Artur Perrusi
Como já foi alardeado nesse prestimoso blog, Jonatas é o coordenador de uma pesquisa sobre sofrimento psíquico. Sou o seu mais dileto colaborador. Entrei de bobeira, por puro oportunismo do dito-cujo. Sofria horrores por causa da bosta do Santinha, e Jonatas, aproveitando-se de minha extrema vulnerabilidade, convenceu-me a entrar na pesquisa. Entrei quase chorando, posso dizer, mas mantive a altivez.
Por isso, começo essas linhas já sofrendo. Talvez, até ajude
a abordar o tema. Escrever sobre o sofrimento, sofrendo? Sei, sei, é estranho e
piegas, mas defenderei sua eficácia. Não é só a escrita que me faz sofrer.
Precisei, na verdade, arrancar parte da unha para continuar o texto. Desse
jeito, incorporei um zeitgeist da dor, que passava
voando pela janela, e pude, enfim, começar a escrever. Mas parei, rapidamente.
Tirei a unha certa da mão errada. Um erro infantil que me impossibilitou de
pressionar o teclado. Doía, simplesmente – eu sofria. E, ainda, fiquei na
dúvida sobre a natureza do tal zeitgeist:
afinal, sofria porque sentia dor ou meu sofrimento estava além do meu dedo
dolorido? Meu sofrimento significava algum caminho axiológico a algum lugar?
Ou, simplesmente, como sintoma do espírito de nossa época, era apenas e nada mais do
que... dor.
Dor e sofrimento são termos intercambiáveis. Posso usar dor no
sentido de sofrimento, e vice-versa. Porém, no texto, farei uma distinção
analítica (Brant e Gomez, 2005; Ricoeur, 1994). Acho-a útil para
compreender, como veremos, determinadas questões. Ela é analítica, não sendo,
portanto, propriamente “real”. Mesmo assim, farei a hipótese de que, nalgumas
situações, a distinção torna-se uma separação bem concreta. Além da distinção,
defenderei que o sofrimento psíquico, pelo menos da forma pela qual se expressa
atualmente, seria um sintoma da reconfiguração da subjetividade moderna. Sei,
sei, é bem pomposo dizer isso. Digo até de boca cheia: “sintoma da
reconfiguração da subjetividade moderna”. Mas, se Jonatas relaciona as
percepções sociais sobre o sofrimento a matrizes históricas de longo alcance, a
judaica-cristã e a grega, por que não posso também viajar na maionese? Viva a
democratização da maionese, portanto.
E começo repetindo o mote: o sofrimento psíquico foi
reconfigurado. Atualmente, está bem além da velha “dor moral”. Virou um "fato
social". Não só é comum, mas também tem tanta importância quanto à dor somática
– na verdade, como se verá mais adiante, faço a hipótese de que o sofrimento
tornou-se “universal” até porque foi reduzido à dor. Existe, assim, uma
generalização do sofrimento psíquico. Ele faz parte, inclusive, de todo espaço
institucional. Por isso, as instituições assumem agora a responsabilidade de
combatê-lo: escola, família, igrejas, empresa, bancos. A mobilização de atores
sociais, expertises do sofrimento psíquico, torna-se plural: psiquiatras,
médicos, enfermagem, serviço social, educadores, recursos humanos, padres,
pastores, policiais, juízes, usuários, movimentos sociais. O sofrimento
psíquico está em toda parte, em toda situação social, principalmente naquelas
relacionadas à vulnerabilidade social (doença, pobreza, delinquência,
desemprego, trabalho precário, etc.).
Não
se silencia sobre o sofrimento, embora o silêncio seja o resultado. É um
paradoxo, eu sei. Mas o que quero dizer é que não se sofre mais no silêncio. O
sofrer é logorreico: nunca se falou tanto sobre o assunto -- sofre-se falando,
porque se tem algo a dizer. Mas dizer o quê, se o sofrimento expressa-se fundamentalmente
por meio da dor, essa prática sem linguagem? Curiosamente, a prática discursiva
do sofrimento faz-se acompanhar de novas formas de sofrimento e de sua...
denegação. Ou seja, do silêncio.
E
não se sofre só, pois o sofrimento faz parte da socialização -- da criança
hipercinética ao velho deprimido. A adaptação ao mundo não é mais dada por
formas de aprendizado mais ou menos simples ou rápidas, e sim construídas,
geralmente de forma individual, tomando como base uma pluralidade de valores e
papéis sociais. Por isso, estar no mundo precisa agora da ajuda de
especialistas da socialização -- de educadores a psicólogos e psiquiatras.
Como
chegamos a esse ponto? Por que a banalização do sofrimento? De forma
esquemática, sugiro duas explicações gerais:
a) Faço a hipótese de que o sofrimento, no mundo atual, seria uma expressão do individualismo contemporâneo. O sofrimento revelaria, assim, mudanças na configuração da individualidade. Por meio de seus sinais, pode-se fazer uma ponte entre o psíquico e o social, pois a socialização moderna induz a uma apreensão subjetiva e individualizada do mundo. Não causa surpresa, com efeito, que ocorra uma psicologização do sofrimento, mesmo que tenha uma distribuição social do mesmo – ao psicologizar e biologizar o sofrimento, neutraliza-se seu aporte simbólico. O sofrimento é uma construção social, embora sua expressão seja individualizada. É individualizado, porque é socializado dessa forma. Por isso, é de ninguém e de todos – empiricamente infinito e sociologicamente limitado (Otero, 2005).
Talvez, essa “solidão” do sofrimento, no mundo contemporâneo, tenha uma relação com o surgimento de novas vulnerabilidades: fragilização da solidariedade e das posições estatutárias (ocorre uma assimetria entre experiência individual e coletiva); fragilizações dos processos de identificação (a identidade como busca permanente de reconhecimento, logo, com chances reais de fracasso); individualismo e psicologização das condutas (responsabilização total de todos os fatos de nossa vida); naturalização dos “sentimentos morais” (psicologização e biologização dos valores).
Provavelmente, estamos diante de uma nova relevância do sofrimento, mas como denegação. Afinal, fala-se do sofrimento para exorcizá-lo. Assim como a sexualidade, tornou-se um espaço de práticas e de significações, logo, de conhecimento, reconhecimento e diferenciação. Há uma reivindicação do sofrimento – um direito ao sofrer. Como tal, é uma contrapartida da reivindicação de valores relacionados à autonomia, ao desempenho, ao empreendedorismo, à responsabilidade, à adaptação, à iniciativa, à flexibilidade... Por isso, o sofrimento é interpretado como sintoma de fracasso e incapacidade – como inadaptação.
Chamo isso de “handicapização” do sofrimento.
b) A saúde virou uma categoria de valor fundamental no mundo contemporâneo. Transformou-se numa ordem axiológica que norteia os comportamentos no cotidiano, pois define, inclusive, a Boa Vida – tornou-se uma Cidade no sentido de Boltanski (1991). Vivemos sob o peso da “utopia da saúde perfeita” (Sfez, 1995). Tal utopia está intrinsecamente acoplada ao surgimento e ao desenvolvimento da biotecnologia e à constituição de políticas públicas como biopolítica (Foucault, 1977). O corpo pôde assim ser capturado pela biotecnologia, num processo concomitante à biopolitização da pessoa (Biehl, 2008) – o controle político da vida passa pela captura biológica da pessoa. A saúde, nesse sentido, é uma ordem normativa que higieniza os valores mundanos. No seu sentido hegemônico, a saúde naturaliza a boa vida, o prazer e, consequentemente, o sofrimento. A "utopia da saúde perfeita" pode ser julgada como um sistema de crenças que radicaliza a modernidade, porque interpela diretamente o núcleo da individualidade e da subjetividade modernas, justamente o corpo. A busca compulsiva à saúde produz a intolerância obsessiva à doença, à dor e ao sofrimento. Ora, o sofrimento é o outro da saúde. E, se a saúde é higienizada, o sofrimento é naturalizado – daí sua relação intrínseca com o uso de psicotrópicos. Não causa surpresa que a saúde, assim como a saúde mental, seja hegemonizada pela biomedicina.
Acredito que essas duas explicações acima, ao se misturarem,
criam o seguinte paradoxo: a banalização do sofrimento vem acompanhada de
denegação, principalmente por meio da sua medicalização (uso de psicotrópicos,
por exemplo). E a medicalização do sofrimento (Guarido, 2007, 2009; Tesser,
2006) é facilitada pela sua naturalização e redução do sofrimento à dor.
Continua. É só clicar, abaixo.
Continua. É só clicar, abaixo.