
Certas tarefas pedagógicas parecem mesmo difíceis. Entender a influência do vitalismo no pensamento ocidental talvez seja uma delas, tanto mais se aceitamos como verdadeiro aquilo que Foucault e Arendt formulam a partir de perspectivas distintas: a administração da vida se tornou o negócio em torno do qual a política moderna se estruturou. Tomando proposição como verdadeira, difícil não encontrarmos evidência de depoimentos biopolíticos no conjunto da filosofia e da ciência modernas. Afinal, o que significaria, por exemplo, o debate entre vitalistas e mecanicistas nas ciências da vida, senão a tentativa de encontrar um princípio de organização da vida biológica em sua totalidade? A medicina, a psiquiatria, a política, a sociologia e a economia contribuiriam de formas diferentes para um mesmo propósito: trazer a vida biológica para o centro dos investimentos epistemológicos, existenciais, culturais modernos.
Foucault, no entanto, nunca se deu ao trabalho de procurar um sentido último para a vida biológica - e talvez devesse tê-lo feito; eu tenho tomado recentemente essa questão como digna de algum investimento teórico, sem me julgar vitalista por isso. A tarefa intelectual que ele se propôs, ao menos quando começou a pensar acerca de uma genealogia das formas modernas de poder, era bem pouco metafísica: ao invés de debruçar-se sobre causas primeiras, ele contentou-se entender aquilo que ele chamaria de biopoder. Estava mais interessado nas práticas médicas, científicas, de administração da saúde e da doença, de controle sobre as populações, entendidas como contingentes de “vida nua”, do que pensar sobre a vida como problema filosófico mais fundamental. Entre Bergson e Foucault há um certo Heidegger que afirmava que a vida não era a questão filosófica mais fundamental: esse lugar deveria ser ocupado pela abertura do ser à sua própria temporalidade, à sua própria finitude. A vida biológica ou política,
zoé ou
bios, é um problema filosófico de segunda ordem em comparação à possibilidade fenomenológica, ontológica da abertura do ser humano ao mundo que o cerca.
A cultura ocidental não pode pensar o ser precisamente por acreditar, como o fizeram Nietzsche e Bergson, que a vida seria a questão filosófica primordial. De fato, não parece essa a tarefa que se propõe Bergson, quando procura um momento zero em que a matéria se abre à vida biológica, quando afirma que o próprio pensar é um produto de segunda ordem desta abertura primordial? Bergson, diria Simmel, é o Nietzsche que ao invés de se debruçar sobre a moral ocidental, voltou-se para a questão da vida biológica. Sua intenção era estabelecer o fundamento, a possibildiade do próprio pensar. E esse fundamento seria a vida biológica de onde essa possibilidade emanaria: a vida é pois questão anterior à consciência, instinto, reflexão etc. É à vida, por esse motivo, que se deve creditar a possibilidade de indeterminação, de liberdade que encontramos no pensar. Em uma aula de junho de 1983, Deleuze afirma que a tarefa primordial que se propõe a filosofia bergsoniana é pensar a 'essência' do movimento.
E nesse ponto compreendemos o motivo pelo qual Frederic aponta para uma ligação entre um pensamento do fluxo em Deleuze, das desterritorializações, e das reterritorializações, e Bergson, que concebia um embate fundante entre a Vida, impulso primordial que abre a matéria à indeterminação, e a tendência a determinação, “ao conforto”, à estabilidade que encontramos na vida das espécies particulares, dos seres individuais. Scott Lash em seu artigo ‘Lebenssoziologie’ (com o qual concordo muito pouco) chega a afirmar que a própria idéia de desejo, desejo não de sujeitos, mas de ‘máquinas desejantes’, eu acrescentaria, ou seja, desejos não subordinados, mas formadores de subjetividade, que encontramos em Deleuze, é apenas uma tradução da idéia de Vida de Henri Bergson. Com isso concordo. Nas ciências da vida, e isso não é coincidência, os vitalistas, pensemos aqui em Speemann, por exemplo, sempre foram bons para pensar a evolução, a mudança, mas um tanto incapazes para pensar a hereditariedade, a permanência. Seu interesse estaria ligado ao que entendiam como movimento primordial da vida. Ou seja, fluxo, deriva, movimento.
“Como demos a entender desde o início deste trabalho, a função da vida é inserir indeterminação na matéria. Indeterminadas – quero dizer, imprevisíveis – são as formas que ela cria paulatinamente durante sua evolução. Cada vez mais indeterminada também – quero dizer, cada vez mais livre – é a atividade à qual essas formas devem servir de veículo”. (Evolução Criadora, 1979, p. 116).
E essa conexão entre vida, indeterminação e liberdade, que me faz concordar com Dirceu e discordar de Cynthia e Luciano quando afirmam que o riso em Bergson tem uma função de controle social. Algo próximo a Durkheim, portanto, que afirma nas Regras
do Método Sociológico que o riso é uma forma de coerção. Sei que há passagens no Riso que poderiam corroborar essa posição. Mas acredito que a idéia mais ampla seja outra. Algo mais próximo ao que encontramos na
Evolução Criadora: “Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais ela se afirma, cria os hábitos nascentes que a sufocarão se ela não se renovar por um esforço constante: o automatismo a espreita”. (p117). E se o riso se opõe ao automatismo na vida social, ele só pode ser uma manifestação de vitalidade, como afirma Dirceu. Essa leitura é, a meu ver, compatível com aquilo que nos diz Bergson em
O Riso.
Em resumo, seja qual for a doutrina que nossa razão adote, nossa imaginação tem sua filosofia bem decretada: em toda forma humana ela percebe o esforço de uma alma que modela a matéria, alma infinitamente maleável, eternamente móvel, isenta da gravidade por não ser a terra que a atrai. Essa alma comunica algo de sua leveza alada ao corpo que a anima: a imaterialidade assim transferida à matéria é o que se chama de graça. Mas a matéria resiste e se obstina. Furta-se ela, e tudo faria para converter à sua própria inércia e degenerar em automatismo a atividade sempre desperta desse princípio superior. Por ela esses movimentos inteleigentemente variados do corpo seriam fizados em cacoetes insensatamente adquiridos, solidificadas em caretas duráveis as expressões cambiantes da fisionomia, imprimindo, enfim, toa a pessoa uma atitude que lhe dê a impressão de estar afundada e absorta na materialidade de alguma ocupação mecânica em vez de se renovar sem cessar ao contato de um ideal vivo. Onde a matéria consiga assim adnesar exteriormente a vida da alma, fixando-lhe o movimento, contrariando-lhe enfim a graça, ela obtém do corpo um efeito cômico (O Riso, 1978, p. 23)
Isso explicaria uma comicidade mais ligada, digamos, à gravidade do corpo. Porém, essa é ainda a chave para entendermos o que Bergson chama de "comicidade das situações": "
É cômico todo arranjo de atos e aconteciment que nos dê, inseridas uma na outra, a ilusão da vida e a sensação nítida de uma montagem mecânica" (1978, p. 43)Tudo estaria bem acertado se, algumas páginas depois, não lêssemos, com certa surpresa, o seguinte: "O riso é essa própria correção. O riso é certo gesto social, que ressalta e reprime certo desvio especial dos homens e dos acontecimentos" (p. 50). Cynthia e Luciano teriam razão, pois? Porém, diferente de Durkheim a qualidade social do riso não é de retornar o indivíduo ao peso do passado, da tradição, das normas consolidadas, mas de abrir o ser humano para sua liberdade, sua indeterminação, sua vitalidade. Neste sentido ambíguo, Cynthia tem razão, é que podemos preservar certa coerência entre certas passagens do
Riso e das preocupações mais amplas da obra de Bergson. Não há como associar de modo orgânico um pensamento do fluxo, do movimento, da indeterminação, da liberdade, com o pensamento funcionalista. Para ele, toda forma de vida, sociedades humanas ou de formigas, partem de uma unidade original da matéria e, como tal, guarda a duplicidade de suas possibilidades: inércia ou indeterminação, liberdade. Liberdade, neste sentido, pode ser pensada como uma pulsão ampla, social, e não uma questão necessariamente ligada à subjetividade. Creio que Deleuze concordaria com essa leitura.
Voltemos pois à questão que formulamos no começo deste
post. Não vejo em Foucault nada que nos coloque na trilha desse tipo inquietação intelectual. Frederic propõe um trajeto que explicaria o que ele considera neo-vitalismo em Foucault e Rose: esse trajeto se daria pela via de Nietzsche e Bataille. Acredito mesmo que se possa encontrar uma afinidade entre a idéia de Vida como pulsão primordial que se opõe a qualquer estabilização parcial, como propõe Bergson, e a afirmação nietzscheana de uma dimensão fundamentalmente trágica da vida. Gosto muito daquela frase de Carl Kerenyi que afirma que o dionisíaco, o trágico, é a afirmação da vida até na morte. Ou seja, a Vida se afirma como tendência inelutável contra toda tentativa de estabilização formal. Um ponto de confluência entre Nietzsche e Bergson? Acho que o trágico é também um elemento fundamental para entender o pensamento batailleano, sua mística do excesso, seu reclamo pela reintrodução do trágico, do noturno no mundo moderno. Sugiro uma leitura do
Erostismo, para quem tiver interesse no tema. Alguém já me contou que Bataille durante algum tempo procurou, junto com alguns surrealistas, em Paris algum candidato a um sacrifício. Estórias. Desnecessário dizer que a apropriação de Nietzsche por Bataille não seria compreensível sem adentrarmos o universo sadeano. Não é possível pensar a idéia de excesso místico em Bataille sem pensarmos na idéia de violência, de um erotismo cuja realização última se realiza no campo de
Thanatos. Não foi essa afiliação que afastou Bataille de Breton, a quem repugnava a idéia de uma associação entre erotismo e morte, entre erotismo e violência?
E é claro que isso tudo influenciou Foucault. Mas aqui é preciso localizar as coisas um pouco. O namoro com um pensamento excessivo está presente, por exemplo, no texto que Foucault escreve em 1964 sobre a "Loucura, a ausência de obra". Pensando um mundo futuro de plena realização da razão médica, ele observa: "Assim, marcar-se-á a viva imagem da razão com ferro em brasa. O jogo bastante familiar de nos mirarmos do outro lado de nós mesmos na loucura, e de nos pormos na escuta de vozes que, vindas de muito longe, nos dizem do modo mais próximo o que somos, esse jogo, com suas regras, suas táticas, suas invenções, suas astúcias, suas ilegalidades toleradas, não será mais, e para sempre, senão um ritual complexo cujas significações terão sido reduzidas a cinzas. [...] Entre as mãos das culturas historiadoras não restará mais nada a não ser as medidas codificadas da internação, as técnicas da medicina e, do outro lado, a inclusão repentina, irruptiva, em nossa linguagem, da fala dos excluídos". A influência de Bataille parece muito clara na
História da Loucura, em Eu
, Pierre Riviere, em
Raymond Roussel, mas acredito que seja superada na dita fase genealógica de Foucault, momento em que ele se debruça sobre a conformação de uma nova forma de poder no ocidente: a administração da vida biológica, o biopoder. Nesse momento, já não consigo perceber aquele flerte com o excessivo, com um salto fora do campo da razão, que encontramos nas primeiras obras de Foucault. Por isso a conexão Foucault, Rose e o vitalismo, no meu entender, poderia ainda ser melhor qualificada. Quando Michel Foucault está interessado no excesso, no irracional, ele não se preocupa tanto com o que as questões relacionadas ao que ele chamou de biopoder; quando ele se interessa pela genealogia das formas modernas de política, ele já não alimenta nenhum esperança em relação ao excessivo, ao erotismo como forma de amolecer a rigidez da razão moderna.
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Por editar
Jonatas Ferreira