quarta-feira, 24 de junho de 2009

Realismo, Feminismo e a Negatividade na Experiência Hermenêutica



O texto abaixo é uma espécie de work-in-progress relativo a uma apresentação que efetuarei na XII Conferência Anual da Associação Internacional de Realismo Crítico, que acontecerá entre os dias 23 e 25 de julho, em Niterói. Aos adeptos de Derrida & Cia Ltda, aviso que o conceito Kantiano de boa-vontade é essencial para a compreensão de um trabalho neste estágio de desenvolvimento. Neste sentido, sugiro um alinhamento, ainda que temporário, com a noção gadameriana de caridade interpretativa.
Cynthia

Resumo

Nos últimos anos, o economista britânico Tony Lawson vem travando um profícuo debate com as economistas feministas ao sugerir que o realismo crítico e o método das explicações contrastivas desenvolvido por ele possibilitam recuperar a dimensão crítica e emancipatória da teoria feminista. O estabelecimento de contrastes funciona, neste método, como um “momento hermenêutico” da análise, entendido como uma espécie de propedêutica para a formação de hipóteses explanatórias. A visão segundo a qual a hermenêutica deve ser complementada por uma explicação caracterizada pelo estabelecimento de mecanismos causais parece derivar da preocupação dos realistas críticos em não sucumbir à dimensão idealista (o mundo social seria inteiramente dependente das concepções que as pessoas têm acerca dele) e conservadora (a ausência de crítica à tradição) da hermenêutica. Meu propósito aqui é radicalizar este momento hermenêutico ao sugerir que, apesar das dificuldades que o conceito de “tradição” coloca para o realismo crítico e, em particular, para o feminismo, a “experiência hermenêutica” de Gadamer, cuja base é a idéia hegeliana de negatividade, é não apenas compatível com os ideais de emancipação do realismo e do feminismo, mas é especialmente adequada para questionar os excessos da ciência que ajudam a criar categorias opressivas que ajudam a reproduzir as desigualdades de gênero.

Introdução

A teoria e, em particular, a epistemologia feministas partem da idéia de que as práticas dominantes de conhecimento colocam em desvantagem não apenas as mulheres, mas outros grupos caracterizados como o Outro do sujeito ocidental, concebido a partir do modelo cartesiano. Essas desvantagens revelam-se sob uma infinidade de formas:

· A sub-representação de mulheres e outros grupos minoritários em pesquisas leva a uma super-generalização de características associadas a sujeitos masculinos, brancos e de classe média, que passam a ser consideradas universais. Um caso clássico são os estudos sobre mobilidade social desenvolvidos por Blau e Duncan que, ao excluir mulheres, homens desempregados e trabalhando em tempo parcial de suas amostras, chegam à conclusão que os EUA são uma sociedade fundamentalmente aberta e meritocrática, onde o status de origem dos indivíduos conta pouco para a determinação de seu status socioeconômico (Brym et al. 2006).
· A desconsideração de questões de interesse de mulheres nas pesquisas, tidas como irrelevantes ou secundárias torna a ciência um empreendimento fundamentalmente feito por homens e para homens: temas como trabalho doméstico, violência contra a mulher, reprodução e sexualidade e, mais recentemente, numa espécie de retorno ao feminismo do século XIX, poder e participação feminina, foram amplamente ignorados na tradição sociológica.
· A invisibilidade da produção científica de mulheres, especialmente daquelas que não se baseiam nas questões colocadas pelo mainstream da pesquisa científica: para ficarmos apenas na sociologia, a história da disciplina é contada e recontada a partir dos chamados pais fundadores, ignorando a contribuição de mulheres que escreveram entre os anos de 1830 e 1930, a fase clássica da sociologia: Harriet Martineau, Jane Adams, Ana Julia Cooper, Marianne Weber e autoras da Escola de Chicago como Julia Lathrop, Anne Marion McLean etc. (Lengermann e Niebrugge-Brantley, 2007).
· Uma desvalorização de estilos cognitivos e métodos de pesquisa supostamente “femininos” porque se opõem aos cânones tradicionais ou hegemônicos de razão, verdade etc. Para me utilizar de um exemplo curioso, em sua hermenêutica romântica, Schleiermacher opera uma distinção entre um conhecimento divinatório ou feminino (baseado em uma suposta “receptividade espontânea”, na conversação e no sentido de comunidade) e um conhecimento comparativo ou masculino (baseado em procedimentos sistemáticos), privilegiando o segundo no decorrer de sua obra. Mais curioso ainda, ao criticar a hermenêutica como método, Gadamer sugere um retorno à receptividade, à conversação e à comunidade enfatizados por Schleiermacher, “menos o feminino divinatório ou empático” (Gadamer citado em Wright, 2003: 43).

Se problemas relacionados à alteridade e à diferença, como os listados acima, hoje aparecem como preocupação metodológica de grande parte dos cientistas sociais, isso se deve, em parte, às reflexões feministas. Claro que não se pode falar de uma abordagem feminista no singular, seja do ponto de vista teórico, seja do ponto de vista epistemológico. No entanto, para além de suas diferenças pode-se argumentar que os diversos tipos de feminismo tendem a compartilhar algumas idéias principais: 1) a de que o conhecimento é sempre situado, refletindo perspectivas particulares; 2) que, de uma perspectiva histórica, as relações de gênero influenciaram a produção do conhecimento de uma forma tal que uma visão de mundo androcêntrica foi tomada como universal; 3) que esta suposta universalidade conferiu àquela perspectiva uma autoridade epistêmica que não se justifica, dado que tem sido fonte de erro; 4) que esses erros têm conseqüências éticas e políticas consideráveis ao reproduzir desigualdades; 5) que o papel da teoria e da epistemologia feministas é produzir um tipo de conhecimento crítico ou emancipatório que possa servir aos interesses das mulheres e de outros grupos subordinados.

Se deixarmos de lado as especificidades da problemática de gênero, é possível perceber que a epistemologia feminista levanta uma série de questões relativas às concepções, práticas de atribuição, aquisição e justificação do conhecimento (Anderson, 2009) e, neste sentido, suas reflexões extrapolam aquela problemática. De fato, ao enfatizar que nenhuma pessoa ou grupo pode sustentar uma perspectiva neutra ou descolada de pontos de vistas específicos; que todo conhecimento será sempre parcial, transitório e falível; que as identidades não constituem totalidades fechadas e homogêneas, mas são marcadas por dimensões de classe, gênero, raça, geração etc.; que as relações de poder têm uma influência direta na produção de conhecimento, muitas feministas têm sustentado uma espécie de “afinidade eletiva” entre feminismo e pós-modernismo, o que quer que esse último termo signifique (cf. Flax, 1990; Harding, 1990; Hekman, 2003).

O problema é que não é certo que o casamento feminismo/pós-modernismo seja uma união feliz. De um ponto de vista epistemológico ou, mais propriamente, da crítica à ciência moderna, os diversos funerais (a morte do sujeito, a morte da metafísica e a morte da história) patrocinados pelos críticos do Iluminismo trazem alguns problemas para a dimensão crítica ou emancipatória de qualquer teoria crítica, da feminista em particular. Não pretendo discorrer sobre esses funerais aqui (para uma excelente análise desta questão, remeto ao trabalho de Seyla Benhabib, 1995), mas apenas afirmar que, se por um lado o feminismo coloca em questão o sujeito cartesiano ao negar o dualismo sujeito objeto que possibilita distinguir claramente quem conhece daquilo que é conhecido, por outro, o sujeito não pode ser simplesmente dissolvido na linguagem, no discurso ou no que quer que seja, pois com isso alguns conceitos como auto-reflexividade, intencionalidade e autonomia desapareceriam, impossibilitando qualquer agência emancipatória. Voltarei à questão do sujeito cartesiano mais adiante, ao expor a crítica de Heidegger e de Gadamer ao dualismo proposto por Descartes. Por ora, é suficiente mostrar que algumas concepções da chamada morte do sujeito colocam sob suspeita a existência de sujeitos femininos e, portanto, da própria idéia de emancipação.

A fim de esclarecer minimamente o que está em jogo aqui, o problema do sujeito na teoria feminista diz respeito a dois problemas principais relacionados à categoria “mulher”. O primeiro é que ela é excessivamente geral para permitir a apreensão das diferenças entre diferentes grupos de mulheres. Em um sentido importante, as feministas se deram conta que, ao propor um sujeito unificado sob a denominação “mulher”, estavam reproduzindo aquilo que criticavam na perspectiva androcêntrica, isto é, super-generalizando e ignorando as diferenças. Isto foi em parte resolvido ao se abandonar a categoria no singular e adotar o termo “mulheres”. Em segundo lugar, e isso tem uma relação mais estreita com o chamado feminismo pós-moderno, argumenta-se que a categoria “mulheres” (mesmo no plural) serve meramente para oprimir aquelas pessoas categorizadas como tais, e não para descrever suas características essenciais (Warnke, 2003).

O problema é que, para que a teoria feminista possa ser considerada uma teoria para o empoderamento de mulheres, ela necessariamente deve fazer alusão às formas como as mulheres têm sido sistematicamente dominadas, assim como às suas capacidades, habilidades e “poderes causais” que, embora histórica e linguisticamente constituídos, são parte integrante de sujeitos reais, e não meramente nominais (Hartsock, 1990; New, 1998). Sem uma concepção relativamente geral de um tipo de sujeito marcado por uma identidade sexual e de gênero, não importa o quão variáveis e historicamente contingentes, a teoria feminista cai por terra. Afinal de contas, quem é o sujeito que o feminismo visa emancipar? Será que o problema deve ser resumido à dissolução da categoria “mulheres” em favor de outra, menos opressiva? Se for este o caso, qual ou quais seriam essas categorias? Será que, como percebe Butler, qualquer forma de nomeação não seria uma forma de assujeitamento e, portanto, de opressão?

Pessoalmente, acredito que reduzir as questões do feminismo a questões de desconstrução não dá conta do problema da emancipação. Existe uma dimensão agêntica que só pode ser adequadamente tratada se se abre a possibilidade de que o sujeito pode criar uma distância mínima em relação aos discursos ou às cadeias de significado no qual está imerso a fim de que possa refletir sobre elas e alterá-las. É aqui que, acredito, a hermenêutica gadameriana pode oferecer uma vantagem em relação às teorias do discurso a partir de noções como diálogo, horizontes e experiência hermenêutica.

Além disso, reduzir a categoria mulheres a algo meramente nominal, como pretendem as construtuvistas, gera um problema adicional para o feminismo: a dissolução ou elisão da distinção sexo/gênero. Essa elisão que, no fundo, é uma subsunção da natureza à cultura, gera um problema particularmente espinhoso no que diz respeito à materialidade dos corpos, seus limites e possibilidades. Certamente não se trata de negar que mesmo a natureza só se apresenta para nós sob certas descrições (como afirma Gadamer, “ser que pode ser compreendido é linguagem”), mas disso não se segue que nossas descrições de fato constroem os próprios objetos (que o digam os transexuais, que são obrigados a lidar com a materialidade de seus corpos de forma especialmente dolorosa). Como afirma Régis Debray,

“do fato que o mundo objetivo é inseparável das representações práticas que a sociedade tem dele, não se segue que esta última pode constituir todas as suas referências objetivas. Que um mapa contribui para a formação de um território não significa que o território é a invenção do cartógrafo” (Debray apud Vandenberghe, 2003: 465).

Em outros termos, acredito que a distinção sexo/gênero é importante e deve ser mantida. Contrariamente ao que defendem construtivistas radicais, a realidade da diferença sexual deve ser considerada “uma questão distinta dos processos sociais por meio dos quais as categorias de sexo são alocadas”. É este tipo de distinção que o realismo crítico oferece ao levar a sério a existência do mundo ou, de forma alternativa, ao propor uma distinção entre a ontologia e a epistemologia.

Com base nisto, em lugar do casamento feminismo/pós-modernismo, proponho aqui uma espécie de ménage a trois entre feminismo, hermenêutica e realismo crítico. Pretendo demonstrar que a vantagem desta associação decorre da possibilidade de se trabalhar com uma concepção de sujeito que, ainda que socialmente (e discursivamente) constituído, detém um certo grau de autonomia em relação à sociedade e à cultura que lhe permite resistir e alterar as condições que contribuem para sua opressão. Certamente que esta combinação não é isenta de problemas e dificuldades. Se a junção entre duas perspectivas teóricas distintas já é uma questão delicada, introduza um terceiro na relação e os problemas se multiplicam consideravelmente, conforme já demonstrou Simmel em seu trabalho sobre a tríade.

No restante deste trabalho, tentarei demonstrar os principais pontos de aproximação e de tensão entre essas três abordagens e, em seguida, oferecer uma tentativa de síntese.

2 comentários:

Le Cazzo disse...

Cynthia,

Texto interessante. Acho mesmo que é difícil pensar o político longe da tradição liberal, de onde provêm os noções como as de agência, intencionalidade, consciência etc. Acho que essa é uma das principais dificuldades que tem o pensamento francês mais sensível ao que, para simplificar, chamaremos de virada lingüística.

Mas a idéia de que a totalidade desses autores e autoras ao questionarem a oposição sujeito-objeto caem numa espécie de idealismo em que a realidade seria "o que os sujeitos acreditam ser real" pode e deve ser repensada. E aqui eu acho que o seu texto deveria especificar melhor os autores e autoras que você tem em mente. Sobretudo porque o autor que você usará mais adiante, segundo você propõe nessa introdução, será Gadamer.

Tanto Gadamer como Heidegger partem da necessidade, não de jogar no lixo as categorias de subjetividade e objetividade, consciência e realidade etc etc, mas de questionar o lugar metafísico, primordial, fundador que essas categorias assumem no pensamento ocidental. Acreditam os dois senhores que haveria uma cumplicidade entre essas oposições (inquetionáveis) e o pensamento tecnocrático - Foucault explorará isso a partir de Vigiar e Punir, por exemplo. E não é em nome de uma postura idealista que o fazem (pois tanto o idealismo como o empirismo compartilham o não pensado da oposição sujeito-objto). Todo ser humano é ser-no-mundo e portanto não pode ser pensado como mera idealidade. A abertura desse ser é, por outro lado, temporal e lingüística (e portanto mundaneidade desse ser nada tem a ver com a empiria, com um mundo independente de nós - pois essa concepção é evidentemente transcendental e metafísica: mundo é a forma como o ser do ser humano se abre às suas possibilidades).

Ora, mesmo que você não aceite o que diz Heidegger - mesmo sendo ele fundamental para colocar o problema da realidade do real etc -, é a partir dessas ponderações que Gadamer propõe sua hermenêutica.

Um aluno, há coisa de duas semanas, disse com uma certa raiva contida que essa estória de virada lingüística era bobagem: "Há uma diferença enorme entre narrar um jogo e jogar um jogo", disse. E, com uma certa fúria nos olhos, "se alguém leva um soco, a experiência da porrada é meramente linguagem"? Achei curioso sobretudo o último exemplo. A ponderação empiricista poderia ter sido rebatida por Marx (lembra da estória das cerejeiras nas Teses sobre Feuerbach?), mas acho que o pessoal da virada lingüística (penso aqui exclusivamente nos chamados pós-estruturalistas) insiste no fato de que a reação química, privada que eu teria ao levar eventualmente um tal soco só poderia se tornar social caso circulasse. Para tal é preciso linguagem. E toda linguagem é para Gadamer a possibilidade de um jogo entre a tradição (entre os horizontes do dizível) e a abertura do ser. E essa seria a possibilidade de agência - não a agência como princípio ontológico - caso em que cairíamos na metafísica - mas a "agência" (se assim a podemos chamar) delimitada pela temporalidade, historicidade do ser no mundo.

Imagino que nada disso tem a ver com as construcionistas que você tem em mente. E portanto espero o seu próximo post para ter uma delimitação mais adequada nesse sentido.

E se escrevi tanto é porque seu post me estimulou - sua culpa!

Jonatas

Cynthia disse...

Jonatas,

É por aí mesmo. Não é à toa que, de todos os autores da chamada virada linguistica, eu escolhi Gadamer para trabalhar a constituição histórica e social do sujeito.

Parte do problema é que, a fim de não estender demasiadamente um argumento, acabamos criando simplificações excessivas, evidentes, por ex., no uso do termo pós-modernismo. Isso é só para dizer que não sei se vou dar conta de separar todos os autores (na verdade, mais autoras do que autores) a que me oponho.

Mas vamos ver no que esse ménage vai dar. O que eu quero é uma concepção de sujeito que dê conta do problema da agência - um problema que, a meu ver, pós-estruturalistas como Butler não conseguem trabalhar porque, ao contrário de Gadamer, a linguagem para para ela não possibilita uma concepção de sujeito que se constitui por meio de um jogo dialético entre tradição, crítica e estranhamento. No caso dela, tendo a concordar com a análise de Maili Steele de que a linguagem é uma verdadeira ontologia do poder que produz efeitos que não podem ser caracterizados no vocabulário da tradição e do diálogo. Isso torna a crítica inviável e, em última análise, o outro fica inatingível.

Desconfio que isso tenha a ver com concepções de linguagem como a de Wittgenstein, que concebem o discurso como auto-contidos e impossíveis de serem traduzidos. Mas aí, o que sobra para nós, cientistas sociais? De um ponto de vista feminista, acho importante pensar no nosso trabalho como tradução.

Meu deus, essa resposta foi um verdadeiro fluxo de consciência. Foi mal...