Mostrando postagens com marcador Machado de Assis. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Machado de Assis. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Um meditabundo risonho sobre cousas metafísicas: nota sobre humorismo, pessimismo e a fortuna crítica de Machado de Assis



Por Gabriel Peters  (IESP-UERJ)


“Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e ridícula, apresentava-se sempre em público a rir e motejar. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava perfeitamente triste e de lágrimas nos olhos” (Montaigne, 1987: 333). 


Eis o contraponto entre leveza cômica e seriedade melancólica diante de um mesmo diagnóstico quanto à absurda condição de cada ser humano, jogado em um universo indiferente ao seu destino e que terminará por exterminá-lo. Para aplicar à relação do humano com sua situação cósmica o par de categorias sociológicas celebrizado por Norbert Elias, podemos dizer que a diferença entre as sensibilidades cômica e trágica está fundada sobre posturas existenciais de “alienação” e “envolvimento”. Assim como pode se descobrir “lançado” (Heidegger), sem qualquer chance de escolha prévia, em um mundo que irá matá-lo, sem que seu pavor a respeito disso possa fazer qualquer coisa para evitar esse destino último, o ser humano tem a singular capacidade de se desengajar, ao menos parcialmente, do palco dessa tragédia e do papel que ele próprio desempenha nela para poder rir de sua desimportância. Sob esse ângulo, comédia e tragédia aparecem não tanto como categorias distintas de eventos, mas como pontos de vista ou atitudes espirituais distintas em face de uma mesma realidade. Como viu Henri Bergson, um sujeito que desse “à simpatia a mais irrestrita expressão” sentiria “uma coloração grave” incidir “sobre todas as coisas”, ao passo que a substituição de uma atitude empática pela postura de um espectador indiferente ao destino dos personagens observados, como que submetido a “uma anestesia momentânea do coração”, fará com que ele veja, de repente, “muitos dramas transformarem-se em comédia” (Bergson, 2007: 4).

A forma mais comum da contraposição entre “envolvimento trágico” e “alienação cômica” não é autodirigida, mas ditada pela simples diferença de condições entre atores interessados apenas no seu próprio umbigo. Como disse Mel Brooks: “Tragédia é quando EU corto meu dedo. Comédia é quando VOCÊ cai num esgoto a céu aberto e morre”. Nessas circunstâncias, a insensibilidade do coração anestesiado pode até mesmo descambar para o regozijo aberto diante das desventuras e aflições de outros, designado pelo que os alemães chamam de Schadenfreude.

O riso sádico que expressa prazer diante da dor alheia não esgota, no entanto, o conjunto das instrumentalizações possíveis do sofrimento pela comicidade. Com efeito, o foco do presente texto recai sobre perspectivas que mobilizam um diagnóstico existencial da absurdidade da situação humana no universo em favor de um humor autodirigido e dotado de um papel emocionalmente anestésico. O último advérbio indica que a auto-anestesia aqui referida não consistiria em um sacrifício da lucidez intelectual, mas, ao contrário, em uma intensificação dessa última pela via da “alienação” existencial cômica, com vistas à neutralização dos afetos de horror e tristeza que adviriam de uma visão completamente “envolvida” naquela condição absurda.

O procedimento de tomar a si próprio como objeto de comicidade, de assumir que o homo ridens é, ele próprio, homo risibilis, poderia assim adquirir a dignidade de um “exercício espiritual” análogo ao que os estoicos (admitidamente, uma turma bastante séria) chamavam a “visão do alto”. Tal exercício convida o indivíduo perturbado por aflições, tais como arrependimentos quanto ao passado ou ansiedade quanto ao futuro, a sair imaginativamente de si próprio, lançando-se ao alto - bem no meio da via láctea, segundo o sonho de Cipião narrado por Cícero em Da República - para, de lá, observar a pequenez dos assuntos humanos. Desde aquele ponto de vista, as intrigas, guerras, rituais, disputas materiais, jogos de prestígio e todas as demais atividades nas quais os seres humanos despendem tanto tempo e energia adquirem, subitamente, um sabor ridículo. Para alguém cujas aflições derivam da atribuição de uma magna importância a tais atividades, o exercício é emocionalmente libertador, revelando o que até então pareciam dramas da maior significação como cosmicamente insignificantes e, portanto, indignos de uma dor de cabeça.

Freud explica

Vários dos maiores pensadores da condição humana mostraram-se aptos a conceber e a vivenciar a tragicidade e a comicidade do bípede implume simultaneamente, explorando a delicada tensão entre as duas atitudes sem absolutizar qualquer delas em detrimento da outra (quanto à caracterização “bípede implume”, aliás, o cínico Diógenes já havia sublinhado há tempos que ela vale para o ser humano assim como para um frango depenado). Freud, por exemplo, reservava a noção de humor, em contraponto aos seus conceitos particulares de “chiste” e do “cômico”, para designar precisamente esta espécie de ironia alquímico-afetiva em que circunstâncias que normalmente evocariam afetos negativos como temor, tristeza ou ressentimento são vistas sob uma perspectiva que as torna risíveis:
Alguns minutos antes da execução do prisioneiro condenado, o carrasco oferece a ele um último cigarro, ao que o prisioneiro responde:

- Não, obrigado, estou tentando parar.
O pai da psicanálise sublinhou que o tipo de libertação adquirida através do humor possuía um halo de “grandeza e elevação” ausente nas satisfações agressivas ou eróticas presentes nos “chistes” e que derivaria da...
...afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer (Freud, 1974: 190).

Como um recurso psíquico que os indivíduos mobilizam para lidar com condições existenciais de tensão e desconforto sem serem assoberbados por esses sentimentos, o humor poderia ser elencado entre os mecanismos de defesa da psique, “a extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a neurose e culmina com a loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase” (op.cit: 191). Freud atribui ao humor, entretanto, a dignidade especial de neutralizar afetos angustiantes e perturbadores, bem como afirmar o princípio do prazer contra as frustrações exigidas pela realidade, de uma forma que não ultrapassa “os limites da saúde mental” (idem).

O médico vienense se debruçou sobre uma modalidade de comicidade praticada por vários de seus predecessores, de Demócrito a Machado de Assis (falo dele em um minuto). No entanto, Freud estava bem aparelhado para trazer algo de novo à análise desse fenômeno, a saber, a analogia entre a postura do humorista que ri da angústia insensata e a posição de uma figura paterna que “sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes” a uma criança. Tal como os pais consolam risonhamente a criança em seu berreiro desesperado diante de aflições que consideram minúsculas (e.g. um pirulito não comprado), o humor é lido por Freud como um fenômeno em que o superego, afinal a instância psíquica que interiorizou o papel das figuras paternas, intervém para confortar um ego ansioso e aflito afirmando que o mundo que este julga ser tão perigoso “não passa de um jogo de crianças” (Freud, 1974: 194). Para a turma interessada em psicanalices (lacanagens etc.), o textículo de Freud sobre o humor, de 1928 (escrito, portanto, mais de vinte anos após seu trabalho sobre Os chistes e sua relação com o inconsciente [1905]), possui um interesse mais geral por nuançar a caracterização do superego, o qual aparecia, na maior parte dos seus escritos, como um senhor duro e punitivo a vigiar implacavelmente os movimentos do ego.

Galhofa e melancolia

Em poucos documentos de cultura a junção tensa entre humorismo e pessimismo foi tão persistentemente patenteada quanto na fase pós-romântica do nosso Machado de Assis, inaugurada com a famosíssima mistura entre “a pena da galhofa” e “a tinta da melancolia” nas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1971 [1880]). Em magníficas páginas que dedicou à “prosa impressionista” de Machado de Assis na sua Breve História da Literatura Brasileira (1977: 150), José Guilherme Merquior mostrou como a intensidade desse ambíguo entrelaçamento entre a ironia humorística e o pessimismo metafísico foi obscurecida nas interpretações do opus machadianum avançadas tanto por seus coetâneos (e.g. José Veríssimo) quanto pela geração posterior de leitores banhados no entusiasmo modernista. Os primeiros teriam respeitosamente trivializado a aspereza e o poder corrosivo do pessimismo cosmológico de Machado ao tomá-lo como uma espécie de ornamento intelectual de superfície, colocado a serviço do desiderato mais importante que era a elegância escrupulosa da sua escrita. A correção dessa perspectiva ficaria a cargo de críticos literários da geração seguinte, embebidos do “ânimo eufórico, futurista, do modernismo de combate” (Merquior, 1977: 186) que contrastava desconfortavelmente com a ironia amarga legada pelo consagrado prosador – Mário de Andrade não disfarçava sua antipatia, e Manuel Bandeira chamou-o de “monstro”. Foi precisamente essa estranheza ou mesmo choque entre os ânimos literários de um e dos outros que proveio a intérpretes como Augusto Meyer (1958), por exemplo, a sensibilidade necessária para intuir a autenticidade, a profundidade e o alcance do sentimento trágico da vida na obra de Machado.

Se tal redescoberta representou, por um lado, um ganho interpretativo frente às leituras anteriores que ignoravam o fato de que suas “rabugens de pessimismo” eram algo mais do que um exercício desapegado de estilo, esses críticos, por seu turno, teriam forçado demais a mão ao fazer do humor machadiano uma fachada epidérmica que mal escondia, na expressão de Afrânio Coutinho, um “ódio radical da vida e dos homens” (Coutinho, 1959: 95), ódio cujas raízes poderiam ser supostamente explicadas pelo recurso aos traços mais vultosos da sua biografia, como suas “moléstias” físicas e psicológicas (e.g. epilepsia) ou um alegado “ressentimento” remontável às origens sociais humildes do neto de escravos.

Ora, nem tanto à comédia, nem tanto à tragédia. Ou, melhor ainda, um generoso bocado a ambas. Segundo Merquior (1977: 186), além de reivindicar a primazia de especulações psicobiográficas sobre o terreno empírico mais seguro da obra literária, aquele tipo de leitura dissolvia o balanço dialético entre humorismo e pessimismo na prosa machadiana ao menosprezar como seu uso livre da ironia cômica modulava a intuição existencial da tragédia, pintando-a sob o aspecto do grotesco. Em passagem com sabor tipicamente hegeliano, o crítico literário brasileiro assevera que a galhofa fantasista[i] de Machado não “nega”, mas conserva e “supera” o que o próprio escritor havia chamado, no prólogo à quarta edição do seu livro, de “um sentimento amargo e áspero” (Assis, 1971: 512) – orientação espiritual em que ele admitidamente destoava dos modelos inspiradores de sua prosa viajante e digressiva (Lawrence Sterne, Xavier de Maistre, Almeida Garret). Se o humorismo machadiano possui um efeito de contrabalanço em relação à sua visão trágica da vida, a caracterização desse equilíbrio em termos de uma “transcendência” (Aufhebung) hegeliana deixa entrever, ao mesmo tempo, que o “momento” pessimista de fato precede o recurso ao humor, o qual pode muito bem representar, aqui, um estratagema para a diluição ou neutralização do pathos grave da tragédia. Embora seja temerário projetar essas coisas (digo, “cousas”) na dinâmica psíquica do próprio Machado, postulando que ele defendeu-se do próprio pessimismo fazendo uso escudado da ironia, o fato é que esse próprio percurso está dramatizado na que é, talvez, a passagem mais filosófica de toda a sua obra: o delírio de Brás Cubas.

Um hipopótamo leva Brás à “origem dos séculos”, onde o narrador encontra o imenso vulto feminino da Natureza ou Pandora, cuja gigantesca face mostrava-se sepulcralmente indiferente. Lembrando ao pobre mortal que “a voluptuosidade do nada” o esperava inapelavelmente, e permanecendo impassível diante de sua súplica por mais alguns anos, ela o leva subsequentemente para o alto de uma montanha onde ele pode vislumbrar a trajetória do mundo e do humano:
“Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (...) Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que se passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Ai vinha a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão” (1971: 522-523).

Finalmente:

...ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.

- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, - talvez monótona – mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me (idem).

Primeiro, o berro angustiado; depois, um estalo risonho que anuncia uma mudança de gestalt, imbuída do sentimento de que, vista do alto qua espetáculo, toda aquela calamidade parece cômica. A passagem de protagonista envolvido a espectador indiferente do destino humano representa alegoricamente a transmutação filosófica do trágico em absurdo, uma espécie de forma-chave que engloba uma série de variações. Poder-se-ia mencionar, por exemplo, a passagem do metafísico ao prosaico, um tipo de humor em que Woody Allen se tornou especialista:

E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, não há dúvida de que paguei demais por aquele carpete novo.

Não apenas Deus não existe, como tente encontrar um encanador num fim de semana.

Fui reprovado no exame de Metafísica. O professor me acusou de estar olhando para a alma do rapaz sentado ao meu lado.

Espinafrando Afrânio

Voltemos a Machado – ou melhor, aos seus intérpretes, sem temores de cair no deplorável gênero de crítica literária da crítica literária. O título da presente seção tem uma razão de ser (além, é claro, da tentativa de impressionar Arnaldo Antunes): a transmutação machadiana do trágico em grotesco foi bem notada por Sérgio Buarque (1944) em um pequeno ensaio que fustigava a interpretação hiperpascaliana que Afrânio Coutinho (1959) oferecera da filosofia corporificada na obra do Bruxo do Cosme Velho. Malgrado reconhecesse en passant que a influência do agoniado pensador francês sobre Machado, de resto assinalada pelo próprio em uma famosa carta a Joaquim Nabuco, era certamente temperada por outras paixões de escriba, como o Eclesiastes, Montaigne e Schopenhauer, Coutinho forçou tanto a mão nos paralelismos com Pascal que mesmo as demais referências machadianas por ele citadas terminaram exageradamente amoldadas a essa influência-mestra.

Com efeito, um leitor que desconhecesse a obra de Machado de Assis, ao ler as considerações de Coutinho acerca de sua “formação filosófica” e “atitude espiritual” (1959: 59-96), dificilmente sairia dali com a impressão de que os textos do escritor carioca, sem deixarem de ser de densa problematização filosófica (psicológica, sociológica etc.), podem ser extraordinariamente divertidos – e sabemos nós o que Pascal pensava da diversão. Sobre o nexo Pascal-Machado de Assis, afirma Sérgio Buarque de Holanda:
Um estudo dos dois autores pode levar a descobrir sob semelhanças superficiais e epidérmicas a diferença profunda, vital, que na realidade os separa. Para por em relevo essa diferença seria o bastante, talvez, assinalar que Machado não era uma natureza religiosa (1944: 48).
Fazendo justiça a Afrânio Coutinho, devemos lembrar que o grande crítico literário escreveu um parágrafo em que reconheceu, de passagem, a radicalidade da distinção e colocou rapidamente em questionamento sua própria tese fundamental quanto à influência maciça de Pascal sobre Machado:
É o caso de se perguntar mesmo, se houve essa influência tão grande de Pascal sobre ele, por que teria permanecido insensível ao estupendo elan religioso que se desprende das Pensées...? (...) De feito, a inspiração cristã, a intenção apologética, o sentimento religioso das Pensées, não o tocaram, o que é realmente espantoso (1959: 93).
O espanto de Coutinho deixa transparecer indiretamente, além (talvez) das suas próprias inclinações espirituais, a dimensão excessiva a que ele levou a aproximação entre os dois autores. A quase-absolutização da influência de Pascal sobre a Weltanschauung machadiana tem seu paralelo na tese insistentemente martelada de que o escritor carioca teria um profundo “ódio à vida”, expressão que sacrifica precisamente o modo como o seu recurso ao humor irônico, de caráter radical e não simplesmente epidérmico, transformava intimamente as feições de seu pessimismo. Como diz o pai de Chico em seu comentário ao livro de Coutinho:
Em cinco páginas (162 a 167) aparecem seis vezes repetidas as palavras sinistras: ‘ódio à vida’. Ainda aqui há pelo menos uma simplificação excessiva e traidora, que o exame da obra de Machado não autoriza a endossar. No simples ódio há uma ausência de complexidade e de nuances, uma limpidez, que dificilmente poderia explicar qualquer reação de Machado diante da vida (1945: 49).
Se a atitude espiritual que salta das páginas do Machado pós-romântico não chega a estar embebida da mesma leveza e serenidade que dão sabor aos Ensaios de Montaigne, de quem Machado (como o próprio Pascal) era frequentador assíduo, Miguel Reale tem razão em dizer que ele “compartilhou do sorriso compreensivo e profundamente humano com que o analista dos Essais envolveu os homens e as coisas” (1982: 10) – à maneira das figuras paternas do superego que recorrem ao humor para mitigar as angústias infantis do ego. A leitora interessada em perseguir mais a fundo a investigação sobre as fontes filosóficas da literatura de Machado de Assis fará bem em ler o volume A filosofia na obra de Machado de Assis (1982), em que Reale oferece, além de uma primorosa introdução, uma antologia de passagens machadianas para os meditabundos sobre cousas metafísicas.

Conclusão

Esta breve visita à obra de Machado, guiada pelas mãos bem informadas de finos intérpretes literários brasileiros (é triste pensar que todos eles são menos lidos do que Harold Bloom), não teve a pretensão de oferecer qualquer coisa nova em termos da exegese de temas filosóficos no seu trabalho, mas simplesmente aproveitá-la como uma fonte riquíssima de ensinamentos sobre as atitudes cômica, trágica e tragicômica diante do absurdo da vida. Sua aproximação com o Demócrito descrito na epígrafe de Montaigne[ii] talvez sirva ao menos para colocar na pauta desse texto o valor do humor como terapia da alma para aqueles impregnados de perplexidade face à sua (nossa) condição. Se “filosofar é aprender a morrer”, como disse Platão[iii] no Fédon pela boca de Sócrates, pode-se concluir, deixando implícita a segunda premissa do argumento, que filosofar também envolve aprender a rir, sobretudo de si próprio.

Notas

[i] Com efeito, o conceito que Merquior julga mais adequado para classificar o gênero literário a que pertence Memórias Póstumas de Brás Cubas é o do “cômico-fantástico”, estilo de literatura previamente esposado por uma galeria ilustre de autores, situados em um arco que vai desde o satirista Luciano de Samosata no século II até Leopardi no século de novecentos, cuja influência decisiva sobre Machado foi recuperada por Otto Maria Carpeaux (1999:477-480). Além da combinação entre seriedade e gracejo, manifesta sobretudo no trato humorístico das questões mais graves da existência humana (o sentido da vida, a relação com a morte etc.), a literatura cômico-fantástica também apresenta pelo menos outros dois caracteres mais distintivos: a) a suspensão de qualquer neutralidade ou distância moral do narrador em relação aos personagens por ele retratados, suspensão que, em Machado, toma a forma sobretudo do desvelo das motivações mesquinhas que invariavelmente subjazem aos atos mais nobres ou, pelo menos, inocentes dos seres humanos; b) a oscilação livre entre o veraz e o onírico ou fantasmático, com a presença desse último se casando a uma predileção por experiências psicológicas aberrantes, como o famoso delírio de Brás Cubas (Merquior, 1977: 167).

[ii] A exiguidade do espaço impede qualquer esforço de fornecimento das mediações e contextualizações necessárias em termos de história das ideias. Embora o próprio Machado jamais tenha mencionado o filósofo risonho de Abdera, o escritor brasileiro provavelmente banhou-se de motivos do materialismo democrítico através de sua profunda intimidade literária com o enciclopedista francês Diderot, de quem Machado gostava que se enroscava (Gianetti, 2010: 93).

[iii] Platão, por um acaso, era um tantinho crítico em relação à filosofia de Demócrito, a julgar pelo relato histórico de que ele teria expressado o intuito de mandar queimar todas as obras do atomista que pudesse reunir, intenção da qual acabou sendo dissuadido por dois interlocutores que o convenceram da inutilidade do gesto incendiário (Brunschwig, 2001: 259; ver também o já citado Gianetti).


Referências

Bergson, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
Brunschwig, Jacques. Demócrito. In: Huisman, Denis (Org.). Dicionário de filósofos. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Carpeaux, Otto Maria. Ensaios reunidos. Vol.1. Rio de Janeiro, Topbooks/UniverCidade, 1999.
Coutinho, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.
Gianetti, Eduardo. A ilusão da alma: biografia de uma ideia fixa. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
Holanda, Sérgio Buarque de. Cobra de vidro. São Paulo, Martins, 1944.
Merquior, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
Meyer, Augusto. Machado de Assis: 1935-1958. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1958.
Montaigne, Michel Eyquem de. Ensaios. Vol.1. Brasília, UnB, 1987.
Reale, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis & Antologia filosófica de Machado de Assis. 1982.



terça-feira, 18 de maio de 2010

Modernismo Brasileiro e Ciências Sociais



Fernando da Mota Lima

Para César e Brenno, por tudo que só a amizade convivida traduz.

Como há ainda quem confunda o modernismo brasileiro com um movimento restrito ao campo das artes e da literatura, talvez convenha começar este artigo ressaltando seu caráter de movimento cultural muito mais amplo. Antes de tudo, por ser esse o modo adequado de fazer justiça à sua real amplitude; em seguida, porque meu propósito, já explícito no título deste artigo, é descrever algumas das suas conexões mais fortes com o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido frisa num dos seus ensaios mais citados, “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, que a literatura ocupou posição central no desenvolvimento da nossa vida espiritual. À diferença de outros países, onde a filosofia e mesmo as ciências sociais desempenharam papel similar, aqui a literatura incorporou à sua expressão propriamente estética um caráter de função socialmente interessada à margem da qual seria impossível compreender o sentido abrangente e sociologicamente relevante da obra de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre... Suponho que duas razões óbvias desse fenômeno radicam na ausência de uma sólida tradição universitária e no consequente desenvolvimento tardio das ciências sociais. Privado de uma tradição rica e intelectualmente diferenciada, o escritor brasileiro sente-se investido de uma missão socialmente elástica inexistente nas culturas cujas instituições e processos de divisão do trabalho intelectual já estão consolidados. Este é um fato facilmente aferível na obra dos autores acima citados, assim como em muitos dos seus contemporâneos.


segunda-feira, 23 de junho de 2008

O AMOR DURA ONZE CONTOS DE RÉIS: Breves notas sobre um certo sestro humorístico em Machado de Assis



Certa feita confessou o crítico Brito Broca que Machado de Assis “não exerceu nenhuma influência na minha formação literária.” E prosseguia no mesmo registro confessional: “Devo dizer que a minha primeira ‘amizade literária’ foi José de Alencar. Acho Alencar um amigo muito mais indicado para a adolescência do que Machado de Assis. [...] ... a primeira leitura de um livro de contos de Machado de Assis, quase na mesma época, não me causou impressão muito profunda. [...] ... eu procurava no conto, acima de tudo, a anedota, e os de Machado de Assis, naquele livro, cheio de intenções, cuja sutileza muitas vezes me escapava, possuíam um substrato anedótico bem pobre.” [1]

Certamente mais de um leitor de Machado fez idêntico percurso. É o meu caso. Adolescente, meu grande ídolo também era Alencar. Devorei, um atrás do outro, O Guarani, O Sertanejo, O Gaúcho... Devo dizer que era uma época em que também devorava Júlio Verne e Conan Doyle! Compreende-se. Em todos esses livros, por mais distantes em qualquer sentido que estejam Peri e Sherlock Holmes, a anedota ─ no sentido de trama com viradas espetaculares ─ é um elemento essencial, aquele que mais atrai um leitor juvenil. Tendo ouvido dizer que Machado de Assis era o maior escritor brasileiro, e que Dom Casmurro era o melhor romance escrito no Brasil, imaginei que as aventuras de Bentinho e Capitu seriam ainda mais emocionantes do que as de Ceci e Peri. A decepção foi enorme! A história me pareceu chocha e os personagens, aguados. Parei a poucas páginas e devolvi o livro à estante. Fui tratar de ler Agatha Christie. Só muitos anos depois retomei-o. E quando comecei a ler, foi uma iluminação!

Pequena pausa. Como nossa memória é fabuladora, a experiência que relato pode não ter acontecido no momento em que penso que aconteceu; pode ser uma invenção retrospectiva. Mas a verdade é que tenho uma lembrança nítida de que, já na primeira frase do primeiro capítulo de Dom Casmurro, deparei-me com uma formulação que reteve minha atenção por um efeito estético que produziu em mim. Transcrevo a frase:

“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.”

Notem bem o final da frase: de vista e de chapéu! Chamou-me a atenção isso, que não sei bem como nomear: uma quebra na seqüência ─ na regência da frase, se posso assim dizer ─ mediante a intromissão de um termo que não se encaixa! Conhecer alguém de vista? Certo. Mas conhecer de chapéu? Nunca tinha lido ou escutado falar. Obviamente sei e qualquer um sabe o que significa: que o narrador e o rapaz, quando se cruzavam, cumprimentavam-se tirando o chapéu um ao outro. E nada mais do que isso, pois só se conheciam de vista. Observem, entretanto, a economia, mas também a graça, com que Machado descreve esse cumprimento, apenas acrescentando um “de chapéu” a um “conhecia de vista”. O “de chapéu”, que a princípio não se encaixa ─ e justamente porque não se encaixa! ─, chama a atenção e, pelo inesperado, produz o efeito estético a que aludi e sobre o qual falarei adiante. Se, ainda outra vez, não estou fabulando a posteriori, remonta a esse episódio a minha descoberta do que significa ser escritor no sentido forte da palavra: não apenas alguém que escreve, mas escreve esteticamente ─ ou seja, produzindo no leitor um dado efeito que vai além da simples comunicação objetiva, tornado possível pelas possibilidades da língua.

A prova mais evidente disso consiste na intraduzibilidade que no fundo existe na poesia ─ onde o escrever estético marca praticamente todas as palavras e o seu arranjo no texto. Tal prova pode ser aplicada ao trecho machadiano. Para demonstração, consultem-se, por exemplo, duas traduções do seu romance em francês. Na primeira, de 1956, o trecho “... que eu conheço de vista e de chapéu” ficou assim: “... que je connaissais pour l´avoir déjà vu et salué” (“... que eu conhecia por já tê-lo visto e saudado”) [2] ; na segunda, de 1983, o resultado foi esse: “... que je connais de vue et qui ôte son chapeau quand il me croise” (“... que eu conheço de vista e que tira seu chapéu quando cruza comigo”) [3] . Como se vê, há nas duas traduções algo que se perde: a parte do estilista, do escritor propriamente dito. Ora, em Machado esse efeito, colocado logo na abertura de sua obra-prima, longe está de ser um caso isolado. Chega mesmo a ser uma de suas imagens de marca mais cativantes. Retomando o que disse antes, ela consistiria numa quebra na seqüência da frase, mediante a intromissão de um elemento estranho à sua regência. Trata-se de um sestro bem machadiano. O mais famoso deles é da lavra de Brás Cubas: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”... Quem não o conhece? Quem, já tendo lido as Memórias Póstumas, não lhe dedicou um sorriso? ─ eventualmente (e é o meu caso), um riso bem sonoro? Este, o riso, vem a ser o efeito estético a que aludi.

Aliás, mesmo sendo verdade que é a partir de Brás Cubas que o humor machadiano escancara as portas, vale notar que o a intromissão de um elemento inesperado na escrita ─ mesmo sem a estrutura do sestro em sentido estrito, conforme o defini ─ já tinha livre curso desde muito antes. Algo ao acaso, colhi alguns exemplos. Em Ressurreição, seu romance de estréia (1872), o coração de uma Raquel, depois de uma decepção amorosa, “não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro”. No romance seguinte, A Mão e a Luva (1874), um certo Estêvão, cujo amor por Guiomar passa por altos e baixos o tempo todo, padecia uma espécie de “tosse moral, que aplacava e reaparecia”; desse mesmo Estêvão, mais para a frente, Machado dirá que era “tão marechal nas coisas mínimas, como recruta nas coisas máximas”. Em Helena, que vem a seguir (1876), o elemento humorístico é bem escasso, mesmo assim o olho irônico de Machado não deixará de observar que o coronel Macedo, um dos personagens, “tinha a particularidade de não ser coronel. Era major”. E em Iaiá Garcia (1878), o romance imediatamente anterior à ruptura espetacular de 1881 ─ quando se inicia a segunda fase de Machado com a publicação de Brás Cubas ─, um Jorge, atordoado pela descoberta de que Iaiá Garcia o ama (obviamente, como sói acontecer nas tramas românticas, trata-se de um amor impossível!), resolveu nunca mais retornar à casa da moça: “resolução varonil ─ comenta Machado ─ que durou quarenta e oito horas”. Outros exemplos poderiam ser colhidos.

Essa intromissão do inesperado e seu efeito cômico já foi notada há muito tempo. Em 1889, em desagravo a Machado que havia sido ferozmente criticado por Sílvio Romero, o conselheiro Lafaiete Rodrigues Pereira, sob o pseudônimo de Labieno, publicou o seu Vindiciae contra o crítico sergipano. Ali, o desagravante refere-se à “força de expressão” da frase machadiana “pela aliança insólita ou pelo contraste das palavras”. [4] Alcides Maya, contemporâneo e amigo de Machado, escreveu o primeiro trabalho dedicado especificamente a examinar-lhe o humor, no qual refere-se ao “imprevisto hilariante das tiradas” [5]. Desconheço se o veio teve outros exploradores. O fato é que, escrevendo no final dos anos 30 do século que passou, Astrojildo Pereira, como se nada de relevante desde então tivesse sido dito sobre o humor machadiano, retoma o velho texto do conselheiro Lafaiete para assinalar que o defensor de Machado “já notava o feliz efeito que essa conjunção de contrastes produzia na estrutura da sua frase” [6]. Como disse, desconheço desenvolvimentos ulteriores sobre a especificidade do humor machadiano ─ notadamente sobre aquilo que chamei simplesmente de sestro, assinalado pela intromissão de um elemento estranho na regência da frase.

Entendam-me. Quando falo na ausência de desenvolvimentos não quero dizer que o humor machadiano não tenha sido notado por tantos quantos tenham se acercado de sua obra. Ao contrário, essa talvez seja a vertente mais saliente do seu texto e ninguém deixou de referi-la. Ao falar de ausências, refiro-me a abordagens que enfoquem o seu humor como matéria de reflexão própria, procurando circunscrevê-lo e analisá-lo na sua especificidade. O sestro, por exemplo, seria uma figura de linguagem? Qual? Afinal, ele difere dos eufemismos igualmente cômicos que se encontram com tanta abundância no seu texto, mesmo quando se trata de matéria mórbida como a morte ─ entre os quais destacaria, nem que seja pelo prazer de voltar a abrir o Dom Casmurro, aquele em que um Bentinho sexagenário lamenta o fato de que os amigos que lhe restam são de data recente, informando que “todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos”...

Nenhum leitor interessado passa por um trecho com tal expressividade sem fazer uma pausa. E eles fluem no texto machadiano aos borbotões, com uma naturalidade e uma (aparente) facilidade desconcertante. O humor de Machado é assim um dado essencial ao seu texto, e as análises de sua obra sempre levam em consideração essa particularidade. Veja-se, por exemplo, o debate que vem de longe a respeito do famoso absenteísmo político de Machado. É uma leitura que hoje não mais se sustenta, depois dos trabalhos de autores como Brito Broca e Astrojildo Pereira, que na verdade pertencem à primeira metade do século passado, e, mais recentemente, das pesquisas minudentes e eruditas de acadêmicos como Roberto Schwarz e John Gledson [7]. Tanto nos primeiros quanto nos segundos o humor machadiano é notado e integrado à releitura política que fazem de sua obra. Astrojildo Pereira, por exemplo, fazendo referência à ruptura operada por Brás Cubas, lembra que as tiradas humorísticas de Machado já vinham de antes, e que a partir do livro de 1881 ele apenas abriu as comportas para dar livre vazão aos seus “pendores galhofeiros” [8] , ao empreender uma crítica impiedosa das nossas práticas políticas, ainda que disfarçando-a com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, como confessa o próprio memorialista defunto. Roberto Schwarz, por sua vez, vê no “ambiente problemático-apalhaçado do livro” [9] a forma estilística ideal que Machado encontrou para repercutir no seu texto a “empulhação” geral de uma sociedade que professava na sala de visitas os ideais do Iluminismo e praticava na cozinha a realidade da escravidão.

Não obstante, o humor machadiano é um dado que se constata e cujas funções se analisam, mas que não se penetra em sua especificidade. Mais recentemente, Sergio Paulo Rouanet brindou os leitores de Machado com uma fina dissecação do estilo do Bruxo, onde o riso que ele provoca, mais uma vez, é uma constatação ─ aliás, já no título do trabalho [10]. Em determinado momento Rouanet, ele também reportando-se ao inesgotável Brás Cubas e referindo-se ao fato de que se trata de um livro escrito por um sujeito que já morreu, observa o desleixo com que o narrador trata a situação inusitada: “Evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo”; e chama a atenção para o fato de que o “efeito cômico” dessa passagem ─ como do livro de um modo geral ─ “vem da desproporção entre a enormidade do fato e a sobriedade da descrição.” [11] Idêntico efeito ocorre na passagem em que o herói fantasia a invenção de “um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.” Logo depois, porém, morre de uma complicação pulmonar rasteira. E Rouanet: “A invenção não era sublime, mas burlesca, simples veleidade de saltimbanco, uma idéia tão cômica que acabou matando seu inventor com uma morte ridícula, indigna de um déspota ─ cuja alta hierarquia exige ou o veneno ou o punhal ─, mas apropriada para um mero palhaço ─ a pneumonia causada por uma corrente de ar.” [12]

Retenhamos esse sentido da “desproporção” causadora do riso. Ele me parece ir na mesma direção que a quebra na frase que caracteriza o sestro. Nos dois casos, o inesperado é a pedra de toque. Haveria aí matéria para uma teoria do riso provocado pelo texto machadiano? Procurando uma resposta, dirigi-me ao livro clássico do filósofo Henri Bergson sobre o assunto [13]. Conhece-se a imagem inicial: um homem, correndo pela rua, tropeça e cai. Os transeuntes riem. Por quê? Antes de responder a pergunta, Bergson observa que se o homem tivesse ido ao chão porque sentiu vontade de sentar, ninguém acharia graça. “Acho eu” ─ diz ele. Assim, o riso decorreria do fato de que o homem caiu sem querer, porque não foi bastante hábil para evitar um tropeço. De onde sua resposta: o riso nada seria senão uma sanção social à desatenção do homem. Mas por que a sanção? Porque “a vida e a sociedade exigem de cada um de nós [...] certa atenção constantemente desperta, que vislumbre os contornos da situação presente, e também certa elasticidade de corpo e de espírito, que permitam adaptar-nos a ela.” Daí que “toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do corpo, será, pois, suspeita à sociedade, por constituir indício possível de uma atividade que adormece” [14].

É evidente a influência de Durkheim nessa curiosa teoria que funda a explicação para o riso numa presumida função social que ele exerce: corrigir a rigidez que conspira contra a elasticidade de que a sociedade precisa para não se esclerosar ─ analogamente à pena que, no crime, cumpre a função de renovar a consciência coletiva. Nos termos bergsonianos, precisos e sintéticos, a “rigidez é o cômico, e a correção dela é o riso”. Haveria muito o que dizer dessa teoria, a começar pelo seu discutível ponto de partida. Não é sempre, longe disso, que rimos de uma queda na rua. Rimos das quedas de Carlitos, sem dúvida, e mesmo quando uma criança que está dando os primeiros passos tropeça e tomba na areia fofa de uma praia... Mas não me lembro de já ter achado engraçado a queda de uma pessoa idosa numa via pública! É o que eu acho. O argumento é subjetivo, sei, mas não é mais do que o do próprio Bergson, que também diz: “Acho eu”.

Não obstante, e malgrado essa restrição, acho que a teoria bergsoniana, quanto transportada de situações do cotidiano para a linguagem, levando consigo essa mesma idéia de “queda”, pode servir para analisar o sestro machadiano. O filósofo francês se pergunta: “Existirá também esse tipo de rigidez na linguagem?” E responde: “Sim, sem dúvida, dado que há fórmulas feitas e frases estereotipadas. Um personagem que se exprima sempre nesse estilo será invariavelmente cômico.” Mais uma vez Bergson põe em curso o seu mote do “mecânico calcado no vivo” como definição de comicidade. Aqui, a hipótese bergsoniana se aplicaria sem tirar nem pôr, por exemplo, a José Dias, o patético agregado da casa de Bentinho em Dom Casmurro, cuja marca registrada são os superlativos com que infla de dignidade os pobres lugares comuns que distribui a três por dois [15]. Não tendo nada de seu, como acontece com os agregados, José Dias vive de favor na casa a mãe de Bentinho, prestando-lhe toda sorte de pequenos serviços. É especialista no discurso bajulatório, mas com certa classe e valendo-se de uma cultura de superfície que lhe permitia discorrer ao mesmo tempo sobre os “efeitos do calor e do frio, dos pólos e de Robespierre”, como diz o narrador. Numa dessas fórmulas machadianas impagáveis (“impagabilíssimas!”, diria o agregado), José Dias “sabia opinar obedecendo”. Há uma passagem em que Machado descreve a performance familiar de José Dias num dos serões da família de modo tão delicioso que não resisto à tentação de transcrevê-lo:

“Contava muita vez uma viagem que fizera à Europa [16] , e confessava que a não sermos nós, já teria voltado para lá; tinha amigos em Lisboa, mas a nossa família, dizia ele, abaixo de Deus, era tudo.
─ Abaixo ou acima? perguntou tio Cosme um dia.
─ Abaixo, repetiu José Dias cheio de veneração.
E minha mãe, que era religiosa, gostou de ver que ele punha Deus no devido lugar, e sorriu aprovando.”

Voltando à idéia de “queda”, ela agiria, em relação ao sestro, sob a forma de uma “quebra” em fórmulas feitas e frases estereotipadas, como quer Bergson. Ou seja: aplicando a imagem da queda na rua à linguagem, Bergson estatui o que chama de uma “regra geral”, a saber: “obteremos uma expressão cômica ao inserir uma idéia absurda num modelo consagrado de frase.” [17] Residiria aí a explicação da comicidade machadiana? Concordaria que sim, à condição, porém, de reduzir o significado do conceito de explicação. Na verdade creio que estamos aqui diante do simples desvelamento de um processo, não das razões pelas quais ele se dá; noutros termos, diante de um “como”, não de um “porquê” ─ no sentido explicativo do termo. Dito de uma maneira mais analítica, é como se descobríssemos o seguinte encadeamento: a inserção de uma idéia absurda num modelo consagrado de frase produz o riso. Isso é bem diferente de dizer que isso ocorre porque, ao sancionar fórmulas feitas e frases estereotipadas, o riso cumpre a função social de... De quê? Evitar o esclerosamento da literatura? Não faz nenhum sentido. Tanto mais que são coisas diferentes o riso de um personagem que, num texto, sanciona a xaropada do agregado José Dias, e o riso do leitor que ri da descrição da cena: no primeiro caso, o riso é efetivamente uma sanção; no segundo, definitivamente uma homenagem a quem a escreveu! Haveria muito o que dizer dessa distinção, mas...


* * *

“Aqui devia ser o meio do livro, mas a inexperiência fez-me ir atrás da pena, e chego quase ao final do papel com o melhor da narração por dizer.” (Dom Casmurro)


Muitos anos se passaram desde o meu encantamento com o efeito estético do sestro que abre o Dom Casmurro, ocasião em que começou a minha admiração por Machado. Talvez as coisas não tenham se passado exatamente assim, como já disse, mas a história assim fica melhor contada. Pois bem. Faz algum tempo, pus-me a reler o Senhora de José de Alencar. Para minha grande surpresa ─ e até uma pequena decepção ─, defrontei-me, no livro, com a expressão “um conhecimento de chapéu”...[18] Como se dizia antigamente, caspite! Talvez o que acreditei uma genial invenção nada mais fosse do que uma expressão vigente à época. Ou Alencar foi o seu inventor. Em qualquer dos casos, se tivesse contado a descoberta antes, o meu texto perderia o começo que lhe projetei. Fiz bem, leitor?

Notas

[1] Brito Broca, Machado de Assis e a Política – mais outros estudos, São Paulo / Brasília, Editora Polis / INL – Fundação Nacional Pró-Memória, 1983, pp. 209-210.
[2] Dom Casmurro, Éditions Albin Michel, 1956, tradução de Francis de Miomandre.
[3] Dom Casmurro, Éditions A. M. Métailié, 1983, tradução de Anne-Marie Quint.
[4] Extraído de Josué Montello, Os Inimigos de Machado de Assis, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1998, p. 343.
[5] Alcides Maya, Machado de Assis – Algumas notas sobre o “humour”, Rio de Janeiro, Editora Jacintho Silva, 1912, p. 81.
[6] Astrojildo Pereira, Machado de Assis – Ensaios e apontamentos avulsos, Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1991, p. 14.
[7] Para Brito Broca e Astrojildo Pereira, vejam-se os trabalhos já citados nas notas 1 e 6, respectivamente. Para Roberto Schwarz, vejam-se: Ao Vencedor as Batatas, São Paulo, Duas Cidades, 1977; e Um Mestre na Periferia do Capitalismo, São Paulo, Duas Cidades / Editora 34, 2000. Para John Gledson, Machado de Assis – Ficção e História, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986; e Machado de Assis – Impostura e Realismo, São Paulo, Companhia das Letras, 1991.
[8] Astrojildo Pereira, op. cit., p. 160.
[9] Roberto Schwarz, Um Mestre..., op. cit., p. 53.
[10] Sergio Paulo Rouanet, Riso e Melancolia, São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
[11] Idem, op. cit. p. 223.
[12] Idem, op. cit., pp. 220-221.
[13] Henri Bergson, O Riso – Ensaio sobre a significação do cômico, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980.
[14] Idem, pp. 18 e 19.
[15] Analisando esse seu caráter, dirá Roberto Schwarz: “note-se que o agregado leva o amor dos formalismos às últimas conseqüências, que é a descrença nas formas elas mesmas. Assim, ele salta de uma a outra conforme a sua conveniência e sem constrangimento, desobrigado de consistência, com desapreço vertiginoso pela dignidade que cultua, o que lhe proporciona uma espécie de liberdade de movimento diante dos seus senhores” (Duas Meninas, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 23
[16] Adiante, ele próprio confessará a Bentinho que a tal viagem nunca tinha acontecido...
[17] Henri Bergson, op. cit., p. 61.
[18] José de Alencar, Senhora, São Paulo, Editora Ática, 1992, p. 68.

Luciano Oliveira
Professor do Departamento de Ciências Sociais da UFPE
email: jlgo@hotlink.com.br