Jonatas Ferreira
O lugar do Romantismo na História
Em seu livro O Belo e o Destino: uma introdução à filosofia de Hegel, Márcia Gonçalves afirma que a estética hegeliana estaria estruturada em torno de três pressupostos básicos. Em grande medida, essa afirmação sintetiza o que viemos dizendo até aqui e adianta um outro ponto que ainda trataremos. Os eixos teóricos dos textos estéticos de Hegel, assim, seriam os seguintes: “1. O conceito de destino como oposição entre liberdade e necessidade; 2. O conceito de beleza como idealização perfeita do sensível ou como harmonia entre a idéia livre e sensível contingente; 3. O conceito evolutivo de arte como superação crescente do sensível pelo espírito” (Gonçalves, 2001, p. 17). Desses pontos, havíamos já discorrido sobre o segundo e o terceiro. Deixaremos para um próximo post o desenvolvimento do conceito de destino.
Interessa agora compreender como a arte romântica produz uma harmonia particular entre a contingência do material sensível e a “idéia livre”, o conceito, assim como procurar entender o lugar que o Romantismo ocupa no processo de “superação crescente do sensível pelo espírito”. E isso por um motivo muito simples: será a partir dessa apreciação que Hegel entenderá o lugar de sua própria filosofia, e de sua estética, na trajetória de desenvolvimento do Espírito.
Nesse sentido, recordemos o que já dissemos anteriormente: parece suspeito a Hegel qualquer projeto que proponha retirar o ser humano de sua alienação, de sua fragmentação com relação a si mesmo e com relação ao mundo que o cerca, que signifique retornar a uma relação imediata com a natureza. Esse poderia ser o projeto de Rousseau, ou ao menos daquilo que encontramos expresso e malguns de seus textos, mas não o de alguém que defende a realização progressiva do espírito absoluto na terra. Se tal unidade tivesse alguma viabilidade para além do contingente, raciocina Hegel, ela não teria sido superada por uma forma mediada pela razão e pela técnica. O amor romântico pode dar a sensação momentânea de plenitude, mas ela é passageira; do mesmo modo, é possível dizer que uma relação imediata com a natureza em que predominem a harmonia, proporção e o sentimento vital que nos desperta a beleza, é, para Hegel, fundamentalmente instável, incapaz de forjar um projeto civilizador. Ou seja, tal “imediação” é necessariamente contingente e, enquanto, tal afasta o espírito de sua mais alta vocação.
“Uma unidade natural do pensar e do intuir é aquela da criança, do animal, a qual se pode chamar no máximo de sentimento, mas não de espiritualidade. O homem, entretanto, teve de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, passar pelo trabalho e pela atividade do pensamento, para só então, enquanto vencedor desta sua separação da natureza, ser aquilo que é. Aquela unidade unidade imediata é apenas abstrata; verdade que é em si, não verdade efetiva. Não é somente o conteúdo que precisa ser verdadeiro, mas também a forma” (Hegel, apud Gonçalves, 2001, p. 18)
Se nos detivermos no Romantismo alemão, perceberemos, todavia, que a busca de unidade entre o ser humano e a natureza diz muito, mas não diz coisas fundamentais. Tomemos as telas de Caspar David Friedrich que ilustraram vários posts que publicamos aqui – quem não as viu, é só utilizar as palavras-chave do blog. No lugar da integração entre o ser humano e a natureza, vemos, pelo contrário, uma natureza inóspita, seres humanos desamparados em sua pequenez. O Romantismo, argumentamos, não foi apenas o espaço de busca de uma beleza perdida, o gozo de um sentimento de harmonia entre a exterioridade do mundo e a interioridade de nossa capacidade de produzir formas, a nostalgia por “um estado de inocência perdida” (Gonçalves, Ibid. 18). Uma das heranças do kantismo levada adiante pela estética romântica é precisamente o sentimento de desamparo, de finitude, é o centramentro filosófico no humano precisamente naquele espaço onde se percebe sua derrelição.
No que pese essa pequena, mas importante, correção, Hegel apresenta uma síntese dessas possibilidades estéticas modernas de um modo muito mais consciente do que Kant pôde apresentar na Analítica do Sublime. Em sua Estética somos informados com todas as letras que a natureza não deve ser entendida como mais alto parâmetro da beleza. A beleza é sempre de algum modo uma vitória do espírito sobre a exterioridade do mundo natural, ainda que ela não possa prescindir dessa exterioridade para se realizar. É portanto na arte, na produção humana, onde o espírito, a ideia absoluta, pode se tornar consciente de si própria – ainda que ela se exteriorize como natureza. Mas se a ideia absoluta é sempre o horizonte da arte, a pergunta que passamos a fazer é: por que motivo então Hegel não se identifica com de Schiller ou com o idealismo transcendental Schelling?
Schiller e Schelling
Em Schiller, Hegel identifica o mérito de ter em sua poética “considerado as profundidas internas do espírito” (Hegel, 1989, p. 59). De fato, há aspectos importantes a unir os dois autores. Schiller entende que uma das tarefas culturais de seu tempo seria a de procurar elevar cada homem particular à condição de “homem ideal”. Essa idealidade, por seu turno, é representada na figura do Estado que enfeixa e coaduna essas particularidades. Como seria possível alcançar essa situação ideal? Ou o Estado, na qualidade de ente moral, supera as particularidades dos indivíduos, ou as individualidades “se enobreceriam” até chegar à idealidade. “La razón, según Schiller, exige la unidad como tal, lo adecuado a la especie, y la naturaleza pide multiplicidad e individualidad; ambas leyes mandan por igual sobre el hombre” (Hegel, Ibid. p. 60). Isso corresponde perfeitamente ao que julga Hegel com respeito à própria vida, que se particulariza para poder se concretizar, e se perde na mortalidade, para que, na indiferenciação da extinção das indivdualidades, retorne-se à idealidade de uma vida geral, independente da particularidade que ela assume no tempo. A análise hegeliana de Schiller, no entanto, encaminha-se para algo bem mais específico:
“En el conflicto entre estas dos partes opuestas, la educación estética debe realizar precisamente la exigencia de su mediación y reconciliación, pues, a juicio de Schiller, tiende a formar las inclinaciones, la sensibilidad, los impulsos y el ánimo de tal manera que la naturaleza se haga racional en sí misma y, en consecuencia, también la razón, la libertad y la sensibilidad salgan de su abstracción, a fin de que, unidas con la parte de la naturaleza, en sí racional, reciban en ella carne y sangre. Lo bello es, por tanto, la formación unitaria de lo racional y lo sensible, entendida como lo verdaderamente real” (Ibid.)
Segundo Márcia Gonçalves, a proposta schilleriana de uma educação estética da humanidade, de uma educação moral com base no ideal exemplar da beleza, toca mais claramente o jovem Hegel, mas é objeto de crítica do Hegel maduro. A arte se encontraria “entre o mundo prosaico da sociedade burguesa, com sua forma alienante de apropriação do mundo natural, e a representação idílica do romantismo, como retorno a um estado original de liberdade imediata na natureza” (Gonçalves, 2001, p. 56). Isso nos retorna a um terreno já percorrido, nomeadamente, a uma crítica da capacidade de encontrar a unidade do espírito através da arte. E nunca devemos esquecer, com salienta Taylor: “O espírito absoluto toma três formas, que são, em ordem ascendente de adequação, arte, religião e filosofia” (Taylor, 1999, p. 466).
É preciso, com respeito ao Romantismo, entender aquilo que Hegel também diz acerca da poesia lírica: ela satisfaz uma necessidade histórica de radicalizar a espiritualidade da arte no sentido da interioridade do ser humano, isto é, no sentido de sua subjetividade. Herdeiro cultural do Cristianismo, na sua valorização da alma do indivíduo, de sua condição de ser moral concebida a partir de sua responsabilidade sobre suas escolhas, pode-se dizer sobre a arte romântica aquilo que é dito sobre a poesia lírica: “O homem, ciente da sua subjectiva interioridade, vê-se a si próprio e torna-se para si mesmo, uma obra de arte” (Hegel, s/d, p. 230). Mas em que sentido o homem transforma a si mesmo em obra de arte? No sentido de que sua idealidade, a espiritualidade que o caracteriza, já não precisa ser projetada sobre o mundo externo, e quando o faz é para encontrar ali apenas um pretexto para reconhecer o sujeito livre, o indivíduo como centro da atividade artística.
É também conhecido o débito que a obra estética de Hegel tem com as reflexões de seu amigo Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. Aqui teremos condições de apontar apenas alguns sinais dessa influência que se operou pela contradição. Ainda estou estudando essa coisa. Mas já posso dizer a partir das próprias observações de Hegel que Schelling é herdeiro legítimo da filosofia transcendental de Fichte, sobre quem já falamos nesse Cazzo. Como Fichte, Schelling procurou fechar as antinomias entre subjetividade e objetividade, ou entre o sujeito que se objetiva e o sujeito objetivado, mediante um princípio absoluto. Em Fichte esse princípio corresponde ao Ato, à própria disposição do sujeito em produzir mundo e conhecimento. Já dissemos aqui o quanto Friedrich Schlegel e sua ideia de uma obra de arte como pura produtividade, com infinita produtividade e imaginação, deve também a esse autor. Schelling encontra sua própria forma de apropriar-se de Fichte. Para ele, o fundamento primordial que cancelaria toda antinomia entre subjetividade e objetividade, espiritualidade e natureza, seria a identidade. Douglas Scott, tradutor de Schelling para o inglês, discorre sobre esse tema da seguinte forma: “Não é o princípio da subjetividade tal como mostrado na consciência humana – sua identidade de si – que constitui aquele primeiro princípio, mas, antes, o princípio da identidade ele próprio implicada naquela configuração” (In Schelling, 1989, p. xxx) . Em outras palavras, o princípio da identidade como categoria ideal se impõe sobre a fragmentação do sujeito. E Scott prossegue: “Não a identidade daquele que conhece e do conhecido [...], mas, antes, a identidade enquanto tal constitui aquele primeiro princípio. Assim, o absoluto se manifesta igualmente tanto nos produtos (reais) da natureza e nos produtos (ideais) do espírito” (Ibid.). O esforço filosófico de Schelling, então, é de encontrar o absoluto que se apresenta tanto na natureza quanto na subjetividade, ou, melhor, que constituiria a essência de ambos, o princípio cósmico, absoluto da identidade entre as coisas. Schelling prepara o terreno para falar de uma “intuição intelectual”, ou seja, de uma intuição que não nos oferece a imediata apreensão do sensível, mas do próprio ato intelectual. A esse respeito, temos as seguintes linhas de Hegel nas Lições sobre a História da Filosofia:
“De un modo todavía más fortuito, aparece este saber inmediato como intuición intelectual de lo concreto o identidad de la subjetividad y la objetividad. Esta intuición es intelectual porque es intuición racional y porque, en cuanto conocimiento, forma al mismo tiempo una unidad absoluta con el objeto del conocimiento. Pero esta intuición, aunque sea el conocer mismo, no es todavía nada conocido; es lo no mediado, lo postulado. Debemos tenerla, pues, como algo inmediato; y algo que se puede tener, puede tambíen no tenerse. Por tanto, en cuanto que el supuesto inmediato de la filosofiía es que los individuos tienen la intuición inmediata de esta identidad de lo subjetivo y lo objetivo, esto da a la filosofia de Schelling la apariencia de que su condición exige a los individuos un talento artístico especial, el lenio o un estado especial de ánimo, de que es en general algo fortuito, que sólo se da en los hijos de la fortuna” (Hegel, 1997, p. 492-493)
Para Schelling, portanto, “a objetividade da intuição intelectual é a arte” (apud Hegel, 1997, 495-496). Bem, aparentemente temos aqui algo não muito distante das considerações hegelianas sobre o sentido da arte: o absoluto se objetiva de modo esteticamente, ou melhor, artisticamente. Mas chama nossa atenção na extensa citação acima o fato de que a oportunidade dessa experiência seja dado pela fortuna, conferida a indivíduos talentosos, dotados de gênio. E de pronto já podemos apontas duas coisas: a própria ideia de gênio se choca com aquele pressuposto hegeliano de que nenhum indivíduo é maior que sua cultura e tempo, que o particular não pode ser contraditório com o geral. Safranski (2010) nos sugere que uma tal postura foi bastante conveniente para que Hegel tenha se tornado um filósofo do establishment, no que pese seus pendores iluministas. Porém, há mais aqui. E algo do que há por dizer não é novo em nosso argumento: o espírito não pode ser plenamente expresso na arte. “Éste [el arte] es siempre un modo de la intuición, y esta forma sensible de la existencia no permite que la obra de arte corresponda al espíritu” (Hegel, 1997, p. 497). Mas o que chama atenção na crítica hegeliana é seu alvo romântico: a subjetividade, do gênio, do indivíduo especial que tem acesso a uma intuição intelectual esvaziada da concretude do mundo não pode constituir um fundamento que venha a sanar a alienação, a prosa do mundo, na qual a modernidade se debate. Essa crítica ganha uma dimensão bastante contemporânea quando Hegel critica o que ele chama de “mau infinito” e ironia românticos.
Mau infinito e ironia
Acredito que esses dois temas estão intimamente relacionados na literatura filosófica e sociológica contemporânea, em particular em correntes pós-estruturalistas dessa literatura. E há algo a ser observado logo agora: a ironia é para Hegel fruto de um perspectivismo, de um subjetivismo que corrói a pretensão civilizadora da filosofia por encontrar fundamentos. Estes fundamentos, para ele, derivariam da ideia realizada pela razão no mundo, no concreto do mundo e não à revelia deste. O objeto central de suas críticas aqui é a herança fichteana tal como ela se apresenta no Romantismo e mais particularmente na obra de Friedrich Schlegel. “Fichte establece el yo y, por cierto, un yo abstracto y formal, como princípio absoluto de todo saber, de todo conocimiento y razón” (Hegel, s/d, 61). Mas, ele argumenta, se tomamos como dado de partida esse eu formal e abstrato, “nada es valioso como considerado en sí y para sí” (Ibid., p. 62). (E aqui, por um momento, podemos apreciar de modo aligeirado o quanto o marxismo deve a essa discussão que gira em torno de categorias românticas. Mas passemos adiante.). O que falta à tradição fichteana, ou seja, a Schelling e a Fridrich Schlegel, é exatamente a concretude da objetividade esvaziada por este eu formal.
Mas se nenhum objeto tem um valor intrínseco, um valor que não esteja subsumido no arbítrio do eu, qualquer forma que a expressão filosófica e artística tome será contingente, puro jogo imaginativo, fantasia. Em Schlegel, como já vimos anteriormente, a própria subjetividade não escapa à produtividade infinita da imaginação. Ora, essa subjetividade autopoiética, ou indeterminada, pode agradar ao paladar mais ágil do pensamento pós-estruturalista, mas não a Hegel, um filósofo de sistemas, do fundamento. A análise hegeliana da ironia é nesse sentido bastante atual.
“En aquella posición donde el yo que lo pone y disuelve todo desde sí es el artista, a cuya conciencia ningún contenido se apresenta como absoluto, como válido en y para sí, pues todo contenido se ofrece como aniquilable aparencia puesta por uno mismo, no hay lugar anguno para la mencionada seriedad, puesto que sólo se atribuye validez al formalismo del yo” (Ibid. p. 62)
E mais adiante:
“Así, el individuo que vive como artista, ciertamente entra en relaciones con los demás, vive con amigos, personas amadas, etc., prero, como genio, tiene por nula esta relación con una relatividad determinadada, con acciones especiales, así como con lo universal en y para sí, y se comporta irónicamente frente a eso” (Ibid. p. 63)
A ironia romântica seria então fruto de uma imaginação voluntarista, desgarrrada dos objetos como coisas em si e para si. Tendo com tudo apenas uma relação formal, abstrata, pode ironizar tudo, pois nada vale tanto assim. A indeterminação e inquietação formal românticas, base cultural de todo modernismo que virá, é aqui criticada com sendo fundamentalmente niilista. Uma paz confortável com a contingência das formas é inimiga da verdade. A crítica ao subjetivismo, ao niilismo que dele decorre é criticado por Hegel junto com o que ele julga ser um abandono da verdade.
“Esa es la significación general de la ironía divina, como concentración del yo en sí mismo, para el cual están rotos todos los vínculos y que sólo quiere vivir en la felcitdad del proprio disfrute. Fue Friedrich von Schlegel el que descubrió esta ironía, y muchos otros han hablado y siguen hablado de ella con mayor o menor acierto o desacierto […] Si el yo se qeuda en esta posición, todo se presenta para él como nulo y vano, con excepción de la propia subjetividad, que con ello es también hueca, vacía y fatua” (Ibid. p. 63).
A ironia torna a distinção entre grande e o pequeno igualmente sem importância, assim como verdadeiro e o falso, bem e o mal. Tudo se encontra, sob sua força corrosiva, borrado sob a mesma fantasia “fátua”. E aqui Hegel faz questão de distinguir entre o irônico e o cômico. Neste último encontramos uma força moralizadora que a ironia desconhece. Essas observações sobre o conhecido traço da obra de Friedrich Schlegel, e que se projeta sobre o Romantismo alemão como um todo, são fundamentais para compreendermos, por fim, a análise dos limites culturais desse movimento cultural. Ele foi fundamental para trazer a interioridade como um momento fundamental de realização do Espírito no mundo, sob sua marca o próprio espiritual na arte se torna mais claro, mas apresenta limites que haverão de ser superados. É necessário que o clássico e o romântico, a adequação formal que fala da verdade do mundo externo e a esta outra que fala da interioridade humana, encontrem-se numa síntese que os supere. Sobre isso falaremos melhor no próximo post.
[publicado sem a mínima revisão: almas generosas , mosamores, identifiquem e apontem meu erros]
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