domingo, 30 de dezembro de 2007

Wittgenstein, o Filme



Cena do filme “Wittgenstein” (1993), dirigido por Derek Jarman, com roteiro de Terry Eagleton. E para quem ainda não está com o inglês em dia, aí vai uma tradução aproximada.

Wittgenstein: Um cachorro não pode mentir. Nem ser sincero. Um cachorro pode esperar seu dono chegar. Por que ele não pode esperar que ele chegue na próxima quarta feira? Seria porque ele não tem uma linguagem? Se um leão pudesse falar, nós não seríamos capazes de entender o que ele disse. Por que eu diria tal coisa?

Estudante 1: Se nós pudéssemos entendê-lo, eu diria que não teríamos problema para entender um leão.

Estudante 2: Nós poderíamos conseguir um tradutor.

Wittgenstein: Para mim ou para o leão? Sim, sim, nós poderíamos conseguir um tradutor. Mas que diferença isso faria? Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. É o que nós fazemos e o que nós somos que confere significado às nossas palavras. Eu não posso entender a linguagem de um leão porque eu não sei como é o seu mundo. Como eu posso conhecer o mundo que um leão habita? Será que eu não consigo compreendê-lo porque não posso espiar o que se passa em sua mente? (Desenhando um abacaxi). O que está se passando por trás das minhas palavras quando eu digo “este é um abacaxi muito agradável”? Podem pensar com calma.

Estudante 1: O pensamento, professor.

Wittgenstein: Sei... Qual é o pensamento que se esconde por trás das palavras “este é um abacaxi muito agradável”?

Estudante 1: “Este é um abacaxi muito agradável”.

Wittgenstein: Ouça: nós imaginamos o significado do que dizemos como algo estranho, misterioso, escondido das nossas vistas, mas nada é oculto, tudo está aberto à visão. São os filósofos que turvam as águas.

Estudante 1 (batendo na própria face): Professor Wittgenstein! O senhor não pode conhecer essa dor. Só eu posso.

Wittgenstein: Você tem certeza que a conhece? Você duvida de que sentiu dor?

Estudante 1: Como eu poderia duvidar disso?

Wittgenstein: Se não podemos falar de dúvida, também não podemos falar de conhecimento.

Estudante 1: Não estou entendendo.

Wittgenstein: Não faz sentido falar de conhecer alguma coisa num contexto em que não podemos duvidar, portanto, “eu sei que estou sentindo dor” é completamente desprovido de significado. Quando você quer conhecer o significado de uma palavra, não procure dentro de você, procure pelos usos daquela palavra em nossa forma de vida. Olhe para como nos comportamos.

Bertrand Russell: Você está dizendo que não existem problemas filosóficos?

Wittgenstein: Existem problemas lingüísticos, matemáticos, éticos, lógicos e religiosos, mas não existem problemas filosóficos genuínos.

Bertrand Russell: Você está banalizando a filosofia.

Wittgenstein: A filosofia é apenas um subproduto da incompreensão da linguagem! Por que vocês não percebem isso?

Bertrand Russell: Ai, meu deus... ele não tolera discordâncias, não é?

Ma Che Cazzo Dici Tu??! O Leão de Wittgenstein e a Virada Lingüística



Certa tarde, dois meninos, Joãozinho e Juquinha, foram ao zoológico. Ao passarem diante da jaula dos leões, um dos bichos escapou, soltando um rugido enorme. “Vamos sair daqui!”, gritou Joãozinho. “Pode ir se quiser”, disse Juquinha, “eu vou ficar e assistir o filme”. Moral da história: Ludwig Wittgenstein parece ter razão quando afirmou que “se um leão pudesse falar, nós não poderíamos entendê-lo”. Este aforismo já fez com que filósofos eminentes consumissem muita tinta e papel em torno do pequeno bestiário descrito nas Investigações Filosóficas, repleto de patos-coelhos, gansos com dentes nas asas, cachorros hipócritas, dentre outras bestas absurdas. Um deles, cujo nome não me recordo, chegou a afirmar que se o leão estivesse dizendo “Ludwig, eu vou devorar você!”, seria possível inferir do seu tom de voz (tom de rugido?) que ele não estava contando uma história para seus filhotes dormirem.

Mas o que faz com que filósofos tão ilustres gastem seu tempo precioso (e o nosso) com questões dignas da patafísica, “ciência revolucionária” que deu origem ao teatro do absurdo? Como essas questões podem ilustrar as preocupações centrais da filosofia da linguagem e, o que é mais importante para nós, a relação entre ciências sociais e a tão falada virada lingüística? Uma forma possível é (tchan, tchan!) via sociologia do humor. Peter Berger, sociólogo da tradição interpretativa (fenomenológica) e mais conhecido por seus estudos sobre religião, estabelece uma relação muito interessante entre o teatro do absurdo de Beckett, Ionescu e Jean Genet e a idéia de linguagem. Segundo ele, o termo absurdum, em latim, significa literalmente “retirado da surdez”. De acordo com uma das definições do Houaiss, absurdo é aquilo que é contrário à sensatez e ao bom senso e, sendo assim, uma interpretação possível para o uso do termo é que absurdo é aquilo que as pessoas surdas à razão dizem. Absurdo seria, portanto, mais ou menos sinônimo de irracionalidade. Mas Berger (1997: 175) sugere ainda uma outra interpretação: “o absurdo é uma visão da realidade que deriva da própria surdez – isto é, uma observação de ações que não são mais acompanhadas de uma linguagem. Tais ações são, precisamente, desprovidas de sentido [...] e o efeito é geralmente cômico”. Mas antes que eu me enrede nas minhas infindáveis divagações sobre humor e conhecimento, deixem-me focar uma questão relevante para a filosofia da linguagem, que é a relação entre linguagem e ação para a compreensão do significado.

O que estamos dizendo quando afirmamos que compreendemos o significado de uma proposição qualquer? Se alguém me diz algo como “estou alegre hoje”, o que, nesta proposição, me permite compreender o que a pessoa está sentindo? Será que existe uma série de sinais “objetivos”, como sorrisos, gestos, tom de voz etc que me permitam relacionar à expressão “alegre” e que “espelhem” esta expressão? Certamente que, se alguém me diz que está alegre e sua linguagem corporal, tom de voz etc me “dizem” o contrário, é possível interpretar esta afirmação como ironia, como “falta de sinceridade” ou como simples absurdo (ausência de sentido) por parte de quem a profere. No entanto, existe algo mais do que a simples referência a tais sinais “objetivos” envolvida na interpretação de uma sentença como esta. O que é que conta como um “sinal objetivo” de alegria? Será que os sinais que permitem a um inglês identificar alguém como estando alegre são os mesmos sinais que permitem que um brasileiro o faça? O que, afinal de contas, determina a possibilidade da aplicação de um termo como “alegria” para ações e expressões que não são nunca idênticas umas às outras, mas que guardam apenas “relações de familiaridade” entre si?

São questões desta ordem que ocupam a filosofia da linguagem, cujo insight mais fundamental é o de que as palavras não são simples rótulos para as coisas que existem no mundo. A chamada “virada lingüística”, expressão popularizada por Richard Rorty em uma coletânea de textos de filósofos da linguagem datada de 1967, diz respeito àquelas tendências da filosofia ocidental que levam à conclusão de que a linguagem ou o discurso representam o limite das investigações acerca da verdade e do mundo, ou a visão de que não há nada fora da linguagem. Como Wittgenstein colocou no Tratactus Logicus Philosophicus, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Numa visão um pouco mais contemporânea, o filósofo francês Jacques Derrida afirma que “não existe nada além do texto”. O que há de comum nas diversas tradições que compõem a virada lingüística é a idéia básica de que o significado não é uma referência a uma entidade, mas um produto sociolingüístico, uma questão de uso da linguagem. Em um sentido importante, portanto, a linguagem não representa ou espelha a realidade, mas a constitui. Wittgenstein, mais do que ninguém, contribuiu para esta concepção que atuou como uma verdadeira revolução copernicana para as ciências sociais.

Para o filósofo austríaco, nenhuma linguagem é privada e mesmo os pensamentos mais íntimos de alguém devem ser expressos em uma linguagem comum a uma determinada comunidade ou “forma de vida”. Isto significa que conhecer o significado de um termo pressupõe a nossa habilidade para empregá-lo corretamente. E o que é empregar um termo corretamente? É seguir as regras que definem o seu uso ou, nos termos de Wittgenstein, tomar as palavras como parte de um “jogo de linguagem”, isto é, com parte dos símbolos e das ações que se conformam às expectativas de uma forma de vida particular.

A forma como o jogo de linguagem relaciona linguagem, práxis e contexto pode ser compreendida a partir da forma como as crianças aprendem a falar. Quando elas aprendem a usar uma linguagem, o processo de aprendizagem ocorre por meio da associação entre palavras e um certo tipo de ação. Se eu digo, por exemplo, “beba a água”, espero que a criança desempenhe um certo tipo de ação, ou que reaja de uma determinada forma ao ouvir essas palavras. Compreender uma proposição como esta pressupõe, portanto, “o uso de símbolos compartilhados, uma reação a determinadas expectativas comportamentais e um consenso acerca do desempenho dessas expectativas” (Habermas, 1970: 130). É justamente este todo, composto dos símbolos e das ações nas quais a linguagem é tecida que Wittgenstein chama de jogo de linguagem. Compreender uma linguagem e estar apto a falá-la indica que a pessoa adquiriu determinadas habilidades, que aprendeu como desempenhar certas atividades. Se, ao invés de beber a água a criança a derrama no chão, dizemos que ela não compreendeu a frase (ou que compreendeu e se recusou a desempenhar a ação por alguma razão qualquer). Em ambos os casos, a comunicação e a interação são perturbadas, podendo fazer com que a última se desintegre. Isto requer a restauração do entendimento (ou concordância acerca do significado) que está falho ou ausente, fazendo da compreensão lingüística um processo importantíssimo para as ciências sociais.

Mas e o leão? Ora, se o significado das palavras e das sentenças dependem de uma forma de vida particular, então seria necessário conhecer a forma de vida dos leões para compreender o que contaria como o uso correto de suas expressões. Alguém aí se aventura, ou preferem seguir os passos de Habermas e chamar Hermes para ajudar na tradução?

Berger, Peter (1997). Redeeming Laughter: The Comic Dimension of Human Experience. Berlim e Nova York: Walter de Gruyter.
Habermas, Jürgen (1979). On the Logic of the Social Sciences. Cambridge, MA: The MIT Press.
Rorty, Richard (1967). The Linguistic Turn: Essays in Philosophical Method. Chicago: The University of Chicago Press.

Cynthia Hamlin

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007




Que o espírito do natal esteja presente em nossas vidas durante todo o ano de 2008. Mesmo nas situações mais improváveis! Boas festas a tod@s!

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Chomsky e Foucault: Justiça vs. Poder, Parte 1

Biopoder e Bioética



A mulherada do SOS Corpo me convidou para falar sobre o tema que dá título a esse post dentro do seminário "Corpo e Poder no Contexto da Globalização Neoliberal". Falei durante quarenta minutos a partir do pequeno texto que se segue - e adorei a conversa que se seguiu a esse ponta-pé inicial.

"Suspeito de quem transforma a discussão de temas amplos, como o que me foi proposto discutir esta tarde, em uma ocorrência de sua vida pessoal. Algumas pessoas, no entanto, funcionam assim. Lembro-me, a propósito, de um famoso compositor e sua capacidade de engolir o mundo com o próprio umbigo. “Caetano, você poderia nos falar da importância do cinema de Fellini”. “Ah, o cinema de Fellini foi uma epifania na minha vida. Mas já que estamos falando de gente importante, deixe-me falar de Caetano Veloso”. E daí por diante, o cinema italiano, a Cinecittá viram uma parte da história de Santo Amaro da Purificação.

Dito isto, mesmo que pareça suspeito, acho que um episódio de minha vida pode funcionar como introdução ao tema que vocês gentilmente me convidaram para discutir. De fato, quando Foucault cunhou nos idos de 1970 expressões como “biopoder”, “biopolítica”, a grande provocação intelectual que ele propunha, numa época em que alguns de nós ainda acreditávamos na vitória do proletariado, na superação do capitalismo, era o alargamento daquilo que considerávamos o político. Recorrerei ao meu causo. Nos anos oitenta eu cursava um interminável e chatíssimo curso de Economia na UFPE e morava na Casa do Estudante Universitário, ali pertinho do Engenho do Meio. Além de estudante, era militante não muito convicto de um partido de esquerda. Lembro-me de um dia estar conversando com um companheiro da CEU acerca da necessidade de alargar nossas preocupações políticas para discutir questões como feminismo, o direito das ditas minorias, questões raciais etc. A urgência das questões, pasmem, tinha me ocorrido durante a campanha eleitoral de um velho ícone comunista a uma vaga na Câmara Federal – nem sempre esse tipo de reflexão aguarda momento e lugar propícios.

Diante dessas inquietações, o meu colega de infortúnios e militâncias fez pausa dramática, jogou sua indefectível bolsa de couro para o lado direito do corpo e respondeu, muito satisfeito de si: “Companheiro, no dia em que questões de gênero, orientação sexual, raça forem de fato importantes, o proletariado saberá elegê-las como prioritárias”. Nunca esqueci da frase. Chamou-me depois de pequeno-burguês para fechar o argumento – logo eu, vindo de família proletária, eu, que desde criancinha acordava todo santo dia com meu pai e mãe cantando “de pé oh vítima da fome...”, eu que escovava os dentes com raspas de juazeiro para não dar dinheiro à Gessy-Lever...

O argumento de meu colega era ingênuo, eu sei; mas revelador. Ora, quem era a vanguarda do proletariado? O nosso partido. E dentro do partido, quem se destacava na gloriosa tarefa de fazer a revolução? Possivelmente candidatos à militância e ao martírio, como nós. O raciocínio do colega poderia se resumir então do seguinte modo: no dia em que essas questões forem de fato importantes, a minha patota, o comitê central, decide. Argumento ingênuo, porém revelador de uma visão estreita do político: que ele no fundo é apenas uma questão econômica (que opõe burgueses e proletários; ou liberais e republicanos; camponeses e latifundiários) e que as instâncias onde o político poderia surgir ou se realizar já estariam claramente determinadas, mapeadas: instituições governamentais, partidos, sindicatos, representações classistas em geral.

Contra aquela visão limitada, Foucault propôs que entre os séculos XVIII e XIX a própria idéia do político muda de feição. Até então, podemos dizer, que o que se pensara como tal resumia-se a questões relacionadas ao poder soberano. Quem governa? Que uso o governante faz ou deveria fazer do seu poder? É legítimo tal poder ou se trata de uma usurpação? Quem é amigo e quem é inimigo do Estado? Como devemos tratar o inimigo interno? Etc. etc. Estas eram questões relacionadas ao direito de governar. O direito constituía o emblema e o campo sobre o qual reflexões acerca da política poderiam ser realizadas. Esta forma de poder se materializava concretamente segundo o seguinte postulado: “soberano é aquele que tem o poder de decidir sobre a vida ou morte dos seus súditos. Seu poder reside em deixar viver (quando isso lhe parecer interessante) e fazer morrer (quando isso for julgado oportuno). O soberano é, neste contexto, aquele que tem poder de morte. É ao terror de ser eliminado que eu obedeço. Foucault dá uma idéia dessa estratégia de dominação na introdução do Vigiar e Punir. Lá ele fala da execução de Damiens, condenado à morte por tentativa de regicídio.

“e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzido a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento”.

O relato inteiro é bem mais cruel, e isso não é fortuito. Ora, esse tipo de dominação é necessariamente espetacular. O soberano é aquele para quem todos os olhos devem se dirigir com temor. Por isso, o espalhafato, a pompa, os rituais de execução marcam esta forma de exercer o controle. A partir dos séculos XVIII e XIX, no entanto, uma forma nova de controle social começa a surgir na Europa: um poder que dirige os olhos, não para os poderosos, mas para o cidadão comum; que já não depende mais do espetáculo e da pompa, mas da disciplina, do controle científico da vida cotidiana. Foucault chama a essa forma de poder de biopoder. As biociências e biotecnologias, e não mais o direito, são os novos paradigmas a partir dos quais essa nova forma de política ocorre. A dominação já não radica na capacidade de matar, mas de controlar a vida biológica dos seres humanos. A política se volta para a vida nua, para o controle, disciplina e potencialização da vida biológica dos indivíduos e das espécies.

O que Foucault poderia ensinar ao meu colega de CEU? Que o controle do aparelho de Estado não é a única questão importante acerca do político, pois ele se realiza em nossa vida cotidiana, por vezes longe das decisões governamentais. Exemplifiquemos: que a mulher tenha sido percebida nos manuais de obstetrícia dos séculos XIX e XX como uma máquina reprodutiva (e uma máquina reprodutiva instável, sujeita a humores) não é uma questão política relevante? Foucault provavelmente responderia que sim. Que cirurgias de transgenitalização sejam decididas em última instância pela expertise dos médicos (endocrinologistas e psiquiatras) não é uma questão política? Mais uma vez a resposta seria afirmativa. Que o Estado tenha colocado algumas dessas questões sob sua asa apenas reforça o argumento de Foucault: o que foi realizado nos Campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial senão a redução de ciganos, homossexuais e judeus à condição de vida biológica, de vida nua? O argumento lá sintomaticamente era o da higiene, da profilaxia: a expertise médica legitimou em tais casos o genocídio.

Poderemos perguntar, na mesma linha de raciocínio: a esterilização de mulheres pobres no terceiro não é um ato biopolítico de conseqüências terríveis? O teste de novos medicamentos nas populações miseráveis da África, Índia e América Latina não é um ato político da maior relevância? Do mesmo modo, o fato de as mulheres poderem decidir quando terão ou deixarão de ter filhos, se estão ou não interessadas em fazer sexo, de que maneira estão interessadas, que tipo de prazer esperam, como desejam que seus corpos sejam tratados, com quem têm interesse em ir pra cama, são questões políticas da maior importância. Que mulheres, homens, gays reivindiquem o direito de decidir sobre seus próprios corpos é um ato político – e de resistência num espaço em que o poder se estrutura como biopoder.

Falamos acima que a direção do olhar que caracteriza o poder mudou ao longo do século XIX. Já não apenas olhamos com temor os poderosos; somos olhados, seguidos por olhos que nos transformam em coisas, em objetos. Foucault só não esperava que em dado momento da história do ocidente, passássemos a ter prazer em ser objeto deste olhar. Assim, somos compelidos a implantar cabelos, silicone em diversas partes do corpo, submetermo-nos a regimes de emagrecimento, à malhação que nos torna esbeltos, à disciplina corporal que nos torna atletas olímpicos, aos medicamentos que nos tornam mais ativos, menos ansiosos etc. Essas também são dimensões políticas para as quais temos de dar respostas diárias.

A segunda parte desta pequena comunicação está atrelada à primeira. Bem, com relação à ética ou a bioética, Foucault teria pouco a dizer. É conhecida sua relutância em discutir questões neste campo. Essa má vontade certamente tem alguma relação com a importância de Nietzsche em sua obra. Este célebre pensador alemão ensinou a olhar com desconfiança o discurso ético, a ver subjacente a sentimentos de igualdade, fraternidade, impulsos agressivos não assumidos. A verdade é que precisamos esperar algo como o colapso das perspectivas de transformação política radicais, tais como aquelas idealizadas pelo meu colega da Casa do Estudante e por mim próprio, isto é, a expectativa da vitória do proletariado, a realização do socialismo no mundo, para que investimentos filosóficos no terreno da ética voltassem a ser demandados. Durante uns bons cem anos desconfiamos das boas intenções, ou do poder de sensibilização de argumentos éticos. Procuramos, em seu lugar, soluções políticas.

Acho importante que procuremos discutir os valores que fundamentam nossas atitudes diante da vida. Deste modo, acredito que a bioética é um campo importante de reflexão dos problemas com que nos deparamos hoje quando falamos em questões tão sensíveis quanto: aborto, pesquisa com células tronco embrionárias, diagnóstico genético pré-implantação, clonagem, transgênicos etc. Talvez Foucault argumentasse que esse espaço aparentemente novo no terreno da ética nada mais é que uma forma elaborada de biopoder. Eu sou um pouco mais otimista.

Questões éticas são sempre fundamentais. Quero dizer, elas sempre falam de fundamentos, problematizam nossa humanidade, perguntam sobre algo em nossa condição que não pode ser negociado. O que não pode ser negociado em nós sem que nos desumanizemos? Um filósofo francês, creio ter sido Bataille, respondia a essa questão com um sonoro “Nada”. Para ele, o que Hiroshima e Nagasaki nos mostraram é que não existe absolutamente nada no ser humano que não possa ser negociado. Triste comentário sobre o humanismo.

Diferente dele, o filósofo Immanuel Kant acreditava existir um fundamento de nossa humanidade não passível de negociação: nossa liberdade. A ética deveria ser a reflexão sobre as condições em que essa liberdade seria garantida. Se, sob quaisquer circunstâncias, isso não ocorrer, estaríamos diante de uma ação não ética, uma ação que comprometeria a essência de nossa humanidade. Como nos certificaríamos que essa essência seria garantida? Kant nos propõe duas formas de nos certificar do conteúdo ético de nossas ações: aja como se o ser humano diante de você fosse um fim em si mesmo e não um meio, um instrumento para conseguir outro fim qualquer. Ele não nos diz o que fazer para sermos éticos, ele simplesmente nos responsabiliza por nossa humanidade e pela humanidade daqueles com quem convivemos. A outra forma de certificação da qualidade ética de uma ação é mais conhecida: aja como se sua ação fosse se transformar em uma máxima de comportamento para toda a humanidade. Uma mentirinha poderia ser justificada de uma perspectiva ética? Para responder à questão basta que nos perguntemos se a mentirinha poderia se universalizar, se tornar comportamento corrente para todo mundo e não só pra mim.

Para que a ética de Kant pudesse funcionar seria preciso que acreditássemos que o que é justo para um homem é também justo para uma mulher, para um negro assim como para um branco. Política de quotas na universidade seria ético? Não, porque não parte de um fundamento comum a todos os seres humanos, mas trata diferentes de forma distinta. Política de quotas, licença maternidade poderiam ser questionados sob a ótica kantiana. Mas por que falo de Kant e não de tantos outros pensadores que formularam questões importantes sobre a ética? Porque Kant além de ser o pai do liberalismo na filosofia é também uma referência fundamental daquilo que hoje se chama bioética.

A bioética surge após a Segunda Guerra Mundial com o intuito de promover uma reflexão sobre critérios elementares que deveriam conduzir a pesquisa científica com seres humanos. Não preciso dizer dos horrores que foram realizados em nome do progresso da medicina antes, durante e depois desta Guerra – e não me refiro apenas aos nazistas, suas terríveis experiências médicas. Basta que nos detenhamos um pouco na análise das experiências realizadas pelo projeto Manhatan, ou pelo Projeto Tuskegee. Acerca deste último, Bill Clinton se desculpou à população afro-americana ao final de seu governo. Foram necessários 70 anos para que tal pedido fosse proferido - de 1932 a 1972, negou-se tratamento de sífilis a 400 indivíduos negros para que eles pudessem servir de cobaias de novas drogas. No mundo todo, milhares de pesquisas científicas estão sendo realizadas com seres humanos sem que essas pessoas tenham qualquer informação acerca das conseqüências dos tratamentos, medicamentos a que estão se submetendo. Se tiverem a oportunidade, façam uma busca na Internet com as palavras “cobaias humanas”.

Kant pode ajudar aqui? Certamente. Não podemos tratar um ser humano como um meio, como um instrumento. A ação das grandes indústrias farmacêuticas é, portanto, condenável. Se as pessoas submetidas ao experimento científico não dispõem de informações suficientes sobre possíveis danos, riscos, tratamentos alternativos, é possível dizer que elas sejam livres para decidir? A boa informação é fundamental para que possamos decidir livremente - embora não seja suficiente.

Refletindo a partir de Kant, mas também considerando as limitações de sua obra para conceber uma ética de base não-universalista, alguns intelectuais definiram quatro princípios que deveriam orientar a bioética, ou, a ética da vida biológica. Falarei aqui sobre três deles. Sobre o primeiro princípio já falamos: ele diz respeito à autonomia que deveria orientar a ação do indivíduo livre. Tudo que for contrário a esse princípio fere a bioética. O segundo princípio é o da beneficência: sempre deveremos buscar a saúde do doente, e não orientar a pesquisa simplesmente pela busca de novas fórmulas, medicamentos que possam eventualmente comprometer seu bem-estar ou sua vida. O terceiro princípio é o da justiça – basicamente, levar em consideração a especificidade das pessoas ao definir tratamentos adequados.

Acredito que este último princípio abre espaço para que reflitamos sobre os problemas específicos de grupos discriminados, tais como, gays lésbicas, mulheres. Em seu conjunto, todavia, o que se convencionou chamar de bioética tem mostrado bastante dificuldade em lidar com indivíduos cuja aptidão para agir de modo autônomo é limitada. Menciono aqui como exemplo se poderia ser considerado ético a modificação genética de uma célula embrionária com a finalidade de lhe dar algum atributo físico especial? O ‘sujeito’ em questão não pode decidir, e conferir-lhes músculos especiais, cor de pele ou de cabelos distintivos, pode vir a se tornar um problema futuro. Saindo do terreno da ciência mais avançada, poderíamos nos perguntar como, a partir dos princípios acima, poderíamos agir eticamente com relação a um portador de deficiência mental grave. Ora, todo o edifício da bioética depende da existência de atores racionais e competentes para decidir autonomamente.

Acredito que o pensamento feminista tem aqui um campo de reflexão importantíssimo. Pois é necessário pensar acerca das forças históricas e ontológicas que nos fazem os humanos que somos. Do mesmo modo, é preciso elaborar as relações fundamentais que essa humanidade apresenta com o nosso ser corpóreo, com a vida biológica que dispomos, sua imbricação com a vida de outros humanos, de outras espécies e da vida do planeta".

(por editar)

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Jonatas Ferreira

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Heinrich Rickert e Funes, o Memorioso




Não sei se vocês sabem, mas o professor Jonatas Ferreira é um grande ator. Ator de verdade, daqueles que sabem os textos de cor e têm um grande repertório de vivências internas capazes de suscitar expressões de todos os tipos. Não sei o que ele está fazendo na sociologia mas, a crermos nos interacionistas simbólicos, ele deve ser um desses mentirosos patológicos em sala de aula que apresentam uma fachada perfeita a fim de esconder seu verdadeiro self. Tudo em prol da didática, claro. Pois bem: ontem eu tive que interromper sua brilhante performance de um filme dos Irmãos Marx porque precisava dar uma aula sobre Rickert na graduação. Talvez movido por inércia, Jonatas, que além de ator é um grande conhecedor do neo-Kantismo, tira da cartola um conto de Borges que ilustra perfeitamente um dos problemas centrais da teoria da formação de conceitos de Rickert e que eu resolvi compartilhar com vocês.

Para os neo-Kantianos da escola de Baden, da qual Rickert fazia parte, a realidade é um caos, infinita e multifacetada. Isto coloca um problema considerável ao conhecimento, já que nossas mentes são finitas e não podem lidar com a realidade em sua infinitude. Neste sentido, uma das principais questões da metodologia é a de como lidar com este hiato entre uma realidade concebida como “irracional” e a “racionalidade” do conhecimento. Para Rickert, isto significa que precisamos de uma teoria da formação de conceitos, isto é, de uma teoria (normativa) que nos diga como diminuir o tal do hiato irrationalis entre conceito e realidade, ou como reduzir a complexidade do mundo a fim de que ele possa se tornar cognoscível. Com base na distinção efetuada por Windelband entre ciências nomotéticas e ciências idiográficas, Rickert defende que a mesma realidade é “natureza” se a considerarmos do ponto de vista da generalidade e “história” ou “cultura”, se considerada de uma perspectiva individual ou singular. São, portanto, nossos “interesses cognitivos”, para tomar emprestada uma expressão de Habermas, que nos permitem estabelecer uma distinção entre as ciências da natureza e as ciências da cultura e construir conceitos apropriados para cada uma delas.

O problema que se coloca é como criar conceitos individualizantes ou singularizantes. Todo conceito é uma abstração e simplificação de algo concreto e infinito (e é esta concretude e infinitude que dá ao objeto seu caráter singular). Certamente que Rickert não é ingênuo o suficiente para defender que o historiador pode identificar todas os elementos de um objeto (o que, incidentemente, faria da história um processo descritivo ad infinitum), nem nega que a explicação causal seja necessária para a compreensão dos fenômenos humanos. O que ele nega é que a explicação ocorra necessariamente a partir de leis gerais e, mais do que isso, que a compreensão possa ocorrer por meio de mera descrição. Alguma generalização é, portanto, necessária para a construção dos conceitos individualizantes e isto pressupõe uma seleção de aspectos que supostamente ajudariam a delimitar o caráter singular de determinados eventos históricos. Esta seleção seria feita a partir de uma “relação com valores” (do investigador e do período/ sociedade em questão) que, para Rickert, possibilitaria isolar os elementos significativos e, num certo sentido não especificado, singulares. No entanto, dado que Rickert concebe valores como universais (a fim de garantir a objetividade do conhecimento produzido) e faz diversas concessões ao uso de conceitos universais e generalizantes, resta saber se esta não foi uma saída engenhosa para evitar o coice do cavalo que atingiu o pobre Ireneo Funes, deixando-o com uma memória infinita e perfeita e paralisando-o para sempre. Transcrevo um trecho do infortúnio de Funes a seguir:

“No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.

Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento. Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24o capítulo do 7o livro da Naturalis historia. O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.

Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, fumando. Parece-me que não vi o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a estória do telegrama e da enfermidade de meu pai.

Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa noite.

Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator, que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paralítico. Fato que pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua percepção e sua memória eram infalíveis.

Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo retângulo; um losango, são formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei quantas estrelas via no céu.

Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O cérto é que vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.

A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.

Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.

Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia acabo ainda de classificar todas as lembranças da infância.

Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais, platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia, Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-llhe muito difícil dormir. Dormir é distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.

A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.

Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de multiplicar trejeitos inúteis.

Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.”

Tradução de Marco Antonio Franciotti
(in Jorge Luis Borges: Prosa Completa, Barcelona: Ed. Bruguera, 1979, vol. 1., pgs. 477-484). Para ler o conto inteiro, acesse http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/funes.htm

Cynthia Hamlin