sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Heidegger, Agamben e o Animal (Introdução ao artigo)



Jonatas Ferreira
Ao passar a fronteira ou os fins do homem, chego ao animal: ao animal em si, ao animal em mim e ao animal em falta de si-mesmo, a esse homem de que Nietzsche dizia, aproximadamente, não sei exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um animal em falta de si-mesmo (Derrida, 2002, p. 15)

A metafísica é uma interrogação na qual nos inserimos de modo questionador na totalidade e perguntamos de uma tal maneira que, na questão, nós mesmos, os questionadores, somos colocados como questão (Heidegger, 2006, p. 11)

Introdução
Há um conjunto de fenômenos contemporâneos ao qual comumente se atribui a qualificação de “dessimbolizadores”. Já escutei algumas coisas a esse respeito: que a única democracia que hoje podemos ter é a do consumo, que as várias formas de investimento corporal com as quais nos deparamos seriam algo como a emergência do Real lacaniano, que hoje é impossível o exercício crítico, que assistimos ao fim das utopias, ao fim do real, à hiperrealização da vida, à emergência do biopoder como possibilidade única do político, à transformação do labor na essência de todas as relações sociais, à conversão da “vida nua” em investimento cultural, político, existencial. Minhas estudantes, aquelas que fazem dissertações no campo da sociologia do corpo, não parecem mais otimistas: falam do fim da terapia, da medicalização da vida, da sertralinização dos humores, do “império do efêmero”, da ditadura da juventude. Meus colegas lacanianos falam na morte do pai. Aumentou a criminalidade? Isso não é de espantar uma vez que o pai morreu. Há uma cultura do pânico se instalando? O pai morreu.

Já na década de 1930, Martin Heidegger (2006) advertia contra o perigo de um certo sociologismo, daquilo que ele também chamava de filosofia da cultura, um tipo de pensar distanciado em que quadros culturais, históricos amplos são traçados sem que o intelectual se veja implicado neste pensar. Uma forma de reflexão, portanto, metafísica, em que um olhar transcendente observa as pequenas e grandes misérias da humanidade. Embora não tenha nada a dizer diretamente acerca do conjunto de questões que absorvem minhas orientandas, Heidegger parece por outro lado alimentar essa visão pessimista da sociedade contemporânea. De fato, a partir da constatação de que o niilismo é a essência da cultura tecnológica, de seu imperativo da aceleração, da disponibilização total do mundo natural que essa cultura promove, a partir da suposição de que a própria linguagem tem sido apropriada pelas demandas de desempenho das tecnologias de informação e comunicação, não há como não chegar àquele tipo de conclusão sombria, distópica. Tudo isso é compatível com a idéia de dessimbolização, da morte do pai, investimento no concreto do corpo, perda de valores supremos. Se a linguagem é o âmbito onde o pensar se realiza e se essa linguagem se encontra mobilizada pela técnica, por seu afã inovador, acelerador, em que espaço a crítica seria possível? Essa linha de argumentação é bem conhecida pelos estudiosos de Heidegger e diz respeito, sobretudo, às suas contribuições da década de 1960, tais como, “Linguagem de tradição e linguagem técnica”, “A caminho da linguagem”, por exemplo. Cito aqui o próprio Heidegger:


quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Poder

Desde que Tâmara andou postando esses artigos sobre avaliação universitária venho fazendo um esforço hercúleo para não sucumbir ao desejo de mandar a burocracia universitária às favas e me dedicar a atividades mais produtivas. Como minhas férias, por exemplo. Mas... noblesse oblige. Só não consigo evitar conversações interiores impublicáveis e nada sociológicas acerca da natureza dos cargos burocráticos que, invariavelmente, desembocam no mais absoluto sentimento de auto-comiseração. O que fiz para merecer isso? Será que a Capes tem um sistema de indulgências semelhante à Igreja Católica medieval que me garante um crédito para ser utilizado na minha entrada no paraíso? Tenha fé, tenha fé, digo a mim mesma, e tento pensar que o poder deve ter lá seus encantos. E não é que tem mesmo? Descobri isso ao ler as reflexões de Artur sobre o tema lá no Blog dos Perrusi, que roubo desavergonhadamente para o Cazzo. Nessas horas, fico pensando por que diabos ele largou a psiquiatria para virar sociólogo: o danado é um terapeuta nato e me fez economizar uma fortuna para resolver meu trauma.

Cynthia



Artur Perrusi

Penso no poder. Não que queira, mas é necessário, quase um movimento atávico. Fui chefe de departamento e, agora, sou síndico – podem gargalhar à vontade. Síndico é de lascar. Como o poder me persegue, vivo a me questionar se gosto, de fato, do babado. Os defeitos existem dentro de nós, ativos e militantes, mas inconfessos. Retruco que eu sou eu e minhas circunstâncias, e sempre alheias à minha vontade. Afinal, fui vítima de um rodízio. Esqueci-me completamente de que, pelas leis imutáveis da matemática, seria o próximo síndico, logo depois do final da gestão de meu vizinho de apartamento. Olhando retrospectivamente, não posso me surpreender, pois o poder, na minha vida, caiu sempre como um raio em pleno céu azul. Por isso, percebo-o com conformismo.

Principalmente, quando chego em casa, cansado do trabalho, e o zelador me avisa de que o vaso de seu Abdias caiu lá de cima.

_Matou alguém?!
_Não, alguém, não, mas acabou com a cabeça do cachorrinho do 303.
_Mas pode ter cachorro aqui no prédio?

O zelador fica calado. Seus olhinhos miúdos tentam me avisar de que está na frente do síndico, logo, de quem sabe dessa preciosa informação. Borbulho um riso louco. Penso no morador do 303. Tem cara de mau, muito mau. Cara de narco. Por mim, ele pode criar cachorros no seu apartamento; aliás, pode criar a criatura que quiser: ariranhas, ornitorrincos (as melhores, pois não emitem sons). Já seu Abdias é um velhinho insuportável. Vive com uma moça 50 anos mais nova, mas não tenho nada a ver com o bolero. Além disso, prefiro esquecer a estória toda. Quando ela explodir, darei um jeito. O poder é isso: conviver com a diferença. Por isso, odeio qualquer filosofia da diferença. Derrida nunca foi síndico. Sou um apologético da identidade. Por mim, só tinha clone nesse mundo velho e enfadado.

Além do mais, não queria comentar um assunto tão delicado no blog. Só falo de experiências de poder que já passaram. O presente é dolorido demais. Queria falar de outra coisa – de minha experiência na chefia do departamento, por exemplo. Já é passado e não vai mover moinho algum. Certo, essa estória ainda precisa ser mais bem analisada pelos historiadores e, quiçá, pelas antropólogas; de fato, aqueles que tentaram acompanhá-la ficaram meio confusos, talvez devido ao fato prosaico de que coisas incrivelmente confusas aconteceram durante o meu reinado.

Um problema que mais me embananou foi o da velocidade dos ofícios, dos memos e das declarações, principalmente daqueles enviados à reitoria. Descobri, depois de muita observação, que um ofício ou um requerimento, por exemplo, caso quisesse ter uma resposta que evitasse a eternidade, necessitava ultrapassar a velocidade da luz. Fiquei angustiado, porque minhas secretárias eram incapazes de imprimir tal velocidade aos ofícios e quejandos. Não dá. Não era culpa delas. Era culpa da física. Nada viaja mais rápido do que a luz, com exceção talvez das más notícias, que obedecem a leis próprias e especiais. Tentei, assim, produzir ofícios movidos a más notícias e, com efeito, eram muito rápidos, embora o procedimento não tenha funcionado… Eram muito mal recebidos pelo pessoal da reitoria e voltavam ao departamento mais rápido ainda, e sem respostas. Tal fato criou um paradoxo temporal, pois os ofícios retornavam mais rápido do que iam, pois ultrapassavam a velocidade da luz negra (aquela que deixava nossos olhos violetas e que animava toda festinha de minha geração), causando um constrangimento entre minhas secretárias, que pensavam que não tinham ainda enviado as más notícias — dessa forma, acumulei más notícias pra dedéu.

Frustrado, passei um tempo desanimado. Aí deu um clique: construí um Acionador de Improbabilidade Burocrática (AIB), uma espécie de máquina do tempo multidisciplinar. Como a multidisciplinaridade é coisa chique na universidade, ninguém reclamou, e nem mesmo notou o trambolho de 20 toneladas que ocupava todo o departamento. Agora, enviava os ofícios movidos a más notícias, só que ao passado. Além de me antecipar, imaginei que os funcionários teriam mais tempo para responder, podendo esperar, inclusive, até o meu presente para enviarem a resposta. Na verdade, deu uma confusão dos diabos, pois algum burocrata burro (desculpe a redundância) passou a enviar as respostas, também, ao meu passado – claro, eles tinham já construído um AIB. E, no passado, passei a receber respostas de ofícios movidos a más notícias do futuro. Tentei, inicialmente, utilizar isso ao meu favor, antecipando-me na resposta às respostas e enviando ainda mais más notícias. Mas deu um nó no tempo pior do que o nó górdio, já que as más notícias do futuro tinham-se tornado presentes e, por algum paradoxo temporal muito complexo, começaram a chegar más notícias do passado, do presente, do futuro e de todas as infinitas dimensões burocráticas da reitoria… E tive, assim, o maior acúmulo de más notícias da história do departamento!

Numa reunião, tentei explicar o problema aos meus pares. Expliquei que o pessimista é aquele para o qual tudo está perdido, enquanto que o otimista tem fé de que as coisas ainda podem piorar. Parei e fiz uma pausa dramática, porque não estava entendendo o que tinha dito — todos me olharam, começou uma balbúrdia e mudei de assunto… Perguntei, então, qual seria exatamente a posição da primeira mulher como ajudante do homem: era ela uma igual ou uma subordinada, antes que os dois desobedecessem a Deus? Despertei assim certa curiosidade de algumas estudiosas do gênero, mas nada que ultrapassasse um olhar apenas fugaz. Decidi provocar e recitei um poemazinho:

Nas mulheres não sei mais crer,
Nenhuma mais me seduz.
Se ela não quer me conhecer.
As desconheço em minha cruz.
Nenhuma delas me convém.
E o que elas fazem não tem nexo,
De nenhuma quero saber,
Desprezo a todas do seu sexo.

Notei um bocejo de um cientista político que olhava intensamente a água dentro de seu copo. Aí, não aguentei, apelei brabo e perguntei:

Por que Eva foi tirada exatamente da costela de Adão, já que Deus podia usar um pedaço de madeira, uma pedra ou qualquer outra matéria? Aquela costela estava sobrando? Se não estava, então Adão estaria sendo privado, por Deus, de parte essencial de seu corpo, dado não ser concebível que, desde o início, estivesse presente no corpo humano algo supérfluo. Ou Adão tinha treze costelas de um lado e doze do outro? Era uma espécie de monstro, como os homens que têm três mãos e três pés?

Nenhuma reação.

Diante da indiferença cavalar, resolvi desmontar o AIB e voltar aos trâmites burocráticos normais. Tudo continuou na mesma, como sempre, pois a burocracia é a terra de Parmênides, onde nada muda e nada acontece. Em suma, recolhi-me à minha insignificância, postura sábia e estratégica. Ser chefe de departamento é esperar o tempo passar, a gestão acabar e acumular uma gigantesca barriga para poder empurrar os troços para frente, deixando tudo como sempre esteve e sempre estará para a próxima gestão.

Ah, o poder…

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Slavoy Zizek versus Paul Ricoeur: Democracia, Justiça Social e Tolerância



Cynthia Hamlin

Em dezembro do ano passado, nós do PPGS organizamos, junto com as Católicas pelo Direito de Decidir e com o SOS Corpo, um seminário sobre mulheres e violência. O pessoal das Católicas me pediu que apresentasse algo sobre aborto e violência, o que eu fiz com base na reformulação de algo que havia escrito por aqui. O post original lidava com dois conceitos principais, aborto e democracia, e buscava ilustrar a fragilidade da democracia brasileira ao caracterizar a ausência de um debate claro e transparente sobre aquele tema devido à inexistência de uma opinião pública esclarecida. A fim de poder trabalhar a questão da violência que me foi solicitada, introduzi o conceito de intolerância que, segundo a visão de Paul Ricoeur, permite estabelecer a mediação necessária entre violência e (ausência de) democracia.

Ontem, lendo mais atentamente uma entrevista de Slavoy Zizek que uma colega me enviou por email, fui levada a refletir sobre a tolerância como mediadora dessa relação e, portanto, como base da ação política. Neste momento, em que o Presidente Lula acaba de excluir a questão sobre o aborto do Plano Nacional de Direitos Humanos, a questão volta a se colocar num plano mais concreto: como diminuir a inequidade e a injustiça social se determinadas questões são deixadas de fora do debate, impedindo, dentre outras coisas, a formação de uma opinião pública que capacite para a ação política? Claro que ao colocar a questão desta forma já defini minha posição, mas creio que ela é defensável.

Crítico contumaz da idéia de democracia (formal e liberal), Zizek contrapõe-se à idéia de que a democracia deve ser o horizonte para o qual noções como equidade, liberdade e justiça social devem se orientar e argumenta que a noção de tolerância dilui a fronteira necessária entre a dimensão cultural e política. Com o provocante título de “A Ecologia é o Ópio do Povo”, Zizek (2009) responde à questão colocada por Ricardo Sanín, da Universidade Javeriana, na Colômbia: “O senhor tem insistido que tanto o multiculturalismo quanto os movimentos ecológicos não abordam os problemas políticos verdadeiramente agudos e relevantes para o mundo. Por quê?”. A resposta:

O multiculturalismo passa por cima dos problemas políticos verdadeiramente relevantes e agudos quando os reduz a meros problemas culturais. Quando lidamos com um problema real, tanto sua designação ideológica como sua percepção como tal introduz uma mistificação invisível. Digamos que a tolerância designa um problema real. É claro, sempre me perguntam: “Como você pode concordar com a intolerância com os estrangeiros, estar de acordo com o antifeminismo ou ao lado da homofobia?”. Aí reside a armadilha. Evidentemente, não estou de acordo. Ao que me oponho é à nossa percepção automática do racismo como mero problema de tolerância. Por que tantos problemas atualmente são percebidos como problemas de intolerância, em vez de serem entendidos como problemas de iniqüidade, exploração e injustiça? Por que o remédio tem de ser a tolerância em vez de a emancipação, a luta política, ou ainda a luta política armada? A resposta imediata está na operação básica do multiculturalismo liberal: “a culturização da política”. As diferenças políticas, diferenças condicionadas pela iniqüidade política ou a exploração econômica, se naturalizam como simples diferenças “culturais”. A causa desta culturização é o retrocesso, o fracasso das soluções políticas diretas, tais como o estado social. A tolerância é seu ersatz ou sucedâneo pós-político. A ideologia é, neste preciso sentido, uma noção que, enquanto designa um problema real, dilui uma fronteira de separação crucial.


Por mais que eu deteste a idéia de ter que concordar com Butler em relação à política, creio que ela e Laclau têm razão quando atribuem a Zizek uma certa “auto-complacência ingênua” em sua crítica à democracia (Butler, Laclau e Zizek, 2000: 289). De fato, por mais que eu discorde de um certo reducionismo cultural presente tanto na concepção de luta política como luta por identidade (caso de Butler e Laclau), quanto do multiculturalismo como a panacéia que cura todos os males, creio que não apenas a democracia é nossa melhor garantia contra as mais diversas formas de totalitarismo, mas também que a pluralidade de vozes pode ser um ponto de partida eficaz em relação ao estabelecimento do tipo de sociedade em que queremos viver. É neste ponto que concordo com a definição de Ricoeur sociedades democráticas como sociedades da tolerância e volto a argumentar sobre a fragilidade da democracia brasileira a partir da forma como o aborto (não) é debatido entre nós.

Em um certo sentido, a violência é a intolerância em sua forma mais extrema: trata-se da imposição, pela força, das crenças e convicções de uns sobre outros. Como afirma Paul Ricoeur (2000: 20), “dois componentes são necessários à intolerância: a desaprovação das crenças e das convicções do outro e o poder de impedir que esse outro leve sua vida como bem entenda”. Embora essa propensão a impor as próprias crenças seja universal, isto é, comum a todos os seres humanos, “ela assume um caráter histórico quando o poder de impedir é sustentado pela força pública, a de um Estado, e a desaprovação assume a forma de uma condenação pública, exercida por um Estado sectário, que professa uma visão particular do bem” (Ibid). É o pluralismo das crenças ou das visões do bem que caracteriza as sociedades democráticas que podem, por esta razão, ser concebidas como sociedades da tolerância.


quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A pesquisa universitária avaliada….para o desprezo do conhecimento



Frédérique Barnier

(Frédérique Barnier é professor-pesquisador em sociologia na Université d'Orléans. Este artigo foi publicado em Le Monde, 23.11.2009 e traduzido, mediante permissão do autor, por Tâmara de Oliveira.)

Há alguns meses, na verdade desde os recentes debates sobre a reforma do estatuto dos professores-pesquisadores, um estranho vento sopra nos corredores das universidades, brandindo rumores e palavras surpreendentes para um não-iniciado, em torno de « laboratório classificado A, B ou, pior ainda, C, de revistas também classificadas A, B ou C…Os mesmos barulhos são encontrados nos debates em torno dos « pólos de excelência » da pesquisa nacional, tão necessários ao seu reestabelecimento nas classificações internacionais. O ministro, o governo e todos os adeptos de uma política de « excelência científica » podem então ficar satisfeitos. A essência do projeto de lei entrou decididamente nas cabeças de todos os professores-pesquisadores, mesmo naquelas consideradas mais duras – a dos professores-pesquisadores em ciências humanas.

Para a maioria deles, com efeito, a corrida começou : fora de publicação A (in english, please) e do colóquio (international, s’il vous plaît) não há salvação. Ironia ou paradoxo, o princípio de avaliação generalizada foi assim integrado por uma pesquisa universitária que frequentemente a criticou ferozmente e, exatamente no momento em que seus efeitos catastróficos são denunciados nas empresas. Com as classificações tipo Xangai, a pesquisa mede suas performances como uma equipe de futebol, sem comover ninguém.

Para além dos efeitos perversos já conhecidos : o reforço das desigualdades já gritantes (entre Paris e província, entre ciências « duras » e ciências humanas, entre grandes e pequenas faculdades, entre pequenos e grandes laboratórios…), a corrida iníqua às publicações, a cooptação reforçada, os efeitos de redes…, desenha-se igualmente a perspectiva de uma pesquisa « entre nós », pesquisa expressa e necessariamente brilhante, frequentemente mundana para ser de alta qualidade – mas por quanto tempo e sobretudo para fazer o que ? Desenham-se assim e sobretudo os contornos esclerosantes de uma pesquisa pré-formatada na forma, no fundo e na prática.

Na forma, primeiramente, fechando-se em torno das « boas revistas » (que infantilização, elas são designadas uma a uma, disciplina por disciplina, caso vocês não saibam reconhecê-las), contendo apenas artigos universitários calibrados, certificados e especialmente reconhecidos (para além de seu interesse e de sua qualidade frequentemente inegáveis) por sua escritura conveniente, sufocados por referências, necessariamente adubados por conselhos editoriais – que correm o risco de ficar sobrecarregados de trabalho logo, logo, enfim…os de conceito A. Se escrever, evidentemente, faz parte da pesquisa, publicar (no sentido da excelência, quer dizer « útil ») está prestes a se tornar um outro ofício…

No fundo, em seguida e sobretudo, porque uma pesquisa fecunda em ciências humanas deve melhorar o conhecimento do mundo e praticar a partilha cidadã desse conhecimento sobre temas que engajam e interessam necessariamente as pessoas em seu cotidiano (a escola, a periferia, a empresa, a violência…). O procedimento do conhecimento, como tão bem explicitou Bachelard, é o oposto dessa pesquisa de « excelência » : ela é lenta, laboriosa, difícil, cheia de acidentes de percurso. Às vezes ela deve contradizer, lutar contra idéias adquiridas, destrinchar novos campos e, em todos os casos, estar orientada para o mundo. Ela é sobretudo filha da humildade e tem muito pouco a ver com essa busca permanente de reconhecimento interno.

Na prática, enfim, que corre o risco de se tornar bastante restritiva sob esses critérios exclusivos. Escrever em tal revista (genial, mas fora da classificação) : não rentável (para minha carreira, meu HDR, meu cargo de professor…). Organizar um colóquio (oh, modesto, em minha universidade de província) : não rentável. Divulgar meus trabalhos diante de públicos cidadãos a quem eles interessam realmente (sindicalistas, pais de alunos, assalariados, associações) : não rentável…E o que dizer das atividades administrativas e de ensino…das quais se mede a indignidade (cúmulo da ironia ou da miséria) por sua ausência no sistema de avaliação !

Tudo isso já existia…vocês dirão. Sem dúvida, mas o clima atual oferece como recompensa, aos tenentes dessa falsa excelência científica e àqueles que aplicam cegamente seus princípios, a arma oficializada do desprezo – e quem sabe da ameaça.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Entre o Ser e a Linguagem: a verdade das variações de Goldberg (final)


Gould interpreta o Cravo-Bem-Temperado, de Bach, considerada uma das maiores obras contrapontísticas.

A metáfora do jogo a que me referi no post anterior para indicar a relação entre a interpretação de Glenn Gould e a própria obra de arte (as Variações de Goldberg) traz duas questões importantes para as disciplinas interpretativas como, acredito, é o caso da sociologia. A primeira delas diz respeito ao problema do nominalismo e do relativismo, um problema que pode ser resumido na célebre frase de Nietzsche: “não existem fatos, apenas interpretações”. A segunda diz respeito a uma concepção de subjetividade que não se apóia na oposição sujeito-objeto fundamentada, em última instância, na distinção cartesiana entre mente e matéria. Obviamente não poderei resolver essas questões aqui e, neste sentido, meu objetivo é bastante modesto: identificar alguns dos problemas centrais à relação entre realidade e linguagem na obra de Gadamer.

Voltemos a Gould. Quando ouvi as duas interpretações das Variações, algo me fez preferir uma à outra e fiquei me perguntando o que seria. Esse é um problema bem conhecido em relação à estética: é possível afirmar que uma obra (ou uma interpretação) é melhor ou, em algum sentido, superior a outra? A crermos em Gadamer, sim. Antes de mais nada, é preciso considerar que sua estética preocupa-se com a dimensão cognitiva da experiência artística. Como extensivamente argumentado em Verdade e Método, a arte proporciona um tipo específico de encontro com a verdade. Ao contrário da ciência, que considera a verdade como adequação (adaequatio) entre o pensamento e os objetos do mundo (a verdade do enunciado, que ocorre no juízo), a arte, a experiência histórica e a linguagem representam um encontro com a verdade concebida como desocultação ou desvelamento. Esta noção de verdade (aletheia, ou, numa tradução literal, "desvelamento") diz respeito ao "ato de trazer algo da escuridão para a luz" (Lawn, 2007:84) e, especialmente no caso da arte, implica num envolvimento emocional que, parafraseando Jonatas em um de seus posts sobre o jogo, falaria da nossa forma de ser no mundo, de nossa verdade mais profunda enquanto seres humanos.

Neste sentido, a arte, diferentemente da ciência, proporciona aquilo que já defini como “experiência hermenêutica”, uma experiência negativa, no sentido de perturbar e desestabilizar nossas expectativas culturais mais arraigadas. Trata-se, portanto, de uma abertura para o diferente, para aquilo que está escondido, em parte, pela linguagem. Mas esse “diferente” não vem apenas do intérprete. As duas interpretações que Gould faz das Variações nos (co)movem de maneiras distintas porque revelam coisas distintas acerca da música de Bach (e de nós mesmos), embora ele (ou a linguagem que ele usa) seja o veículo daquilo que é revelado. Há aqui uma sutileza na relação que, a partir de Gadamer, pode-se estabelecer entre o fato (a música de Bach) e sua interpretação: embora a música que não é tocada não é música, é a própria música que se revela por meio do desvelamento interpretativo de Gould. Neste sentido, como defende Jean Grodin (2005), à afirmação de Nietzsche de que “não existem fatos, apenas interpretações”, contrapõe-se a visão gadameriana de que não existem fatos senão por meio da interpretação, isto é, não existem fatos (para nós) sem uma certa linguagem que os expresse.

Acredito que o esforço de Gould consiste na tentativa de desvelar aspectos distintos das Variações. Mas como em qualquer interpretação, nenhum significado pode ser completamente revelado. Toda linguagem e toda interpretação, assim como um jogo de luz e sombra, esconde alguns aspectos da realidade à medida que revela outros. Mas existem limites, dados pelo próprio objeto, pelo próprio fato, que não podem ser ultrapassados pelo intérprete, sob pena de afastá-lo da verdade. Como afirma Grodin (2005), “uma interpretação que não seja orientada para a verdade é um exercício vão”. Talvez seja por esta razão que, ao comentar acerca de sua interpretação da Variação número 15 efetuada em 1955, Gould afirme que ela era “excessivamente romântica”, portanto “falsa” quando aplicada a Bach. Talvez de forma mais significativa, ao falar de sua preferência pelas interpretações mais lentas da maturidade, Gould indica claramente que um dos elementos centrais no tipo de música que lhe interessa é o contraponto (o contraponto envolve duas ou mais melodias independentes, tocadas simultaneamente) e isso implica, segundo Gould, um alto grau de “deliberação” que não é possível com uma pulsação muito acelerada.

O que temos, portanto, é uma mistura do elemento objetivo e subjetivo, do que diz respeito à obra e do que diz respeito ao intérprete (no que diz respeito à subjetividade do intérprete, uma questão ainda me persegue: qual o significado do reconhecimento, por parte de Gould, da dimensão táctil de seu self jovem e o não reconhecimento de seu espírito? Essa fica para outra ocasião). Não é qualquer interpretação que serve e, ao contrário do relativismo do niilismo nietzschiano, as diversas interpretações não se equivalem porque nem todas revelam a obra em si. Diferentemente de Nietzsche, para quem a verdade deve ser desconstruída como pura ilusão, para Gadamer, a verdade é a revelação da realidade. Resta saber que realidade foi essa que Gould me revelou na gravação das Variações de 1981. Mas isso é segredo.

Referências

Grodin, Jean (2005) Vattimo’s Latinization of Hermeneutics: Why did Gadamer resist Postmodernism? In: S. Zabala (ed.), Weakening Philosophy. Festschrift in Honor of Gianni Vattimo, Mc- Gill-Queens University Press.

Lawn, Chris (2007). Compreender Gadamer. Petrópolis: Vozes.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Avaliação em ciências sociais: você disse "quantificar"?



Laurence Coutrot

Obs.: Este texto é um extrato de artigo publicado por Laurence Coutrot nos Quaderni di Sociologia (n° 49, vol. LII, dezembro 2009. Coutrot é pesquisador do Centre Maurice Halbwachs/Centre Nationale de la Recherche Scientifique e da Ecole Normale Supérieure/Ecole de Hautes Études en Sciences Sociales.

Tradução para o português, mediante autorização do autor, de Tâmara de Oliveira.

O uso da bibliometria como instrumento de avaliação da pesquisa é um tema recorrente desde os anos 1960. Longe de se limitar a um simples problema técnico, a questão dos indicadores bibliométricos pode ser vista como instrumento numa luta de poder entre o corpo político e o mundo universitário. Esse conflito conheceu fases trágicas antes disso, durante a segunda guerra mundial, retornando com força há mais ou menos vinte anos. Estamos numa nova fase e o episódio de «quantofrenia» que a França vive atualmente é apenas um sintoma disso : a esperança de quantificar a produção científica e avaliar «objetivamente» sua qualidade graças a instrumentos bibliométricos também é recorrente. Considerando que a publicação é um traço essencial da atividade científica e que a «notoriedade», o fato de ser citado, é um indicador da «influência» de um autor, observa-se quem cita quem, quem é citado por quem e quantas vezes…Pode-se dessa forma calcular o «fator de impacto» de um autor, de um grupo de autores, de um laboratório, de uma instituição, etc. Enquanto se trata apenas de reparar as vedetes, esse método não põe nenhum problema: em geral, um pesquisador que recebeu o prêmio Nobel foi muito publicado e seus trabalhos foram frequentemente citados. Infelizmente, esses são casos raros, onde a medida bibliométrica é justa mas inútil: todo mundo sabe que a correlação entre a celebridade e o fato de ter recebido o prêmio Nobel (ou mesmo de ser suscetível de recebê-lo) é boa. O problema é mais delicado quando não se fala mais em celebridade mas em qualidade e que se pretende utilizar esse método para avaliar a qualidade de uma produção científica, quer se trate de instituições, de revistas ou de pesquisadores.


domingo, 10 de janeiro de 2010

Entre o Ser e a Linguagem: a verdade das variações de Goldberg (parte 2)


Vladimir Horowitz e sua elegância de mordomo inglês. (Ooops!)

Além do aspecto musical, o que me impressiona na interpretação de Gould é a forma como ele se entrega à atividade que desempenha. Uma de suas marcas registradas é o fato de que gostava de cantar à medida que tocava, sendo possível ouvir sua voz (às vezes bastante alta!) em suas gravações. Aliás, é como se todo o seu corpo falasse: seu rosto se contorce, seu torso balança em todas as direções, seus pés se movem como se dançassem. Gould é todo música. Algumas pessoas poderiam atribuir isso ao fato de que ele era portador da Síndrome de Asperger, uma forma branda de autismo que explicaria excentricidades como as descritas em um release da gravadora Columbia acerca da gravação das Variações em 1981:

“era um dia quente de junho, mas Gould chegou de sobretudo, boina, protetor de orelhas e luvas. Seu equipamento consistia no costumeiro portfólio de partituras e também numa quantidade de toalhas, duas garrafas grandes de água mineral, cinco frascos de comprimidos (todas de cores diferentes e com prescrições distintas) e sua cadeira de piano especial. As toalhas, ficou claro, eram necessárias em quantidade porque Gould mergulha as mãos e os braços até o cotovelo em água quente por 20 minutos antes de se sentar ao piano... A água mineral era necessária porque Glenn não tolera a água de torneira de Nova York. As pílulas eram por qualquer razão – para dores de cabeça, para aliviar a tensão, para manter a circulação...”

É possível que o que a agitação de Gould ao tocar, que já foi caracterizada como “falta de decoro no palco”, tenha algo que ver com a síndrome de Asperger. Basta ver o primeiro vídeo postado por aqui para ver como ele aparentemente consegue se remover da realidade à sua volta, entrando no que parece ser um universo privado. Completamente diferente, por exemplo, de um Horowitz, que toca com uma expressão impassível, a elegância corporal digna de um mordomo inglês e as mãos rígidas que caracterizam a escola russa. Mas eu prefiro pensar na expressividade de Gould como uma forma de jogo. Para roubar uma citação de Gadamer, tirada de Verdade e Método e que Jonatas já usou por aqui, “pode-se precisar um traço geral de como a natureza do jogo se reflete no comportamento lúdico: todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que ele exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador” (p. 181).

E aqui chegamos onde eu queria: no modelo gadameriano de interpretação baseado nas artes performáticas e a forma como podemos interpretar sua famosa frase “ser que pode ser compreendido é linguagem”. A preocupação que me guia aqui é essencialmente a mesma que tem guiado minhas investigações acerca da relação sexo e gênero, ou seja, a relação entre Ser e linguagem ou, numa terminologia mais realista, entre o domínio ontológico e o epistemológico.

Amanhã tem mais. Eu acho. E para quem quiser se inteirar melhor sobre a questão do jogo em Gadamer, remeto aos artigos escritos por Jonatas aqui no Cazzo, listados ao lado, nos marcadores do blog.

Cynthia Hamlin

sábado, 9 de janeiro de 2010

Entre o Ser e a Linguagem: a verdade das variações de Goldberg (parte 1)

Isso aqui sempre fica meio mortinho no período de férias, mas esse ano parece que as coisas andam especialmente devagar. Dom Arturo, o homem chique do Cazzo, foi para uma defesa de tese em Paris e Jonatas, da última vez que soube dele, estava de cama, em companhia de uma virose qualquer. Eu também não ando lá muito assídua por aqui, ocupada que estou entre o infame relatório da Capes, a orientação de teses e dissertações e uma reforma que tem me feito pensar seriamente na possibilidade de entrar para o movimento dos sem-teto. Mas, ao contrário de Jonatas, eu tenho estado em ótima companhia, ainda que um tanto excêntrica: Glenn Gould, o pianista canadense especialista em Bach. Olha ele aqui, tocando a partita número dois:



Gould ficou mundialmente conhecido na década de 1950 ao interpretar uma obra até então considerada excessivamente “técnica”, as Variações de Goldberg, compostas por Bach em 1742. Diz a lenda que o embaixador russo no Império Saxão, o conde Kaiserling, sofria de uma insônia terrível e encomendou a Bach algumas peças para cravo que pudessem ser tocadas por seu músico particular e ex-aluno de Bach, Johann Gottlieb Goldberg, sempre que precisasse de um sonífero. Fico imaginando o luxo: “Estou com insônia: acordem Goldberg e mandem ele vir aqui tocar umas variações para mim”. Talvez a interpretação de Goldberg não fosse tão boa quanto a de Glenn Gould, mas o fato é que não entendo como o infeliz do conde conseguia dormir com aquilo. E se sua interpretação de 1955, aos 22 anos de idade, já era impressionante, a de 1981, gravada pouco antes de ele completar 50 anos, me parece sublime. Algumas pessoas acham a interpretação da década de 80 excessivamente lenta e preferem a mais antiga. Eu, assim como o próprio Gould, prefiro a segunda, embora duvide de que pelas mesmas razões que ele.

Em uma entrevista de 1982, gravada em um dos CDs que compõem a tríade lançada pela Sony/BMG em 2009, o crítico musical Tim Page perguntou a Gould o que ele achou de ouvir a gravação de 1955 pouco antes de regravar as Variações na década de 80:

“Eu acho que foi uma experiência um tanto fantasmagórica. [...] Acho que reconheci, em todos os lugares, as impressões digitais do intérprete responsável; quero dizer, de uma perspectiva táctil, de uma perspectiva puramente mecânica, minha abordagem ao tocar o piano realmente não mudou muito ao longo dos anos. Eu acho que ela permaneceu bastante estável (algumas pessoas podem preferir dizer “estática”). Então, eu reconheço as impressões digitais, e isso é muito, mas eu não pude reconhecer, ou me identificar com, o espírito da pessoa que fez aquela gravação. Realmente parece que outro espírito esteve envolvido.”

Abaixo, a performance dos dois espíritos. Notem a diferença no tempo da ária na interpretação de 1955 e na de 1981:





(Continua...)