Ora é precisamente esta concepção corrente da língua que se vê não somente avivada pelo facto da dominação da técnica moderna, mas reforçada e levada exclusivamente ao extremo. Ela reduz-se à proposição: a língua é informação. [...] em que medida o que é próprio da técnica acaba por se impor à língua levando à sua transformação em pura informação, de tal maneira que provoca o homem, quer dizer, obriga-o a assegurar a energia natural e a colocá-la à sua disposição? (HEIDEGGER, 1999, p. 33)
E em outra passagem:
O 'grande perigo' é que “a maré da revolução tecnológica que se aproxima na era atômica pode cativar, enfeitiçar, ofuscar e iludir o homem de tal modo que o pensar calculador pode algum dia ser aceito e praticado como único modo de pensar”. (HEIDEGGER apud DREYFUS, 1993, p. 305)
O desafio que o pensamento heideggeriano nos apresenta é, portanto, poder discorrer acerca de “nossa situação” 'histórica' sem pensar o ser humano como coisa dada, como pergunta respondida por suas determinações culturais: “e isto porque estes diagnósticos e prognósticos somente nos fornecem um papel e nos desconectam de nós mesmos, ao invés de nos auxiliar no intuito de nos encontrarmos” (Heidegger, 2006, p. 93). Como é possível pensar a humanidade do ser humano, os constrangimentos que resultam da condição histórica na qual esse ser se realiza, mantendo-nos ao mesmo tempo abertos à idéia fundamental de que o ser humano é aquele cuja essência é um estar sempre a caminho? Heidegger mesmo nos responde: refletindo sobre essa desconexão que o sociologismo, a filosofia da cultura, promove entre o ser do ser humano e seu mundo, sobre essa distância que nos arrasta para um “tédio profundo” em que o mundo parece submergir em niilismo.
Em
O Aberto, Giorgio Agamben parece concentrar-se nas questões que daí decorrem. Comentando sobretudo as 180 páginas que Heidegger dedica a pensar o que ele próprio denomina “chatice profunda”, ou “tédio profundo”, em
Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, Agamben pretende concentrar-se na análise que Heidegger faz da relação entre o humano e o animal – caso possamos aceitar que do ponto de vista heideggeriano alguma relação aqui pode se estabelecer, ou que ainda a eventual impossibilidade desse vínculo nos diga respeito. No conhecido
Carta sobre o humanismo essa relação já é problematizada do modo seguinte: porque a pergunta fundamental que o humanismo produz é sempre “o que é o ser humano?”, entendendo e dispondo o ser humano, portanto, em meio a totalidade dos entes, o humanismo no fundo reduz o humano à condição de animal, à condição de um “que” – ainda que lhe confira algum tipo de qualidade específica: a inteligência, a fala, o luto etc. O animal é portanto o horizonte a partir do qual o humanismo tende sempre a pensar o ser humano. Desnecessário dizer que essa redução é apenas uma forma diferente de expressar a desconexão, a distância sobre a qual falávamos e que torna o mundo impenetrável, tedioso, ou seja, torna o niilismo possível a partir do cancelamento da questão da essência do humano.
Mas o que é mesmo o animal? Ao problematizar a reflexão metafísica acerca da essência do humano, Heidegger parece deixar em suspensão em
Carta sobre o humanismo aquilo que é fundamental e, da perspectiva de sua filosofia, impossível, nomeadamente, pensar o animal. E é esse espaço que a filosofia política de Giorgio Agamben é compelida a analisar.
Desse lugar inabitável, a discussão que Agamben promove em
O Aberto, portanto, tem então um sentido claro: aprofundar o conceito foucualtiano de biopoder mediante a reflexão heideggeriana acerca do humanismo – atitude que, de resto, marca a sua contribuição filosófica recente. Ora, um elemento fundamental da apropriação crítica do conceito de biopoder, tal como proposta por Agamben, é dado pela expansão de tal conceito no sentido de uma análise mais abrangente do político no ocidente. A modernidade não é seu campo de reflexão amplo, mas a metafísica ocidental. Para ele, o conceito de biopoder, ou seja, dessa “animalização do homem efetuada por tecnologias políticas as mais sofisticadas” (Agamben, 1997, p.11), não diz respeito apenas à forma como a política passou a ser exercida nos últimos duzentos anos. A “exclusão inclusiva” da vida nua foi um elemento fundamental na própria construção da idéia de civilização ao longo da história do ocidente. Aquilo que Foucault via como um traço recente dessa história deveria ser consideravelmente ampliado. Cito um trecho conhecido do
Homo sacer:
A tese de Foucault deverá a partir de então ser corrigida, mais ou menos completada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é a inclusão da zoe na polis, em si bastante antiga, nem simplesmente o fato que a vida como tal torna-se um objeto eminente de cálculos e previsões do poder estatal; o fato decisivo é antes que, paralelamente ao processo em virtude do qual a exceção torna-se em todo lugar a regra, o espaço da vida nua, situada em princípio à margem da organização política, finda progressivamente por se confundir com o espaço do político” (Agamben, 1997, 17)
Poderíamos chamar a esse gesto teórico de uma heideggerização de Foucault – este último demasiado comprometido com um certo sociologismo cronológico, com a originalidade da modernidade, para radicalizar as conclusões a que ele próprio chegara, ou seja, a constatação de que uma certa animalização do político é um dado da cultura ocidental, embora todos concordemos que esse traço chegua ás suas últimas conseqüências no mundo moderno. Como vimos acima, Heidegger já afirmara em 1946 que a metafísica como um todo não consegue pensar a dignidade do humano, sua exceção, num terreno elevado o suficiente, por pensá-lo a partir do animal. O outro do humanismo para Heidegger é o animal, assim como o outro do civilizado para Agamben é o homo sacer, a vida nua, a vida animalizada que sempre constituiu espaço privilegiado de elaboração do político no ocidente.
Pensar junto com Agamben e Heidegger essas duas oposições que se confundem (isto é, o animalitas de Heidegger é a vida nua de Agamben) é, enfatizemos, também a oportunidade de pensar o niilismo no ocidente, ou seja, a queda do humano no automatismo animal, deste ser que sempre foi o horizonte imediato da concepção humanista da essência do humano. A metafísica confunde o modo como o ser humano, o animal e o ser inanimado existem no mundo, isto é, uma confusão entre ser-aí, ser vivo e ser dado. Para Agamben ou Heidegger, a sociobiologia, o darwinismo social, seriam apenas casos limites da cultura ocidental. Para Agamben, podemos inferir, a cultura contemporânea, expressão técnica consumada do biopoder, redunda na animalização do ser humano, do seu empobrecimento ontológico, totalmente compatível com a tese de realização do niilismo pela técnica, que mencionamos acima. O campo de concentração, a animalização do ser humano, pertence a cultura ocidental de modo umbilical.
Em todo caso, o que é mesmo o animal para que já possamos falar de antemão acerca do perigo que o seu automatismo implica para o mundo civilizado, para que possamos dizer que o campo de concentração pertence a cultura ocidental de modo umbilical? A pergunta insiste em afirmar sua importância.
Nesta comunicação, seguiremos a exegese de Os Conceitos Fundamentais da Metafísica que nos oferece Giorgio Agamben, buscando apreciar de forma crítica suas conclusões. Nossa pergunta preliminar é simplesmente: em que medida a apreciação agambeniana desse texto fundamental consegue pensar a relação humano-animal em um espaço teórico em que a metafísica possa ser, não evitada, mas colocada em questão, posta em aberto. Ao realizar tal esforço, temos em mente dois textos derridianos sobre a reflexão heideggeriana acerca de tal relação:
O animal que logo sou e o segundo capítulo de
As Margens da filosofia, isto é, “Os fins do homem”. Espero com esse esforço estar oferecendo subsídios para a reflexão de minhas estudantes e algumas respostas para mim próprio, tocado que sempre fico com o discurso pessimista de meus colegas lacanianos e todos aqueles que não sabem o que fazer com a pá com que enterraram a última metanarrativa.
7 comentários:
Como não pude ainda escrever o post sobre consumo de medicamentos nem outro sobre subjetividades e modernidades, vai a introdução de este outro que tenho de escrever para uma coletânea sobre Agamben. Jonatas
Caríssimos, fiquei hoje a conhecer o vosso blogue, que apreciei bastante. Desde já aqui vos deixo o registo de parabéns e o incentivo para que continuem.
O colocarei o vosso link, no nosso suciologicus.
http://suciologicus.blogspot.com
Um abraço
Bacana, Victor. Seja bem-vindo. Estamos todos meio atrapalhados com dissertações, teses e prévias carnavalescas (sobretudo Artur que é um folião conhecido), mas em breve estaremos postando mais regularmente. E irei agora mesmo fazer uma visita no seu sociologicus. Abraço.
Muito legal seu blog, Victor. E seja bem-vindo!
Abraço.
Jonatas, minha tese de mestrado é sobre o Aberto, me interessei pelo seu artigo "Heidegger, Agamben e o animal. Gostaria de ter acesso ao artigo completo, é possível? Meu email é: thiago.libertad@gmail.com
Obrigado!
Thiago
Cadê a continuação do artigo?
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