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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011
Ontologia e Gênero
Agora é guerra. Artur, em uma mensagem de email privada, fez um ataque indireto a Tony Lawson, meu muso inspirador. Eu deveria responder com um ataque a Scarlett, mas me recuso a baixar o nível. Em vez disso, posto aqui um artigo, anteriormente publicado, sobre a importância de se tirar a ontologia do armário. Às armas, pois!
Cynthia
Muito da da relevância das ciências sociais tem sido avaliada em função das conseqüências políticas práticas de suas teorias ou, colocando a questão de outra forma, de sua capacidade de gerar mudanças na sociedade que possam ser consideradas benéficas para todos ou para uma parte expressiva de seus membros (Delanty, 1997). De forma geral, entretanto, a relação entre o pensamento social e sua aplicação prática tem sido mais explícita entre aquelas teorias nascidas no seio de determinados movimentos sociais, como é o caso do feminismo. Se o movimento feminista tem contribuído para a produção das ciências sociais ao chamar a atenção para temas anteriormente "invisíveis" à comunidade científica e ao sugerir que a ciência tem sido sistematicamente distorcida por causa da "cegueira de gênero", o inverso também é verdadeiro: inspiradas pela dimensão emancipatória do movimento, as teóricas feministas enfatizam as conseqüências políticas de sua produção intelectual, especialmente no que diz respeito a questões para o debate sobre o estabelecimento de políticas emancipatórias.
O compromisso com a idéia de emancipação de forma alguma está limitado à produção feminista, mas pode ser estendido a toda tradição crítica, entendida no sentido amplo de qualquer reflexão teórica que tenha uma visão crítica da sociedade e das ciências, ou que tenta explicar a emergência de seus objetos de conhecimento (Macey, 2000). Em grande medida, esta tradição baseia-se em preceitos clássicos do Iluminismo, em especial a idéia de emancipação via esclarecimento e uma concepção de sujeito capaz não só de conhecer o mundo, mas também de transformá-lo. Parte do problema é que essas idéias estão sob suspeita, o que tem gerado um ceticismo crescente em relação à possibilidade de emancipação dos sujeitos via conhecimento. Isto não apenas tem colocado um fardo excessivamente pesado sobre os ombros de cientistas sociais, cujas atividades não são especialmente justificáveis, mas também sobre os movimentos sociais, que têm perdido parte da fundamentação de suas políticas (Hamlin, 2002).
É sabido que desde os anos de 1970 a teoria feminista tem alertado para os perigos da supergeneralização ao sugerir que os valores, as experiências, os objetivos e as interpretações de grupos dominantes são apenas isso e que não há nada de intrinsecamente natural ou necessário acerca deles (Lawson, 1999). A filosofia e a epistemologia feminista, em particular, dedicam-se sobretudo à forma pela qual o gênero influencia nossas concepções de conhecimento, de sujeito cognoscente, assim como as diversas práticas de justificação dessas concepções. Sem adentrar nas especificidades das diversas tradições da epistemologia feminista, é possível afirmar que, de forma geral, todas procuram identificar as formas por meio das quais as concepções e as práticas de atribuição, aquisição e justificação do conhecimento têm sistematicamente colocado em desvantagem as mulheres e outros grupos subordinados, buscando ainda modificar essas concepções e práticas a fim de que elas possam servir aos interesses desses grupos (sua dimensão emancipatória) (Anderson, 2004).
Para diversas autoras (Flax, 1990; Harding, 1990; Fraser, 1995 e, de uma perspectiva bastante crítica, Benhabib, 1990, 1995), esse tipo de alerta para os perigos da supergeneralização tem criado uma "afinidade eletiva" entre a epistemologia feminista e diversas vertentes de epistemologia pós-moderna, embora a definição deste último termo não seja isenta de ambigüidades ou universalmente aceita (cf. Butler, 1995). A afinidade em questão refere-se a alguns pressupostos compartilhados pelo feminismo e por uma epistemologia pós-moderna que podem ser, para os nossos propósitos, resumidos nos seguintes pontos: a idéia de que nenhuma pessoa ou grupo pode sustentar uma perspectiva neutra ou "descolada" de pontos de vistas específicos; de que toda compreensão ou explicação alcançada será sempre parcial (assim como falível e transitória); de que as identidades não constituem totalidades fechadas e homogêneas. Isto significa, por outro lado, que a prática de universalizar a priori, ou de meramente pressupor ou afirmar a relevância ou validade geral de uma posição é, na melhor das hipóteses, um equívoco metodológico que tem conseqüências políticas significativas (Lawson, 1999).
Apesar disso, essas considerações têm, por vezes, ido mais longe do que muitos de seus proponentes e defensores intentaram. Ao se oporem a diversas práticas de universalização a priori, muitos teóricos acabaram por se opor a toda e qualquer prática generalizante. E uma vez que a base para se considerar uma abordagem dominante como universalmente legítima foi (corretamente) colocada em xeque, com freqüência se tem defendido uma posição relativista extrema, segundo a qual toda abordagem é tão válida, ou tão parcial, quanto qualquer outra (cf. Rorty, 1999). Essa forma de relativismo é especialmente problemática para uma teoria "crítica" que tem por principais objetivos a questão do esclarecimento e da emancipação. Além disso, algumas categorias e conceitos centrais à teoria feminista, como gênero, mulher, feminino, patriarcado etc., têm sido colocados sob suspeição por se basearem em um sistema classificatório binário, dicotômico, que não apenas privilegia um dos pólos do binarismo, mas exclui toda e qualquer alusão a termos alternativos. Assim, por exemplo, o pensamento binário impediu durante muito tempo que se concebesse a existência de sociedades com uma relativa igualdade de gênero dado que, segundo os termos do binarismo, a única alternativa possível ao patriarcado seria o matriarcado (Saffioti, 2005). Como conseqüência, a própria utilidade do termo "patriarcado" foi questionada, em vez de simplesmente se questionar seu status de universalidade e tentar delimitar suas fronteiras históricas e culturais.
Ainda mais problemática para uma teoria feminista emancipatória tem sido a suspeição acerca de sujeitos femininos, ou o próprio conceito de "mulheres". Mas para que a teoria feminista possa ser percebida como uma teoria para o empoderamento de mulheres, ela necessariamente deve fazer alusão às formas como elas têm sido sistematicamente dominadas, assim como às suas capacidades, habilidades e poderes causais que, embora historicamente constituídos, são parte integrante de sujeitos reais, e não meramente nominais (Hartsock, 1990; New, 1998). Sem uma concepção relativamente geral de um tipo de sujeito marcado por uma identidade sexual e de gênero, não importa o quão variáveis e historicamente contingentes, a teoria feminista cai por terra (o mesmo pode ser dito a respeito da epistemologia: sem um sujeito do conhecimento, não há epistemologia possível).
Por fim, a chamada "morte da metafísica" tem gerado um deslocamento importante das questões ontológicas em favor de questões epistemológicas sob o argumento de que toda e qualquer forma de ontologia científica (entendida aqui no sentido de que alguns objetos de conhecimento existem, em sua maioria, independentemente de, ou pelo menos anteriormente a, qualquer investigação científica) deve ser descartada. É este deslocamento, concebido por autores como Sandra Harding (1999) como perfeitamente compreensíveis e justificáveis na teoria feminista contemporânea, que será questionado a seguir. Em outros termos, trata-se de investigar a diferença que uma reflexão ontologicamente orientada pode fazer em relação às nossas proposições epistemológicas e teóricas, com ênfase especial em um modelo explicativo que pode ser derivado delas.
Diferentemente da perspectiva ontológica lukacsiana defendida por Heleieth Saffioti (2005), tentarei demonstrar as vantagens de uma perspectiva ontológica conhecida como realismo crítico, um tipo de realismo científico, não-representativo (ou não representacionista), que concebe a realidade como fundamentalmente (1) aberta e (2) estruturada ou estratificada, isto é, constituída de poderes causais e mecanismos subjacentes aos eventos e fenômenos observáveis. A este realismo ontológico, une-se um relativismo epistemológico (mas não judicativo) que afirma que conhecemos o mundo sob descrições irredutivelmente históricas e sociais (o que se aplica mesmo às suas posições ontológicas que são, por este motivo, sempre abertas e sujeitas a reformulações). Aplicado aos fenômenos sociais, o realismo crítico reconhece, ainda, o caráter "ação-dependente" de todo fenômeno social, isto é, sua existência depende (ao menos em parte) da agência humana intencional (Bhaskar, 1996; Lawson, 1999; Hamlin, 2000).
Inicialmente, desenvolverei essas questões tentando demonstrar como elas podem contribuir para a reflexão acerca de um dos problemas mais espinhosos do feminismo contemporâneo, que toca diretamente a questão da existência das mulheres como agentes sociais ou sujeitos de conhecimento e de mudança: a dissolução da distinção entre sexo e gênero com base na redução da ontologia à epistemologia, ou, ainda, na dissolução dos nossos objetos de conhecimento em nosso conhecimento acerca dos objetos. Por fim, apresentarei um método de formação de hipóteses explanatórias desenvolvido pelo economista britânico Tony Lawson, compatível com o realismo crítico e que possibilita recuperar a dimensão emancipatória da teoria feminista.
Para ler o artigo todo, clique aqui.
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sábado, 7 de agosto de 2010
Tony Lawson: Reorientando a Economia Moderna
O objetivo legítimo e factível da análise econômica não é o de se tentar modelar matematicamente, talvez até na esperança de se predizer crises e afins, mas o de compreender as estruturas e mecanismos sempre relacionais que as tornam mais ou menos prováveis ou factíveis. (Tony Lawson)
Uma das características do trabalho do economista britânico Tony Lawson é uma concepção heterodoxa de economia que, ao enfatizar questões ontológicas e metodológicas, tem gerado contribuições importantes para todas as ciências sociais. Em lugar de conceber a realidade social como uma extensão do mercado, entendido como uma totalidade fechada que produz regularidades perfeitas onde o homo economicus efetua suas previsões com base em modelos matemáticos, a economia é vista como uma dimensão da sociedade, i.e., um sistema relacional de posições e disposições cuja estrutura é fundamentalmente aberta e porosa, gerando regularidades imperfeitas que são reproduzidas e modificadas por atores orientados por significados, valores, direitos, obrigações etc.
Na apresentação acima, proferida na conferência inaugural do Institute for New Economic Theory, na Universidade de Cambridge em abril de 2010, Lawson questiona se os modelos matemáticos utilizados na econometria são "rigorosamente testáveis, metáforas qualitativas ou simplesmente barreiras à entrada" de orientações plurais contrárias ao cânone acadêmico. À primeira questão, Lawson responde negativamente: embora testáveis no sentido convencional do termo, os modelos econométricos são fundamentalmente incoerentes com a realidade. À segunda, defende que, sim, os modelos matemáticos podem ser considerados metafóricos, mas não são nem as únicas metáforas possíveis, nem especialmente enriquecedoras. À terceira questão, Lawson também responde na afirmativa: o uso de modelos matemáticos representa uma espécie de passaporte de entrada no mundo acadêmico à medida que aqueles que ocupam posições de poder na academia e nos órgãos de financiamento de pesquisa deixam pouco ou nenhum espaço para o desenvolvimento de posições metodológicas alternativas.
Cynthia Hamlin
O artigo que serviu de base à apresentação pode ser baixado aqui:
terça-feira, 30 de junho de 2009
Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica (Final)

A Negatividade na Experiência Hermenêutica e a Abertura para o Outro
A hermenêutica filosófica de Gadamer deve ser entendida não como um método por meio do qual se chega à verdade, mas como uma recuperação de formas de entendimento baseadas na tradição que foram excluídas e/ou reprimidas pela ciência moderna. Essas formas de entendimento, por seu turno, consistem em formas alternativas de "encontro" com a verdade. Neste sentido, o título de sua obra máxima, Verdade e Método, deve ser interpretado como o estabelecimento de uma tensão entre esses dois termos, com um argumento mais específico de que o método científico, longe de revelar a verdade, a obstrui. Isso não significa dizer que Gadamer é contra a ciência. Como ele mesmo afirma em Verdade e Método ao se opor ao ceticismo de Nietzche, "devemos à ciência a libertação de muitos preconceitos e a dissolução de muitas ilusões. A pretensão de verdade da ciência é sempre de novo questionar os pressupostos não-comprovados e deste modo conhecer melhor que antes o real" (Gadamer, 2004: 58). O problema é que o método científico proíbe uma série de questões (sobre a finitude, a historicidade, a culpa, a morte), "declarando-as absurdas" e, sendo assim, sua concepção de verdade é excessivamente restrita. A verdade, para Gadamer, revela-se a partir de um conjunto de experiências nas quais aquelas questões podem ser colocadas: a arte, o entendimento histórico e a linguagem (essas formas de experiência constituem a estrutura básica de Verdade e Método, que é dividida em 3 seções).
Ao contrário da ciência, que considera a verdade como adequação entre o pensamento e os objetos do mundo (a verdade do enunciado, que ocorre no juízo), a arte, a experiência histórica (baseada na singularidade e não na regularidade buscada no método científico) e a linguagem (que é, segundo Heidegger, nossa forma de ser no mundo) representam um encontro com a verdade, mas com a verdade não mais como adequação, mas como desocultação ou desvelamento. Esta noção de verdade (aletheia, ou, numa tradução literal, "manifestação") diz respeito ao "ato de trazer algo da escuridão para a luz" (Lawn, 2006:84) e isso não pode, segundo Gadamer (Ibid: 60), colocar a verdade "exclusivamente na demonstração discursiva", isto é, na verdade do enunciado. Com isso, Gadamer não quer dizer que a linguagem não assuma um papel central no encontro com a verdade, mas que ela tanto revela quanto oculta e que, neste sentido, toda verdade é sempre interpretação. Ela inclui tanto o que está sendo dito quanto o que está pressuposto ou não dito: "todo enunciado tem pressupostos que ele não enuncia. Somente quem pensa também esses pressupostos pode dimensionar realmente a verdade de um enunciado" (Ibid. 67). Por essa razão, o entendimento não pode ser reduzido ao conhecimento científico, mas deve ser pensado como um encontro com uma tradição que pressupõe nossa experiência pessoal de estar no mundo.
Como seres humanos, estamos sempre imersos em uma tradição, isto é, em uma espécie de quadro de referência histórica, lingüística e normativamente mediado. De fato, nossa experiência desta tradição antecede qualquer juízo, qualquer reflexão e, por esta razão, a tradição nunca é inteiramente transparente para o intérprete. Toda interpretação está enraizada em um contexto histórico que condiciona e guia a investigação. Interpretamos a partir de preconceitos ou pré-julgamentos que, inicialmente, não estão presentes em um nível consciente, mas que podem ser questionados mediante o confronto com a interpretação de um outro. (Hoffman, 2003).
Assim, contra o método científico, Gadamer desenvolve o seu conceito de experiência histórica e dialética: a experiência hermenêutica. A experiência hermenêutica se opõe à concepção de experiência da ciência, que encara o conhecimento como um conjunto de conceitos e busca conhecer por meio de atos de percepção, isto é, nega a tradição e a historicidade e orienta-se para a generalidade. De acordo com a experiência hermenêutica, o conhecimento não é uma corrente de percepções, mas um evento, um encontro. Sua base é o conceito hegeliano de experiência. Ao criticar Aristóteles afirmando que tudo o que o interessa na experiência é a sua "contribuição à formação dos conceitos", Gadamer (1998: 521) diz que ele
Assim, contra o método científico, Gadamer desenvolve o seu conceito de experiência histórica e dialética: a experiência hermenêutica. A experiência hermenêutica se opõe à concepção de experiência da ciência, que encara o conhecimento como um conjunto de conceitos e busca conhecer por meio de atos de percepção, isto é, nega a tradição e a historicidade e orienta-se para a generalidade. De acordo com a experiência hermenêutica, o conhecimento não é uma corrente de percepções, mas um evento, um encontro. Sua base é o conceito hegeliano de experiência. Ao criticar Aristóteles afirmando que tudo o que o interessa na experiência é a sua "contribuição à formação dos conceitos", Gadamer (1998: 521) diz que ele
passa por cima do verdadeiro processo da experiência, pois este é essencialmente negativo. Ele não pode ser descrito simplesmente como a formação, sem rupturas, de generalidades típicas. Essa formação ocorre, antes, pelo fato de que as generalizações falsas são constantemente refutadas pela experiência, e coisas tidas por típicas hão de ser destipificadas. [...] [F]alamos de experiência num duplo sentido, de um lado, como as experiências que se integram nas nossas expectativas e as confirmam, de outro, como a experiência que se ‘faz’. Esta, a verdadeira experiência, é sempre negativa.
O que Gadamer, seguindo Hegel, quer dizer quando afirma que a experiência é sempre negativa é que ela sugere que algo não é o que pensávamos que fosse, ela é sempre experiência de negatividade (Ibid.). É ela que nos surpreende, frustrando nossas expectativas, readequando nossos preconceitos ao quebrar as nossas certezas acerca dos padrões normais cotidianos e redefinindo nossos horizontes. Por esta razão, "a verdade é revelação, aquilo que se manifesta no encontro entre o familiar e o desconhecido" (Lawn, 2006: 87).
A questão que se coloca agora é: como é possível este tipo de experiência? Quando é que o familiar se encontra com o desconhecido na tradição? Por meio da abertura para o outro que se dá no diálogo. A tradição, para Gadamer, é linguagem, isto é, ela "fala" como um Tu. O nosso encontro com a tradição deve ser percebido como um encontro entre um Eu e um Tu, não no sentido de subjetividades distintas, mas no sentido de que em um texto ou em um produto humano qualquer, a tradição coloca uma pergunta para o leitor. Todo texto e todo enunciado é uma resposta para alguma pergunta (Gadamer, 2004: 67). Cabe ao intérprete compreender qual a pergunta a que o texto é uma resposta. Na verdade, a relação é dialógica: "uma pergunta é dirigida ao texto e, em um sentido mais profundo, o texto coloca uma pergunta ao intérprete. [...] a estrutura dialética da experiência em geral e da experiência hermenêutica em particular se reflete na estrutura de pergunta e resposta de todo diálogo verdadeiro" (Palmer, 1988: 198).
É justamente este diálogo que possibilita uma fusão de horizontes entre um intérprete e o Outro. Dado que Lawson não especifica como as novas questões para o estabelecimento de contrastes inclui os horizontes, preconceitos etc. dos sujeitos em situação de liminaridade, a formulação de novas questões aparece como uma espécie de caixa-preta. A importância da noção de experiência hermenêutica de Gadamer está na sugestão de que esta caixa-preta só pode ser aberta por meio de uma verdadeira abertura para o Outro.
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segunda-feira, 29 de junho de 2009
Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica III

Hermes carregando Diónísio, do escultor Grego Praxíteles (cerca de 350 a.C). O termo hermenêutica deriva do grego hermeneus (tradutor/intérprete). Hermes, mensageiro dos deuses, é o deus das fronteiras e daqueles que as atravessam, dos pastores, dos oradores, dos poetas, da invenção, dos comerciantes e dos ladrões.
Realismo Crítico e Hermenêutica
Como vimos anteriormente, dada sua concepção de agente humano, os realistas críticos não negam a dependência lingüística de nossas atividades, seja em contexto naturais, seja em contextos sociais (embora contestem que todas as nossas conceituações do mundo sejam igualmente adequadas). No entanto, isso não significa que essas atividades não possam também ser explicadas em termos causais e não apenas interpretadas. Isso porque, embora o processo de produção de um objeto (e aqui estou me referindo especialmente aos objetos sociais) possa ser linguisticamente dependente, a partir do momento em que passa a existir pode constituir um objeto passível de ser explicado causalmente. Para autores associados à teoria do discurso britânica, como Norman Fairclough, Bob Jessop e Andrew Sayer, considerar a importância da linguagem na constituição da realidade inevitavelmente coloca grandes questões causais acerca das condições de possibilidade da emergência de determinadas ideologias, de como elas estruturam e são estruturadas por conflitos políticos e, de maneira mais geral, como os discursos produzem seus efeitos (Fairclough, Jessop e Sayer, 2004).
A junção entre um momento interpretativo ou hermenêutico e um momento explicativo é central à abordagem contrastiva de Lawson (1997; 1999; 2003a; 2003b; 2003c; 2006), que se opõe fortemente à tendência quantitativista da macroeconomia. Na esteira de diversos autores que defendem a idéia de que o mundo social já se encontra previamente interpretado aos cientistas sociais devido ao fato de que somos agentes sociais competentes (cf. Giddens, 1993; Collier, 1994; Outhwaite, 1987), Lawson estende uma das formas de compreensão do mundo cotidiano para as ciências sociais. Para ele, uma das formas pela qual avançamos em nosso conhecimento cotidiano é perguntando por que algo não é exatamente como esperávamos que fosse. Assim, frequentemente nos perguntamos coisas do tipo: "por que nossos alunos se saíram pior nas provas deste ano do que nas dos anos anteriores"? (por que uma greve de professores "cortou" o semestre em dois); "por que me cachorro não quis sair para passear hoje"? (por que comeu algo que lhe fez mal no dia anterior); "por que minha correspondência não foi entregue hoje"? (por que o porteiro do meu prédio não veio trabalhar) etc.
Reflexões deste tipo são abundantes na vida cotidiana e a complexidade das respostas pode variar imensamente, algumas requerendo explicações mais profundas do que outras. Mas, de forma geral, num sentido pragmático, conseguimos resolver satisfatoriamente grande parte das questões levantadas em nossa vida diária, o que nos possibilita seguirmos com nossas atividades. Ao refletir sobre o que possibilita o sucesso ou o fracasso das respostas oferecidas, Lawson examina dois pontos correlatos: primeiro, a estrutura das perguntas e das respostas oferecidas; segundo, tenta estabelecer as precondições ontológicas do sucesso das respostas bem-sucedidas, isto é, "as condições que devem se apresentar para que tais práticas bem-sucedidas ocorram" (Lawson, 2003c: 86).
Em relação à estrutura das perguntas, cada uma delas estabelece um contraste com uma situação esperada, ou seja, em vez de assumirem a forma "por que x?", assumem a forma "por que x e não y, como esperado?". E as respostas dadas a esse tipo de pergunta referem-se a um fator causal que não diz respeito a x em si mesmo, mas explica o conttraste "x e não y". Para Lawson, isso é, obviamente, muito mais simples do que explicar todos os fatores causais envolvidos em uma pergunta do tipo "por que x", pois requer apenas que se identifique o fator responsável pela diferença em questão. A idéia do contraste não é nova. John Stuart Mill, Max Weber e diversos sociólogos históricos já adotavam aquilo que o primeiro chamava de "método da diferença". O que é novo na perspectiva de Lawson é a aplicação dos contrastes para a identificação do interesse suscitado pela pergunta e a posterior identificação de possíveis mecanismos causais via abdução ou retrodução (o método de inferência lógica preferido pelos realistas críticos). Em outras palavras, os contrastes podem nos alertar para situações em que existe algo de interesse para ser explicado, e isso tem uma relação direta com algumas das principais questões levantadas pela teoria feminista acerca da cegueira de gênero. A ênfase em explicações contrastivas significa que tanto as questões levantadas pelos cientistas quanto a forma como elas são tratadas, isto é, os mecanismos causais buscados necessariamente refletem os pontos de vistas, as interpretações e, para tomar emprestado um termo da fenomenologia, os horizontes dos cientistas. Não se trata aqui de simplesmente supor, como fazem as teóricas do standpoint theory, que as perspectivas são inevitáveis, mas de considerar que tais perspectivas interessadas, preconceituosas e viesadas são, na verdade, indispensáveis para o estabelecimento de uma explicação causal. Nas palavras do próprio Lawson (1999: 41),
A tarefa de detectar e identificar mecanismos causais previamente desconhecidos parece requerer o reconhecimento de contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes surpreendentes ou interessantes, e esses últimos pressupõem pessoas em posições que as tornem aptas a detectar contrastes relevantes e percebê-los como surpreendentes ou interessantes e que desejem agir com base em sua surpresa ou interesse. A iniciação de novas linhas de investigação requer pessoas predispostas, literalmente preconceituosas, no sentido de olhar em certas direções.
É claro que não há garantias de que explicações baseadas no estabelecimento de contrastes sejam sempre bem-sucedidas, mas existem duas condições que devem ser satisfeitas para seu sucesso. A primeira é que deve haver um domínio de observação (espaço-temporal), o que Lawson (2003c: 89) chama de um "espaço de contraste", no qual é significativo, dada nossa compreensão atual, o estabelecimento de comparações. A segunda condição, mais difícil de ser alcançada, é que todos os aspectos ou partes relevantes do espaço de contraste sejam corretamente interpretados como estando sujeitos a mais ou menos o mesmo conjunto de influências, exceto por um subconjunto, que é o que deverá contar como o mecanismo causal em questão. Assim, por ex., meus alunos estiveram sujeitos a mais ou menos as mesmas circunstâncias que os alunos dos anos anteriores, exceto uma: a greve dos professores. O ponto importante, para Lawson (1997: 210), é que se deve identificar "um fator causal (incluindo-se talvez uma ausência) que contribuiu para o estado de coisas atual, mas que não teria possibilitado o que era esperado ou imaginado, ou não condicionou uma alternativa concreta".
O estabelecimento dessas condições mostra que, por um lado, o processo de construção do conhecimento pode se beneficiar da cooperação de indivíduos predispostos de diferentes maneiras, ou em situações diversas. Isso significa que, de acordo com o que defendem as teóricas do standpoint theory, é necessário incorporar aqueles conhecimentos tácitos, inarticulados, característicos de grupos em situação de liminaridade e, de maneira geral, excluídos da ciência social (Smith, 1990). De fato, a dualidade do pertencimento/não pertencimento de grupos como esses faz com que eles sejam forçados a ter consciência das práticas, dos valores, das crenças e das tradições não apenas dos grupos dominantes, mas também dos seus próprios. É essa "consciência bifurcada" que gera maiores oportunidades da identificação de contrastes que podem ajudar a esclarecer o funcionamento de uma totalidade. Isto significa dizer que, contrariamente a teóricas do standpoint como Nancy Hartsock (1983), uma teoria produzida por mulheres não é necessariamente mais "verdadeira" ou produz melhores concepções de realidade, mas certamente apresenta algumas possibilidades de identificação de contrastes interessantes e questionamentos alternativos. Assim, a vantagem do conhecimento gerado por grupos em situação liminar não se refere ao status de verdade das respostas obtidas, mas à natureza das questões reconhecidas como importantes ou significativas (Lawson, 1999). Trata-se, portanto, da possibilidade de tornar visível aquilo que é invisível, ou de subverter questões tradicionais.
Este pré-entendimento que, na perspectiva de Lawson, deve ser tornado explícito e explorado ao máximo, representa uma tentativa de resgate de uma forma de entendimento relativa ao pensamento cotidiano e a uma forma de experiência que ficou marginalizada na tradição da ciência moderna. E essa tentativa de resgate coincide justamente com a experiência hermenêutica que Gadamer defende (embora não se limite a ela). O que gostaria de fazer aqui é mostrar como o momento hermenêutico sugerido por Lawson para a geração de hipóteses explanatórias pode se beneficiar de um diálogo mais intenso com a obra de Gadamer, em especial, com sua concepção de experiência hermenêutica.
Cynthia
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quinta-feira, 25 de junho de 2009
Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica II

Realismo Crítico e Feminismo
Talvez a principal dificuldade em trabalhar as questões do feminismo de uma perspectiva realista diga respeito à confusão generalizada entre realismo e o maior inimigo teórico das feministas: o essencialismo. Não é demais lembrar que o conceito de gênero surge como uma reação às perspectivas essencialistas, especialmente aquelas que, de uma forma ou de outra, sugeriam uma adesão à célebre frase de Freud de que “anatomia é destino”.
Embora algumas formas de realismo sejam essencialistas, este não é o caso do realismo crítico. De forma bastante resumida, o realismo crítico é um tipo de realismo científico não-representativo ou não representacionista (o que significa dizer que não adere a uma teoria da verdade como correspondência) e que concebe a realidade como fundamentalmente aberta (ou não determinística) e estruturada ou estratificada (no sentido específico de que é constituída de mecanismos ou poderes subjacentes aos eventos e aos fenômenos observáveis). Em outros termos, contra as filosofias da ciência de orientação empirista, os realistas críticos contestam o realismo empírico segundo o qual “ser é ser percebido”, ao mesmo tempo em que, partindo das tradições fenomenológicas e hermenêuticas, enfatizam o papel ativo do sujeito na constituição da realidade. Não entrarei em mais detalhes acerca desta crítica, mas destacarei que uma das principais conclusões que se pode tirar desta concepção de realidade aberta e estratificada é que, contrariamente a todas as formas de reducionismo, eventos e fenômenos não podem ser atribuídos a um nível particular da realidade, mas mecanismos causais podem. Isto porque, para os realistas críticos, os “mecanismos”, “poderes” ou “configurações causais” dizem respeito a determinadas propriedades ou aspectos de um determinado objeto, ou uma estrutura em virtude da qual esse objeto apresenta um certo tipo de poder ou potência ou, ainda, uma forma de ação específica que pode ou não ser atualizada, dependendo da ocorrência de condições que ativem esses mecanismos. Dessa forma, a idéia de agência ou de poder causal é mantida, ainda que num sentido estritamente não determinista. (Bhaskar, 1979, 1997; Lawson 1997, 1999, 2003a; Hamlin, 2000, 2008).
Em termos práticos, isso significa dizer que as pessoas não podem ser caracterizadas como objetos meramente físicos, químicos, biológicos, psicológicos ou sociais, mas como estruturas emergentes que incluem todos esses estratos da realidade. Existe, uma relação de dependência entre os mecanismos de cada um desses níveis, ainda que se possa considerar que, especialmente no que diz respeito à relação entre os níveis social e psicológico, deve haver uma emergência concomitante de seus mecanismos ou, nos termos de Caroline New (2005), de uma perspectiva ontológica, é provável que a sociedade, a linguagem e a mente humana tenham emergido juntas.
Ao realismo ontológico caracterizado acima, une-se um relativismo epistemológico (mas não judicativo) que afirma que conhecemos o mundo sob descrições irredutivelmente históricas e sociais. Para os realistas críticos, isso se aplica mesmo às suas proposições ontológicas que, por este motivo, são sempre abertas e sujeitas a reformulações. Quando aplicado aos fenômenos sociais, o realismo crítico reconhece, ainda, o caráter ação-dependente dos fenômenos sociais, isto é, sua existência depende, ao menos em parte, da agência humana intencional. É importante, no entanto, manter a distinção entre os agentes humanos, por um lado, a sociedade e a cultura, por outro. Para Roy Bhaskar (1979), a sociedade humana já está sempre constituída e, neste sentido, qualquer práxis humana ou qualquer ato de objetivação só pode modificá-la. Por outro lado, a sociedade é tida como uma condição transcendental e causalmente necessária para a mediação intencional (Bhaskar, 1996b), em outros termos, não há ação humana (e isto inclui a produção de conhecimento) fora de um sistema de posições (locais, funções, regras, direitos, deveres etc.).
De forma a não estender excessivamente esta exposição, mencionarei uma distinção central ao realismo crítico britânico contemporâneo, conforme operada por Roy Bhaskar: a distinção entre a dimensão intransitiva ou ontológica do conhecimento e sua dimensão transitiva ou epistemológica. A dimensão ontológica, ou o princípio da intransitividade existencial dos objetos do conhecimento, significa simplesmente que os objetos naturais existem independentemente de nossas observações e descrições dos mesmos. Já o princípio da transitividade do conhecimento estabelece que, ainda que exista um mundo “lá fora”, este mundo só pode ser conhecido sob certas descrições social e historicamente contingentes. Se a dimensão transitiva e o relativismo epistemológico que decorre dela permite que os realistas se afastem do que se conhece como “falácia ôntica”, ou a redução do conhecimento à existência (à maneira dos essencialistas), a dimensão ontológica ou intransitiva evita a “falácia epistêmica”, ou a redução do mundo ao que se conhece sobre ele – o que, para os propósitos que nos interessam, significaria uma subsunção absoluta da natureza à cultura ou do sexo ao gênero.
Existe ainda um elemento central ao realismo crítico (especialmente em e que diz respeito à sua dimensão crítica: com base na idéia de que os valores são constituintes do próprio discurso científico, a teoria da crítica explanatória desenvolvida por Roy Bhaskar (1998) refuta a famosa “lei de Hume”, segundo a qual a transição de fatos para valores é logicamente impossível. É esta crítica que fundamenta a idéia de uma práxis transformativa que, com base em noções como ausência e desejo, traz o potencial para a emancipação.
Demonstrado, em linhas gerais, a forma como o realismo crítico pode contribuir para os debates feministas, passarei agora para a descrição do método de explicação desenvolvido pelo economista inglês Tony Lawson o chamado método das explicações contrastivas. Nesta exposição, basear-me-ei fortemente em uma seção de um artigo anteriormente publicado (Hamlin, 2008: 76-78).
Cynthia
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quarta-feira, 24 de junho de 2009
Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica

O texto abaixo é uma espécie de work-in-progress relativo a uma apresentação que efetuarei na XII Conferência Anual da Associação Internacional de Realismo Crítico, que acontecerá entre os dias 23 e 25 de julho, em Niterói. Aos adeptos de Derrida & Cia Ltda, aviso que o conceito Kantiano de boa-vontade é essencial para a compreensão de um trabalho neste estágio de desenvolvimento. Neste sentido, sugiro um alinhamento, ainda que temporário, com a noção gadameriana de caridade interpretativa.
Cynthia
Resumo
Nos últimos anos, o economista britânico Tony Lawson vem travando um profícuo debate com as economistas feministas ao sugerir que o realismo crítico e o método das explicações contrastivas desenvolvido por ele possibilitam recuperar a dimensão crítica e emancipatória da teoria feminista. O estabelecimento de contrastes funciona, neste método, como um “momento hermenêutico” da análise, entendido como uma espécie de propedêutica para a formação de hipóteses explanatórias. A visão segundo a qual a hermenêutica deve ser complementada por uma explicação caracterizada pelo estabelecimento de mecanismos causais parece derivar da preocupação dos realistas críticos em não sucumbir à dimensão idealista (o mundo social seria inteiramente dependente das concepções que as pessoas têm acerca dele) e conservadora (a ausência de crítica à tradição) da hermenêutica. Meu propósito aqui é radicalizar este momento hermenêutico ao sugerir que, apesar das dificuldades que o conceito de “tradição” coloca para o realismo crítico e, em particular, para o feminismo, a “experiência hermenêutica” de Gadamer, cuja base é a idéia hegeliana de negatividade, é não apenas compatível com os ideais de emancipação do realismo e do feminismo, mas é especialmente adequada para questionar os excessos da ciência que ajudam a criar categorias opressivas que ajudam a reproduzir as desigualdades de gênero.
Introdução
A teoria e, em particular, a epistemologia feministas partem da idéia de que as práticas dominantes de conhecimento colocam em desvantagem não apenas as mulheres, mas outros grupos caracterizados como o Outro do sujeito ocidental, concebido a partir do modelo cartesiano. Essas desvantagens revelam-se sob uma infinidade de formas:
· A sub-representação de mulheres e outros grupos minoritários em pesquisas leva a uma super-generalização de características associadas a sujeitos masculinos, brancos e de classe média, que passam a ser consideradas universais. Um caso clássico são os estudos sobre mobilidade social desenvolvidos por Blau e Duncan que, ao excluir mulheres, homens desempregados e trabalhando em tempo parcial de suas amostras, chegam à conclusão que os EUA são uma sociedade fundamentalmente aberta e meritocrática, onde o status de origem dos indivíduos conta pouco para a determinação de seu status socioeconômico (Brym et al. 2006).
· A desconsideração de questões de interesse de mulheres nas pesquisas, tidas como irrelevantes ou secundárias torna a ciência um empreendimento fundamentalmente feito por homens e para homens: temas como trabalho doméstico, violência contra a mulher, reprodução e sexualidade e, mais recentemente, numa espécie de retorno ao feminismo do século XIX, poder e participação feminina, foram amplamente ignorados na tradição sociológica.
· A invisibilidade da produção científica de mulheres, especialmente daquelas que não se baseiam nas questões colocadas pelo mainstream da pesquisa científica: para ficarmos apenas na sociologia, a história da disciplina é contada e recontada a partir dos chamados pais fundadores, ignorando a contribuição de mulheres que escreveram entre os anos de 1830 e 1930, a fase clássica da sociologia: Harriet Martineau, Jane Adams, Ana Julia Cooper, Marianne Weber e autoras da Escola de Chicago como Julia Lathrop, Anne Marion McLean etc. (Lengermann e Niebrugge-Brantley, 2007).
· Uma desvalorização de estilos cognitivos e métodos de pesquisa supostamente “femininos” porque se opõem aos cânones tradicionais ou hegemônicos de razão, verdade etc. Para me utilizar de um exemplo curioso, em sua hermenêutica romântica, Schleiermacher opera uma distinção entre um conhecimento divinatório ou feminino (baseado em uma suposta “receptividade espontânea”, na conversação e no sentido de comunidade) e um conhecimento comparativo ou masculino (baseado em procedimentos sistemáticos), privilegiando o segundo no decorrer de sua obra. Mais curioso ainda, ao criticar a hermenêutica como método, Gadamer sugere um retorno à receptividade, à conversação e à comunidade enfatizados por Schleiermacher, “menos o feminino divinatório ou empático” (Gadamer citado em Wright, 2003: 43).
Se problemas relacionados à alteridade e à diferença, como os listados acima, hoje aparecem como preocupação metodológica de grande parte dos cientistas sociais, isso se deve, em parte, às reflexões feministas. Claro que não se pode falar de uma abordagem feminista no singular, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista epistemológico. No entanto, para além de suas diferenças pode-se argumentar que os diversos tipos de feminismo tendem a compartilhar algumas idéias principais: 1) a de que o conhecimento é sempre situado, refletindo perspectivas particulares; 2) que, de uma perspectiva histórica, as relações de gênero influenciaram a produção do conhecimento de uma forma tal que uma visão de mundo androcêntrica foi tomada como universal; 3) que esta suposta universalidade conferiu àquela perspectiva uma autoridade epistêmica que não se justifica, dado que tem sido fonte de erro; 4) que esses erros têm conseqüências éticas e políticas consideráveis ao reproduzir desigualdades; 5) que o papel da teoria e da epistemologia feministas é produzir um tipo de conhecimento crítico ou emancipatório que possa servir aos interesses das mulheres e de outros grupos subordinados.
Se deixarmos de lado as especificidades da problemática de gênero, é possível perceber que a epistemologia feminista levanta uma série de questões relativas às concepções, práticas de atribuição, aquisição e justificação do conhecimento (Anderson, 2009) e, neste sentido, suas reflexões extrapolam aquela problemática. De fato, ao enfatizar que nenhuma pessoa ou grupo pode sustentar uma perspectiva neutra ou descolada de pontos de vistas específicos; que todo conhecimento será sempre parcial, transitório e falível; que as identidades não constituem totalidades fechadas e homogêneas, mas são marcadas por dimensões de classe, gênero, raça, geração etc.; que as relações de poder têm uma influência direta na produção de conhecimento, muitas feministas têm sustentado uma espécie de “afinidade eletiva” entre feminismo e pós-modernismo, o que quer que esse último termo signifique (cf. Flax, 1990; Harding, 1990; Hekman, 2003).
O problema é que não é certo que o casamento feminismo/pós-modernismo seja uma união feliz. De um ponto de vista epistemológico ou, mais propriamente, da crítica à ciência moderna, os diversos funerais (a morte do sujeito, a morte da metafísica e a morte da história) patrocinados pelos críticos do Iluminismo trazem alguns problemas para a dimensão crítica ou emancipatória de qualquer teoria crítica, da feminista em particular. Não pretendo discorrer sobre esses funerais aqui (para uma excelente análise desta questão, remeto ao trabalho de Seyla Benhabib, 1995), mas apenas afirmar que, se por um lado o feminismo coloca em questão o sujeito cartesiano ao negar o dualismo sujeito objeto que possibilita distinguir claramente quem conhece daquilo que é conhecido, por outro, o sujeito não pode ser simplesmente dissolvido na linguagem, no discurso ou no que quer que seja, pois com isso alguns conceitos como auto-reflexividade, intencionalidade e autonomia desapareceriam, impossibilitando qualquer agência emancipatória. Voltarei à questão do sujeito cartesiano mais adiante, ao expor a crítica de Heidegger e de Gadamer ao dualismo proposto por Descartes. Por ora, é suficiente mostrar que algumas concepções da chamada morte do sujeito colocam sob suspeita a existência de sujeitos femininos e, portanto, da própria idéia de emancipação.
A fim de esclarecer minimamente o que está em jogo aqui, o problema do sujeito na teoria feminista diz respeito a dois problemas principais relacionados à categoria “mulher”. O primeiro é que ela é excessivamente geral para permitir a apreensão das diferenças entre diferentes grupos de mulheres. Em um sentido importante, as feministas se deram conta que, ao propor um sujeito unificado sob a denominação “mulher”, estavam reproduzindo aquilo que criticavam na perspectiva androcêntrica, isto é, super-generalizando e ignorando as diferenças. Isto foi em parte resolvido ao se abandonar a categoria no singular e adotar o termo “mulheres”. Em segundo lugar, e isso tem uma relação mais estreita com o chamado feminismo pós-moderno, argumenta-se que a categoria “mulheres” (mesmo no plural) serve meramente para oprimir aquelas pessoas categorizadas como tais, e não para descrever suas características essenciais (Warnke, 2003).
O problema é que, para que a teoria feminista possa ser considerada uma teoria para o empoderamento de mulheres, ela necessariamente deve fazer alusão às formas como as mulheres têm sido sistematicamente dominadas, assim como às suas capacidades, habilidades e “poderes causais” que, embora histórica e linguisticamente constituídos, são parte integrante de sujeitos reais, e não meramente nominais (Hartsock, 1990; New, 1998). Sem uma concepção relativamente geral de um tipo de sujeito marcado por uma identidade sexual e de gênero, não importa o quão variáveis e historicamente contingentes, a teoria feminista cai por terra. Afinal de contas, quem é o sujeito que o feminismo visa emancipar? Será que o problema deve ser resumido à dissolução da categoria “mulheres” em favor de outra, menos opressiva? Se for este o caso, qual ou quais seriam essas categorias? Será que, como percebe Butler, qualquer forma de nomeação não seria uma forma de assujeitamento e, portanto, de opressão?
Pessoalmente, acredito que reduzir as questões do feminismo a questões de desconstrução não dá conta do problema da emancipação. Existe uma dimensão agêntica que só pode ser adequadamente tratada se se abre a possibilidade de que o sujeito pode criar uma distância mínima em relação aos discursos ou às cadeias de significado no qual está imerso a fim de que possa refletir sobre elas e alterá-las. É aqui que, acredito, a hermenêutica gadameriana pode oferecer uma vantagem em relação às teorias do discurso a partir de noções como diálogo, horizontes e experiência hermenêutica.
Além disso, reduzir a categoria mulheres a algo meramente nominal, como pretendem as construtuvistas, gera um problema adicional para o feminismo: a dissolução ou elisão da distinção sexo/gênero. Essa elisão que, no fundo, é uma subsunção da natureza à cultura, gera um problema particularmente espinhoso no que diz respeito à materialidade dos corpos, seus limites e possibilidades. Certamente não se trata de negar que mesmo a natureza só se apresenta para nós sob certas descrições (como afirma Gadamer, “ser que pode ser compreendido é linguagem”), mas disso não se segue que nossas descrições de fato constroem os próprios objetos (que o digam os transexuais, que são obrigados a lidar com a materialidade de seus corpos de forma especialmente dolorosa). Como afirma Régis Debray,
“do fato que o mundo objetivo é inseparável das representações práticas que a sociedade tem dele, não se segue que esta última pode constituir todas as suas referências objetivas. Que um mapa contribui para a formação de um território não significa que o território é a invenção do cartógrafo” (Debray apud Vandenberghe, 2003: 465).
Em outros termos, acredito que a distinção sexo/gênero é importante e deve ser mantida. Contrariamente ao que defendem construtivistas radicais, a realidade da diferença sexual deve ser considerada “uma questão distinta dos processos sociais por meio dos quais as categorias de sexo são alocadas”. É este tipo de distinção que o realismo crítico oferece ao levar a sério a existência do mundo ou, de forma alternativa, ao propor uma distinção entre a ontologia e a epistemologia.
Com base nisto, em lugar do casamento feminismo/pós-modernismo, proponho aqui uma espécie de ménage a trois entre feminismo, hermenêutica e realismo crítico. Pretendo demonstrar que a vantagem desta associação decorre da possibilidade de se trabalhar com uma concepção de sujeito que, ainda que socialmente (e discursivamente) constituído, detém um certo grau de autonomia em relação à sociedade e à cultura que lhe permite resistir e alterar as condições que contribuem para sua opressão. Certamente que esta combinação não é isenta de problemas e dificuldades. Se a junção entre duas perspectivas teóricas distintas já é uma questão delicada, introduza um terceiro na relação e os problemas se multiplicam consideravelmente, conforme já demonstrou Simmel em seu trabalho sobre a tríade.
No restante deste trabalho, tentarei demonstrar os principais pontos de aproximação e de tensão entre essas três abordagens e, em seguida, oferecer uma tentativa de síntese.
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