Fernando da Mota Lima
Para César e Brenno, por tudo que só a amizade convivida traduz.
Como há ainda quem confunda o modernismo brasileiro com um movimento restrito ao campo das artes e da literatura, talvez convenha começar este artigo ressaltando seu caráter de movimento cultural muito mais amplo. Antes de tudo, por ser esse o modo adequado de fazer justiça à sua real amplitude; em seguida, porque meu propósito, já explícito no título deste artigo, é descrever algumas das suas conexões mais fortes com o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido frisa num dos seus ensaios mais citados, “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, que a literatura ocupou posição central no desenvolvimento da nossa vida espiritual. À diferença de outros países, onde a filosofia e mesmo as ciências sociais desempenharam papel similar, aqui a literatura incorporou à sua expressão propriamente estética um caráter de função socialmente interessada à margem da qual seria impossível compreender o sentido abrangente e sociologicamente relevante da obra de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre... Suponho que duas razões óbvias desse fenômeno radicam na ausência de uma sólida tradição universitária e no consequente desenvolvimento tardio das ciências sociais. Privado de uma tradição rica e intelectualmente diferenciada, o escritor brasileiro sente-se investido de uma missão socialmente elástica inexistente nas culturas cujas instituições e processos de divisão do trabalho intelectual já estão consolidados. Este é um fato facilmente aferível na obra dos autores acima citados, assim como em muitos dos seus contemporâneos.
O ensaio de Antonio Candido acima referido contém ainda uma outra intuição que igualmente tomarei como ponto de apoio para muitas das considerações deste artigo. Aludo à intuição segundo a qual ele sugere que o conjunto da nossa vida espiritual é regido pela dialética entre localismo e cosmopolitismo. Variando os termos, até por melhor convirem a escritores como Mário e Oswald de Andrade, diria nacional versus universal, que no caso equivale à tradição intelectual europeia. A distinção parece-me exata para que melhor se compreenda a evolução do modernismo que logo nitidamente se diferenciará dos congêneres europeus nos quais de resto se inspirou.
Mesmo os estudiosos aderentes a uma perspectiva nacionalista do modernismo reconhecem que ele se formou sob o influxo das correntes vanguardistas de procedência europeia. Mário de Andrade, por exemplo, reconhece este fato no seu ensaio de síntese do movimento, “O Movimento Modernista”, no meu entender ainda insuperado não só como lúcida apreciação panorâmica do movimento, mas diria que sobretudo devido à intensidade dramática do texto que, nas suas páginas finais, reveste-se de inusitado tom de exame e exasperação moral. É nesse ponto que Mário procede a um impiedoso balanço ideológico do movimento, chegando mesmo às raias de uma injustificada apreciação autopunitiva.
Embora rebata no seu ensaio os críticos que acusam o modernismo de excessiva subordinação às modas e correntes estéticas europeias, Mário de Andrade não deixa de reconhecer o quanto os impulsos iniciais do movimento deviam à Europa, notadamente à França. Talvez sua crítica visasse indiretamente Gilberto Freyre, já que à altura da sua conferência de celebração de vinte anos do modernismo, cujo texto é o já citado “Movimento Modernista”, Freyre e seus discípulos, sobretudo José Lins do Rego, reivindicavam para o regionalismo nordestino um papel de pioneirismo nacionalista e de valorização da cultura brasileira opostos ao modernismo paulista, que erradamente caracterizavam como subserviente às modas culturais europeias.
Pondo à margem essas disputas polêmicas, não raro deformadoras do real sentido aferível na análise do processo cultural efetivo, os fato evidenciam que, a partir de 1924, o modernismo desloca sua rota em direção a um nítido nacionalismo programático. É a dialética do nacional e do universal mais uma vez operando no desenvolvimento da nossa vida espiritual, como assinalaria Antonio Candido. Pois, se de fato precisou beber nas fontes europeias para atualizar-se esteticamente, para produzir uma arte consentânea com a realidade urbano-industrial emergente sobretudo na capital paulista, logo ficaram também evidentes as especificidades artísticas e sociais observáveis entre os movimentos de vanguarda europeus e o brasileiro.
De certo modo, foi a própria presença no Brasil de um dos símbolos da poesia de vanguarda europeia que favoreceu o deslocamento do modernismo para a realidade brasileira. Aludo, noutras palavras, à presença de Blaise Cendrars no Brasil, sobretudo à viagem que fez às cidades históricas mineiras ciceroneado pelos modernistas de São Paulo. Essa viagem foi tão decisiva para a nacionalização do modernismo que seus próprios líderes passaram significativamente a designá-la como a viagem de descoberta do Brasil. Dela procedem não apenas a redescoberta do barroco mineiro, a composição de um poema seminal como Noturno de Belo Horizonte, de Mário de Andrade, mas também o contato fecundo dos paulistas com a nova geração de escritores mineiros. É daí que nasce a correspondência entre Mário e Drummond, documento valioso para que melhor se compreenda o amadurecimento da poesia do segundo, que em Mário encontrou um orientador qualificado e generoso, além de evidências do adensamento de uma consciência nacionalista na obra de Mário e na daqueles expostos à sua influência. Eis aí mais uma vez reposta a dialética do nacional e do universal. Trocando em miúdos, a presença viva e concreta do outro europeu, Blaise Cendrars, atua como rebatedor especular no qual os próprios intelectuais brasileiros melhor reconhecem sua diferença.
Importaria ressaltar, tendo em vista os propósitos deste artigo, que a inflexão nacionalista do modernismo não fica de modo algum restrita ao campo artístico e literário. Maior que a ambição explícita de criar uma arte nacional, o que Mário e os modernistas mais consequentes ambicionam é realizar um projeto de cultural nacional, pesquisar suas fontes e definir sua identidade, combater ostensivamente a influência europeia para reforçar um sentido de diferenciação particularista típico, aliás, de todos os movimentos de inspiração romântica. E aqui ressalta um outro dado significativo: a revalorização da nossa tradição romântica. Ela se traduz na ênfase sobre a particularidade ou diferenciação da cultura brasileira compreendida em sentido amplo: diferenciação artística, linguística, histórica, etnográfica etc.
Uma das expressões mais nítidas dessa valorização entusiasta do Brasil, da busca de suas raízes populares mais profundas, espelha-se nas duas viagens que Mário de Andrade empreendeu através do Nordeste e Norte do Brasil entre 1927 e 1929. É sintomático que ele as identifique como viagens etnográficas. De fato, elas representaram um outro capítulo, ainda mais amplo e rico, das suas explorações, da pesquisa, descoberta e interpretação da cultura brasileira e daquilo que muitos estudiosos, não apenas Mário, presumem ser a nossa identidade cultural. Muito da documentação que então coligiu foi assimilado à composição de Macunaíma, obra suprema do modernismo nacionalista.
A leitura atenta das matrizes sócio-antropológicas de Macunaíma demonstra isso que venho assinalando como sendo o caráter abrangente do modernismo. Se os escritos de Mário convencionalmente classificados como literários encerram tantos elementos de interesse para as ciências sociais, sua obra de interesse diretamente sociológico reforça o sentido que venho reiterando para a justa compreensão do movimento. Além de pioneiro na compreensão sócio-antropológica do folclore nacional, assim como no conjunto das nossas expressões culturais, Mário distinguiu-se como musicólogo, crítico de arte, agente modernizador do aparelho institucional da educação e da cultura brasileira.
O estudo dos periódicos produzidos pela história do modernismo, que infelizmente não caberia apreciar nos limites deste artigo, também representa outro dado significativo para a compreensão do caráter amplamente nacionalista do modernismo. Na história desses periódicos, assim como no rico processo de institucionalização da cultura nos anos 1930, que Antonio Candido apropriadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, ou sua conversão de movimento de desagregação em movimento triunfante, ou assimilado às estruturas de poder social, atuaram intelectuais cuja obra transbordou para o plano das ciências sociais. É o caso de Sérgio Buarque de Holanda, que se inicia prematuramente como crítico literário e co-editor de um dos periódicos mais importantes do movimento, a revista Estética, e acaba escrevendo uma das obras fundamentais de interpretação do Brasil. Daí orientou seus estudos de forma definitiva para a pesquisa histórica, da qual resultaram obras marcantes da historiografia brasileira. Outro que também orientou parcialmente sua obra para os estudos de sociologia e história foi Sérgio Milliet. Antes dele, um paulista da geração precedente, mas ostensivamente vinculado ao modernismo desde suas origens, escreveu um ensaio de interpretação histórico-sociológica também fundamental num gênero típico do processo de constituição das ciências sociais no Brasil: o ensaio de interpretação da nossa formação cultural e histórica. Refiro-me evidentemente a Paulo Prado e sua obra mais importante: Retrato do Brasil. Alias, acrescentaria assim de passagem que a crítica não deu ainda atenção devida aos vínculos observáveis entre esta obra e Macunaíma, de resto publicadas no mesmo ano, 1928.
Do processo de institucionalização cultural acima aludido brotaram a Universidade de São Paulo e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Um projeto ambicioso, infelizmente logo sufocado pelas forças políticas conservadoras, propiciou a mais renovadora experiência de democratização institucional da cultura, também em São Paulo. Refiro-me à instituição do Depto. de Cultura ideado e liderado por Mário de Andrade e Paulo Duarte. Para o seu sucesso contribuíram de forma decisiva vários dos modernistas provenientes dos anos 1920, como Sérgio Milliet, diretor da seção de pesquisa social, e Rubens Borba de Moraes, diretor da seção de biblioteconomia. A essas realizações poderíamos associar, em âmbito nacional, a instituição do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, baseado em projeto encomendado a Mário de Andrade, e o projeto da enciclopédia brasileira, também obra de Mário de Andrade.
Voltando ao exemplo da Universidade de São Paulo, acima indicado, seria sustentável afirmar que a solidez de sua eminência cultural e institucional deriva de duas fontes fundamentais: da lição dos professores franceses, formadores da geração fundadora da universidade, e do legado procedente do modernismo, notadamente aquele transmitido pela obra e a viva participação de dois nomes seminais: Mário de Andrade e Sérgio Milliet. O legado de Sérgio Buarque de Holanda é também notável, sobretudo na esfera da historiografia. Mas, como se sabe, sua atuação institucional mais decisiva ocorreu a partir dos anos 1950. Também o de Oswald de Andrade mereceria alguma menção, embora importe acentuar que foi muito limitado devido ao papel institucionalmente marginal que sempre desempenhou.
Importaria ainda acrescentar que Florestan Fernandes, expressão máxima da chamada escola de sociologia paulista, formou-se também sob os influxos do modernismo. Embora nitidamente se diferencie em termos de trajetória sociológica e formação de Antonio Candido, com quem consensualmente divide a honra de representar o legado intelectual mais elevado da USP, sofreu nítida influência de Mário de Andrade, sobretudo dos estudos deste referentes ao folclore e à etnografia.
Para que este artigo de síntese apressada não resulte demasiado omisso, importaria concluir relacionando em traços corridos o modernismo e o regionalismo nordestino que se concentra em Recife sob a poderosa liderança de Gilberto Freyre. Já acima brevemente aludi à atmosfera polêmica que cerca a relação entre ambos. A própria natureza polêmica que os cerca, assim como as relações de competição e luta por hegemonia cultural observável entre Mário de Andrade e Gilberto Freyre, tem de ordinário embaçado uma compreensão mais lúcida e isenta desses movimentos. Um dos primeiros a propor a questão em termos mais adequados foi José Aderaldo Castelo numa obra há muito esgotada: José Lins do Rego – Modernismo e Regionalismo. Mais recentemente, assentada a poeira de rivalidades antigas devido ao abrandamento das tensões ideológicas mais intransigentes, além da própria morte de Gilberto Freyre, pode-se felizmente observar a publicação de artigos e livros mais isentos na consideração do problema. Seria o caso de mencionar dois artigos assinados por Gilda de Melo e Souza e Antonio Dimas, além do livro de Valéria da Costa e Silva: A Modernidade nos Trópicos. Este, bem mais recente, constitui contribuição importante para o estudo da questão, embora reponha em tom por vezes francamente passional o caráter polêmico dessa desavença regional simbolizada no parentesco turbulento que divide e aproxima paulistas e pernambucanos. Como não sou daqui, deixo que se entendam, ou desentendam.
Nenhum desses estudiosos, diria ainda nenhuma pessoa hoje devidamente formada e bem informada, ignora a importância fundamental desses dois movimentos na história da cultural brasileira do século XX. Ambos, dentro de suas especificidades evidentes, concorreram como fontes seminais para a revalorização necessária da nossa cultura; ambos se inscrevem nesse longo e ainda atual processo de nacionalização da cultura brasileira, ou valorização nacional da nossa cultura em face da nossa ainda insuperada herança colonial crivada por relações de dependência e, internamente, relações de atraso, padrões iníquos de desigualdade social e privilégios também inconcebíveis numa sociedade legitimamente moderna. É esta, em síntese, nossa herança maldita, como por aí dizem os próprios que dela se beneficiam. Enquanto não superarmos esses problemas, que vão muito além dos generosos sentimentos e interpretações nacionalistas dos apóstolos da nossa identidade, continuarem procurando o homem brasileiro, a mulher brasileira e a identidade de ambos no lugar errado.
3 comentários:
Fernando aceitou um convite de minha turma de Sociologia da Modernidade para falar, há duas semanas, sobre "modernismo e ciências sociais no Brasil". Falou-nos durante uma hora e meia, aproximadamente, e teve ainda fôlego para conversar conosco durante uns quarenta minutos. Multiplica agora a sua generosidade deixando-nos e aos leitores deste Cazzo este excelente texto. Obrigado, Fernando. Jonatas
Don Fernando, agradeço a generosidade da dedicatória. Infelizmente a dinâmica intelectual brasileira não gerou suportes institucionais satisfatórios para dar conta de uma estudo de fôlego sobre a relação entre modernismo e ciências sociais. Não há mais - ou há muito pouco - diálogo entre sociologia e literatura. Se os ensaístas e escritores da época transitavam, com certa dose de ecletismo, entre terrenos tão variados, o mesmo não se pode dizer dos especialistas de hoje. Daí o desafio que é reconstituir o campo discursivo tão híbrido do ensaísmo brasileiro. Um abraço saudoso!
Belo texto.
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