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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Da Vida ao Tempo: Simmel e a construção da subjetividade no mundo moderno



Jonatas Ferreira


Introdução

O fato de Simmel ter se mantido em evidência durante a primeira metade do século XX deve-se em grande medida ao interesse que sua obra despertou na sociologia americana, numa época em que os padrões consagrados de produção científica se opunham ao seu brilhante ‘ensaismo’. O seguinte comentário parece representar o tipo de acolhida que sua obra recebeu durante este período: “Simmel tem a mais refinada inteligência entre todos os seus contemporâneos. Mas, fora disso, é totalmente vazio e sem objetivos, desejando tudo exceto a verdade. Ele é um compilador de pontos de vista com os quais rodeia a verdade, sem pretender ou estar apto a possuí-la.” Não obstante esta aparente idiossincrasia de sua personalidade intelectual ou, como o texto sugere, apesar de sua impotência em “possuir” a verdade, a obra Simmel se firmou como referência sociológica das mais importantes. Sua popularização deve sem dúvida ao interesse que a Escola de Chicago demonstrou em alguns de seus traços distintivos, entre os quais eu destacaria uma certa sensibilidade cosmopolita, um enfoque predominantemente microsociológico e uma interpretação da cultura que privilegia o jogo dinâmico entre estruturas simbólicas identitárias e forças de alteridade. Por este motivo, não parece fortuito que ensaios como ‘O estrangeiro’, ‘O aventureiro’ e ‘Conflito’ sejam até hoje presenças obrigatórias nas coletâneas da obra de Simmel publicadas nos Estados Unidos, como pode atestar o Selected Writings editado em 1971 por Donald Levine.

Embora influente e de importância evidente, tal recepção da obra de Simmel deu-se às custas de uma apreciação mais ampla de aspectos fundamentais de seu universo temático. É curioso que um livro tão importante quanto Lebensanschauung. Vier Metaphysische Kapitel, de 1918, reunindo os últimos ensaios produzidos por Simmel, ainda não tenha sido traduzido para o inglês, francês ou português – à exceção do ensaio ‘Caráter Transcendental da vida’, traduzido na década de 70 para o inglês. A importância teórica destes quatro ensaios, todavia, pode ser estimada se tivermos em mente o meio acadêmico no qual eles emergiram e do qual contrastam de forma tão categórica. Pois se é bem verdade que a tradição neo-kantiana, com a qual Simmel convive intimamente, sonha com um projeto sociológico capaz de se estruturar a partir de uma concepção atemporal de subjetividade, o Lebensanschauung aponta para o reconhecimento do tempo como fator estruturante do ser no mundo e da possibilidade do saber. Se o conhecimento científico não for um “esquecimento” desta verdade ontológica fundamental, de forma alguma ele deverá buscar a “posse” de verdades universais e atemporais como critério e base de validade. Anos mais tarde, Heidegger afirmaria que todo saber autêntico deve abrir-se à indeterminação ontológica do ser-no-mundo – e essa indeterminação surge como conseqüência inevitável do reconhecimento de nossa temporalidade, ou seja, como constatação de nossa finitude, ou como diria Heidegger, de nosso ser-para-a-morte. Se aceitamos, todavia, o tempo como estrutura ontológica fundamental, e consequentemente como determinante da possibilidade do saber, todo o projeto neo-kantiano da escola de Baden (leia-se Windelband, Rickert e o Weber dos ensaios metodológicos), com o qual Simmel tem um contato tão íntimo, entra em colapso. Esta perspectiva induziu Rickert a afirmar de forma infatigável durante sua carreira que aquilo que capacita a verdade científica a ser um valor acima de todos os outros valores é precisamente que a ciência se nega a ser “parte da vida em geral”. Procedendo deste modo, a ciência escaparia à sina dos seres orgânicos que germinam, desenvolvem-se e morrem. O conhecimento para Rickert deve se proclamar transcendental em relação à vida e ao tempo – e nesta afirmação mesma nós constatamos a importância de se pensar a pauta fenomenológica (mais especificamente, seus pressupostos existenciais e temporais) que põe tal projeto sociológico de pé.

[Continuando a publicação de artigos velhos aqui no Cazzo, aí vai mais este. Clique aqui para obter o artigo em PDF tal como foi publicado na RBCS]

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Algumas reflexões sobre vitalismo e cia



Certas tarefas pedagógicas parecem mesmo difíceis. Entender a influência do vitalismo no pensamento ocidental talvez seja uma delas, tanto mais se aceitamos como verdadeiro aquilo que Foucault e Arendt formulam a partir de perspectivas distintas: a administração da vida se tornou o negócio em torno do qual a política moderna se estruturou. Tomando proposição como verdadeira, difícil não encontrarmos evidência de depoimentos biopolíticos no conjunto da filosofia e da ciência modernas. Afinal, o que significaria, por exemplo, o debate entre vitalistas e mecanicistas nas ciências da vida, senão a tentativa de encontrar um princípio de organização da vida biológica em sua totalidade? A medicina, a psiquiatria, a política, a sociologia e a economia contribuiriam de formas diferentes para um mesmo propósito: trazer a vida biológica para o centro dos investimentos epistemológicos, existenciais, culturais modernos.

Foucault, no entanto, nunca se deu ao trabalho de procurar um sentido último para a vida biológica - e talvez devesse tê-lo feito; eu tenho tomado recentemente essa questão como digna de algum investimento teórico, sem me julgar vitalista por isso. A tarefa intelectual que ele se propôs, ao menos quando começou a pensar acerca de uma genealogia das formas modernas de poder, era bem pouco metafísica: ao invés de debruçar-se sobre causas primeiras, ele contentou-se entender aquilo que ele chamaria de biopoder. Estava mais interessado nas práticas médicas, científicas, de administração da saúde e da doença, de controle sobre as populações, entendidas como contingentes de “vida nua”, do que pensar sobre a vida como problema filosófico mais fundamental. Entre Bergson e Foucault há um certo Heidegger que afirmava que a vida não era a questão filosófica mais fundamental: esse lugar deveria ser ocupado pela abertura do ser à sua própria temporalidade, à sua própria finitude. A vida biológica ou política, zoé ou bios, é um problema filosófico de segunda ordem em comparação à possibilidade fenomenológica, ontológica da abertura do ser humano ao mundo que o cerca.

A cultura ocidental não pode pensar o ser precisamente por acreditar, como o fizeram Nietzsche e Bergson, que a vida seria a questão filosófica primordial. De fato, não parece essa a tarefa que se propõe Bergson, quando procura um momento zero em que a matéria se abre à vida biológica, quando afirma que o próprio pensar é um produto de segunda ordem desta abertura primordial? Bergson, diria Simmel, é o Nietzsche que ao invés de se debruçar sobre a moral ocidental, voltou-se para a questão da vida biológica. Sua intenção era estabelecer o fundamento, a possibildiade do próprio pensar. E esse fundamento seria a vida biológica de onde essa possibilidade emanaria: a vida é pois questão anterior à consciência, instinto, reflexão etc. É à vida, por esse motivo, que se deve creditar a possibilidade de indeterminação, de liberdade que encontramos no pensar. Em uma aula de junho de 1983, Deleuze afirma que a tarefa primordial que se propõe a filosofia bergsoniana é pensar a 'essência' do movimento.

E nesse ponto compreendemos o motivo pelo qual Frederic aponta para uma ligação entre um pensamento do fluxo em Deleuze, das desterritorializações, e das reterritorializações, e Bergson, que concebia um embate fundante entre a Vida, impulso primordial que abre a matéria à indeterminação, e a tendência a determinação, “ao conforto”, à estabilidade que encontramos na vida das espécies particulares, dos seres individuais. Scott Lash em seu artigo ‘Lebenssoziologie’ (com o qual concordo muito pouco) chega a afirmar que a própria idéia de desejo, desejo não de sujeitos, mas de ‘máquinas desejantes’, eu acrescentaria, ou seja, desejos não subordinados, mas formadores de subjetividade, que encontramos em Deleuze, é apenas uma tradução da idéia de Vida de Henri Bergson. Com isso concordo. Nas ciências da vida, e isso não é coincidência, os vitalistas, pensemos aqui em Speemann, por exemplo, sempre foram bons para pensar a evolução, a mudança, mas um tanto incapazes para pensar a hereditariedade, a permanência. Seu interesse estaria ligado ao que entendiam como movimento primordial da vida. Ou seja, fluxo, deriva, movimento.

“Como demos a entender desde o início deste trabalho, a função da vida é inserir indeterminação na matéria. Indeterminadas – quero dizer, imprevisíveis – são as formas que ela cria paulatinamente durante sua evolução. Cada vez mais indeterminada também – quero dizer, cada vez mais livre – é a atividade à qual essas formas devem servir de veículo”. (Evolução Criadora, 1979, p. 116).

E essa conexão entre vida, indeterminação e liberdade, que me faz concordar com Dirceu e discordar de Cynthia e Luciano quando afirmam que o riso em Bergson tem uma função de controle social. Algo próximo a Durkheim, portanto, que afirma nas Regras do Método Sociológico que o riso é uma forma de coerção. Sei que há passagens no Riso que poderiam corroborar essa posição. Mas acredito que a idéia mais ampla seja outra. Algo mais próximo ao que encontramos na Evolução Criadora: “Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais ela se afirma, cria os hábitos nascentes que a sufocarão se ela não se renovar por um esforço constante: o automatismo a espreita”. (p117). E se o riso se opõe ao automatismo na vida social, ele só pode ser uma manifestação de vitalidade, como afirma Dirceu. Essa leitura é, a meu ver, compatível com aquilo que nos diz Bergson em O Riso.
Em resumo, seja qual for a doutrina que nossa razão adote, nossa imaginação tem sua filosofia bem decretada: em toda forma humana ela percebe o esforço de uma alma que modela a matéria, alma infinitamente maleável, eternamente móvel, isenta da gravidade por não ser a terra que a atrai. Essa alma comunica algo de sua leveza alada ao corpo que a anima: a imaterialidade assim transferida à matéria é o que se chama de graça. Mas a matéria resiste e se obstina. Furta-se ela, e tudo faria para converter à sua própria inércia e degenerar em automatismo a atividade sempre desperta desse princípio superior. Por ela esses movimentos inteleigentemente variados do corpo seriam fizados em cacoetes insensatamente adquiridos, solidificadas em caretas duráveis as expressões cambiantes da fisionomia, imprimindo, enfim, toa a pessoa uma atitude que lhe dê a impressão de estar afundada e absorta na materialidade de alguma ocupação mecânica em vez de se renovar sem cessar ao contato de um ideal vivo. Onde a matéria consiga assim adnesar exteriormente a vida da alma, fixando-lhe o movimento, contrariando-lhe enfim a graça, ela obtém do corpo um efeito cômico (O Riso, 1978, p. 23)


Isso explicaria uma comicidade mais ligada, digamos, à gravidade do corpo. Porém, essa é ainda a chave para entendermos o que Bergson chama de "comicidade das situações": "É cômico todo arranjo de atos e aconteciment que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem mecânica" (1978, p. 43)Tudo estaria bem acertado se, algumas páginas depois, não lêssemos, com certa surpresa, o seguinte: "O riso é essa própria correção. O riso é certo gesto social, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dos acontecimentos" (p. 50). Cynthia e Luciano teriam razão, pois? Porém, diferente de Durkheim a qualidade social do riso não é de retornar o indivíduo ao peso do passado, da tradição, das normas consolidadas, mas de abrir o ser humano para sua liberdade, sua indeterminação, sua vitalidade. Neste sentido ambíguo, Cynthia tem razão, é que podemos preservar certa coerência entre certas passagens do Riso e das preocupações mais amplas da obra de Bergson. Não há como associar de modo orgânico um pensamento do fluxo, do movimento, da indeterminação, da liberdade, com o pensamento funcionalista. Para ele, toda forma de vida, sociedades humanas ou de formigas, partem de uma unidade original da matéria e, como tal, guarda a duplicidade de suas possibilidades: inércia ou indeterminação, liberdade. Liberdade, neste sentido, pode ser pensada como uma pulsão ampla, social, e não uma questão necessariamente ligada à subjetividade. Creio que Deleuze concordaria com essa leitura.

Voltemos pois à questão que formulamos no começo deste post. Não vejo em Foucault nada que nos coloque na trilha desse tipo inquietação intelectual. Frederic propõe um trajeto que explicaria o que ele considera neo-vitalismo em Foucault e Rose: esse trajeto se daria pela via de Nietzsche e Bataille. Acredito mesmo que se possa encontrar uma afinidade entre a idéia de Vida como pulsão primordial que se opõe a qualquer estabilização parcial, como propõe Bergson, e a afirmação nietzscheana de uma dimensão fundamentalmente trágica da vida. Gosto muito daquela frase de Carl Kerenyi que afirma que o dionisíaco, o trágico, é a afirmação da vida até na morte. Ou seja, a Vida se afirma como tendência inelutável contra toda tentativa de estabilização formal. Um ponto de confluência entre Nietzsche e Bergson? Acho que o trágico é também um elemento fundamental para entender o pensamento batailleano, sua mística do excesso, seu reclamo pela reintrodução do trágico, do noturno no mundo moderno. Sugiro uma leitura do Erostismo, para quem tiver interesse no tema. Alguém já me contou que Bataille durante algum tempo procurou, junto com alguns surrealistas, em Paris algum candidato a um sacrifício. Estórias. Desnecessário dizer que a apropriação de Nietzsche por Bataille não seria compreensível sem adentrarmos o universo sadeano. Não é possível pensar a idéia de excesso místico em Bataille sem pensarmos na idéia de violência, de um erotismo cuja realização última se realiza no campo de Thanatos. Não foi essa afiliação que afastou Bataille de Breton, a quem repugnava a idéia de uma associação entre erotismo e morte, entre erotismo e violência?

E é claro que isso tudo influenciou Foucault. Mas aqui é preciso localizar as coisas um pouco. O namoro com um pensamento excessivo está presente, por exemplo, no texto que Foucault escreve em 1964 sobre a "Loucura, a ausência de obra". Pensando um mundo futuro de plena realização da razão médica, ele observa: "Assim, marcar-se-á a viva imagem da razão com ferro em brasa. O jogo bastante familiar de nos mirarmos do outro lado de nós mesmos na loucura, e de nos pormos na escuta de vozes que, vindas de muito longe, nos dizem do modo mais próximo o que somos, esse jogo, com suas regras, suas táticas, suas invenções, suas astúcias, suas ilegalidades toleradas, não será mais, e para sempre, senão um ritual complexo cujas significações terão sido reduzidas a cinzas. [...] Entre as mãos das culturas historiadoras não restará mais nada a não ser as medidas codificadas da internação, as técnicas da medicina e, do outro lado, a inclusão repentina, irruptiva, em nossa linguagem, da fala dos excluídos". A influência de Bataille parece muito clara na História da Loucura, em Eu, Pierre Riviere, em Raymond Roussel, mas acredito que seja superada na dita fase genealógica de Foucault, momento em que ele se debruça sobre a conformação de uma nova forma de poder no ocidente: a administração da vida biológica, o biopoder. Nesse momento, já não consigo perceber aquele flerte com o excessivo, com um salto fora do campo da razão, que encontramos nas primeiras obras de Foucault. Por isso a conexão Foucault, Rose e o vitalismo, no meu entender, poderia ainda ser melhor qualificada. Quando Michel Foucault está interessado no excesso, no irracional, ele não se preocupa tanto com o que as questões relacionadas ao que ele chamou de biopoder; quando ele se interessa pela genealogia das formas modernas de política, ele já não alimenta nenhum esperança em relação ao excessivo, ao erotismo como forma de amolecer a rigidez da razão moderna.

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Por editar

Jonatas Ferreira

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Para não dizer que não falei de flores


Henri Bergson (1859-1941)

Pense num cidadão atarefado, este sou eu. Isso tem me impedido de empunhar as responsabilidades do Cazzo com a firmeza e a assiduidade com que desejaria. E uma das coisas que me ocupam no momento é o tal debate cultura-natureza. Essa conversa, que é tão importante para a legitimação de um discurso das ciências sociais, sempre me fez cochilar em aulas e palestras. Deve ser algo como praga de avó eu estar me envolvendo com essa conversa toda (minha avó seria bem capaz de me desejar algo assim. Lembro-me bem que aos 9 anos, olhando atentamente para as suas rugas, comentei acerca de quão velha ela era. “Se você tiver sorte, ficará velho assim”, foi a resposta, meio-praga, dela).

Mas, de que me serve este tal debate? A filosofia clássica era pouco sensível a esse tipo de oposição, embora houvesse em Aristóteles, por exemplo, uma diferença clara entre a coisa viva e o produto da técnica, da ação humana, por exemplo. A natureza, dizia, ele tem seu princípio de produção em si mesmo, o que significa dizer que ela tem uma dignidade ontológica fundamental: ninguém precisa ensinar um pé de jabuticaba a crescer e se reproduzir. Os produtos da técnica, os instrumentos técnicos, não. Seus princípios de produção são heterônomos a si mesmos. E isso significa dizer que um martelo só faz algum sentido no mundo se alguém o usa. Aquilo que ele produz não possui qualquer autonomia, ele está sempre submetido a desígnios e regras que não são as suas. Quanto à cultura, digamos que ela era imaginada como o caminho para a idéia, para aquilo que há de eterno no mundo natural. Por essa razão, idéias como equilíbrio, proporção, ponderação são qualidades morais tão aprecisadas pelo grego, por exemplo: a natureza em sua essência revela esse equilíbrio e proporção.

Não é nenhuma novidade que a modernidade inaugure uma outra concepção do que seja natureza. Hans Jonas em seu livro, O Princípio da Vida, entre muitos outros autores, propõe que a natureza perde uma dimensão simbólica, que ela tem também sob a tradição judeu-cristã, pois ela era projeto divino e fazia parte de seu projeto para o ser humano. Quando Descartes elabora o supremo dualismo de descolar a alma humana do mundo natural, abriu também a possibilidade de um monismo mecanicista: pois se a natureza entendida como conjunto de engrenagens, como autômato, foi um passo fundamental para a ciência moderna, para sua busca de medir, calcular, prever os fenômenos naturais, essa mesma compreensão fez com que a ciência começasse a se questionar se o corpo humano teria uma dignidade mais elevada que o resto da natureza.

Pensadores como La Mettrie, mas também físicos como Leduc, biólogos como Claude Bernard, D'Arcy Thompson passaram a assumir não apenas o mecanismo como parâmetro para explicar o vivo, mas acreditar que a explicação deste mecanismo é da ordem do matemático. Se vocês acham isso um exagero, ao menos para o século XIX, onde esses cavalheiros se formaram, é bom dizer que Claude Bernard e Leriche, por exemplo, são figuras importantes para a constituição de uma medicina preocupada em medir nossa saúde através de exames como taxa de glicose, nível de colesterol no sangue etc.Ora, muito antes destes, kant, seguindo Descartes, já dizia: "Eu afirmo apenas que em toda particular doutrina da natureza só se pode encontrar verdadeira ciência [eigentiliche Wissenschaft] tanto quanto há na matemática" (Citado por Evelyn Fox-Keller em Making Sense of Life).

E qual a relação que isso tudo tem com o debate cultura-natureza? Bem, para começo de conversa aceitamos o ponto de vista de Jonas que diz que o progresso dessa visão da natureza e da vida, ao reduzi-las ao mecânico, ao inanimado, foi capaz de responder a questões acerca de seu funcionamento – ou aquilo que Jonas chama o “como?” das coisas. Mas deixou de fora, como temas metafísicos, indagações tradicionais acerca do sentido da vida e da natureza. Essas questões que Hans Jonas chama de “para quê?”. Para ele, seguindo aqui o seu mestre, Marin Heidegger, esse seria o grande impensado no processo de matematização da natureza. A natureza, neste processo, deixa de ser concebida como algo que tem o princípio de si em si, ela é um conjunto de engrenagens que posso reconfigurar segundo minhas necessidades. Mas produzir grãos transgênicos, aumentar a expectativa de vida, para quê? A resposta parece clara: para termos mais vida. Porém, como a vida parece ter se tornado algo sem sentido, reduzida ao puro mecanismo, essa mesma ciência pode também produzir armas biológicas sem que qualquer contradição interna pareça afetar sua prática.

Hans Jonas esqueceu em sua reflexão, entretanto, de encontrar um espaço para o vitalismo nas ciências humanas e nas ciências da vida. E isso é facilmente explicável. O vitalismo foi sempre considerado como obscurantista, procurando impedir o progresso da ciência possível (da descoberta do mecanismo da natureza) com suas postulações religiosas. Ora, esse não seria o caso, por exemplo de Bergson? Este não se recusou, seja na Evolução Criadora, em O Riso, em Matéria e Memória, a aceitar que a vida pudesse ser pensada segundo os mesmos critérios que a natureza inanimada? Este valor especial, essa dignidade particular que ele confere aos viventes não é resquício de uma religiosidade que o impede de aceitar o caminho natural da ciência?

Pensemos também, e mais recentemente, em Gerges Canguilhem ou Lewontin. A recusa desses autores em aceitar que a vida possa ser desvelada como mecanismo, como conjunto de engrenagens, não é o resultado de um mesmo vitalismo semi-religioso? No caso de Canguilhem, há um certo acordo em seus críticos. Em artigo escrito para a revista Theory, Culture & Society, todavia, Mônica Grecco alerta para a importância crítica do vitalismo. A verdade é que ele foi uma arma muito eficiente para conter um determinismo mecanicista nas ciências da vida. Quando nada isso ajudou a aperfeiçoar as primeiras intuições ingenuamente ‘quantativizadoras’ de um Leduc ou de um Claude Bernard.

O que seria da psicanálise, da fenomenologia, da ontologia radical de Martin Heidegger, se Bergson não tivesse se recusado a pensar a consciência a partir da idéia de tempo que a física newtoniana propôs - como uma sucessão de pontos em uma linha do tempo, onde o que é passado não pode ser recuperado, está para sempre consumado como um evento químico? Bergson, em oposição a isso, afirma na Evolução Criadora:
A duração é o progresso contínuo do passado que rói o futuro e infla ao avançar. A partir do momento que o passado aumenta sem cessar, infinitamente também ele se conserva. A memória, [...] não é uma faculdade de classificar lembranças numa gaveta ou de registrar num arquivo. [...] Em realidade o passado se conserva por si mesmo, automaticamente. Por inteiro, sem dúvida, ele nos acompanha a cada instante; [...] Essas lembranças, mensageiras do inconsciente, nos advertem do que arrastamos conosco sem o saber. Mas sentiríamos vagamente que nosso passado continua presente conosco mesmo não tendo a idéia distinta das lembranças". [Bergson, Evolução Criadora, p. 16)


E o debate cultura-natureza? Creio que ele é fruto do cenário descrito por Jonas. Porém, descrito de modo incompleto: há de falar do importante papel dos ‘vitalistas’ de um modo geral para quem o pensamento ocidental não pode deixar de se perguntar acerca do sentido da vida: para quê? Mesmo que o façam de modo acanhado, nas entrelinhas.

Jonatas Ferreira
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(por editar)

domingo, 6 de abril de 2008

O homem-objeto da Lebensphilosophie



Outro dia falamos na Lebensphilosophie, ou filosofia da vida, numa aula sobre Schütz. A idéia era esclarecer o conceito de durée de Henri Bergson. Não vou falar disso aqui, mas de homens-objeto. Ou melhor, vou falar da comédia como uma forma de reificação do outro, que é a tese de Bergson.

Assim como Dilthey e Simmel, Bergson concebe a vida como um fluxo contínuo de um ser que envelhece sem cessar. Na vida, não há repetições, não há um “voltar atrás”. Os seres vivos caracterizam-se por uma mudança contínua, uma individualidade perfeita, dado que são irreversíveis. A repetição e a reversibilidade é própria dos seres mecânicos, determinados por séries causais externas e independentes. Por isso, a rigidez mecânica de corpo, de espírito e de caráter seria contrária à vida, pois impede a maleabilidade, a sociabilidade, a adaptação, o próprio fluxo da vida.

Ao trazer essas idéias para o fenômeno cômico, Bergson concebe a comédia como um jogo que imita a vida. Nesta imitação, perde seu caráter de fluxo, de singularidade. Daí sua definição de cômico: “todo arranjo de actos e acontecimentos que nos dá, inseridos uns nos outros, a ilusão da vida e a sensação nítida dum arranjo mecânico” (Bergson, 1993 [1900]: 58). De acordo com esta perspectiva, o riso gerado pelo fenômeno cômico seria um mecanismo de correção da rigidez e da inflexibilidade que impedem o fluxo da vida. A causa do cômico é algo que atenta contra a vida social e à qual a sociedade reage com o riso, que é nada menos do que uma reação de defesa: “o riso é, antes de tudo, uma correção. Feito para humilhar, deve dar à pessoa que é objeto dele uma impressão penosa. Através dele se vinga a sociedade das liberdades praticadas contra ela” (Ibid.: 134).

Por se manifestar como uma espécie de vingança, de repressão da insociabilidade e das tendências separatistas que surgem no seio de grupos de uma sociedade mais ampla, o riso não poderia se basear na simpatia ou na bondade, mas na humilhação e na intimidação de quem não é flexível o bastante para se adaptar ao fluxo da vida. Neste sentido, à insociabilidade do personagem deve se juntar a insensibilidade do espectador, cuja atenção é dirigida ao mero gesto do outro. Diferentemente da ação, o gesto não exprime uma personalidade total do ator, mas apenas uma parte isolada de sua pessoa. Isto gera o desconhecimento ou o afastamento da consciência do outro, reificando-o.

Contrariamente ao que afirmam autores como Verena Alberti (1999:95), para quem o sujeito bergsoniano não ri por superioridade ou por orgulho, a tese da superioridade está implícita em seu estudo sobre o riso: a insensibilidade, a ausência de emoção e de empatia reduz o outro a um mero objeto, a uma vida defeituosa. De fato, para Bergson, a insensibilidade (dos que riem) seria um dos indicadores fundamentais da presença do humor. É por esta razão que aquele que ri “afirma-se mais ou menos orgulhosamente ele próprio e tende para considerar a pessoa de outrem como um fantoche do qual segura os cordelinhos” (Bergson, 1993 [1900]: 135).

A sociologia é mesmo fascinante. E eu, que nunca tinha pensado em Mr. Bean como homem-objeto... Smoooooth!

Cynthia

Referências

ALBERTI, Verena (1999). O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BERGSON, Henri (1993[1900]). O riso: ensaio sobre o significado do cómico. Lisboa: Guimarães editores.