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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Peter Berger: esboço de uma biografia intelectual


Dando uma olhada no blog, hoje me dei conta que faz quase dois anos que não posto nada por aqui. Com medo que Artur e Jonatas me substituam por Tâmara ou por Gabriel, que andam muito mais assíduos e produtivos, decidi dar o ar da graça e postar a introdução a um texto que escrevi recentemente para um volume sobre teoria social que deve ser publicado em breve. Como o texto é muito grande e ainda inédito, segue a parte biográfica, que talvez possa interessar algum leitor desavisado. A verdade é que eu gostei de pesquisar sobre o rapaz...

Cynthia Hamlin

Peter Ludwig Berger é conhecido pelo desenvolvimento de uma abordagem fenomenológica à sociologia do conhecimento e sua aplicação a temas como religião, família, modernidade, desenvolvimento e até humor e riso. Seus livros de introdução à sociologia, como o já clássico Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística, têm ajudado a formar diversas gerações de sociólogos no mundo inteiro. No final da década de 1990, numa enquete promovida pela Associação Internacional de Sociologia para eleger as mais influentes obras sociológicas escritas no século XX, seu A Construção Social da Realidade, em coautoria com Thomas Luckmann, ficou em quinto lugar, atrás de Max Weber (que aparece com duas obras), Charles Wright Mills e Robert Merton, e à frente de Pierre Bourdieu, Norbert Elias e Jürgen Habermas (International Sociological Association, 2015). Seus trabalhos em sociologia da religião também têm atraído atenção considerável, tanto em sua defesa inicial da teoria da secularização quanto na refutação (parcial) desta ideia em favor da de dessecularização (cf. Berger, 2000; Mariz, 2000; Hervieu-Léger, 2001).

Berger nasceu em Viena, Áustria, em 17 de março de 1929, onde permaneceu até 1946. Seus anos vienenses foram marcados por uma visão de mundo conservadora, fruto de uma rígida educação luterana e de uma imaginação política inspirada por histórias da glória da Casa Real de Habsburgo, uma dinastia que durou mais de 600 anos (Dorrien, 2001). Berger descreve a Viena do início do século XX, nos anos finais do Império austro-húngaro, como “palco de uma estimulante tensão entre uma sociedade urbana que se moderniza e um ancien régime esclerosado” e de uma incrível explosão de criatividade cultural e intelectual (Berger, 2011b). Um dos símbolos dessa tensão é a praça Michaelerplatz, “onde as entradas monumentais do Palácio Imperial confrontam a Casa Loo, uma incorporação local da escola Bauhaus de arquitetura moderna” (Ibid.). Artistas e intelectuais do período incluem nomes como Gustav Klimt, Arnold Schoenberg, Richard Strauss, Robert Musil, Sigmund Freud, Ludwig Wittgenstein e Ernst Mach.

No plano político, a tensão se manifestava em inúmeros conflitos entre as diversas nacionalidades que compunham o Império, finalmente desembocando no assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, em 1914, e na Primeira Guerra Mundial. Como resultado desses conflitos, Viena tornou-se o centro de uma enorme burocracia imperial, cujos esforços para restringir as pressões nacionalistas dos grupos étnicos minoritários, particularmente da região dos Balcãs, criou um clima de autoritarismo político e a existência de um parlamento em que os diversos partidos tinham pouca ou nenhuma voz ou experiência democrática. Inseridos em uma atmosfera política decrépita, muitos vienenses simplesmente se omitiram da vida política. Sigmund Freud, por exemplo, não se registrou como eleitor até a idade de 52 anos, representando não só desespero e apatia típicos, mas também uma reação à racionalização e burocratização política e econômica em curso desde meados do século XIX. Não foi por acaso o mergulho no mundo psíquico, interior, subjetivo, que caracterizou a obra de Freud, a música de Mahler e Schoenberg, a pintura de Klimt, ecoando até na fenomenologia de Alfred Schütz (Barber, 2004).

Outros vienenses, como o pai de Berger, que havia sido oficial de reserva no exército austro-húngaro, passaram o resto de suas vidas nutrindo uma grande nostalgia pela monarquia, considerada por ele “uma âncora de estabilidade na Europa” e cujo fim foi uma catástrofe que levou a diversas tiranias, inclusive a uma guerra “ainda pior do que a que tinha levado à sua dissolução” (Berger, 2011b). Embora não tenha vivido este período, a visão de Berger parece ter sido tão influenciada pelas histórias de seu pai que, recentemente, numa espécie de obituário para Otto von Habsburg - filho mais velho do último imperador da monarquia austro-húngara - afirmou que “se os Habsburgos ainda reinassem nos anos de 1940, ‘Auschwitz’ não teria ocorrido” (Ibid.).

A sensação de fragmentação e caos transmitida por sua família foi reforçada durante o período de anexação da Áustria à Alemanha pelo regime nazista (1938-1945) e da Segunda Guerra. Grandes ondas migratórias tiveram início nos anos de 1930 e foram retomadas após o fim da Guerra, quando muitos austríacos de origem judaica e opositores ao regime emigraram para os Estados Unidos. Os Berger permaneceram em Viena durante todo o período da anexação, mas se mudaram para Nova York em 1946. Então com dezessete anos, membro de uma religião minoritária em seu país de origem, muito pobre e com sua sensibilidade afetada pelos horrores da Guerra, Berger (1990: 264) sentiu que os Estados Unidos lhe proporcionaram uma “profunda experiência de normalidade”. Parte dessa experiência derivou de seu encontro com a Igreja Luterana Unificada, ligada ao protestantismo histórico, mas “inteiramente identificada com a cultura americana, sensível, tolerante e muito distante do extremismo kierkegaardiano que, até então, definia o cristianismo” para ele (Ibid.).

Ainda em 1946, Berger matriculou-se no Wagner College, obtendo o título de Bacharel em Artes três anos mais tarde. Seu intuito era tornar-se ministro da Igreja Luterana. Ciente de que sua atuação como pastor exigia um conhecimento sobre os Estados Unidos que ele, como estrangeiro, não possuía, decidiu adiar sua formação teológica e cursar um mestrado em sociologia. Optou pela New School for Social Research, conhecida à época como a “Universidade em Exílio” devido ao número de estrangeiros de origem europeia, sobretudo de língua alemã, que compunha os seus quadros. Assim como ocorreu em outras Universidades estadunidenses, o influxo de intelectuais da Europa fascista entre os anos de 1930 e 1945 ajudou na construção de uma sociologia filosoficamente sofisticada e menos provinciana em seus interesses (Steinmetz, 2007). Apesar disso, a New School nunca alcançou o prestígio que Universidades como Chicago tiveram até os anos de 1930, ou Harvard e Colúmbia, no pós-Guerra (Wallerstein, 2007; Gross, 2007). Seu status relativamente marginal na sociologia permaneceu até o final da década de 1960, com o fim da hegemonia mundial do estrutural-funcionalismo de Parsons e do positivismo instrumental de Paul Lazarsfeld e a ascensão de abordagens de cunho mais interpretativo - como foi o caso das diversas vertentes do interacionismo simbólico e da sociologia fenomenológica desenvolvida por Alfred Schütz e pelo próprio Berger (Hamlin, 2011).

Foi por razões econômicas que Berger optou pela New School: tratava-se de uma das poucas Universidades de sua região que oferecia aulas no período noturno, possibilitando que financiasse seus estudos com trabalhos que variaram de office boy nos escritórios da Igreja Metodista, a recepcionista em uma clínica de doenças venéreas e secretário em uma revista da Sociedade Bíblica Americana (Berger, 1990; 2009; 2011a).

Sua dissertação de mestrado, concluída em 1950, consistiu em um estudo empírico, baseado em observação participante, sobre uma comunidade pentecostal de portorriquenhos radicados em Nova York. Em seguida, matriculou-se no Seminário Teológico Luterano da Filadélfia para dar prosseguimento aos seus planos de se tornar ministro. Permaneceu lá por um ano e, embora a abordagem histórico-crítica ao estudo das escrituras e da teologia tenha lhe parecido interessante, chocava-se com a formação religiosa que recebeu em seu país de origem (Dorrien, 2001). Anos mais tarde, escrevendo sobre este período, Berger (1990) afirma que, ao refletir e legitimar os valores da classe média americana, a concepção de cristianismo defendida pelas igrejas do protestantismo histórico nos EUA estava profundamente em desacordo com sua crença de que a fé cristã não deveria refletir este mundo, mas um mundo transcendente, o mundo de Deus. Mais do que isso, já intuía que o ajuste cognitivo do cristianismo à visão de mundo da modernidade efetuado pelos teólogos liberais teria como consequência o desmantelamento progressivo da tradição cristã (Berger, 1997b). Assim, por mais que admirasse e concordasse com os principais valores da cultura americana, acreditava que a fé cristã não poderia ser reduzida aos valores de uma cultura particular, pois isso contradiz o próprio espírito das Escrituras. Convencido de que não poderia pregar essa ideia, abandonou seus planos de seguir uma carreira religiosa, mas não se afastou da religião, nem no plano pessoal, nem no profissional. Suas preocupações com temas como a incerteza, a fragmentação e a desordem constituem o elo entre suas reflexões sociológicas, por um lado, e teológicas, por outro (Woodhead, 2001).

Este elo, no entanto, só foi plenamente construído após seu retorno à New School, desta vez para um curso de doutorado. Sua tese, defendida em 1954, recebeu o título de “O Movimento Baha’i: uma contribuição à sociologia da religião”. Diferentemente de sua dissertação, a tese baseava-se em uma perspectiva histórica e basicamente consistiu na aplicação da noção weberiana de “rotinização do carisma” para compreender como a fé baha’i passou de um movimento messiânico no Irã do século XIX a uma comunidade religiosa nos EUA do século XX (Berger, 2011a).

Berger naturalizou-se estadunidense em 1952 e, logo após concluir seu doutorado, serviu ao exército americano por dois anos. Lecionou em diversas Universidades dos EUA, incluindo a New School for Social Research, a Rutgers University e a Universidade de Boston, de onde se aposentou em 1999. Escreveu diversos artigos e livros, dois dos quais romances. Atualmente, Berger é pesquisador sênior, aposentado, mas ainda atuante, do Instituto de Cultura, Religião e Questões Mundiais (CURA), do qual foi diretor até 2009. Além de suas contribuições acadêmicas, propriamente ditas, semanalmente escreve artigos de opinião em seu blog, o Religião & Outras Curiosidades (http://blogs.the-american-interest.com/byline/berger/).

***

Para compreendermos o percurso intelectual de Berger, faz-se necessário uma pequena incursão em seus anos de formação. Seus anos de estudo na New School foram profundamente marcados pela influência de três de seus professores: Albert Salomon, Alfred Schütz e Carl Mayer. Com o primeiro, frequentou cursos sobre as origens iluministas da sociologia e sobre a escola francesa de sociologia, representada, sobretudo, pela figura de Durkheim. Alguns temas durkheimianos aparecem claramente na obra de Berger: a ideia de objetividade dos fenômenos sociais, a necessidade do consenso moral para a manutenção da ordem social, as relações contratuais como marcas da solidariedade orgânica que caracterizam a modernidade, a religião como representação ou simbolização da sociedade, a concepção de anomia como privação de laços sociais, dentre outros. Contudo, uma disciplina ministrada por Salomon em seu primeiro semestre na New School, “Balzac como sociólogo”, foi o que marcou definitivamente sua concepção de sociologia.

O objetivo da disciplina era introduzir categorias sociológicas como classe, poder, religião, controle social, mobilidade, crime, marginalidade, por meio da literatura (Berger, 2011a: 12). Não surpreendentemente, sua aventura balzaquiana rendeu mais conhecimento sobre a sociedade francesa do século XIX do que sobre os Estados Unidos do século XX, mas o mergulho no universo dos personagens de Balzac - nunca inteiramente bons ou maus, mas moralmente ambíguos e precários em sua humanidade – foi decisivo para Berger. Tanto Marx quanto Engels já haviam atentado para a capacidade de Balzac em captar as contradições e conflitos da sociedade francesa e O Capital está repleto de referências ao romancista (Sayre e Löwy, 2013; Wheen, 2007). Berger, no entanto, incorpora à própria sociologia aqueles aspectos do comportamento humano tão bem retratados por Balzac em relação ao cotidiano e ao trivial, assim como o interesse por nossas motivações, das mais torpes às mais elevadas (Berger, 2001a). Isso se deveu, em parte, à influência de Alfred Schütz que, de um ponto de vista teórico, teve um impacto muito mais duradouro no trabalho maduro de Berger.

Schütz ensinava duas disciplinas distintas na New School: sociologia do conhecimento e metodologia das ciências. As aulas de sociologia do conhecimento destinavam-se, sobretudo, à apresentação e crítica do trabalho de outros autores. Já os cursos de metodologia consistiam numa espécie de laboratório no qual Schütz desenvolveu seu arcabouço teórico - uma síntese da fenomenologia de Edmund Husserl e da sociologia interpretativa de Max Weber, temperada por certos elementos da tradição pragmatista (sobretudo William James e George Herbert Mead). Em sua autobiografia intelectual, Berger (2011a: 22) relembra que foi em uma dessas aulas que ouviu a frase que, anos depois, viria a marcar sua (e de Luckmann) própria perspectiva: “a sociologia do conhecimento ... deverá lidar com tudo o que passar por conhecimento na vida cotidiana”, isto é, tudo aquilo que confere significado ao mundo e às nossas ações. Também enfatiza que o principal conceito que aprendeu de Schütz foi o de “realidades múltiplas”, que diz respeito a tudo aquilo que conta como realidade para os seres humanos e que orientará suas análises sobre fenômenos como a religião e o humor.

De acordo com Schütz, a principal dimensão da realidade é a chamada “realidade suprema”, que se refere ao que os fenomenólogos, a partir de Husserl, chamam de “mundo da vida”. Trata-se de um “mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos predecessores, como um mundo organizado” (Schütz, 1979: 72). Essas experiências e interpretações anteriores nos são passadas por meio do processo de socialização e formam um “estoque de conhecimento à mão” que usamos como referência para interpretarmos nossas próprias experiências cotidianas. Neste sentido, o mundo da vida diz respeito a um setor daquilo que os seres humanos experienciam como realidade, aquele que abordamos a partir de uma atitude “natural” ou “ingênua” na medida em que não questionamos sua existência e propriedades, mas de forma naturalizada, como se fossem simplesmente dadas.

Para Schütz, entretanto, a realidade suprema não esgota o universo de nossas experiências do real. Existem enclaves ou ilhas dentro dela, as chamadas “províncias finitas de significado” que são experienciadas quando saímos temporariamente da realidade suprema da vida cotidiana. Essas províncias finitas de significado, ou “sub-universos”, na terminologia de William James, têm um número de características que as distinguem da realidade suprema: um estilo cognitivo específico, uma consistência nos limites de suas próprias fronteiras, um sentido exclusivo de realidade que difere não apenas da realidade suprema, mas também de outras províncias de significado das quais só se pode sair ou entrar por meio de um “salto”, isto é, da adoção de uma forma distinta de consciência ou intencionalidade, de um tipo específico de epoché ou suspensão da dúvida, de formas específicas de espontaneidade, de auto-experiência, de socialidade e de durée (ou experiência do tempo) (Berger, 1997a). Exemplos de províncias finitas de significado seriam o mundo dos sonhos, das experiências estéticas, das experiências religiosas, do discurso teórico e, no caso de Berger, também do humor.

A importância das ideias de Schütz, contudo, só será sentida por Berger muitos anos mais tarde quando, juntamente com Thomas Luckmann, ele desenvolve sua própria versão da sociologia do conhecimento. Em seu período de formação na New School, Carl Meyer, que dava aulas sobre sociologia da religião e sobre a obra de Max Weber, gerou uma impressão muito mais forte no jovem Berger, tendo, inclusive orientado sua tese de doutorado. De acordo com Berger (2011a: 23-25), a abordagem de Meyer à religião era inteiramente weberiana e girava em torno de conceitos como os de “seita”, “culto” e “carisma”, além de temas como “rotinização do carisma” e a “afinidade eletiva” entre determinados fenômenos religiosos e certas forças sociais. Um de seus cursos era inteiramente dedicado a A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Weber. Dado seu interesse em religião, não é surpreendente que Berger tenha prontamente se identificado com os elementos centrais da abordagem weberiana trabalhados nos cursos de Meyer: uma concepção de sociedade como constituída por ações significativas; a sociologia como uma ciência que se preocupa com a interpretação ou compreensão desses significados; uma teoria da formação de conceitos concebidos como tipos-ideais; a relação entre significados, motivos e ações; a institucionalização do Estado, da economia e das classes; a ideia de neutralidade axiológica.

Obviamente que os anos de formação de Berger não esgotam suas influências intelectuais, nem mesmo se considerarmos apenas sua sociologia do conhecimento, desenvolvida relativamente cedo em sua carreira. No entanto, é curioso que, ao se referir a esses anos e às influências que sofreu, omita um autor central à sua abordagem: Karl Marx. Como ele e Luckmann deixam claro em A Construção Social da Realidade, “a sociologia do conhecimento tem sua raiz na proposição de Marx que declara ser a consciência do homem determinada por seu ser social” (Berger e Luckmann, 1987: 17). De fato, Berger não apenas considera uma dimensão central da epistemologia marxista, a de que o conhecimento não está dissociado de seu contexto social, mas faz uso de uma série de intuições e conceitos derivados de Marx. Embora não mencione explicitamente, a dialética entre entre “o homem na sociedade” e a “sociedade no homem” descrita em seu Perspectivas Sociológicas (i.e., anteriormente ao desenvolvimento de sua sociologia do conhecimento) é claramente de inspiração marxista (e hegeliana). Também o são os conceitos de ideologia, exteriorização, objetivação, alienação e reificação.

Neste sentido, a omissão de Berger é significativa e possivelmente decorre da sua necessidade de se diferenciar da perspectiva crítica que informa o pensamento marxista. Diferentemente do que ocorre com a noção weberiana de objetividade, a noção marxiana não depende da distinção fato/valor. Resultado da aplicação do método dialético, a objetividade refere-se a um alto grau de adequação entre o conceito e a realidade objetiva ou, nos termos de Marx, entre o “concreto pensado” e o “concreto real” (cf. Hamlin, 2011: 11). A noção de crítica, por outro lado, pode ser entendida tanto no sentido kantiano, i.e., do estabelecimento das condições de possibilidade do conhecimento, quanto no sentido de uma perspectiva crítica da sociedade e das ciências que implica uma prática transformadora. Este último sentido de crítica só faz sentido na medida em que não se adere à distinção entre fato e valor: pode-se concluir, por exemplo, que a sociedade capitalista é desigual (julgamento de fato); se é desigual, é injusta (julgamento de valor); se é injusta, deve ser mudada (práxis).

A rígida separação entre fato e valor que informa a noção weberiana de objetividade é um traço fundamental da obra de Berger que, como “weberiano ortodoxo”, considera que “julgamentos morais não devem ser usados em discursos científicos sociais” (Berger, 2006: xviii). A questão que se coloca é em que medida ele consegue sustentar essa posição, seja em seu “ateísmo metodológico”, quando afirma, por exemplo, que “a teologia da libertação é empiricamente falsa” (Berger apud Dorrien, 2001: 26); em suas análises do capitalismo, quando afirma que “a modernização capitalista é empiricamente superior às suas alternativas do mundo real” (Ibid.); quando descreve seu The War over the Family (A Guerra Sobre a Família, em coautoria com Brigitte Berger) como “uma defesa da família burguesa” (Berger, 2011c); em sua “recusa polida” (Berger, 2001b) de se utilizar de uma linguagem neutra em termos de gênero, ou de incorporar uma perspectiva de gênero para questionar uma distinção entre público e privado que torna as mulheres invisíveis na análise sociológica (Heelas e Woodhead, 2001: 71).

Em relação às suas posições ideológicas, Berger se autodefine como “centro-direita”, de um ponto de vista político e, de um ponto de vista religioso, mais à esquerda (em que pese seus ataques mordazes à teologia da libertação). Durante algum tempo, identificou-se com o movimento neoconservador dos Estados Unidos, rompendo com ele em 1997 em função do “crescente extremismo de seus membros, particularmente em sua preocupação monomaníaca com a questão do aborto e da homossexualidade” (Berger, 2001b: 191). A posição de Berger sobre o aborto é particularmente instrutiva e deriva da tentativa de estabelecer uma espécie de “via média” entre os “muitos deuses da modernidade” contemporânea, caracterizada por um pluralismo exacerbado e cujos extremos variam do relativismo ao fundamentalismo, tanto em assuntos religiosos quanto em questões morais e políticas. Ao considerar inadequadas as denominações “pró-vida” e “pró-escolha” usadas por militantes nos EUA, sugere que a questão que realmente interessa é “quando, na trajetória de nove meses de uma gestação, uma pessoa humana emerge?” (Berger e Zijderveld, 2009: 299). Dado que nenhuma das duas denominações tem uma resposta convincente a esta questão, somos forçados a decidir numa situação de incerteza. Neste sentido, defende que a única alternativa moralmente sensata é seguir uma abordagem “conservadora” da ordem vigente e segundo a qual, “provavelmente”, o aborto deve ser “unicamente uma prerrogativa da mulher, pelo menos durante o primeiro trimestre, depois torna-lo progressivamente mais difícil e, por fim, ilegal, exceto sob circunstâncias extraordinárias” (Ibid: 301-302). Embora essa posição dificilmente possa ser caracterizada como “conservadora” em uma sociedade como a brasileira, o argumento de Berger deixa claro que sua sociologia não apenas não é “axiologicamente neutra”, mas que, ao revelar a fragilidade e precariedade da ordem social, tem uma importância fundamental tanto em sua manutenção quanto na redução da ansiedade que decorre de nossas incertezas.

Se o conservadorismo político de Berger tem colocado alguns limites para uma maior difusão de sua sociologia, especialmente entre aqueles que aderem a uma tradição crítica, ocasionalmente é possível usar Berger contra ele mesmo e, por meio de determinadas posturas teóricas, inferir certas posturas normativas como, por exemplo, a importância do uso de uma linguagem inclusiva em termos de gênero. Assim, em lugar de sucumbir aos seus argumentos relativos a supostos excessos do “politicamente correto” (Berger, 2011a), pode-se apelar para a sua própria sociologia e reafirmar, junto a diversas autoras feministas que se inspiraram em sua sociologia do conhecimento (cf. Smith, 1987; Collins, 1990), como o uso da linguagem afeta nossa percepção da realidade:

Toda sociedade tem sua forma específica de definir e perceber a realidade – seu mundo, seu universo, sua organização geral de símbolos. Isso já está dado na linguagem que forma a base simbólica da sociedade. Erigida sobre esta base, e por meio dela, encontra-se um sistema de tipificações preestabelecidas, por meio das quais as inumeráveis experiências da realidade são ordenadas (Berger e Kellner, 1964: 2-3).
Embora Berger enfatize que não chegou a desenvolver uma teoria geral da sociedade, sua sociologia do conhecimento representa sua grande contribuição à teoria sociológica e toda sua obra pode ser considerada uma aplicação dos principais pressupostos e conceitos desenvolvidos ali. Inspirados por Alfred Schütz, Berger e Luckmann (1987) estenderam a concepção tradicional de sociologia do conhecimento para além das discussões epistemológicas e ideológicas, desenvolvidas por autores como Max Scheler e Karl Mannheim, em direção ao conhecimento de senso comum da vida cotidiana, o tecido de significados que estrutura a vida social. Já não se trata de simplesmente estabelecer as conexões entre conhecimento (concebido como teorias ou como ideias sistematizadas) e contexto social, mas de compreender como aquilo que conta como realidade para nós (o senso comum) é socialmente construído. Mas isso será objeto de um outro texto.

Referências


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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Religião e política: conservadores católicos e eleições presidenciais no Brasil


Por Péricles Andrade[1]


As campanhas eleitorais em 2010 foram pautadas fortemente pela expressão pública do religioso. As lideranças religiosas pressionaram os candidatos a se comprometerem a não promoção da descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia, com ênfase na defesa de valores cristãos. Quanto a esses compromissos, o final do primeiro turno foi marcado por uma séria de boatos e denúncias contra os candidatos à presidência, sobretudo no tocante às questões relativas ao aborto, à união civil homoafetiva e a implementação do III Plano Nacional de Direitos Humanos. No início do segundo turno estas tensões chegaram ao ápice. Os citados temas se destacaram nos meios de comunicação e nos programas de rádio e TV dos presidenciáveis, além dos inúmeros boatos espalhados nas mídias sociais. Mais do que nunca os discursos foram instrumentalizados pela religião, especialmente pela moral cristã, e novas aparições em cultos religiosos foram registradas e exploradas entre os presidenciáveis (MARIANO e ORO, 2010: 11-38).

Boatos e denunciais estiveram presentes no pleito, sobretudo na internet e nos templos, orquestradas por lideranças católicas e evangélicas, com mais ênfase à candidata Dilma Rousseff (PT). Essa sofreu fortes críticas durante toda a campanha por sua “biografia política pregressa”, por ter apoiado anteriormente a legalização do aborto e pelo fato de seu partido e seu governo defenderem o controverso III Plano Nacional de Direitos Humanos. Por motivos eleitorais, Dilma Rousseff assumiu a fé católica ainda no 1° turno, emitiu carta ao “Povo de Deus”, na qual pleiteou a oportunidade de continuar o projeto de Lula, para defender valores da cidadania, a "semente do Evangelho" e a família, prometendo manter a legislação atual sobre o aborto e censurar parte do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia, quando atentar contra as liberdades de expressão e religiosa (MARIANO, 2011).

Obviamente pela vitória no primeiro turno e manutenção da sua liderança nas pesquisas de intenção de votos, durante o segundo pleito em 2010 bispos e padre católicos, sobretudo do Regional Sul I da CNBB[2], fizeram oposição sistemática contra a candidatura de Dilma Rousseff. A própria Regional divulgou nota da sua Comissão Episcopal Representativa do Conselho Episcopal em 26 de agosto de 2010 na qual, a partir das sinalizações pró-legalização do aborto, adotadas pelo PT, orientava os fiéis católicos a votarem em candidatos contrários a “descriminalização do aborto”. Por outro lado, católicos famosos como Frei Betto e Gabriel Chalita se empenharam em favor da candidata do PT. Essa passou a ser classificada pelos opositores católicos como “ateia”, “a favor do aborto”, “responsável pela concessão de privilégios a grupos homossexuais” e por “representar risco de implantar uma legislação liberal sobre Direitos Humanos no Brasil”.

As práticas elencadas podem ser observadas a partir do blog Acorda, Canção Nova! De que trata o citado blog? O conteúdo é direcionado aos membros da Canção Nova (CN), incluindo religiosos e leigos, e aos católicos brasileiros. A partir dos enunciados das postagens é possível identificar seus propósitos. Em tom alarmante e de denúncia, o conteúdo questiona o apoio da Igreja Católica à candidatura de Dilma Rousseff na eleição presidencial em 2010. Pode-se dizer que o blog busca demonstrar aquilo que seria, na sua perspectiva, a “incompatibilidade entre ser católico e o apoio da CN a esta candidatura”, denominada como “grave erro” e “traição a Jesus Cristo e Sua Igreja” (acordacancaonova.wordpress.com).

O sentido combativo contido no blog é constituído por três estratégias. Em primeiro lugar, o foco recai num combate personalizado à Dilma Rousseff. Há um significativo esforço por parte deste coletivo religioso tradicionalista na construção de seu capital simbólico. A candidata é caracterizada como “ex-terrorista”, a favor da “descriminalização do aborto” e do “casamento gay”, “sem uma filiação religiosa definida”, “com dúvidas quanto à existência de Deus”, “não temente a Deus” e “ante-religiosa”. Algumas imagens foram modificadas, com tons irônicos e de deboche.

A estratégia utilizada para construção do seu capital político adota a reprodução de supostas entrevistas concedidas por Dilma Rousseff nas quais algumas frases lhe são atribuídas, tais como: “nem Jesus Cristo pode impedir minha eleição”, “nesta eleição nem mesmo Cristo, querendo, me tira essa vitória; as pesquisas comprovam o que eu estou dizendo, vou ganhar no primeiro turno”. Também estão postados links de vídeos, imagens e textos nos quais a candidata “supostamente” assegura seus posicionamentos. O blog também permite ao visitante o acesso a sua suposta “ficha policial” da citada candidata (acordacancaonova.wordpress.com).

Em segundo lugar, há um sistemático questionamento das relações estabelecidas entre a Igreja Católica e o Partido dos Trabalhadores (PT). O apoio ao católico é questionado quanto ao seu posicionamento a “favor do aborto” e do “casamento gay”, além de algumas proibições que estariam para serem implementadas: 1) manifestações públicas de católicos e evangélicos; 2) redução da presença cristã na mídia televisiva; 3) obrigatoriedade de formação em jornalismo para os religiosos que atuam na mídia eletrônica; 4) prisão para religiosos que cobrarem o dízimo; 5) cobrança de impostos para dízimos, ofertas e contribuições; 5) criminalização das pregações sobre “espiritismo, feitiçaria, pornografia, ateísmo e idolatria”; 6) punições para quem veicular na mídia sobre “práticas contrárias a Palavra de Deus”; 7) perseguição às lideranças cristãs que pregarem sobre “práticas condenadas pela Bíblia Sagrada (“homoafetivismo, idolatria e espiritismo”), não terão direito de se defender por meio de ação judicial”. Além dessas ações, o blog ressalta o estabelecimento do dia do “orgulho gay e que seja oficializado em todas as cidades brasileiras e comemorado nas Instituições de Ensino Fundamental, publico e particular. Todos os opositores deverão ser punidos com as penas da lei, multa e prisão”. Ressalta-se “que as Igrejas que se negarem a realização de solenidades dos casamentos de homem com homem e de mulher com mulher, estarão fazendo ‘discriminação’, sejam multadas, fechadas e seus responsáveis sejam processados criminalmente por descriminação e desobediência civil. Com pena de multa e prisão” (acordacancaonova.wordpress.com).

O capital cultural contido em Acorda, Canção Nova! está além da adesão de setores católicos à candidatura de Dilma Rousseff. O blog apresenta-se como uma matriz geradora de traços distintivos católicos a partir da sua perspectiva conservadora. Nesse sentido, dois indícios são basilares á compreensão da tentativa de definição de um estilo católico cruzadístico em relação às ideologias de esquerda. Questiona-se a adesão dóxica ao pensamento e aos seus partidos, em particular ao PT, por lideranças cristãs sacerdotais e leigas. Quanto a isso, apresenta-se uma “lista de Bispos, Padres, Freiras e Protestantes e Leigos que são terroristas comunistas infiltrados na Igreja Católica”. A denominada “sinagoga do satanás” está constituída por bispos, padres, monges, frades, cientista políticos, professores, cantores, assessores, freiras, dentre outros (acordacancaonova.wordpress.com).

O blog ainda contém, particularmente, mensagens e críticas à postura de lideranças e fiéis que compõe a Comunidade Canção Nova. A ênfase recai sobre as denúncias feitas por religiosos católicos em relação a “situação em que o Brasil está vivendo nas eleições de 2010”. Ressaltam-se as denúncias realizadas pelos padres José Augusto e Paulo Ricardo, além dos bispos Dom Beni, Dom Aldo Pagoto. Por outro lado, algumas lideranças da Canção Nova são acusadas de negligência, covardia e “traição”. O principal alvo das críticas é o então deputado estadual Gabriel Chalita, “engajado na Comunidade Canção Nova”. Novamente questões de ordem moral e sexual são pautadas, quando se questiona a defesa do citado deputado a candidatura petista, sobretudo no tocante a suas posturas em relação à legalização do aborto em casos de estupro e má-formação dos fetos.

A reaserção conservadora católica

Acorda, Canção Nova! pode ser classificado como um caso representativo do aguerrido ativismo político de representantes da ala conservadora, incluindo membros do episcopado, de lideranças regionais da CNBB, de sacerdotes e leigos do movimento de Renovação Carismática Católica (RCC). Desde o final da tutela militar (1964-1985) o protagonismo político católico brasileiro foi exercido pela ala dita progressista, que de forma mais ou menos pública apoiou Lula e o PT em seus respectivos pleitos eleitorais (ORO e MARIANO, 2010). O discurso explicitamente social e engajado dos católicos progressistas foi sendo confrontado com o discurso da emoção e da reafirmação dos valores e práticas religiosas tradicionais por parte da Cúria Vaticana e dos coletivos religiosos conservadores. Nos últimos anos com a clara emulação provocada pelo avanço pentecostal, o catolicismo deslocou-se ainda mais longe de identidade hegemonizada pelo discurso da libertação (BURITY, 2006).

Como pode ser observado no blog aqui analisado, a reasserção conservadora católica não rompe necessariamente com a política. Como destaca Júlia Miranda, com uma identidade confessionalmente definida, a Renovação Carismática Católica juntamente com outros setores conservadores e evangélicos, se posiciona no Congresso Nacional em relação a temáticas morais, atuando, por exemplo, contra projetos de lei que visam incorporar como direitos civis questões como casamento homoafetivo e legalização do aborto (MIRANDA, 1999). Enquanto o tradicionalismo religioso é marcado pela alienação política, a reasserção conservadora contida em Acorda, Canção Nova! apresenta claros traços de reacionarismo político (BURITY, 2006). Nesse aspecto, o capital cultural divulgado pautou religiosamente a campanha presidencial quanto ao debate secular em relação às áreas de saúde pública, de medicina e dos direitos reprodutivos, assegurando a moralidade cristã tradicionalista e estrita para o conjunto da sociedade, além de se opor à secularização do debate sobre a descriminalização do aborto, a criminalização da homofobia e ao tratamento racional e humanitário às mulheres que abortam (ORO e MARIANO, 2010).

O blog aqui analisado não é uma exceção nas eleições presidenciais em 2010. Em primeiro lugar, o mesmo é reflexo das tensões inerentes ao campo católico brasileiro. A primeira impressão que se tem a partir do seu capital cultural, da sua linguagem e imagens é de que o mesmo se constitui em algo despretensioso e sem importância. Ao contrário, sua constituição e veiculação se constituem num exemplo basilar da emergência de coletivos conservadores católicos na política nacional a partir da redemocratização.

Isso se evidencia, sobretudo, nas últimas duas décadas no Brasil com a constituição de uma política de aproximação do Estado brasileiro com os movimentos sociais ligados aos coletivos feministas e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Trangêneros (LGBTT). Como ilustrativo dessa afirmativa se constata a ocupação de postos no aparelho estatal, influência nas políticas públicas na área da saúde, dos direitos sexuais e reprodutivos pelos citados coletivos. Cada vez mais, temas polêmicos passam a compor a agenda política, tais como: descriminalização do aborto, união civil homoafetiva, criminalização da homofobia, inclusão de cirurgias de readequação sexual entre os serviços do SUS. Esta nova configuração no campo político institui novas tensões entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o Estado (MACHADO, 2012).

Cada vez mais se configuram tensões entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o Governo Federal quanto à reposição de temas de cunho moral e privado na agenda política da maioria dos grupos religiosos, a emergência de novos coletivos religiosos mais liberais (as chamadas “igrejas inclusivas”) e reposicionamento das estruturas eclesiásticas tradicionais (ativismo conservador), a tendência a judicialização dos conflitos sociais e a inclusão das campanhas eleitorais do combate ao aborto e as bandeiras dos movimentos LGBTT nas plataformas políticas de alguns candidatos, com amplo apoio das lideranças religiosas (MACHADO, 2012).

Obviamente sem estabelecer nenhum profetismo sociológico, é possível afirmar que as eleições presidenciais de 2014 também sejam marcadas pela inclusão do combate ao aborto e das bandeiras dos movimentos LGBTT nas plataformas políticas de alguns candidatos, com amplo apoio de religiosos conservadores. As tensões se constituirão em torno dos capitais simbólicos dos candidatos e das suas respectivas propostas políticas. Apesar da opção por uma separação flexível (PORTIER, , 2011) entre Estado e religião adotada no Brasil, as leituras de cunho religiosas relativas a questões de cunho moral e privada poderão estar no centro do debate. Pode-se afirmar que no pleito de 2014 os candidatos à presidência continuarão as disputas em torno do apoio de lideranças religiosas, marcando presença em templos, proliferando discursos marcados pela religião, incluindo temas religiosos nas agendas e sofrendo pressão da parte dos religiosos para que assumam publicamente certos compromissos morais e políticos.

Referências

ANDRADE, Péricles. Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil. _____; BURITY, Joanildo (orgs.). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011, p. 67-93.
AS ELEIÇÕES E A CRUZADA MORAL DE CATÓLICOS E EVANGÉLICOS. Entrevista especial com Ricardo Mariano. Disponível em: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia. Acesso em 12 de dezembro de 2013.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.
BURITY, Joanildo. Identidade e Política no campo religioso. Recife: Ed. da UFPE, 1997.
_____. Identidade e Política no campo religioso. Recife: Ed. da UFPE, 1997.
_____. Redes, parcerias e participação religiosa nas políticas sociais no Brasil. Recife: FUNDAJ/Massangana, 2006.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 32(2), 2012, p. 29-56.
MARIANO, Ricardo; ORO, Ari Pedro. Eleições 2010: religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, n. 18 (II), 2010, p. 11-38.
MIRANDA, Júlia. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do político. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 1999.
_____. A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato. In: ANDRADE, Péricles; BURITY, Joanildo (orgs.). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011, p. 35-66.
PORTIER, Philippe. A regulação estatal da crença dos países da Europa Ocidental. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 31(2), 2011, p. 11-28.
ORO, Ari Pedro; MARIANO, Ricardo. Eleições 2020: religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, ano 10, n. 16, jul./dez. 2009, p. 9-34.
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[1] Doutor em Sociologia (UFPE, 2006). Professor Adjunto IV na UFS, lotado no Departamento de Ciências Sociais, no Núcleo de Graduação em Ciências da Religião, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. E-mail: periclesmorais@hotmail.com
[2] O Regional Sul 1 é composto por 41 (arqui) dioceses e 6 Regiões Episcopais, divididas por 8 sub-regiões Pastorais: Aparecida, Botucatu, Campinas, Ribeirão Preto I e II, São Paulo I e II e Sorocaba (http://www.cnbbsul1.org.br/nossa-historia)

domingo, 12 de agosto de 2012

A pluralização do campo religioso no Brasil e em Pernambuco segundo o Censo 2010




Gustavo Gilson Oliveira - Professor do Departamento de Fundamentos Sócio Filosóficos da Educação, UFPE.

Os dados sobre religião do Censo 2010 do IBGE (divulgados no final de junho e já discutidos anteriormente no Que Cazzo pelos professores Péricles Andrade e Jonatas Menezes) chamaram a atenção de diversos setores sociais por indicar que a proporção de católicos no Brasil continua decaindo vertiginosamente (de 73,57% em 2000 para 64,63% em 2010) ao mesmo tempo em que se ampliam em diferentes compassos o número de evangélicos (de 15,41% para 22,16%), de “sem religião” (de 7,35% para 8,04%) e de espíritas (de 1,33% para 2,02%). Apesar do interesse despertado pelo visível processo de transformação no cenário religioso nacional, porém, poucas das análises esboçadas têm enfocado os aspectos regionais e locais dessas mudanças. Poucas, igualmente, têm buscado discutir mais qualitativamente sobre os sentidos e as possíveis implicações desse processo para a realidade social, cultural e política no país e especialmente nas diferentes regiões e estados.

Uma leitura inicial dos dados do Censo 2010 sobre religião em Pernambuco indica não somente que o estado tem vivenciado o mesmo movimento de pluralização do campo religioso observado no cenário nacional, mas, parece revelar também que esse processo tem ocorrido de forma mais intensa em Pernambuco (juntamente com a Bahia) que nos demais estados do nordeste. Indica ainda que esse fenômeno ocorreu de forma mais brusca no estado a partir da década de 1990, que se desenvolveu de forma particularmente acentuada na Região Metropolitana do Recife e no litoral, embora também já seja expressivo nas regiões de Caruaru e Petrolina e, especialmente, que vem produzindo um cenário novo no qual um número significativo de munícipios pernambucanos (20) passa a apresentar uma proporção de menos de 50% de católicos, dois dos quais (Rio Formoso e Sirinhaém) já são de maioria religiosa evangélica em 2010.

O declínio da hegemonia católica e a pluralização do campo religioso

Para compreender melhor esse contexto de transformação é importante discutir, primeiramente, sobre até que ponto e em que sentido esse movimento pode realmente ser qualificado como um processo de pluralização do campo religioso, uma vez que ainda se percebe uma distribuição predominante da população do país e do estado entre católicos e evangélicos e, portanto, que os cristãos ainda concentram mais de 86% da população nos dois âmbitos. Apesar do crescimento consistente dos espíritas, da presença constante das religiões de matriz africana e do surgimento e desenvolvimento de outros grupos minoritários, a soma dos demais grupos religiosos (não católicos ou evangélicos) não ultrapassa atualmente os 5,1% no Brasil e os 3,3% em Pernambuco. Deve-se destacar, todavia, que a noção de pluralização não implica necessariamente em um crescimento significativo de todas as religiões nem na tendência a uma distribuição proporcionalmente aproximada da população entre as mesmas.

A configuração de um campo religioso plural (ou pluralista) é mais bem caracterizada, de fato, pelo lugar social relevante atribuído aos diversos grupos ou identidades religiosas e pelo reconhecimento cultural (não somente jurídico) da legitimidade dessa diversidade assim como dos diferentes grupos participantes do campo. A pluralização do campo religioso pode ser pensada, nessa perspectiva, como um processo de transição de uma situação de não percepção, reconhecimento e/ou legitimação da diversidade para um cenário de reconhecimento e problematização da presença de uma pluralidade de grupos e identidades religiosas em uma dada realidade social. Nesse sentido, o crescimento explosivo do número e da visibilidade pública dos evangélicos a partir das décadas de 1980 e 1990 tem se constituído no principal fator de pluralização do campo religioso brasileiro, a revelia das intenções ou objetivos desses atores, ao passo em que vem contribuindo fortemente para a ruptura e o declínio da hegemonia de uma religião civil católica nos contextos nacional e regional.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Identidades e movimentos entre católicos, evangélicos e sem religião

Há ainda outros aspectos que precisam ser considerados para aprofundar a compreensão desse processo de pluralização do campo religioso. Em primeiro lugar, deve-se destacar que a pluralização gera uma mudança nas dinâmicas do campo religioso que passam a influenciar inclusive as próprias religiões e igrejas tradicionais. O próprio catolicismo, por exemplo, vem sendo cada vez mais atravessado por diferentes movimentos (como a teologia da libertação, a renovação carismática e os novos movimentos eclesiais) que constituem diferentes grupos de identidade (ainda não destacados pelo Censo) com diferentes práticas, características e formas de inserção na realidade social. Os evangélicos, por sua vez, já se constituem enquanto uma categoria que aglutina um número indefinido de denominações e igrejas com dezenas de tendências teológicas, culturais, políticas e com complexas articulações entre si. Os movimentos pentecostais e neopentecostais forneceram o maior impulso para o crescimento e visibilidade pública do grupo, mas, as características desses movimentos já se disseminaram e diluíram parcialmente entre as igrejas e denominações e não se percebe nenhuma tendência significativa de centralização.

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), reconhecida pela agressividade midiática e por suas inovações polêmicas, curiosamente apresenta um quadro de pequeno decréscimo em sua participação nacional (de 1,24% em 2000 para 0,98% em 2010) e um pequeno crescimento em Pernambuco (de 0,61% para 0,7%). As Assembleias de Deus, que constituem a maior das igrejas pentecostais, é a única das grandes denominações a crescer expressivamente na última década (de 4,96% para 6,46% no Brasil, e de 7,23% para 9,12% em PE). Observe-se, todavia, que as Assembleias de Deus já se configuram como uma denominação bastante fragmentada em dezenas de ministérios e convenções com diversificados tamanhos e características, não se apresentam como uma igreja orgânica e unificada. Destacam-se, portanto, em 2010, as “outras evangélicas de origem pentecostal” (2,76% no Brasil e 1,71% em PE) e as “evangélicas não determinadas” (4,83% no Brasil e 3,52% em PE), mostrando que ainda há muito a ser pesquisado sobre esses movimentos. É digno de nota também o crescimento marcante dos luteranos em Pernambuco (de 0,01% para 0,07%) e no Recife (de 0,02% para 0,11%), na contramão do decréscimo em nível nacional (de 0,63% para 0,52%).

Outro dado a ser examinado com bastante cuidado diz respeito ao percentual dos sem religião. Ao contrário do que possa parecer, a categoria dos sem religião não representa diretamente o percentual de ateus e agnósticos na população. Neste Censo 2010 o IBGE distinguiu dentre os sem religião (8,04% no Brasil e 10,40% em PE) aqueles que se declaravam ateus (0,32% no Brasil e 0,12% em PE), agnósticos (0,07% no Brasil e 0,06% em PE) e simplesmente sem religião (7,65% no Brasil e 10,22% em PE) confirmando que, como alguns pesquisadores já haviam sugerido (Rodrigues, 2010; Novaes, 2004), a grande maioria das pessoas que se declaram sem religião apontam a sua não filiação ou não identificação (permanente ou temporária) com qualquer denominação ou instituição religiosa, não necessariamente sua ruptura com a religiosidade. Desse modo, a categoria dos sem religião parece constituir-se como mais um índice de pluralização e dinamização do campo religioso, não de seu esvaziamento.
Fonte: IBGE – Censo Demográfico

O crescimento da proporção dos sem religião, que vinha praticamente dobrando a cada década, desacelerou bastante entre 2000 e 2010 (de 7,35% para 8,04% no Brasil, e de 9,46% para 10,40% em PE). Mesmo assim, o índice atingiu um patamar importante e ainda apresentou um crescimento significativo no período. Deve-se ressaltar que Pernambuco e Bahia, mais uma vez, apresentam uma proporção de sem religião muito acima da média dos outros estados do nordeste. Também é interessante perceber que, embora o percentual dos sem religião em Pernambuco esteja bem acima da média nacional, o percentual de ateus e agnósticos fica abaixo dessa média. Esses dados parecem fortalecer a percepção de que vivenciamos ainda um pleno processo de redefinição do campo religioso nesses estados.

A expansão evangélica no litoral e a reconfiguração do campo religioso pernambucano

A discussão específica dos números sobre o campo religioso em Pernambuco é importante para demonstrar que esse processo de pluralização não ocorre de forma homogênea ou bem distribuída no país ou mesmo nos estados. O Atlas da Filiação Religiosa no Brasil (Jacob et al., 2003), ao analisar os dados sobre religião até o Censo 2000, indica que os três principais fatores relacionados à diversificação religiosa no território brasileiro a partir dos anos de 1980 são: a) a colonização por populações protestantes (em algumas regiões do Sul e Sudeste); b) a migração em massa (especialmente em certas regiões do Norte e Centro-oeste); c) A urbanização acelerada (sobretudo no litoral e nos principais centros econômicos). A pluralização do campo religioso em Pernambuco parece estar relacionada principalmente aos dois últimos fatores. Tanto a migração quanto a urbanização são fenômenos que provocam processos de “desenraizamento” ou “destradicionalização” de grandes contingentes de população, demandando a adaptação a novas situações e abrindo espaço para a articulação e propagação de novas alternativas religiosas. Esse espaço foi conquistado principalmente pelos grupos (neo)pentecostais no Brasil, mas, a pluralização religiosa também criou condições para a afirmação de identidades anteriormente negadas ou consideradas como apêndices sincréticos do catolicismo popular, como acontecia com as religiões afro-brasileiras, indígenas e, parcialmente, com o próprio espiritismo.

A origem do pentecostalismo em Pernambuco (entre 1916 e 1918) está relacionada às famílias dos migrantes nordestinos que entraram em contato com os fundadores e primeiros missionários das Assembléias de Deus no Pará. Até o final da década de 1980, entretanto, os católicos ainda representavam mais de 85% da população do estado. Na década de 1980 o percentual dos sem religião triplica em Pernambuco e, na década seguinte, a proporção de evangélicos dobra enquanto o contingente de católicos despenca dez pontos percentuais. A década de 1990 parece marcar, desse modo, o grande ponto de inflexão desse movimento de pluralização do campo religioso no estado. Entre 2000 e 2010 o percentual de católicos cai mais oito pontos (de 74,52% para 65,95), o de evangélicos continua a crescer de forma significativa (de 13,53% para 20,34%), e cresce também o percentual de espíritas (de 1% para 1,4%) e dos que se declaram adeptos do Candomblé (de 0,05% para 0,08%). No mesmo período cai a proporção dos que se declaram umbandistas (de 0,1% para 0,05%) o que pode estar relacionado ao persistente estigma contra a umbanda, em contraposição a uma tendência crescente de valorização cultural do Candomblé. Surge também, em 2010, um contingente de 0,03% da população que se declara como praticante de “tradições indígenas”, o que pode ser um indicativo da presença dos praticantes da Jurema Sagrada no estado. Pode ser notada, ainda, a presença diferenciada dos judeus, com percentual bem acima da média do Nordeste, tanto em Pernambuco (0,03%) quanto em Recife (0,05%).















Fonte: IBGE – Censo Demográfico

A pluralização religiosa não ocorre igualmente e na mesma intensidade em todas as regiões do estado. Ao mesmo tempo em que metade dos municípios do interior permanece com um índice de mais de 85% de católicos em 2010, principalmente nas regiões do Agreste e Sertão Pernambucano, a Mata Pernambucana apresenta atualmente um índice de 61,59% de católicos e a Região Metropolitana do Recife de apenas 50,29% de católicos. Ou seja, praticamente metade da população da Região Metropolitana, hoje, já não se declara católica. Os centros mais urbanizados do interior também apresentaram uma queda acentuada no percentual de católicos na última década, especialmente os municípios de Caruaru (de 77,17% para 66, 37%) e Petrolina (de 80,09% para 73,09%), enquanto a proporção de evangélicos praticamente dobrou nessas cidades no mesmo período. Há ainda outro fator que deve ser levado em conta nessa análise, entretanto, que é a relação entre religião, renda e ocupação territorial urbana. Um fenômeno curioso que se destaca, nesse contexto, é o surgimento de vários municípios na periferia ou no entorno da Região Metropolitana do Recife com proporções entre católicos e outras religiões ainda menores que os registrados na capital.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Em 2000, quatro municípios pernambucanos já apresentavam uma proporção de menos de 50% de católicos (Cabo de Santo Agostinho, 49,54%; Itapissuma, 45,92%; Rio Formoso, 45,84%; Sirinhaém, 43,95%). Em 2010, nada menos que dezenove municípios do litoral continental pernambucano (mais Fernando de Noronha) passaram a possuir menos de 50% de católicos (ver Tabela). Quatro desses municípios exibiram uma queda de cerca de vinte pontos no percentual de católicos na última década (Água Preta, de 64,07% para 41,11%; Ipojuca, de 61,95% para 41,04%; Moreno, de 64,39% para 44,98%; Tamandaré, de 61,19% para 40,43%). Fernando de Noronha, que por suas condições específicas exige um estudo especial, vivenciou uma queda de vinte e oito pontos percentuais (de 73,8% para 45,65%). A partir desse movimento, o Censo 2010 registrou pela primeira vez na história do estado (ao menos desde a expulsão dos holandeses) a existência de duas cidades pernambucanas com população majoritariamente evangélica ou protestante (Rio Formoso, com 35,86% de evangélicos e 34,14% de católicos; Sirinhaém, com 38,51% de evangélicos e 33,22% de católicos). O maior percentual de evangélicos, não obstante, continua a ser o de Abreu e Lima (40,47%).

População por religião em municípios com menos de 50% de católicos em Pernambuco (%)
Município
Católicos
Evangélicos
Espíritas
Umbanda e Candomblé
Outros grupos
Sem Religião
1. Abreu e Lima
41,31
40,47
1,25
0,21
1,76
14,99
2. Agua Preta
41,11
37,45
0,04
--
0,37
20,34
3. Araçoiaba
48,51
27,2
0,1
0,04
2,94
21,19
4. Barreiros
46,43
36,42
0,13
0,1
0,84
15,78
5. Cabo de Santo Agostinho
37,62
36,88
0,54
0,08
2,54
21,75
6. Camaragibe
49,74
31,22
1,29
0,11
2,51
14,93
7. Escada
47,66
29,87
0,34
0,07
1,09
20,89
8. Fernando de Noronha*
45,65
37,78
3,72
0,18
0,37
12,08
9. Igarassu
48,29
35,17
0,57
0,19
2,73
12,79
10. Ipojuca
41,04
35,46
0,28
--
1,32
21,88
11. Itapissuma
43,79
29,22
0,21
0,14
2,76
23,35
12. Jaboatão dos Guararapes
47,34
31,44
2,18
0,16
2,6
16,16
13. Moreno
44,98
36,24
0,43
0,04
1,69
16,56
14. Paulista
49,03
30,23
3,21
0,32
2,46
14,54
15. Ribeirão
45,81
35,02
0,68
0,02
1,17
17,3
16. Rio Formoso
34,14
35,86
0,05
0,12
0,8
29,01
17. São José de Coroa Grande
42,76
36,58
0,44
0,05
0,72
19,45
18. São Lourenço da Mata
49,82
30,42
1,53
0,33
1,44
16,4
19. Sirinhaém
33,22
38,51
0,18
--
2,95
25,14
20. Tamandaré
40,46
37,93
0,07
--
1,02
20,52
Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Em parte, esse fenômeno no litoral continental pode ser explicado pelos processos agudos de urbanização e (re)fluxo migratório desencadeados, sobretudo, pelas obras da Refinaria Abreu e Lima e do Complexo Industrial de Suape. Outro aspecto que parece estar relacionado a esse movimento, porém, é que a maior parte do percentual de pentecostais se concentra nas camadas de menor renda da população, que tendem a ocupar as regiões e cidades periféricas em relação aos grandes centros urbanos (fenômenos semelhantes podem ser observados nos litorais da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro).

Cartograma: Municípios com menos de 50% de católicos em Pernambuco




Torna-se evidente que a transformação sociocultural representada pelo intenso processo de pluralização do campo religioso em diversas regiões de Pernambuco traz, inevitavelmente, implicações importantes para vida social, cultural e política do estado. A primeira e mais visível dessas implicações diz respeito às questões do reconhecimento, da (in)tolerância e da convivência não somente entre os diferentes grupos religiosos, mas, também entre instituições como o Estado, a mídia, a academia e essas “novas” identidades e grupos. Não é por acaso que se tornam cada vez mais frequentes episódios de conflitos entre grupos e personalidades religiosas e, ao mesmo tempo, de desentendimento, estigmatização ou mesmo perseguição contra grupos minoritários, em especial as religiões de matriz africana, inclusive por agentes públicos. Outra implicação que merece destaque está relacionada ao campo da educação. Embora a educação no Brasil tenha sido oficialmente secularizada a partir do processo de consolidação da República, é amplamente reconhecido que a maioria das estruturas curriculares, práticas pedagógicas e dinâmicas escolares vigentes no país foram desenvolvidas ainda em um contexto de hegemonia de uma cultura nacional católica. Nesse contexto, questões como a diversidade de identidades, discursos e práticas religiosas nas escolas, na mídia e na sociedade ainda não eram visível e seriamente reconhecidas como questões prementes para a vida social e para a formação dos sujeitos. Os dilemas despertados pela pluralização religiosa, todavia, não precisam ser tratados necessariamente ou simplesmente pela perspectiva da acomodação dos diferentes grupos em um sistema “multicultural” de diferenças. No qual cada grupo passe a ocupar um espaço social (físico ou simbólico) apartado, estático e pré-determinado como forma de evitar divergências e conflitos. A pluralização do campo religioso pode mesmo contribuir, se não for reduzida ao modelo de um mercado de disputa por fiéis ou de comercialização de bens simbólicos, para um aprofundamento das experiências de participação coletiva e de construção democrática em uma população que foi longamente alijada dessas experiências.

Referências bibliográficas

JACOB, Cesar et al. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Loyola, 2003. 
NOVAES, Regina. Os jovens sem religião: ventos secularizantes, “espírito de época” e novos sincretismos. Notas preliminares. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, p. 321-330, 2004. 
RODRIGUES, Denise. Juventude sem religião: uma crise do pertencimento institucional no Brasil. Teoria e Sociedade, v. 18, n. 1, p. 66-93, 2010.