo, mostra falhas quando a aplicamos. Certamente o pensamento filosófico é uma perfeição. Mas em que medida essa perfeição é algo para os seres humanos como nós, cujo slogan foi escrita pela natureza, “Viva, reproduza e morra!”, e em que medida pensar de modo filosófico é algo para os cidadãos para quem o Estado fala o slogan “Aja!” é uma questão bastante relevante para o nosso problema” (Herder, p. 10)

Em Hegel, o modo de vida dos seres humanos não é um entrave no caminho da realização de sua plena potencialidade como espírito, isto é, como razão universal e absoluta; é antes o caminho. Assim, a linguagem de uma determinada cultura é a própria substância sobre a qual se abrem as possibilidades dos indivíduos históricos – e mais uma vez aqui escutamos os ecos do nacionalismo de Herder. “O modo de viver é tanto uma maneira de cumprir as funções da vida – nutrição, reprodução e assim por diante – como uma expressão cultural que revela e determina o que somos, nossa “identidade” (Taylor, 2005, p. 37). E essa constatação nos abre a possibilidade de perceber a importância da arte como expressão orgânica e temporal do espírito humano que, na contradição de sua finitude, se projeta em direção ao Espírito Absoluto, ou seja, na realização plena de seu potencial como ser humano. Essa realização, realcemos, seria o fim da alienação humana. E se a arte não é, para Hegel, o fundamento desse projeto, ela é absolutamente vital na tarefa de apresentar à sensibilidade humana, à sua corporeidade, o espírito.

A questão estética em Hegel

Ao propor uma discussão científica, filosófica, do belo artístico, que Hegel entende como sendo o campo total da arte, uma primeira constatação é apresentada: a arte não é algo útil. Comprometido de um modo bastante específico com aquilo que Benjamin chamaria de arte aurática, para ele, a arte tem um fim em si própria, tem sua própria essência, sendo inconcebível que ela venha a se subordinar a um fim que lhe seja externo: engajamento político, moral ou busca de sucesso comercial, por exemplo1. Embora não seja útil, o belo artístico é considerado fundamental, pois em qualquer manifestação artística sempre se trata de expressar de modo sensível o espírito humano, possibilitando, por essa via, o seu reconhecimento. A arte nos apresenta nossa vocação espiritual de modo sensível. E assim, Hegel afirma: “La necesidad general del arte es, pues, lo racional, o sea, el hecho de que el hombre ha de elevar a la conciencia espiritual el mundo interior y el exterior, como un objeto en el que él reconoce su propia mismidad. El hombre satisface la necesidad de esta libertad espiritual en cuanto, por una parte, hace interiormente para sí mismo lo que él es, y a la vez exteriormente ese ser para sí” (Hegel, 1989, p. 34). A arte é, pois, uma forma de mediação entre o sensível e a razão, entre o interno e o externo em que o ser humano expressa sua espiritualidade e testemunha acerca da tendência a espiritualização do cosmos – pois o homem, em sua essência e naquilo que produz, “é o veículo da vida espiritual do Geist” (Taylor, 2005, p. 59).

Em sua qualidade expressiva, a manifestação artística apresenta as contradições e limites de uma espiritualização que é sempre histórica. Retornar à forma como essas contradições foram representadas é seguir, para Hegel, o próprio progresso do espírito humano. “Esta verdad superior, debida al grado de espiritualidad que ha logrado la configuración adecuada al concepto del espíritu, ofrece el punto de partida para la división de la ciencia del arte. Pues el espíritu, antes de llegar al concepto de su esencia absoluta ha de recorrer diversos estadios que se fundan en ese concepto mismo. Y al despliegue del contenido que él se da a si mismo corresponde un curso correlativo de configuraciones artísticas, en cuya forma el espíritu, como artístico, se da a sí mismo la consciencia de sí” (Hegel, 1989, p.68). Que estágios seriam esses? Hegel identifica três grandes estágios que, por seu turno, comportam variações internas: simbólico, clássico e romântico. Discorramos um pouco acerca dessa tipologia, ou melhor, dessas etapas de desenvolvimento do espírito. Através dela, teremos a oportunidade de perceber a teoria da história hegeliana operando como resposta possível à questão fundamental da alienação do ser humano.

Creio que algo fundamental na caracterização de uma arte simbólica seria a maturidade que o ser humano teria para transformar a matéria de acordo com a idealidade do espírito. Assim, a representação, sua qualidade, é uma questão importante para Hegel. A arte simbólica, para ele, evidencia uma imaturidade técnica, mas fundamentalmente uma imaturidade do espírito humano, de colocar-se adequadamente e reconhecer a si em sua idealidade. E por esse motivo ela é “indeterminada”, falta-lhe “clareza” e, portanto, “verdade”. “Como indeterminada, todavía, no tiene en sí misma aquella individualidad que reclama el ideal; su abstracción y unilateralidad hace que la forma exterior sea deficiente y causal. Por eso, la primera forma del arte es más un mero buscar la configuración que una facultad de verdadera representación” (Hegel, 1989, p. 71). Como representação inadequada, mas que já mostra a presença do espírito, de uma razão universal, um leão pode se converter em “determinação abstrata” da força, por exemplo (Ibid.). Mas essa inadequação que o simbólico carrega em si, essa distância entre idéia e expressão concreta, é, ela própria, matéria para a consciência do espírito. “Y cuando la idea, que ya no da expresión a ninguna otra realidad, sale a la luz en todas estas formas y se busca allí en medio de la inquietud y falta de medida de las mismas, pero sin poderse encontrar adecuadamente en ellas, entonces eleva a lo indeterminado y desmedido las formas de la naturaleza y los fenómenos de la realidad” (Ibid.). O simbólico em sua desmedida gera uma arte vocacionada ao sublime, à desmedida que nos remete ao espírito, mas ali não encontra forma adequada de expressão. Seu sentido expressivo é, portanto, negativo.
Dichos aspectos constituyen en general el carácter del primer panteísmo artístico en Oriente, en cual, por una parte, pone la significación absoluta incluso en los peores objetos, y, por otra parte, fuerza violentamente las formas de manifestación para que expresen su concepción del mundo. Con ello se hace bizarro, grotesco y falto de gusto, o bien, despreciando la libertad infinita, pero abstracta de la sustancia, se vuelve contra todas las apariciones como nulas y perecederas. Con ello la significación no puede acuñarse perfectamente en la expresión, y, pese a tanta aspiración e intento, se mantiene, sin embargo, la inadecuación entre idea y forma. Esta es la primera forma de arte, la simbólica, con su búsqueda, efervescencia, enigma y elevación” (Ibid., p. 72)

A forma artística clássica corresponde, para Hegel, à solução de dois problemas que caracterizam o estágio simbólico. Esta última, como vimos, é imperfeita porque a idealidade que ela busca expressar permanece abstrata e porque a forma simbólica permanece inadequada àquele conteúdo. Em outras palavras, o simbólico é prisioneiro de uma representação deficiente, imperfeita da ideia. O progresso do espírito, portanto, age de modo a resolver essa dupla deficiência. A arte clássica traduz perfeitamente conteúdos perfeitos, equilibra harmoniosamente forma e conceito. Esse passo adiante, evidentemente, deve ser entendido não apenas como uma vitória formal, mas como amadurecimento do espírito no sentido do seu auto-reconhecimento. Não é fortuito, portanto, que predomine a idealidade das formas clássicas encontre como principal expressão a forma humana. “Con frecuencia el personificar y humanizar han sido denigrados como si fueran una degradación de lo espiritual. Pero el arte, en tanto tiene que conducir lo espiritual a la intuición sensible, no pude menos de pasar a esta humanización, pues el espíritu sólo en el cuerpo humano aparece de manera adecuadamente sensible” (Hegel, 1989, p. 73). Parece já bastante claro que o espírito caminha no sentido da tradição artística ocidental. Os motivos lógicos e políticos dessa tomada de partido serão discutidos mais adiante. Por ora, repisemos o já dito:
Así la forma queda purificada para expresar en sí el contenido adecuado a ella. Y, por otra parte, si la concordancia entre significación y forma ha de ser perfecta, también la espiritualidad, que constituye el contenido, ha de ser de tal índole que sea capaz de expresarse en la forma natural del hombre, sin decollar por encima de esta expresión en lo sensible y corporal” (Ibid)

A arte clássica consegue uma perfeita harmonia entre forma e conceito. Neste ponto, poderíamos perguntar por qual motivo o espírito não se contenta com esse equilíbrio. Poderíamos dizer que na arte clássica o particular se espiritualiza, que a natureza encontra sua idealidade na forma humana, porém o espírito que aí se expressa não é absoluto. Isso vale dizer que não apenas a trajetória ocidental é aqui privilegiada, mas a tragetória cristã, na qual o destino da espiritualidade é o absoluto. Porém, há algo mais. É preciso que essa espiritualidadade na arte se descubra como subjetividade. Todos sabemos que esse é um conceito moderno, que as formas clássicas de expressão artística não se estruturam a partir de dramas subjetivos. O herói clássico é quase um joguete das forças cósmicas – não fosse o caso de que ele tenta o impossível, se rebelar contra essas forças. O herói clássico não é propriamente responsável por seus atos e, portanto, não é plenamente um sujeito. Ulisses, Aquiles, Édipo, Agamenon procuram assumir o seu destino apesar do fato de que este lhes ultrapassa. E, no entanto, eles pagam o preço. Ao clássico falta interioridade, entende Hegel. Há no clássico um contentamento que é o da finitude, imediato que ainda não descobriu o absoluto, que aceita a natureza como seu destino. Em suma, é a subjetividade como questão religiosa do cristianismo, quer dizer, como primazia do indivíduo responsável por seus atos, e que traduz a espirirualidade como interioridade, que falta ao clássico. Porém realizar esse diagnóstico significa clamar pelo romântico.
Si, de esa manera, el en sí del estadio anterior, la unidad de la naturaleza humana y de la divina, es elevado de una unidad inmediata a una unidad consciente, entonces el verdadero elemento para la realidad de ese contenido ya no es la inmediata existencia sensible de lo espriritual, la forma corporal humana, sino la interioridad consciente de sí misma” (Hegel, 1989, p. 75)
Para Hegel, o mundo interior constitui o terreno fundamental do romântico. Mas o mergulho nessa interioridade, na medida em que despreza o universal, o racional, e mesmo o formal é também o limite do Romantismo. “Pues, a diferencia de lo clásico, lo externo ya no tiene el concepto y la significación en si mismo, sino en el ánimo, que ya no encuentra su aparición en lo exterior y en su forma de realidad, sino en si mismo” (Ibid.). Essa talvez não seja apenas a limitação do Romantismo, mas da arte de um modo amplo como força capaz de promover a realização do espírito absoluto na terra. Falaremos mais a esse respeito.

[Continua. Texto sem qualquer revisão – olhos atentos e generosos, gente boa do norte e do sul, identifiquem os bugs].
1Há uma passagem muito bonita da Estética em que Hegel diferencia o prazer estético diante de um objeto artístico da relação que o apetite estabelece com seus objetos. Ambas são relações ditadas pela sensibilidade, mas: “En esa relación negativa el apetito exige para sí no sólo la apariencia superficial de las cosas exteriores, sino las cosas mismas en su concreta existencia sensible. El apetito no quedaría servido con meras pinturas de madera, materia que él quisiera utilizar, o de animales, que él quisiera consumir. Igualmente, el apetito no puede dejar que el objeto subsista en su libertad, pues él tiende a suprimir a suprimir esta autonomía y libertad de las cosas exteriores, a fin de mostrar que ellas están ahí solamente para ser destruidas y consumidas” (Hegel, 1989, p. 38).

domingo, 4 de abril de 2010

O Romantismo e as Ciências Sociais 6


Caspar David Friedrich: Manhã de Páscoa (ca. 1833)

Jonatas Ferreira

Recentemente, seguidores do trabalho de Alvin Gouldner (The Coming Crisis of Sociology, 1970) têm reafirmado a tese de que a feitura da sociologia tem sido marcada por dois estilos estéticos, o Classicismo e o Romantismo (OSSEWARD, 2007; DE LA FUENTE, 2007), e que é preciso compreender o peso dessa marca, dessa demarcação para procurar operar fora de sua esterilidade. Num certo sentido, essa afirmação consubstancia a importância que atribuímos à cultura Romântica no que diz respeito à emergência de uma sociologia não-positivista na Europa – e que Gouldner, Osseward e de la Fuente chamariam de não-clássica. Nossa intenção, entretanto, não é encontrar estilos, tipos-ideais, categorias, que venham a enquadrar a produção sociológica em limites epistemológicos, ou, mais propriamente, estéticos. Pelo contrário, a própria pergunta da qual partimos (“o que é mesmo Romantismo?”) indica que nosso esforço é de algum modo genealógico. A emergência do Romantismo diz respeito, por exemplo, a tensões de classe efetivas, históricas que lhe atribuem um sentido sem o qual teríamos diante de nós apenas um conceito vazio. Assim, podemos dizer, especificamente que o Romantismo de Novalis e dos irmãos Schlegel teve uma influência considerável no florescimento da hermenêutica de Schleiermacher. Em 1797, organiza-se em torno dos irmãos Schlegel um grupo de discussão do livro Teoria da Ciência, de Fichte. Além de Friedrich e August, o grupo era composto por Novalis, Tieck, Schelling e Schleiermacher (Bornheim, 2005, p. 91). E é nesse espaço que tal influência se opera.


segunda-feira, 29 de março de 2010

O Romantismo e as Ciências Sociais 5


Géricault: Evening Landscape with an Acqueduct; 1818

Jonatas Ferreira

Proponho uma citação como ponto de partida a esse quinto post acerca da importância do Romantismo nas ciências sociais. A citação começaria com uma definição de sociedade:

“entidade moral com qualidades específicas distintas daquelas dos seres individuais que a compõem, assim como os componentes químicos têm propriedades que não devem a quaisquer de seus elementos. Se a agregação resultante dessas vagas relações de fato formassem um corpo social, haveria uma sorte de sensório comum que sobreviveria à correspondência das partes. O bem e o mal públicos não seriam apenas a soma do bem e do mal individuais, como uma simpes agregação, mas residiriam na relação que os une. Seria maior que a soma, e o bem-estar público não seria o resultado da felicidade dos indivíduos, mas antes sua fonte”.



quarta-feira, 24 de março de 2010

O Romantismo e as Ciências Sociais 4


Caspar David Friedrich; On a Sailing Ship (ca. 1819)

Jonatas Ferreira

Desde O Conceito de Crítica no Romantismo Alemão, publicado por Walter Benjamin em 1920, a filosofia fichteana tem sido considerada um caminho inevitável entre Kant e os primeiros românticos na Alemanha. Johann Gottlieb Fichte é o filho ilegítimo da filosofia crítica - nas páginas introdutórias de Ciência do Conhecimento somos informados que o próprio Kant rejeitava essa influência e parentesco. Poucos, todavia, negariam que Fichte tanha trabalhado, não importa quão subversivamente, sobre uma arquitetura que era kantiana. Recorro nos próximos dois parágrafos a um pequeno texto que já havia publicado no Cazzo sobre o assunto – já ali eu falava de minha má-vontade em resumir o argumento de Ciência do Conhecimento. Modificarei aquele texto apenas cosmeticamente.