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quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Descriminalização


Sessão habitual no júri da Comarca de São Lourenço da Mata


Post publicado originalmente aqui.

Artur Perrusi.

A discussão do aborto é complexa e, sendo utilizada para fins eleitorais, torna-se rasa e redutora. Além do mais, foi capturada pelo que tem de mais atrasado no cristianismo. As posições da Igreja Católica não se reduzem, por exemplo, às posições oficiais do Vaticano. Existem outras posições menos dogmáticas, sem a mania fundamentalista de ler a Bíblia de forma literal.

Não vejo problema de que, numa eleição, discuta-se sobre o aborto. O eleitor precisa conhecer as posições dos candidatos. O que lamento, na verdade, é a instrumentalização da discussão e sua captura pelo fundamentalismo cristão, somando-se à pusilanimidade dos candidatos, apavorados com a possível perda de votos, caso externassem sua verdadeira posição. Assim, todos rezam, todos beijam o crucifixo — hipocrisia.

Pesquisando no meu baú, procurava documentos contra a hipocrisia. De tanto procurar, achei uma velha entrevista da mãe de todas as mães, dos idos de 1987, concedida a um jornal do Ministério Público de Pernambuco. Uma entrevista bombástica, avançadíssima para a época, ainda mais num meio tão conservador como o Ministério Público. Transcrevi a parte relativa à querela do aborto — uma dia, transcrevo toda, porque é bastante atual, principalmente para os jovens carolas e reacionários dos dias de hoje.

Era o aniversário de 40 anos do jornal “Publicandum”. Tiveram a ideia de publicar, entre outras matérias, uma entrevista com um colega do ministério. Foi feito uma votação entre os pares e escolheram, logo quem, meu Deus, a Saint-Just da Comarca de São Lourenço da Mata, onde as sessões de júri eram mais populares do que a missa de domingo e um jogo do Santinha.

No baú, encontrei histórias explosivas dessa época, quando a região queimava seus criminosos nas labaredas da Salvação Pública. Um dia, conto mais.

O espantoso da discussão abaixo é que, desde aquela época, a situação mudou muito pouco, quase nada.

Lá vai:

PUBLICANDUM, ANO II, Nº3 – ASSOCIAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE PERNAMBUCO, JULHO/DEZEMBRO 1987, EDIÇÃO 40 ANOS

CONHECENDO A COLEGA MAUD

(Entrevista com Maud Fragoso de Albuquerque Perrusi, titular da 1ª Promotoria de Justiça da, Pernambuco, com exercício na Assessoria Técnica da Procuradoria Geral da Justiça).

1)………………………………………..

14) O aborto deve ser ou não descriminalizado?

A questão é muito complexa, pois, para melhor respondê-la, teríamos que buscar as razões da criminalização do aborto, sejam elas religiosas, econômicas, demográficas ou políticas.

Não podemos ignorar, por exemplo, a forte influência entre nós da Igreja Católica atual que, conservando a tradição cristã-judaica, condena o aborto sob o argumento de que o feto representa o testemunho de Deus, sendo, portanto, sua eliminação, um atentado à vida e a Deus, seu criador.

Por outro lado, a nossa política governamental, que se reflete na legislação penal, sempre foi repressiva a propósito do direito ao aborto. Em outros termos, a ideologia pequeno-burguesa, fortemente influenciada pela Igreja e cujos efeitos se fazem sentir na massa popular, envolve o aborto de toda a sorte de preconceitos da moral tradicional, a começar pelo sentimento de culpa e de pecado incutido pela Igreja na consciência feminina, se a mulher parte para a solução dramática do aborto.

O anteprojeto da parte especial do Código Penal traz algumas modificações a respeito do aborto. Ao invés de exclusão de punição, o “aborto necessário”, o “sentimental” e, agora o “piedoso” que, na verdade, é o aborto “eugênico”, passam a não constituírem crime.

Tendo em vista essas propostas de modificações a respeito da legislação do aborto, vemos que a tendência é no sentido de sua descriminalização. E não podemos ser contrários a esse fato, que reflete a nossa própria realidade.

Entretanto, isso não significa passar de repente a uma total descriminalização do aborto. Passaríamos, primeiramente, por uma política de conscientização da natalidade para que o aborto não seja visto como um meio contraceptivo. Em seguida, teríamos que cercar esse “direito ao aborto” de medidas prévias, como as que existem em países desenvolvidos, a exemplo da França, onde o “aborto precoce”, possível até a décima semana de gestação e somente praticado por médico, é precedido de estudos médico-psicológico e social que, se favoráveis, possibilitam a sua realização em hospital público ou privado, este, com autorização de funcionamento segundo o Código de Saúde Pública.

Essas modificações legislativas, no nosso país, visando a descriminalização do aborto, não implicarão no aumento do número de abortos realizados atualmente. Vale salientar que as práticas abortivas feitas, clandestinamente, somente favorecem a classe que tem meios econômicos para enfrentar o problema, em boas condições sanitárias.

A lei não pode, pois, ignorar esse fato e insistir nessa injustiça de classe. Ao contrário, a lei, para não se distanciar cada vez mais da realidade, deve tentar desmascarar essa hipocrisia.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Slavoy Zizek versus Paul Ricoeur: Democracia, Justiça Social e Tolerância



Cynthia Hamlin

Em dezembro do ano passado, nós do PPGS organizamos, junto com as Católicas pelo Direito de Decidir e com o SOS Corpo, um seminário sobre mulheres e violência. O pessoal das Católicas me pediu que apresentasse algo sobre aborto e violência, o que eu fiz com base na reformulação de algo que havia escrito por aqui. O post original lidava com dois conceitos principais, aborto e democracia, e buscava ilustrar a fragilidade da democracia brasileira ao caracterizar a ausência de um debate claro e transparente sobre aquele tema devido à inexistência de uma opinião pública esclarecida. A fim de poder trabalhar a questão da violência que me foi solicitada, introduzi o conceito de intolerância que, segundo a visão de Paul Ricoeur, permite estabelecer a mediação necessária entre violência e (ausência de) democracia.

Ontem, lendo mais atentamente uma entrevista de Slavoy Zizek que uma colega me enviou por email, fui levada a refletir sobre a tolerância como mediadora dessa relação e, portanto, como base da ação política. Neste momento, em que o Presidente Lula acaba de excluir a questão sobre o aborto do Plano Nacional de Direitos Humanos, a questão volta a se colocar num plano mais concreto: como diminuir a inequidade e a injustiça social se determinadas questões são deixadas de fora do debate, impedindo, dentre outras coisas, a formação de uma opinião pública que capacite para a ação política? Claro que ao colocar a questão desta forma já defini minha posição, mas creio que ela é defensável.

Crítico contumaz da idéia de democracia (formal e liberal), Zizek contrapõe-se à idéia de que a democracia deve ser o horizonte para o qual noções como equidade, liberdade e justiça social devem se orientar e argumenta que a noção de tolerância dilui a fronteira necessária entre a dimensão cultural e política. Com o provocante título de “A Ecologia é o Ópio do Povo”, Zizek (2009) responde à questão colocada por Ricardo Sanín, da Universidade Javeriana, na Colômbia: “O senhor tem insistido que tanto o multiculturalismo quanto os movimentos ecológicos não abordam os problemas políticos verdadeiramente agudos e relevantes para o mundo. Por quê?”. A resposta:

O multiculturalismo passa por cima dos problemas políticos verdadeiramente relevantes e agudos quando os reduz a meros problemas culturais. Quando lidamos com um problema real, tanto sua designação ideológica como sua percepção como tal introduz uma mistificação invisível. Digamos que a tolerância designa um problema real. É claro, sempre me perguntam: “Como você pode concordar com a intolerância com os estrangeiros, estar de acordo com o antifeminismo ou ao lado da homofobia?”. Aí reside a armadilha. Evidentemente, não estou de acordo. Ao que me oponho é à nossa percepção automática do racismo como mero problema de tolerância. Por que tantos problemas atualmente são percebidos como problemas de intolerância, em vez de serem entendidos como problemas de iniqüidade, exploração e injustiça? Por que o remédio tem de ser a tolerância em vez de a emancipação, a luta política, ou ainda a luta política armada? A resposta imediata está na operação básica do multiculturalismo liberal: “a culturização da política”. As diferenças políticas, diferenças condicionadas pela iniqüidade política ou a exploração econômica, se naturalizam como simples diferenças “culturais”. A causa desta culturização é o retrocesso, o fracasso das soluções políticas diretas, tais como o estado social. A tolerância é seu ersatz ou sucedâneo pós-político. A ideologia é, neste preciso sentido, uma noção que, enquanto designa um problema real, dilui uma fronteira de separação crucial.


Por mais que eu deteste a idéia de ter que concordar com Butler em relação à política, creio que ela e Laclau têm razão quando atribuem a Zizek uma certa “auto-complacência ingênua” em sua crítica à democracia (Butler, Laclau e Zizek, 2000: 289). De fato, por mais que eu discorde de um certo reducionismo cultural presente tanto na concepção de luta política como luta por identidade (caso de Butler e Laclau), quanto do multiculturalismo como a panacéia que cura todos os males, creio que não apenas a democracia é nossa melhor garantia contra as mais diversas formas de totalitarismo, mas também que a pluralidade de vozes pode ser um ponto de partida eficaz em relação ao estabelecimento do tipo de sociedade em que queremos viver. É neste ponto que concordo com a definição de Ricoeur sociedades democráticas como sociedades da tolerância e volto a argumentar sobre a fragilidade da democracia brasileira a partir da forma como o aborto (não) é debatido entre nós.

Em um certo sentido, a violência é a intolerância em sua forma mais extrema: trata-se da imposição, pela força, das crenças e convicções de uns sobre outros. Como afirma Paul Ricoeur (2000: 20), “dois componentes são necessários à intolerância: a desaprovação das crenças e das convicções do outro e o poder de impedir que esse outro leve sua vida como bem entenda”. Embora essa propensão a impor as próprias crenças seja universal, isto é, comum a todos os seres humanos, “ela assume um caráter histórico quando o poder de impedir é sustentado pela força pública, a de um Estado, e a desaprovação assume a forma de uma condenação pública, exercida por um Estado sectário, que professa uma visão particular do bem” (Ibid). É o pluralismo das crenças ou das visões do bem que caracteriza as sociedades democráticas que podem, por esta razão, ser concebidas como sociedades da tolerância.