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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sobre a vocação da Sociologia enquanto a morfogênese se intensifica



Por Margaret Archer, Escola Politécnica Federal de Lausanne, Suíça, e ex-presidente da
ISA, 1986 – 1990. Originalmente publicado em Diálogo Global, 3 (1). Novembro de 2012, p. 4-5. Disponível em: http://www.isa-sociology.org/global-dialogue/newsletters3-1/portuguese.pdf


A Sociologia nasceu buscando respostas para quatro perguntas: “de onde nós viemos?”, “o que temos agora?”, “para onde estamos indo?” e “o que deve ser feito?”. Essas são todas perguntas realistas: existe um mundo social real com propriedades reais, habitado por pessoas reais que, coletivamente, construíram o passado e cujos poderes causais já estão modelando o futuro. A maneira pela qual Weber expressou a vocação da sociologia foi descobrindopor que as coisas são “assim” e não “de outra forma”. Aqueles que compartilham esse compromisso jamais poderiam aceitar a conclusão de Baudrillard: “tudo o que resta é brincar com as peças”. Ibn Khaldun poderia ter chamado isso de a marca de uma civilização decadente.

O que é mais danoso do que a “jocosidade” pósmodernista é, na verdade, o estilhaçamento das peças. Toda a vida social – micro –, meso – e macroscópica – entra necessariamente num mesmo SACO; as relações entre “estrutura”, “ação” e “cultura” são sempre indispensáveis para explicar qualquer coisa social.

Sem ser minucioso com respeito às definições, desprezar a “estrutura” e os contextos nos quais as pessoas vivem se torna algo caleidoscopicamente contingente; omita a cultura, e ninguém terá um repertório de ideias para construir a situação que as pessoas enfrentam; sem agência perdemos a relação de atividade-dependência enquanto causa eficiente de existência de uma ordem social. A vocação da sociologia é conseguir levar em
conta as inter-relações e as configurações resultantes. Ao quebrar as peças e então pulverizá-las, muitos teóricos sociais renunciaram a sua vocação e se tornam agentes funerários, escrevendo certidões de mortes para cada componente do SACO. E mais, com essas “mortes”, cada parte do mundo fica privada de ferramentas para explicar por que as coisas são como são e por que as coisas poderiam ser de outra forma.

Com relação às “estruturas”, teorias atuais de “desestruturação” substituem-nas com fluidez. A metáfora da liquidez aponta para a extrema descontrolabilidade do social. Isso foi anunciado pelas sociedades de “fuga”, “destruidoras” e “de risco”, mas a inundação ganhou espaço e está flutuando sobre o mar de fenômenos auto-organizados, projetados pela teoria da complexidade. Entretanto, a inaptidão é gritante em face à crise econômica atual. Essa crise revelou parte de uma estrutura previamente escondida. Sabemos mais agora sobre a estruturação do capital financeiro global e seu entrelaçamento com as multinacionais e os governos nacionais do que antes de 2008. Tudo que é sólido não se desmancha no ar, mas derivados, hipotecas, arranjos e trocas estrangeiras, e débitos do mercado são mais compreensíveis do que o Fordismo.

Porque as posições estruturadas, as relações e os interesses são realmente complicados, a mídia tem banalizado e personalizado a crise em termos de bonificação dos banqueiros, ajudando a rolar algumas cabeças ávidas. Os “Movimentos de Ocupação” testificam a falta de ferramental sociológico. Eles estão se opondo às medidas de austeridade ou a um capitalismo financeiro global? Embora Londres pareça insegura, o movimento de Genebra mantém seminários regulares nos quais discutem como conter as complexidades envolvidas. Associações de economistas heterodoxos vêm sendo frequentemente mais úteis do que os sociólogos. Onde está o nosso equivalente às análises de Stefano Zamagnai sobre as nefastas contribuições feitas pelos últimos dez ganhadores do Prêmio Nobel em economia? Qual é a nossa contribuição visando uma economia civil?

Isso leva à “cultura” e ao imenso papel que a TINA[1] (“There Is No Alternative”) tem desempenhado na tentativa de voltar ao “business as usual”[2]. A “virada cultural” privilegia o discurso, mas a crise não pode ser reduzida ao tom discursivo. A hegemonia do discurso deslocou o conceito de ideologia, relegando-o para a lata do lixo da luta de classes “zumbi”. Com ela, o nexo fundamental entre ideias e interesses foi perdido enquanto lugar de legitimação política. Perdidas foram também as fontes ideacionais da crítica, não meramente como atividades expressivas (há muitas delas), mas como fontes de mobilização social (cuja ausência fortalece a TINA). Ironicamente, como as águas correm, há um obstinado apego ao hábito, a uma disposição de habitus e à ação de rotina na sociologia, a despeito de sua incongruência com mudanças rápidas. No entanto, como os grandes pragmatistas americanos foram os primeiros a salientar, as situações problemáticas são as parteiras de inovação reflexiva.

Finalmente, e o mais sério, é a morte do sujeito, apagado, segundo Foucault colocou há mais de 40 anos, “como um rosto desenhado na areia à beira da praia”. Desde então o nosso apagamento humano foi repetido por muitos limpadores de lousas: as pessoas tornaram-se lousas limpas, abertas para uma auto-inscrição (Gergen), egos serialmente reinventados (Beck), e por fim, rebaixados a agentes “actantes”[3]. Com a morte do sujeito, reflexividade, intencionalidade, assistencialismo e compromisso também saem de cena, juntamente com a capacidade exclusivamente humana de vislumbrar como as coisas poderiam ser de outra forma.

Os defensores das responsabilidades e potencialidades humanas têm sido bastante raros; por conta disso, Andrew Sayer teve necessidade de escrever seu excelente livro Why Things Matter to People. A sociologia conserva um lado humanista, mas seu modo de abordar o humano ainda aparece abafado. Assim, isolamento e solidão não são temas populares quando comparados com a marginalização e a exclusão, mas são, quando muito, flagelos do mundo desenvolvido e de suas consequências. Os sociólogos também são mais contundentes em acentuar a nossa suscetibilidade ao sofrimento do que ao florescimento. Somos ainda muito tímidos no avanço de uma “Sociologia da Prosperidade”, limitando-nos bastante às necessidades biológicas inquestionáveis. Por que não há uma sociologia da alegria, pouco mencionada com exultação ou forte contentamento, e por que a felicidade está delegada às métricas dos economistas? Responder a essas perguntas é um predicado da sociologia no sentido de contribuir para o florescimento da sociedade civil.

Hoje, a principal alegoria é a “modernidade líquida”, mas metáforas nada explicam e muitas vezes confundem (lembremo-nos das analogias mecânica, orgânica e cibernética). Certas teorias da mudança têm acentuado somente um dos elementos isolados do SACO: “cultura” por “Sociedade da Informação”; “estrutura” por “Capitalismo Globalizado” ou “Império”; e “agência” por “individualism institucionalizado” da “Modernidade Reflexiva”. Cada teoria se apropria de somente um dos componentes (empiricamente impactante), considera cada componente como a parte mais importante e o iguala erroneamente ao mecanismo de mudança. Ao invés disso, precisamos examinar as sinergias do SACO e as respostas positivas que tornam a morfogênese o processo responsável por intensificar a mudança – de um modo não metafórico.




[1] Na versão original em inglês, TINA significa “There Is No Alternative”, utilizada frequentemente pela ex-Primeira Ministra Britânica Margaret Thatcher. 
[2] A expressão “Business as usual” faz referência às políticas britânicas adotadas no início da I Guerra Mundial.
[3] “Actante” é um termo frequentemente utilizado na semiótica. Originalmente,
foi utilizado pelo linguista francês LucienTesnière (1893-1954) para denotar
as principais funções sintáticas (sujeito, objeto direto e objeto indireto) que
dependem do verbo na sintaxe. Posteriormente, o linguista lituano Algirdas
Julien Greimas (1917-1992) o utilizará para determinar os participantes ativos
(pessoas, animais ou coisas) em qualquer forma narrativa, seja um texto, uma imagem, um som.


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida




XV Congresso Brasileiro de Sociologia
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.

Conferência: Margaret Archer (UK)
(Apresentação: Cynthia Hamlin)

Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida

As teorias sociológicas  da socialização correntes não podem apreender a dinâmica dos processos de construção de identidade na sociedade morfogenética nascente. De fato, elas são altamente viesadas no sentido de uma orientação às características estruturais e culturais que caracterizam a sociedade Moderna e que não mais se sustentam no novo contexto societal. Com base nos insights da abordagem morfogenética-realista e da teoria social relacional, busca-se uma reconceitualização da socialização como um  engajamento reflexivo, o que dá conta dos dois desafios básicos colocados pela sociedade morfogenética para as pessoas jovens no sentido de desenvolver uma identidade pessoal e social: a "necessidade de seleção" e a "necessidade de moldar uma vida". Trata-se, portanto, de uma interpretação de como pessoas jovens decidem sobre seu próprio conjunto de preocupações, estabelecendo prioridades e encaixes [em relação às suas preocupações] e investindo seu tempo e energia em um projeto de vida. Tal abordagem também consiste numa crítica de todas aquelas teorias que reduzem a socialização a relações linguisticamente mediadas, e articula a condição relacional dos sujeitos humanos em relação às ordens natural, prática e social. Também argumenta que o tempo da socialização por internalização de hábitos ou habitus terminou.  

domingo, 31 de julho de 2011

Apresentação da Conferência de Margaret Archer no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia

Frédéric Vandenberghe e Margaret Archer em Curitiba


Por Cynthia Hamlin

Em nome da SBS, gostaria de agradecer a presença da prof. Margaret Archer na 15º edição do Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Uma das principais representantes da teoria sociológica britânica contemporânea, a prof. Archer sempre demonstrou um grande interesse em estabelecer um diálogo com os sociólogos brasileiros, ainda que o falecimento de sua mãe, na véspera de sua conferência na última edição deste Congresso, impedisse que este diálogo tenha ocorrido neste fórum anteriormente. É, portanto, com grande satisfação, que lhe dou as boas-vindas.

Após cerca de 30 anos como professora de sociologia na Universidade de Warwick, Reino Unido, Margaret Archer mudou-se recentemente para a Suíça, onde dirige o Centro para Ontologia Social na Escola Politécnica Federal de Lausanne. Primeira mulher a presidir a Associação Internacional de Sociologia (entre 1986 e 1990), é co-diretora do Centro de Realismo Crítico, organização que deu origem à Associação Internacional de Realismo Crítico com o objetivo de promover a filosofia e a teoria realistas das quais ela, juntamente com Roy Bhaskar, Tony Lawson, Andrew Sayer, William Outhwaite, dentre outros, é uma das principais representantes. Sua vasta obra inclui mais de 70 artigos e capítulos de livros, além de um conjunto de 6 livros principais voltados para o desenvolvimento de sua própria abordagem teórica, a abordagem morfogenética, na qual procura integrar as influências mútuas da estrutura social, da cultura e da agência humana na explicação dos fenômenos sociais.

Dona de um estilo elegante e um tanto irônico - o inferno de seus tradutores para as línguas latinas - desde o final dos anos de 1970 vem desenvolvendo uma abordagem original para aquilo que ela, nas palavras de Ralph Dahrendorf, define como “o fato vexatório da sociedade”: o de que as pessoas moldam a sociedade ao mesmo tempo que são moldadas por ela no processo de modifica-la ou reproduzi-la, individual ou coletivamente. Ao lado de autores como Anthony Giddens, de cuja teoria da estruturação efetuou uma crítica devastadora, elegeu a relação agência-estrutura como um dos principais problemas da teoria social, um problema que, para ela, é parte de uma questão ontológica mais ampla: em que medida a sociologia deve endossar uma ontologia estratificada segundo a qual estruturas e as pessoas consistem em tipos distintos de agentes, com propriedades e poderes também distintos e irredutíveis uns aos outros.

Esta ontologia, desenvolvida em dois livros distintos (Culture and Agency, de 1988, e Realist Social Theory, de 1995) foi, em larga medida, informada pelo realismo transcendental de Roy Bhaskar. De acordo com esta abordagem, tanto a cultura quanto a estrutura social são concebidas como fenômenos objetivos, relativamente independentes das representações dos indivíduos presentes aqui e agora, e cujas propriedades sistêmicas são acionadas, elaboradas e modificadas nas interações entre indivíduos e grupos.

No pólo da agência, seu Being Human, de 2000, pode ser considerado não apenas uma forma de resistência ao imperialismo sociológico e sua tendência de representar os seres humanos em termos exclusivamente sociais, mas também daquelas vertentes pós-modernas relacionadas à morte do sujeito, considerando-o uma mera posição no discurso.  Contrariamente a isso, seu agente humano é concebido em termos de uma subjetividade, ou de uma vida mental interior e privada, que o torna capaz de reflexividade. A ideia de reflexividade, concebida em termos de uma “conversação interior” que ocorre privadamente em nossas mentes, adquire uma dimensão central, pois é ela que nos permite deliberarmos acerca da relação entre as nossas circunstâncias sociais e o conjunto e ordenamento de preocupações que nos torna seres humanos únicos.

Os mecanismos por meio dos quais as estruturas sociais são mediadas pela agência humana são estabelecidos em Structure, Agency and the Internal Conversation (2003). Aqui, Archer desenvolve uma tipologia básica e não exaustiva dos tipos reflexivos: reflexivos comunicativos, reflexivos autônomos, metarreflexivos. Por meio de diferentes formas de reflexividade, os agentes humanos examinam suas preocupações pessoais a partir de suas circunstâncias sociais e avaliam suas circunstâncias a partir de suas preocupações, estabelecendo o papel da reflexividade na mediação entre propriedades e poderes subjetivos, relativos aos agentes, e propriedades e poderes objetivos, relativos às estruturas sociais.

Mas os diferentes tipos de reflexividade não geram as mesmas consequências em termos internos (individuais) e externos (sociais), reforçando sua tese principal de que estruturas e agentes não podem ser reduzidos uns aos outros. Em Making Our Way Through the World: Human Reflexivity and Social Mobility (2007), ao investigar a relação entre diferentes práticas reflexivas e padrões individuais de mobilidade social, a professora Archer demonstra que a reflexividade comunicativa é internamente associada à imobilidade social, a reflexividade autônoma à mobilidade ascendente e a metarreflexividade à volatilidade social ou à mobilidade lateral. Externamente, os reflexivos comunicativos contribuem para a estabilidade social e para a integração; os reflexivos autônomos para o aumento da “produtividade social”; os metarreflexivos, para o desenvolvimento de valores contra-culturais que desafiam a comodificação e burocratização das relações humanas.

Seu último trabalho, The Reflexive Imperative (no prelo), assume a forma de uma reflexão sobre a maneira como mudanças em direção a um sistema global vêm distanciando a ordem social dos parâmetros estabelecidos pela modernidade, alterando não apenas a própria reflexividade dos agentes, mas amplificando processos morfogenéticos segundo os quais a variedade gera mais variedade. Os mecanismos nos níveis micro, meso e macrossociais por trás dessas mudanças constituem o cerne de seu projeto atual, desenvolvido no Centro de Ontologia Social, em Lausanne.  É sobre um desses mecanismos, a dinâmica dos processos de construção de identidade na sociedade morfogenética, que ela falará hoje. Desejo a todos um debate produtivo.

domingo, 3 de outubro de 2010

Uma etnografia da mente



Douglas Porpora - Drexel University

Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor.

A partir do trabalho da Escola de Chicago, uma preocupação da sociologia tem sido a de que as pessoas refletem sobre si próprias. Mas será que todos refletimos acerca de nós próprios da mesma forma? Não apenas essa questão não tem tido resposta, mas também não tem sido colocada de forma sistemática.

Muitos de nós, portanto, acha muito provocante a sugestão de Margaret Archer em seus trabalhos recentes (por ex. 2003). Nem todo mundo, a pesquisa de Archer sugere, reflete melhor acerca de si ao conduzir conversações interiores consigo mesmo. Ao contrário, aqueles que Archer chama de “reflexivos comunicativos” preferem pensar sobre suas crenças e ações por meio de conversações reais, externas, com outras pessoas de seu círculo social.

É nas duas categorias que Archer chama de “reflexivos autônomos” e “meta-reflexivos” que encontramos pessoas refletindo mais comumente por meio de conversações interiores. A diferença entre duas categorias está no conteúdo da reflexão. Reflexivos autônomos refletem internamente sobre questões instrumentais ou estratégicas, incluindo o tipo de gerenciamento de impressões identificado por Goffman. Os meta-reflexivos também refletem internamente sobre preocupações instrumentais. Mas, além disso, os meta-reflexivos são dados a longas reflexões internas sobre ideais e questões morais, projetos de vida e emoções. Como as ciências sociais e as humanidades tendem a atrair meta-reflexivos e os ajudam a promover o pensamento meta-reflexivo, muitos de nós neste campo tendemos a ser meta-reflexivos.

Se os reflexivos autônomos e os meta-reflexivos pensam acerca de si próprios especialmente por meio das conversações interiores, qual a natureza de sua conversação interna? Ela é continua? A linguagem empregada é a mesma que a empregada nas conversas reais, externas, ou é mais abreviada? Em um artigo apresentado em um encontro da American Sociological Association, Norbert Wiley (2004) efetuou uma revisão acerca do que se conhece sobre a fala interior – não muito. Existem sugestões, como a de Vygotsky, de que a fala interior é mais breve, e que, por exemplo, o sujeito da frase é constantemente omitido, dado que já sabemos quem está desempenhando a ação.

O artigo de Wiley termina com um pedido de mais pesquisas sobre a fala interna, um pedido que me inspirou a respondê-lo. Para o workshop sobre reflexividade organizado por Margaret Archer, eu resolvi me dedicar ao que chamei de uma etnografia da mente. Por várias semanas, tentaria observar o cenário da minha vida interior. Qual era a natureza da minha fala interna? Quais eram os atos de fala – por ex., reportar, argumentar, calcular – nos quais eu me engajava? Algo mais, além da fala interior, acontecia dentro de mim? Essas eram as questões que eu buscava responder.

A tarefa foi, na verdade, bastante difícil. O social – na forma de fala – se imprime de tal forma sobre nós que, no início, quando você olha para si mesmo, tudo o que pode perceber é fala. Com um tipo de efeito Heisenberg, o próprio ato de auto-exame tende a transformar em fala tudo o que você está examinando. Como num sonho, o pensamento não linguistico facilmente evapora quando tentamos apreendê-lo.

No entanto, da mesma forma que a prática nos permite recordarmos nossos sonhos, ela também possibilita que nos surpreendamos no tipo de absorção não linguística pelo mundo que os budistas chamam de “talidade” (suchness), a apreensão do mundo sem a rotulação linguística.

Minha mais importante descoberta diz respeito à natureza da minha fala interior. Descobri que ela raramente era abreviada da forma sugerida por Vygotsky. Exceto quando expressando expletivos, eu geralmente empregava sentenças inteiras. Mesmo expletivos eram geralmente enraizados em locuções bem-formadas, tais como aquelas começando com “Que p…?”.

Se minha fala interior tendia para as sentenças completas, o motivo surpreendente para isso era que eu passava muito pouco tempo falando especificamente comigo mesmo – ou mesmo com o Outro Generalizado de Mead. Em vez disso, percebi que minha mente era povoada por muitos “interlocutores convidados” – pessoas reais ou audiências potenciais a quem eu internamente me dirigia. Muito do que eu fazia era imaginar o que diria ou escreveria para algum grupo de pessoas, ou repassava mentalmente o que eu deveria ter dito ou escrito. Minha reflexividade autônoma ou meta-reflexiva parece muito, então, com uma reflexão comunicativa interna.

O quão idiossincráticas são essas descobertas? Isso não é claro. Precisamos que outras pessoas comecem a fazer uma etnografia da mente como esta.

Bibliografia

Archer, Margaret. (2003), Structure, Agency, and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Wiley, Norbert. (2004), The Sociology of Inner Speech: Saussure Meets the Dialogical Self. Paper presented at the August Meeting of the American Sociological Association, San Francisco (revised version published in Journal for the Theory of Social Behaviour, 36(3), pp. 319-341, 2006).

domingo, 26 de setembro de 2010

As conversações interiores de um espectador imparcial



Por Frédéric Vandenberghe
Artigo originalmente publicado em Theory: The Newsletter of the Research Committee on Sociological Theory. International Sociological Association, Spring/Summer 2008. Gentilmente cedido ao Cazzo pelo autor e traduzido por Cynthia Hamlin, sob intensa chantagem emocional.

Uma Teoria da Justiça, de John Rawls (1972) é, sem dúvida, um dos livros mais importantes da segunda metade do século XX. Embora cada página e nota de rodapé do livro tenha sido repetidamente submetida à análise e a comentários, ele é principalmente lido como uma versão liberal da escolha racional. Consequentemente, suas conexões com a teoria da simpatia de Adam Smith foram desconsideradas (embora sua filha, Anne Rawls (1988), uma microssocióloga que trabalhou com Garfinkel, tenha introduzido a noção de simpatia na ordem interacional de Goffman e na análise conversacional de Sacks). A teoria da justiça de Rawls é, de fato, uma teoria dos sentimentos morais. Seguindo os moralistas do iluminismo escocês, o filósofo estadunidense ressucitou o “observador simpatético” e introduziu o “juiz imparcial, porém benevolente” como um protagonista de uma sociedade liberal bem organizada. A ideia central da teoria da justiça é simples: uma sociedade seria justa se redistribuísse os direitos e deveres de tal forma que cada um de seus membros pudesse subscrever ao princípio de justiça (fairness) sem reservas, dado que ele garantiria os direitos e liberdades de todos, ao mesmo tempo que aceitaria as desigualdades sociais apenas na medida em que se compensasse os que têm menos vantagens.

A teoria da justiça é uma teoria forte do contrato social. O principal instrumento dessa teoria do contrato é a chamada “posição original”, em que cada um seria convidado a adotar a perspectiva de um espectador racional (reasonable), embora simpatético, antes de assinar o contrato que sela a aliança entre seus membros. Assim, cada um se imaginaria na posição do outro ou da outra e quando cada um/a tivesse adotado a perspectiva de todos os outros, um de cada vez, hipoteticamente, ele/a chegaria aos princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade bem-ordenada. Claro, esse mecanismo de identificação seriada de todos com cada um/a só pode funcionar sob a condição de que todo mundo faça uma abstração de sua situação pessoal e social a fim de reter apenas o que é comum a todos os seres humanos, sem distinção. Em outras palavras, ao se imaginar na situação do/a outro/a de forma a ascender à posição geral e superior do espectador imparcial, cada um/a é colocado/a sob o “véu da ignorância”. Como não se saberia se o/a outro/a é rico ou pobre, negro/a ou branco/a, homem ou mulher, podemos presumir que os princípios que os membros hipoteticamente adotariam para ordenar sua sociedade seriam justo, não apesar do caráter anônimo do/a outro/a, mas por causa dele.

Até aqui, tudo bem, mas o que isso tem a ver com “conversações internas”? Bem, em Rawls, a justificação e validação dos princípios do contrato social são resultado das conversações interiores simuladas que o espectador imparcial tem com seus concidadãos. Tudo ocorre como se o espectador simpatético, confortavelmente sentado em seu sofá depois de um longo dia de trabalho, tivesse chamado à sua mente qualquer pessoa de seu conhecimento e convidado ele ou ela para sua conversa interior da noite (veja o experimento mental de Goethe em Wiley, 1994:54). Em sua mente, ele convidava seus amigos e conhecidos a sentar-se junto de si, discutindo com eles os princípios que seriam objeto do acordo original. Ao deixar seus queridos amigos, ao mesmo tempo que os envolvia nas profundezas do seu coração, continuava a conversa imaginária ao convidar os amigos de seus amigos para o diálogo. Eventualmente, por meio de uma variação eidética do amigos de seus amigos, chegaria a um cidadão genérico e sem face, porém bem-informado, preocupado e cuidadoso, que “olharia para o sistema da perspectiva do homem [e da mulher] representativo[a] dotado[a] das menores vantagens” (Rawls, 1972, p. 151).

Por meio do mecanismo engenhoso da representação da posição original, Ralws criou um espaço público no mais profundo de seu coração (in foro interno, como Kant diria). Habermas objetou à privacidade das conversações interiores de seu amigo. Ao convidar seu colega americano para um debate público (cf. Journal of Philosophy, 1995, 93, 3), o filósofo alemão gentilmente convenceu seu colega, in actu, da necessidade de continuar a conversação interior por meio de uma comunicação entre iguais que ocorre na esfera pública. É através da comunicação pública, não apenas pela conversação interior, que os falantes progressivamente chegam à visão comum e imparcial do “outro generalizado” (Mead). Ao convidar não apenas seus amigos que compartilham de seus pontos de vista, mas também os vizinhos que não as compartilham para dar voz a suas opiniões em público, que os cidadãos se convencem uns aos outros, por meio da força do melhor argumento, do que é justo ou errado.

De acordo com Habermas, os princípios morais e políticos se tornam objetivos e universais por meio do uso público da fala e da razão. De fato, graças à comunicação, os cidadãos têm conhecimento mutuo das posições dos outros e, assim, chegam, através da sobreposição do conteúdo comum que é publicamente comunicado e compartilhado por todos, a um consenso acerca dos próprios princípios que ordenam uma sociedade justa. Ao transformar as conversações internas que o observador simpatético tem consigo mesmo e com todos os outros em uma comunicação real entre participantes de uma conversação externa, nos movemos do uso privado (Rawls) para o uso público (Habermas) da fala. Assim, eu concluo que existe uma dialética em processo – ou uma morfogênese dupla, como Archer diria – entre as conversações interiores e exteriores. Quando a comunicação cessa, os participantes podem continuar o debate internamente e, depois de amadurecer a reflexão, podem se juntar novamente à conversa externa.

Bibliografia

Rawls, A. (1988), “The Interaction Order sui generis: Goffman’s Contribution to Social Theory”. Sociological Theory, 5, pp. 136-149.
Rawls, J. (1972), A Theory of Justice. Oxford, OUP.
Wiley, N. (1994), The Semiotic Self. Chicago, University of Chicago Press.

sábado, 24 de julho de 2010

Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre conversações interiores (parte 2)



Refutador, em momento de intensa atividade mental


Cynthia Hamlin

No post anterior, considerei a possibilidade de que, diferentemente de Gollum/Smeagol, Artur/Refutador possuíam uma identidade de self, ou identidade pessoal. Por enquanto, deixarei em suspenso a questão de saber se Artur/Refutador constituem um self único ou se são, de fato, dois selves distintos, como parece acreditar Artur. No primeiro caso, o problema se transformaria na questão de saber “quem fala com quem” nas conversações interiores - e que Frédéric Vandenberghe (2010), num arroubo de inspiração DaMattiana, coloca nos termos “você sabe com quem está falando quando fala consigo mesmo?”. Esta questão foi trabalhada teoricamente nos três posts sobre a audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Archer (aqui, aqui e aqui). No segundo caso, isto é, no de Artur e Refutador serem de fato dois selves distintos, o problema deixaria o âmbito da sociologia para entrar no domínio da psiquiatria e, neste caso, deixo a Refutador a tarefa de efetuar o diagnóstico de Artur. Por ora, suspendamos o julgamento e concentremo-nos na teoria do self que deve guiar nossa análise.

Archer (2000a; 2000b) efetua uma distinção entre o nosso sentido de self (selfhood) e a nossa identidade de self (ou identidade pessoal). O primeiro refere-se à continuidade da nossa consciência, à faculdade de nos considerarmos como um mesmo ser ao longo do tempo e do espaço. O sentido de self é não apenas universal, mas também algo que compartilhamos com os animais superiores, que têm noções de suas formas e limites corporais, conseguem diferenciar entre eles próprios e outros objetos e detêm intencionalidade - como o cão que sabe que precisa desviar da árvore ao perseguir sua presa, ou o baratossauro que habita uma das salas da UFPB onde Artur dá aulas (aqui). Embora Artur não saiba disso, o baratão gigante espera pacientemente a hora de suas aulas fim de efetuar seus rasantes mortais. Longe de consistirem num vôo histérico e descontrolado, tais rasantes implicam num complexo sistema de navegação que foi especialmente desenvolvido a partir as interações entre o ambiente e seu corpo pouco aerodinâmico - tudo com o objetivo específico de perturbar as aulas de teoria social.

Isso significa que o sentido de self é pré-social e pré-linguístico, dependendo, conforme argumenta Merleau-Ponty, dos encontros entre nossos corpos e o ambiente, pois é a partir deles que naturalmente aprendemos a distinguir entre objeto/objeto, sujeito/objeto e sujeito/sujeito. Há, portanto, uma primazia da prática em relação à linguagem na forma como aprendemos a nos diferenciar de outros objetos ou, nos termos de Piaget, em nosso “descolamento referencial” de outros objetos (Archer 2000a: 60). Foi por isso que, antes de aprender a falar, Artur aprendeu que a chupeta que ele havia perdido durante o sono não era uma parte de seu corpo que havia desaparecido para todo o sempre, mas um objeto que conservava uma identidade distinta da sua e que talvez pudesse ser encontrado embaixo de seu travesseiro. (Já a distinção perrusiana entre Artur e Refutador, essa só pôde ser efetuada anos mais tarde, depois que ele aprendeu uma linguagem e pôde ler Bachelard, Moscovici e Foucault - mas isso ainda está em suspenso).

Sem um sentido de self, Artur não poderia ter desenvolvido sua identidade pessoal, que pode ser definida a partir das coisas com as quais ele se importa e que o torna um ser humano único. Como o resto de nós, ele consiste em um tipo de ser que Charles Taylor caracterizou como “grande avaliador”, diferindo de outros animais por ter a capacidade de conferir significado às três ordens que, segundo Archer, compõem a realidade humana: a natural, a prática e a social. As diferentes situações colocadas pelas três ordens assumem distintos “aspectos de significância” para ele, fazendo emergir emoções relacionadas ao seu bem-estar físico, na ordem natural, à sua competência performativa, na ordem prática, e à sua autoestima, na ordem social (Archer, 2003). Dado que ele precisa estabelecer práticas consideradas satisfatórias em cada uma das três ordens, ele deve definir quais as suas “preocupações últimas” (ou seja, aquilo que realmente importa para ele) e como suas outras preocupações subordinam-se e acomodam-se às primeiras, isto é, às últimas.

De forma geral, uma de nossas principais preocupações é com a nossa autoestima, que é garantida por meio de certos projetos relativos a carreira, família, atuação política, relações de amizade e de erotismo, etc. É justamente aí que entram Scarlett e Refutador. De um ponto de vista de suas preocupações relativas à ordem social, está claro que os dois não podem ser evocados sem que surja algum tipo de conflito, e talvez isso explique o fato de sua alma não ter suportado tamanha pressão durante a defesa de minha orientanda.

Mas aquele foi um caso extremo, pois a debandada de sua alma impossibilitou qualquer resquício de auto-monitoramento. Na maioria das vezes, a priorização e acomodação de suas preocupações é efetuada por meio de deliberações reflexivas nas quais ele alterna diferentes “fases” de seu Ego, estabelecendo uma relação dialógica entre um objeto (um “mim”, passado), um signo (um “Eu” presente) e um intérprete (um “Você” futuro). Como já afirmei em outro post, esta distinção é meramente analítica, caso contrário, teríamos uma reificação dessas fases, como parece ocorrer com Gollum/Smeagol (embora eles sejam interessantes do ponto de vista contra-factual porque não representam uma mera reificação de fases do self, mas operam uma verdadeira síntese do mim/eu/você em um “nós” - uma espécie de síndrome de personalidade múltipla na qual uma personalidade tem consciência da outra). Mas o ponto importante de ser retido é que a auto-reflexão envolve o tornar-se objeto para si mesmo, e isto não pode ser feito mediante uma cisão da consciência, conforme pressuposto no modelo introspectivo do sujeito cartesiano. Ao contrário, o auto-monitoramento de nossa vida mental e privada consiste num continuum que, como afirmei anteriormente (aqui), envolve desde premonições relativamente incoerentes, em seu nível mais baixo, até a articulação de sentenças inteiras, em seu nível mais alto.

E foi justamente isso que Artur fez quando externou sua conversação interior com Refutador, que representa nada menos que seu “mim” - um conjunto de hábitos e disposições (no caso, teóricas) ou, em termos peirceanos, o ponto final de ciclos semióticos anteriores aos seus questionamentos. Obviamente que um diálogo como aquele dificilmente pode ocorrer da forma como foi descrito, afinal de contas, nem mesmo Refutador conseguiria manter um grau de intencionalidade (no sentido fenomenológico) tão alto quanto o que está implicado ali. De fato, do ponto de vista privado, uma série de experiências distintas (premonições, intenções, desejos, sensações, imaginação etc.) interferem no processo, desviando nossa atenção e fazendo com que o nosso fluxo de consciência frequentemente deixe de ter uma direção clara ou um propósito definido. Mas é justamente por isso que o processo de escrita é especialmente útil para esclarecer nossos próprios pensamentos, sendo, talvez, a forma mais precisa de auto-monitoramento ou de auto-reflexão: ele possibilita um redirecionamento constante da atenção. Por esta razão, por mais que Artur repudie Refutador e tente expurgá-lo de sua mente tratando-o como um alterego demoníaco, só lhe resta recorrer a uma estratégia de defesa flaubertiana e anunciar ao mundo: Refutador c’est moi!



Referências

Archer, Margaret (2000 a). “Realismo e o Problema da Agência”. Estudos de Sociologia 6 (2), p 51-75. Recife, Ed. Universitária da UFPE.
________ (2000). Being Human: the problem of agency. Cambridge, Cambridge University Press.
________ (2003). Structure, Agency and the Internal Conversation. Cambridge, Cambridge University Press.
Vandenberghe, Frédéric (2010). Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, Ed. UFMG e Iuperj.

domingo, 18 de julho de 2010

Scarlett, Refutador, Gollum e Smeagol: notas sobre Conversações Interiores (parte 1)



Cynthia Hamlin

Há cerca de 3 semanas, Artur participou da banca de defesa de dissertação de uma orientanda minha. Um dos pressupostos fundamentais da dissertação era a tese de Margaret Archer de que as estruturas sociais e os valores culturais não incidem diretamente sobre a agência individual, mas são mediados por um processo reflexivo que frequentemente assume a forma de conversações interiores do sujeito consigo mesmo.

Durante a defesa, Artur questionou o pressuposto afirmando logo de cara que não tinha conversações interiores. Foi um choque. Como assim, não tem conversações interiores?! Minha orientanda ainda tentou argumentar, citando Platão: “o pensamento é uma conversa da alma consigo mesma”. Ao que ele replicou: “Alma é uma secreção verde que tem origem no sistema límbico e sai pelo nariz”. Desde então, tenho perguntado a todas as pessoas que cruzam o meu caminho se elas conversam consigo mesmas. Até agora, Artur foi o único que negou ter conversações interiores. Seria ele uma curiosidade sociológica?

Talvez valha a pena um pequeno adendo para compreender o estado de espírito perrusiano no momento dessa afirmação. Artur sofre de uma pequena obsessão por Scarlett Johansson. Coisa leve, claro. Sabendo disso - e que ele resistiria participar de uma banca em companhia de 4 mulheres a fim de discutir gênero - joguei como isca a minha própria orientanda. Como já afirmou o poeta renascentista inglês John Lyly, tudo vale no amor, na guerra e nas defesas de dissertação. Disse que ela era a cara de Scarlett - o que é verdade - e, só por garantia, coloquei um porta-copos com a foto da dita-cuja na mesa à sua frente durante a defesa.

Mas, assim como o amor e a guerra, as defesas de dissertação estão sujeitas à influência do imponderável. Se o truque serviu para atrair Artur para a banca, o Je-ne-sais-quoi scarlettiano que pairava sobre o ambiente parece ter tido um efeito tão poderoso em sua alma que nem todos os lencinhos retirados de todas as bolsas de todas as mulheres da banca foram suficientes para dar conta de suas secreções nasais. E em lugar do intrépido intelectual que desafia Refutador, o demônio de ossos ocos e asas de pterodáctilo (aqui), Artur era a própria imagem de Amelie Poulain, liquefazendo-se diante de uma emoção impossível de ser contida. Pobrecito.



Quanto a mim, faz três semanas que uma dúvida atroz me persegue: seria Artur o elemento empírico que refuta a teoria do agente humano de Archer, ou a teoria está correta e Artur é que não pode ser considerado um agente humano? A última hipótese era cruel demais para ser sequer aventada. Além do mais, já tive evidências de que ele compartilha pelo menos parte da habilidade mental de considerar a si mesmo em relação ao seu contexto e de monitorar suas próprias crenças, desejos e ações - se não por meio de conversações consigo mesmo, pelo menos por meio de outras atividades mentais privadas, como a fantasia, a meditação preparatória, a clarificação, as conversas imaginárias com outras pessoas (Archer, 2003)... De fato, todas essas atividades podem ser percebidas em seu diálogo imaginário com Refutador, exceto a conversação consigo mesmo.

A menos que... Será? Seria Refutador um alter-ego perrusiano, uma espécie de Gollum bachelardiano defensor de rupturas epistemológicas cujas implicações para a concepção de doença mental poderiam parecer excessivamente disciplinantes para o nosso Smeagol sociólogo/psiquiatra? Não seria difícil fundir os diálogos de Artur e Refutador, por um lado, Smeagol e Gollum, por outro:
- O que você quer, ser hediondo? (...)
- Nada, pequeno mortal, nada, a não ser chateá-lo; inclusive, você sabe muito bem por que estou aqui. Deixe de ser imêmore e lembre-se de que sou produto das suas dúvidas, dos seus impasses e das suas confusões. Sempre que uma contradição surge ou um problema de difícil solução aparece, os seus pensamentos procuram-me. Portanto, sou eu que devia estar incomodado, pois fui invocado e retirado por você do meu descanso no sétimo nível infernal. Where would you be without me? We survived because of me! I saved us! It was me! We survived because of me!
- Not anymore.
- What did you say?
- Master looks after us now. We don’t need you.
- What?
- Leave now. And never come back.



Por mais tentadora que possa parecer essa solução, ela traz uma contradição teórica que teria implicações profundas para o self perrusiano, caso fosse aplicável. Se vocês repararem bem, existe uma diferença no uso dos pronomes pessoais que tornam a comparação inviável: Artur/Refutador usam os pronomes “eu”, “mim” e “você”, ao passo que Gollum/Smeagol usam “nós”, “eu”, “mim” e “você”, mas os dois primeiros são relativamente indiferenciados. Em outros termos, embora Gollum/Smeagol tenham um sentido de self, ao contrário de Artur/Refutador, eles não parecem ter uma identidade de self. No próximo post, falarei sobre essa distinção e como Scarlett e Refutador assumem um papel central na determinação da identidade de self perrusiana.

(continua...)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

o olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 3



Cynthia Hamlin

Um dos problemas com a psicologia de James diz respeito ao seu individualismo (Lewis & Smith, 1981), o que impossibilita uma concepção de sujeito que transcenda o problema subjetivismo-objetivismo. De fato, o sujeito de James é hipossocializado e acredito que sua concepção de mente como uma esfera privada que se baseia na noção de “isolamento absoluto” da consciência e do eu é tão solipsista que tornaria impossível mesmo uma disciplina como a psicologia, dado que nenhuma comunicação seria possível. O problema que o individualismo representa para uma abordagem realista é que ela nega os poderes causais tanto das estruturas sociais quanto da cultura, tratando-as como epifenômenos e levando a um tipo de reducionismo que Archer chama de “conflação de baixo para cima” (Archer, 1995; 2000).

Peirce tinha aversão suficiente ao solipsismo para afirmar que tinha vontade de substituir o nome de sua filosofia por pragmaticismo, um nome tão feio que ninguém (leia-se, James) ia querer se apropriar dele (Lewis & Smith, 1981). (Fico imaginando o que ele teria pensado se tivesse lido Rorty...). A versão de Peirce do pragmatismo, a semiótica, enfatiza a realidade (objetiva) dos signos, que são, por este motivo, essencialmente públicos ou coletivos. Isso significa dizer que o pensamento, que é nada mais do que um conjunto articulado de signos, é algo privado, mas faz uso de meios públicos. Isso faz toda diferença, pois pressupõe a socialização do sujeito, admitindo a influência dos fatores estruturais e culturais.


sábado, 17 de abril de 2010

O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 2



Cynthia Hamlin

Na primeira parte deste texto, coloquei o problema identificado por Kant em relação à introspecção como forma de autoconhecimento: se, por um lado, seria indubitável que o sujeito pode pensar acerca de si mesmo como um objeto, por outro, não se pode explicar como este sujeito é, simultaneamente, sujeito e objeto de seu pensamento.

O que está pressuposto na noção de introspecção (intra spectare, ou “olhar para dentro”) é que aquele que observa é o mesmo que é observado. Nas palavras de Auguste Comte (apud Archer, 2003: 53), “o pensador não pode se dividir em dois, onde um pensa enquanto o outro o observa pensando. Sendo o órgão observado e o órgão que observa idênticos neste caso, como poderia ocorrer a observação?”. Alguns, como o próprio Comte - e Durkheim e os behavioristas depois dele - tomam isso como prova irrefutável de que a o autoconhecimento é impossível. Sendo assim, nenhuma ciência deveria se basear no conhecimento de conteúdos mentais, já que não é possível observá-los.


segunda-feira, 5 de abril de 2010

Margaret Acher: Reflexividade



Um anônimo simpático nos presenteou com o link para este vídeo, que compartilho com vocês. Obrigada, anônimo simpático!

Cynthia

Frédéric Vandenberghe sobre a globalização da sociologia



Frédéric é professor do Iuperj e trabalha com teoria social.

sábado, 3 de abril de 2010

O olho que nada vê: da visão à audição como metáfora para se pensar a reflexividade na obra de Margaret Archer 1



Cynthia Hamlin

'SOLITÁRIO QUAL NUVEM VAGUEI' *

Solitário qual nuvem vaguei
Pairando sobre vales e prados,
De repente a multidão avistei
Miríade de narcisos dourados;
Junto ao lago, e árvores em movimento,
Tremulando e dançando sob o vento.

Contínua qual estrelas brilhando
Na Via Láctea em eterno cintilar,
A fila infinita ia se alongando
Pelas margens da baía a rondar:
Dez mil eu vislumbrei num só olhar
Balançando as cabeças a dançar.

As ondas também dançavam neste instante
Mas nelas via-se maior a alegria;
Um poeta só podia estar exultante
Frente a tão jubilosa companhia:
Olhei – e olhei – mas pouco sabia
Da riqueza que tal cena me trazia.

pois quando me deito num torpor,
Estado de vaga suspensão,
Eles refulgem em meu olho interior
Que é para a solitude uma bênção;
Então meu coração começa a se alegrar,
E com os narcisos põe-se a bailar

William Wordsworth
in 'O olho Imóvel Pela Força da Harmonia'
Tradução de Alberto Marsicano.

* Este poema também é conhecido como “Narcisos”.

Há alguns dias, Jonatas sugeriu que eu desenvolvesse algo sobre a concepção de sujeito do romantismo inglês. Para variar, eu disse que não. Para variar, cá estou eu. Bem, sim e não. A verdade é que não entendo nada do movimento romântico e, por uma série de razões que não vêm ao caso, não estou disposta a fazer o investimento monstruoso que Jonatas tem feito no tema. Mas algumas questões que ele tem levantado têm uma implicação direta nas minhas preocupações teóricas do momento, em particular, as noções de subjetividade e de reflexividade, centrais à teoria da agência desenvolvida por Margaret Archer. Meu objetivo aqui não é fornecer um resumo de sua obra, ou mesmo de sua teoria da agência, mas apresentar sua crítica às noções correntes de reflexividade e introspecção baseadas em um modelo que tem o olho e a visão como referências.