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domingo, 22 de março de 2009

A sociedade dos indivíduos: resenha


Depois que a eminência parda do Reverendo Tsé-Tsé (aqui) apareceu nesse espaço escrevendo um texto anticlerical, senti-me obrigado a escrever alguma coisa; afinal, fazia tempo que estava ausente do blog. Claro, vejo a presença do dito-cujo como uma provocação de Cynthia, do tipo _já que não escreve, apelarei para tua genealogia! Admito que a artimanha deu certo, já que estou escrevendo, mas acuso o golpe baixo. Acuso até um conluio, já que o rasputin do ateísmo ensinou, nos idos do milênio passado, o método dialético à toda-poderosa do PPGS. Não adiantou muito, vale dizer, porque a prestigiosa, no máximo, foi até o realismo, mas nunca assumiu uma posição materialista e dialética.

Pois é... Vamos lá, então.

Bem, na aula de "sociologia contemporânea", lá na graduação da UFPB, estudamos alguns textos de Norbert Elias. Aproveitei o ensejo e fiz uma espécie de resenha do livro "A sociedade dos indivíduos" (aqui), tomando por base minhas anotações de aula. Publico, agora, para discussão.

Penso que todo o esforço de Elias é direcionado para a análise da relação entre o indivíduo e a sociedade. Para isso, rediscute os próprios termos da discussão, utilizando abundantemente uma sociologia histórica dos conceitos. Mostra, assim, que tanto "indivíduo" como "sociedade" são noções que surgem historicamente e, portanto, não existiam enquanto tal em outras épocas e sociedades. As noções são contextualizadas, mostrando que seu surgimento possui uma afinidade eletiva com um determinado modo de vida, uma determinada forma de socialização, uma determinada forma de produzir identificação e reconhecimento... Elias pratica uma "sociologia total": procura entender como a relação entre indivíduo e sociedade surge e como está inscrita historicamente em determinadas práticas sociais e lingüísticas.

Nesse sentido, Elias utiliza-se de um aporte baseado na teoria da linguagem, aliado a uma sociologia histórica, mas vai mais além: procura mostrar as conexões entre linguagem, práticas sociais, história e biologia, produzindo um singular e interessante diálogo entre a sociologia e a biologia evolutiva -- aliás, uma abordagem original, cuja síntese seria completamente inédita, não existindo em nenhuma sociologia clássica ou contemporânea (vale lembrar que Elias estudou medicina). Lembro também dos vetos e do pavor absoluto que a corporação sociológica tem de qualquer contato com a biologia; um produto, certamente, do medo da naturalização da sociologia que pode causar a aproximação com os aportes da biologia, principalmente da evolutiva – medo pertinente, sem dúvida; mas, muitas vezes, exagerado. Diga "evolução" na frente de um sociólogo e verá um apavorado em desabalada carreira pelos corredores da universidade.

Através da relação entre o indivíduo e a sociedade, Elias explicita sua visão da sociologia -- explicitação já utilizada, por exemplo, por Durkheim, mas de uma forma bem diferente, evidentemente. Assim, não há indivíduos sem sociedade, e sociedade sem indivíduos. A relação pode até existir, sendo inclusive produzida historicamente, mas não significa que seja uma dicotomia, isto é, indivíduo e sociedade não são separados, existindo apenas uma distinção conceitual que pode facilitar ou não o estudo sociológico. A partir do momento em que se pressupõe uma dicotomia, pode-se erradamente, embora seja uma iniciativa lógica, tomar como ponto de partida da teoria social ou a sociedade ou o indivíduo. O mais producente ponto de partida seria a própria relação entre indivíduo e sociedade, ou melhor: partindo do princípio de que uma sociedade é um conjunto de indivíduos, a análise deveria começar pelo que estrutura esse conjunto, isto é, pelo sistema de relações que entrelaça os indivíduos. O próprio sentimento de que existe uma relação entre indivíduo e sociedade já significa que estamos diante uma sistema de relações que corporifica essa mesma relação -- o indivíduo não pode ser tomado isoladamente, nem a sociedade pode ser analisada de forma substantiva. A própria individualização faz parte de uma transformação social que ultrapassa o controle do indivíduo. O indivíduo só pode ser visto como individuo socializado -- como já disse um velho barbudo: _não é um Robinson Crusoé. A individualidade moderna é, dessa forma, uma construção social e histórica, inscrita em práticas de socialização.

Elias, ao privilegiar as relações, coloca-se como um "estruturalista" - "pensar em termo de relações e funções" (pp. 25) é pensar de forma estruturalista -, já em 1939; mas não um estruturalista do tipo que apareceu na década de 60, cuja característica foi eliminar completamente a agência humana, entendida apenas como um suporte da estrutura. Não, esse "estruturalismo" reifica a sociedade em detrimento do indivíduo -- Elias seria demasiadamente "humanista" para um Althusser, por exemplo. Ele antecipa um pensamento "estruturalista" com face humana que centra suas atenções nas interações humanas, inclusive utilizando conceitos extremamente atuais, por exemplo, como o de "rede". Várias vezes, mesmo no artigo de 39, vemos a utilização de conceitos que invocam relações: rede, malha, tecido, imagem reticular, teia humana... Há uma agência humana no pensamento social de Elias, logo, uma teoria do sujeito, mas não um todo-poderoso no qual a razão seria o seu principal fundamento, e sim um sujeito delimitado pelas suas relações com outros sujeitos - parodiando um filósofo: "eu sou eu e minhas relações". Interpreto, por isso, que "sujeito" é produto de um processo intersubjetivo para Elias. A subjetividade seria resultado da intersubjetividade, digamos assim.

Elias seria assim, e também, um "interacionista", mas um bem especial, pois não tem qualquer ojeriza com o conceito de "função" -- entender uma "rede" ou um sistema de relações sem compreender o seu contexto funcional impede o entendimento do fenômeno social. O que existiria, definitivamente, seria uma rede de funções no interior das associações humanas. Seria através do contexto funcional que se entenderia a ordem invisível que subjaz as interações humanas:

"é essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e nada mais, que chamamos 'sociedade" (pp. 23).

Mas tal rede de funções é o todo tempo pensada historicamente -- acreditamos que seja nesse ponto uma das maiores contribuições de Elias. A própria possibilidade de pensar na relação entre o indivíduo e a sociedade foi produzida por condições históricas específicas. O surgimento de um self, de um tipo de autoconsciência e da intuição de que nós temos uma unidade interior irredutível à rede social são todos produtos históricos, dados sob certas condições e não outras. O individualismo moderno, amálgama de todos esses eventos, surgiu a partir de condições bem determinadas, não sendo um fato natural da antropologia humana.O "eu puro", assim,

"constitui a expressão de uma singular conformação histórica do indivíduo pela rede de relações, por uma forma de convívio dotada de uma estrutura muito específica".

Nesse sentido, o tipo de autoconsciência sentida pelo homem moderno "corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo civilizador" (pp. 32). O self surge no bojo de privatizações de determinadas interações sociais, antes pública, agora reservada ao fórum íntimo. Tal situação cria a situação moderna por excelência: a sensação de termos uma unidade interior apartada da "sociedade" e de que somos um indivíduo isolado e independente.

A separação entre o indivíduo e a sociedade seria uma projeção histórica dessa especial conformação psíquica. A necessidade funcional dos termos "indivíduo" e "sociedade" vem de tal estruturação psicológica. E tal terminologia, digamos assim, está inscrita nas práticas lingüísticas da sociedade moderna -- assim, Elias acompanha, num certo sentido, o que Habermas chamou de virada lingüística do pensamento no século XX. Práticas que possuem uma história "gramatical" e que se materializam no uso dos pronomes pessoais; práticas que incorporam sistema de identidades, conceituadas por Elias em noções gerais: a identidade-eu e a identidade-nós; práticas que envolvem uma "evolução" social em que a identidade-eu vai, cada vez mais, tomando o lugar e dominando a identidade-nós; práticas, enfim, que necessitam não apenas de uma explicação histórica, mas também ontogenética: Elias vai analisar as conexões entre a linguagem, a história e a biologia.

Para produzir tal conexão, Elias foi, certamente, influenciado por Darwin. Assim, podemos encontrar no seu pensamento um "evolucionismo"; contudo, sem os atavismos de um evolucionismo spenceriano, parsoniano e quejandos, pois embebido de historicidade. Ele, várias vezes, utiliza noções como "etapa", "estágio", "elevação", "avanço", propondo inclusive a necessidade de se construir, sem complexos, uma teoria do desenvolvimento social baseada numa "sociologia dos processos". Uma teoria do desenvolvimento social que saia do reducionismo econômico-estrutural e seja uma "sociologia total": junte no mesmo arcabouço teórico aspectos históricos, psicológicos, sociais e biológicos. Assim:

"no atual estágio de desenvolvimento da teoria sociológica dos processos, a maneira como interagem e se entrelaçam os diferentes aspectos do desenvolvimento da personalidade de uma pessoa ainda não foi claramente entendida. Os aspectos biológicos, psicológicos e sociológicos desse desenvolvimento são objetos de disciplinas diferentes, que trabalham independentemente. Assim, os especialistas costumam apresentá-los como existindo em separado. A verdadeira tarefa da pesquisa, contudo, consiste em compreender e explicar como esses aspectos se entrelaçam no processo e em representar simbolicamente seu entrelaçamento num modelo teórico com a ajuda de conceitos comunicáveis" (pp. 153).

Inclusive, tendo tempo, voltarei a esse tema do evolucionismo em Elias, principalmente sobre sua utilização da noção de "progresso". Confesso, aqui, minha ambiguidade em relação ao emprego da noção de "evolução" e de "progresso" nas ciências sociais. O terreno é movediço...


De todo modo, a proposta de Elias é um baita projeto que envolve, inclusive, a apropriação de conhecimentos provenientes de áreas até hoje vistas com desconfiança pelos sociólogos, tais como a biologia evolutiva, as teorias da linguagem, a psicologia cognitiva e evolucionista, a paleantropologia e até mesmo, acrescentamos, as neurociências. Por isso, podemos dizer que Elias propõe uma sociologia total do fenômeno humano, no qual diversos conhecimentos afins dão subsídios ao conhecimento propriamente sociológico. Baita projeto... Se é realizável ou não, isso é outra questão. O que importa realmente seria seu... fascínio.


por Artur Perrusi

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O xixi masculino e o processo civilizador


Vênus e Cupido, Lorenzo Lotto (cerca de 1520)

Por Luciano Oliveira

Para que serve ler? Segundo um personagem do filme Terra das Sombras, “lemos para saber que não estamos sós”. Lemos igualmente, acrescento, para saber que as coisas também não estão sós; que elas têm nexos, causas, história. Ler, nesse caso, é tomar conhecimento dos processos que determinam por que as coisas são como são, de que elas já foram diferentes e que, da mesma forma, podem ser alteradas. Ler, em resumo, é aprender a reler o mundo!

Foi depois que li o livro clássico de Norbert Elias, O Processo Civilizador, que tomei consciência de que usos e costumes que nos parecem tão naturais ─ como comer com garfo e faca, por exemplo ─ têm uma história. Ao lê-lo, relembrei uma imagem que guardo da infância: minha avó comendo com a mão! Revejo-a à mesa, mergulhando a mão no prato de feijão, arroz e farinha, e amassando a mistura até ela tomar a forma de um quibe, que depois molhava no caldo de carne guisada e levava à boca, arrancando um naco com as gengivas duras de tanto uso, pois já não tinha dentes. A leitura de Norbert Elias como que reabilitou aos meus olhos a prática “primitiva” da minha avó, pois descobri que seus modos à mesa já fizeram parte dos costumes das mais nobres Casas de velha Europa!

Mas não apenas comer com a mão. Assoar o nariz com os dedos e voltar a servir-se da carne, arrotar sem nenhum constrangimento e até mesmo soltar sonoras e fedorentas flatulências à mesa, tudo isso já compôs modos normais de comportamento. Até que... A história é muito longa e quem estiver interessado em saber como e por que adquirimos modos civilizados à mesa e em outras circunstâncias, algumas constrangedoras ─ na hora de evacuar, por exemplo ─, sugiro ler o livro de Elias.

Todo esse intróito tratando de coisas menores e até sujas, com alguma tinta de erudição, tem a finalidade de não chocar o leitor com uma questão séria (juro que não estou ironizando): por que os homens, em vez de urinarem em pé, não fazem xixi sentados, como as mulheres? A uma primeira reflexão, a resposta parece evidente: dispondo de uma “mangueirinha”, os homens podem se aliviar com facilidade na posição bípede ─ o que, aliás, é muito prático em eventos como o Pré-Caju ou o Carnaval de Olinda... Já as mulheres, coitadas, não dispondo desse apêndice bastante funcional, para elas a posição abaixada é a mais cômoda! Até aqui, estamos na lógica da natureza. Mas o homem é bem mais do que um animal natural. Exemplo: é mais natural comermos com as mãos. Mas comemos com garfo! Ora, da mesma forma que inventamos a mesa, inventamos o vaso sanitário. Por que então não poderíamos, nós homens, sentar no vazo em vez de nos aliviarmos em pé e, por mais certeiros que sejamos, respingar pelas bordas e chão gotículas de urina que, depois de secas, vão provocar aquele odor desagradável de uréia?

Aqui entram considerações de ordem cultural. Urinar em pé, a princípio um gesto facilitado pela simples anatomia masculina, adquire um valor de afirmação viril e passa a integrar a ideologia do macho. Sem quê nem pra quê, é verdade, mas muitas vezes é assim que as coisas são. No caso, abaixar-se para urinar, assemelhando-se a um gesto feminino, passa a ser considerado coisa de “bicha”. Existe mesmo uma expressão grosseira para se referir a um lugar que se quer injuriar: “terra em que homem mija de cócoras”! Quem não a conhece?

Santa estupidez! Urinar sentado no vaso da nossa casa não tem outro significado senão ser um hábito de higiene e de respeito pelas pessoas que vivem no mesmo lar. Informo, aliás, que este é um hábito que tenho desde muito tempo, cujo início não consigo precisar direito mas que, certamente, desenvolvi convivendo com duas mulheres: minha esposa e a filhinha que tivemos. Isso me lembra um prognóstico feito há muito tempo pelo poeta francês Louis Aragon, o de que “a mulher é o futuro do homem”. Éramos eu e duas mulheres, e elas me civilizaram. O que me leva a concluir com o autor que citei no início, Norbert Elias, que termina sua obra monumental afirmando que “a civilização ainda não está terminada”. Pois bem: modestamente, esta é a minha singela contribuição para essa obra ainda em aberto. Senhores, sentai!