"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate":
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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
Slavoy Zizek versus Paul Ricoeur: Democracia, Justiça Social e Tolerância
Cynthia Hamlin
Em dezembro do ano passado, nós do PPGS organizamos, junto com as Católicas pelo Direito de Decidir e com o SOS Corpo, um seminário sobre mulheres e violência. O pessoal das Católicas me pediu que apresentasse algo sobre aborto e violência, o que eu fiz com base na reformulação de algo que havia escrito por aqui. O post original lidava com dois conceitos principais, aborto e democracia, e buscava ilustrar a fragilidade da democracia brasileira ao caracterizar a ausência de um debate claro e transparente sobre aquele tema devido à inexistência de uma opinião pública esclarecida. A fim de poder trabalhar a questão da violência que me foi solicitada, introduzi o conceito de intolerância que, segundo a visão de Paul Ricoeur, permite estabelecer a mediação necessária entre violência e (ausência de) democracia.
Ontem, lendo mais atentamente uma entrevista de Slavoy Zizek que uma colega me enviou por email, fui levada a refletir sobre a tolerância como mediadora dessa relação e, portanto, como base da ação política. Neste momento, em que o Presidente Lula acaba de excluir a questão sobre o aborto do Plano Nacional de Direitos Humanos, a questão volta a se colocar num plano mais concreto: como diminuir a inequidade e a injustiça social se determinadas questões são deixadas de fora do debate, impedindo, dentre outras coisas, a formação de uma opinião pública que capacite para a ação política? Claro que ao colocar a questão desta forma já defini minha posição, mas creio que ela é defensável.
Crítico contumaz da idéia de democracia (formal e liberal), Zizek contrapõe-se à idéia de que a democracia deve ser o horizonte para o qual noções como equidade, liberdade e justiça social devem se orientar e argumenta que a noção de tolerância dilui a fronteira necessária entre a dimensão cultural e política. Com o provocante título de “A Ecologia é o Ópio do Povo”, Zizek (2009) responde à questão colocada por Ricardo Sanín, da Universidade Javeriana, na Colômbia: “O senhor tem insistido que tanto o multiculturalismo quanto os movimentos ecológicos não abordam os problemas políticos verdadeiramente agudos e relevantes para o mundo. Por quê?”. A resposta:
O multiculturalismo passa por cima dos problemas políticos verdadeiramente relevantes e agudos quando os reduz a meros problemas culturais. Quando lidamos com um problema real, tanto sua designação ideológica como sua percepção como tal introduz uma mistificação invisível. Digamos que a tolerância designa um problema real. É claro, sempre me perguntam: “Como você pode concordar com a intolerância com os estrangeiros, estar de acordo com o antifeminismo ou ao lado da homofobia?”. Aí reside a armadilha. Evidentemente, não estou de acordo. Ao que me oponho é à nossa percepção automática do racismo como mero problema de tolerância. Por que tantos problemas atualmente são percebidos como problemas de intolerância, em vez de serem entendidos como problemas de iniqüidade, exploração e injustiça? Por que o remédio tem de ser a tolerância em vez de a emancipação, a luta política, ou ainda a luta política armada? A resposta imediata está na operação básica do multiculturalismo liberal: “a culturização da política”. As diferenças políticas, diferenças condicionadas pela iniqüidade política ou a exploração econômica, se naturalizam como simples diferenças “culturais”. A causa desta culturização é o retrocesso, o fracasso das soluções políticas diretas, tais como o estado social. A tolerância é seu ersatz ou sucedâneo pós-político. A ideologia é, neste preciso sentido, uma noção que, enquanto designa um problema real, dilui uma fronteira de separação crucial.
Por mais que eu deteste a idéia de ter que concordar com Butler em relação à política, creio que ela e Laclau têm razão quando atribuem a Zizek uma certa “auto-complacência ingênua” em sua crítica à democracia (Butler, Laclau e Zizek, 2000: 289). De fato, por mais que eu discorde de um certo reducionismo cultural presente tanto na concepção de luta política como luta por identidade (caso de Butler e Laclau), quanto do multiculturalismo como a panacéia que cura todos os males, creio que não apenas a democracia é nossa melhor garantia contra as mais diversas formas de totalitarismo, mas também que a pluralidade de vozes pode ser um ponto de partida eficaz em relação ao estabelecimento do tipo de sociedade em que queremos viver. É neste ponto que concordo com a definição de Ricoeur sociedades democráticas como sociedades da tolerância e volto a argumentar sobre a fragilidade da democracia brasileira a partir da forma como o aborto (não) é debatido entre nós.
Em um certo sentido, a violência é a intolerância em sua forma mais extrema: trata-se da imposição, pela força, das crenças e convicções de uns sobre outros. Como afirma Paul Ricoeur (2000: 20), “dois componentes são necessários à intolerância: a desaprovação das crenças e das convicções do outro e o poder de impedir que esse outro leve sua vida como bem entenda”. Embora essa propensão a impor as próprias crenças seja universal, isto é, comum a todos os seres humanos, “ela assume um caráter histórico quando o poder de impedir é sustentado pela força pública, a de um Estado, e a desaprovação assume a forma de uma condenação pública, exercida por um Estado sectário, que professa uma visão particular do bem” (Ibid). É o pluralismo das crenças ou das visões do bem que caracteriza as sociedades democráticas que podem, por esta razão, ser concebidas como sociedades da tolerância.
Para Ricoeur, existem graus distintos de tolerância: em seu nível mais baixo, tolera-se aquilo que se desaprova porque não se pode impedir que o outro viva de acordo com suas convicções. Num segundo nível, existe a vontade ou a disposição de se compreender as convicções contrárias, mas sem aderir a elas. No terceiro nível, baseado no princípio de liberdade de escolha no âmbito da crença, se reconhece o direito que cada pessoa tem de viver segundo suas convicções, assim como o direito ao erro. Num grau mais elevado, a crise da idéia de verdade faz com que a tolerância transponha um limite crítico: “a simpatia pelas idéias das quais não compartilhamos ... dá lugar à suposição de que uma parte da verdade está em outro lugar que não nas convicções que fundamentam as tradições em que fomos educados” (Ibid. 21-22). Assim, a vitória da tolerância, e da democracia, ocorre quando, em lugar do uso da violência, a mediação dos conflitos inevitáveis entre crenças e convicções plurais se estabelece por meio de uma ética da discussão, em um espaço público, por parte de uma opinião pública esclarecida.
Com base na relação estabelecida por Ricoeur entre violência, intolerância e democracia, gostaria de lançar a seguinte questão: como nós, brasileiros, temos lidado com a pluralidade de crenças e opiniões acerca do aborto, uma questão que atinge milhões de cidadãos todos os anos? Como anda a qualidade da democracia brasileira? A fim de me ajudar a refletir, efetuarei aqui uma pequena comparação entre a forma como o aborto vem sendo tratado no Brasil e no Canadá, uma sociedade cuja identidade tem se apoiado cada vez mais na idéia de multiculturalismo e, portanto, naquilo que Ricoeur se refere como pluralismo das visões do bem.
O debate sobre o aborto no Brasil ressurgiu em 2007, quando o Ministro da Saúde José Gomes Temporão sugeriu que o aborto é uma questão de saúde pública e, como tal, sua descriminalização deveria ser debatida pela sociedade civil e pelo Estado. No Canadá, a questão ressurge quando, em primeiro de julho de 2008, a imprensa divulgou a lista dos indicados à maior honraria concedida pelo governo a membros da sociedade civil: a ordem do Canadá. Entre os 75 indicados, o médico de 85 anos, Henry Morgentaler.
Morgentaler é um judeu polonês sobrevivente do holocausto. Anti-Sionista declarado, recusou-se a emigrar para Israel após a Guerra e, para horror de sua família, aceitou uma bolsa de estudos para estudar medicina numa universidade da Alemanha. Como parte do acordo firmado após a Guerra, famílias alemãs deveriam alojar os bolsistas até o fim de seus estudos. Foi assim que Morgentaler formou-se em medicina e, nos anos de 1950, emigrou para o Canadá. Lá, juntou-se a um grupo humanista, o Humanist Fellowship of Montreal. Como representante do grupo, certa vez afirmou, perante um comitê do governo federal do Canadá, que acreditava no direito de todas as mulheres a um aborto seguro. Isso ocorreu em 1967, quando o aborto no Canadá era ilegal, exceto quando a gravidez colocava em risco a saúde da mulher. Seu pronunciamento virou manchete dos principais jornais do país e, a partir de então, dezenas de mulheres começaram a aparecer em sua clínica, implorando que ele lhes proporcionasse um aborto seguro. Diante da ilegalidade do ato, viu-se forçado a afirmar que, ainda que como médico pudesse fazê-lo, não o faria porque isso era contra a lei. Foi então que veio a reflexão. Em suas próprias palavras, “fui enredado em minha própria retórica. Senti-me como um covarde e um hipócrita” (citado no Globe and Mail, 18 de janeiro de 2003).
Em 1968, ele fez um aborto na filha de amigos e, no ano seguinte, fechou sua clínica de medicina familiar e abriu outra, onde passou a fazer abortos ilegais de maneira aberta. Chegou a ser preso e esteve envolvido em batalhas legais e ameaças por parte de diversos grupos, especialmente religiosos. Apesar disso, afirmou nunca ter acreditado que um júri popular o condenaria por um crime, o que se mostrou verdadeiro. Em 1970, quando foi preso pela primeira vez, foi considerado inocente por um júri composto de 11 homens e uma mulher. Quatro anos mais tarde, um grupo de juízes católicos de Quebec recorreu do veredicto e ele foi preso pela segunda vez. Foi absolvido nas duas outras vezes em que foi a júri popular. Em 1975, o governo de Quebec instituiu o que se conhece como a emenda Morgentaler, que estabelecia que o veredicto do júri popular não poderia mais ser revertido. No ano seguinte, o Partido Québécois determinou que a lei anti-aborto não seria mais aplicada na província de Quebec.
Mas as batalhas legais não pararam por aí. Em 1983, Morgentaler e mais dois colegas foram acusados por um tribunal de Ontário de efetuar abortos ilegais. Foram novamente absolvidos pelo júri popular. De apelo em apelo, o caso foi parar na Suprema Corte do Canadá (Globe and Mail, 18 de janeiro de 2003). Em 1988, a Suprema Corte determinou que a lei que restringia o aborto aos casos de risco de vida para a mãe era inconstitucional, pois violava o direito à “segurança da pessoa” previsto na Carta Canadense de Direitos e Liberdades. Desde então, não há uma lei que regulamente o aborto naquele país. A decisão de se submeter ou não a um aborto é considerada uma questão de foro íntimo e não precisa do aval de médicos, juízes ou quem quer que seja.
A indicação de Morgentaler à Ordem do Canadá gerou um grande debate na mídia. De acordo com uma pesquisa de opinião desenvolvida em 2001, 46,6% dos canadenses eram favoráveis ao aborto, 37,6% eram contra e 15,8% não sabiam ou se recusaram a responder. Como se vê, esta não é uma questão consensual e o debate que a indicação de Morgentaler levantou foi em que medida um defensor ardoroso de uma causa que divide de tal forma a opinião pública poderia ser indicado a receber a maior honraria do governo. Ao que tudo indica, prevaleceu a opinião de que Morgentaler era, sim, um cidadão exemplar na medida em que, com base em suas convicções humanistas (em particular a de que toda mulher tem direito a um aborto seguro), dedicou anos de sua vida lutando por uma causa, colocando em risco sua própria integridade física.
Embora diversos leitores tenham se manifestado francamente contra o aborto, os grupos pró-vida tenham aproveitado o caso Morgentaler para expor seus pontos de vista e diversos ganhadores da Ordem do Canadá tenham devolvido suas medalhas em sinal de repúdio, em nenhum momento observei o debate pender para um retorno à sua criminalização. Pelo menos não nos meios de comunicação de massa. Por exemplo, a seção de sociologia do Globe and Mail publicou diversos artigos com depoimentos de mulheres que já se submeteram a um aborto. A idéia é que o tema deixe de ser um tabu e que “o estigma em torno do procedimento que não ousa dizer seu nome” possa ser olhado de frente e debatido de maneira aberta (Globe and Mail, 19 de julho de 2008). Embora não me caiba aqui fazer uma avaliação da qualidade da mídia canadense, a forma como o tema foi tratado demonstrou uma preocupação em ajudar a construir uma opinião pública informada que, por meio de uma ética da discussão, pode garantir a mediação entre uma pluralidade de posições morais ou de visões do bem. Só assim as mulheres (mas não o Estado) podem decidir o que fazer diante de uma gravidez não-planejada.
Enquanto diversos países do mundo se engajam em campanhas pela quebra do silêncio em torno do aborto a fim de gerar uma opinião pública esclarecida, o Brasil parece ter optado pelo silêncio. Talvez o uso do termo “opção” não seja adequado. Mais adequado seria afirmar que a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados silenciou um debate que, independentemente de seu conteúdo ou de seu resultado, deveria estar no cerne de qualquer decisão em uma sociedade democrática. Desde 1991, o Projeto de Lei 1135/91 tramita no Congresso Nacional. O PL visa à supressão do artigo 24 do código penal de 1940, que prevê uma pena de um a três anos de detenção a toda mulher que “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. No dia 9 de julho de 2008, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB- RJ), presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e relator do PL, levou seu parecer para ser votado pelos membros da Comissão. De acordo com o parecer, o projeto seria inconstitucional porque “o Constituinte de 1988 não esclareceu se garante o direito à vida humana desde a concepção ou somente após o nascimento com vida”. Ocorre, entretanto, que a proposta de estabelecer a proteção da vida desde sua concepção foi exaustivamente discutida, analisada, votada e rejeitada pelos constituintes, ficando determinado que a questão deveria ser tratada a partir de leis ordinárias.
Outro problema é que o parecer estava pronto antes mesmo das audiências públicas que visavam esclarecer a questão para os membros da Comissão. O caráter antidemocrático da votação, conduzido de forma a beneficiar as posições contrárias ao projeto, foi resumido pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfêmea) em uma nota pública:
1- o PL foi debatido em apenas duas audiências públicas, o que é pouco para a complexidade do tema; 2-metade dos especialistas convocados para a primeira audiência eram integrantes de igrejas cristãs, iniciativa que afronta o princípio constitucional da laicidade do Estado brasileiro, que não deve orientar suas leis por convicções religiosas de quaisquer igrejas; 3- as duas audiências públicas foram realizadas quando o relator já havia constituído posição e apresentado seu parecer; ao longo das audiências, vários parlamentares adiantaram seu voto, ou seja, em que pese o esforço de parlamentares aliados, especialistas convidados e da sociedade civil, essas audiências representaram uma farsa pois o parecer do relator foi seriamente questionado na sua argumentação jurídica e, mesmo assim, está mantido como documento da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania pelo presidente da Comissão.
A questão, portanto, é grave. E por uma série de razões. É inconcebível, por exemplo, que um legislador de um país desconheça a Constituição. Mais inconcebível ainda é que, apontadas suas interpretações equivocadas, o documento redigido com base em seus equívocos continue a servir como referência para uma decisão que afetará a vida de milhões de pessoas. Também é inconcebível que um Estado laico se apóie tão fortemente na posição de Igrejas – especialmente quando esta posição é tratada como algo monolítico, sem que de fato o seja. Assim como ocorre com outras instituições da sociedade civil, a diversidade de opiniões também ocorre no seio do cristianismo, inclusive da Igreja Católica. A posição da CNBB, segundo a qual o aborto é proibido em todo e qualquer estágio da gravidez, data do final do século XIX, no pontificado do papa Leão XIII. Ao longo de sua história, a Igreja Católica oficialmente apresentou graus de tolerância distintos em relação ao aborto com base na idéia de Aristóteles de que a alma humana só apareceria nos fetos masculinos aos 40 dias de gestação e, nos femininos, aos 90. Essas datas variaram ao longo da história da Igreja, indo de 40, 80 ou 116 dias, durante os quais o aborto era tolerado. Foi ao expor esta diversidade de posições e ao defender o direito de escolha das mulheres de levar uma gravidez a termo que a teóloga e freira católica Ivone Gebara foi forçada a dois anos de silêncio pelo Vaticano. Que a Igreja Católica se veja na obrigação de calar a boca de seus dissidentes e apresentar suas posições oficiais sem levar em conta a diversidade de opiniões é uma coisa. Que um Estado laico que se propõe democrático o faça, e se apoiando na intolerância de uma das Igrejas que compõem a sociedade civil, são outros quinhentos.
O que constitui a vida, e a vida humana, em particular, é uma questão complexa e que tem se tornado progressivamente mais difícil de determinar à medida novas tecnologias de produção e de reprodução da vida têm aparecido. De fato, a Constituição brasileira leva em consideração esta dificuldade e estabelece que a proteção da vida não pode ser determinada constitucionalmente a partir de sua concepção, mas deve ser regulamentada a partir de leis ordinárias. Foi isto, por exemplo, que garantiu a aprovação no Congresso Nacional, em 2005, do uso de células-tronco embrionárias advindas de embriões não-utilizados pelas clínicas de fertilização. Por que, no caso do aborto, o direito à vida seria determinado constitucionalmente a partir da concepção, como acredita, equivocadamente, o deputado Eduardo Cunha? Creio que a resposta é relativamente simples: porque se baseia em um princípio moral, o de que a mulher é responsável por toda e qualquer gestação que derive de um ato consentido, e que é tomado de forma absoluta.
Assim, em abstrato, o princípio moral é válido. O problema surge quando consideramos que princípios morais não podem ser determinados a partir de um universalismo abstrato à maneira do imperativo categórico de Kant, mas da interação entre princípios, valores e regras abstratas relacionadas a uma ética da justiça, por um lado, e as relações interpessoais concretas baseadas na particularidade e nos laços afetivos que caracterizam uma ética do cuidado, por outro (cf. Gilligan, 1997; Friedman, 1997).
Sabe-se, por exemplo, que, mesmo com o uso dos métodos contraceptivos mais eficazes, como é o caso da pílula, existe uma chance de cerca de 2% em um ano de que ela falhe. E isso considerando que as mulheres de fato tenham acesso à informação e a métodos eficazes como este. Isto significa que, ainda que o sistema de educação e de saúde pública do Brasil garantisse o acesso universal a ambos (o que, convenhamos, não é o caso), o aborto, assim como ocorre no resto do mundo, ainda seria utilizado como recurso por uma grande parte das mulheres – o que retira o problema da dimensão exclusivamente moral, trazendo-a para a saúde pública. De fato, de acordo com o Cfêmea, estima-se que ocorram cerca de um milhão de abortos por ano no Brasil, o que dá uma média de 2.740 por dia. No que se refere ao resto do mundo, alguns dados são apresentados pela ONG Women on Waves:
-Mais de 1/3 de todas as gestações no mundo são não-planejadas. -Todos os anos, cerca de 1/4 de todas as mulheres grávidas do mundo decidem fazer um aborto (cerca de 42 milhões por ano). -Aproximadamente 25% da população mundial vive em países com leis sobre o aborto altamente restritivas, especialmente na América Latina, África e Ásia. -O status legal do aborto faz pouca diferença em relação aos níveis de incidência estimada de abortos (torná-lo ilegal não diminui seu número) -Onde é ilegal, são principalmente as mulheres sem recursos financeiros que recorrem a métodos não-seguros de aborto, o que resulta na morte de uma mulher a cada 7 minutos. -20 dos 42 milhões de abortos efetuados a cada ano são considerados não-seguros. -Entre 10 e 50% dos abortos não-seguros requerem intervenção médica, o que nem sempre ocorre porque, em países em que é ilegal, as mulheres não procuram assistência. -Quando desempenhado por pessoas competentes e sob condições sanitárias adequadas, o aborto é um procedimento bastante seguro. Nos EUA, por exemplo, a taxa de mortalidade por abortamento é de 0.6 por 100.000, isto é, mais seguro do que uma injeção de penicilina. -Quando o aborto foi proibido na Romênia em 1966, a taxa de mortalidade materna aumentou drasticamente, tornando-se 10 vezes maior do que no restante da Europa. Quando foi descriminalizado novamente, em 1989, a taxa voltou a cair.
Percebe-se, portanto, que a criminalização do aborto traz consigo um efeito perverso: um reforço das desigualdades que se reflete em maiores taxas de mortalidade materna entre mulheres de classe baixa. Além disso, mesmo para as mulheres de classe média que podem pagar entre cerca de R$ 1.500 e R$ 3.000 por um aborto em uma clínica com condições mínimas de higiene e com um médico minimamente capacitado, não há controle sobre os procedimentos efetuados. Vale lembrar que, para cada Morgentaler guiado por razões humanísticas existe um mercenário e um incompetente de plantão. Foi por razões como estas que a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou, em agosto de 2008, uma resolução que pede que todos os Estados-Membros da União Européia despenalizem o aborto e melhorem a prestação de serviços de contracepção, garantindo assim o direito de todas as cidadãs européias.
Que se questione em que medida o direito a um aborto seguro pode ser considerado parte do direito à segurança da pessoa me parece legítimo, ainda que equivocado – especialmente se considerarmos quem são as principais vitimas da ausência de uma política de saúde neste âmbito. O que não me parece legítimo é um Estado democrático impeça a discussão clara e transparente de um assunto de interesse público, como ocorreu no Brasil. Infelizmente para a democracia brasileira, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania levou ao triunfo da intolerância ao ajudar a constituir um Estado sectário que, totalmente apoiado na Igreja, impôs a seus cidadãos uma visão particular do bem.
Referências
BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ZIZEK Slavoj (2000) Contingency, Hegemony, Universality. Londres, Verso. FRIEDMAN, Marilyn (1997). Beyond Caring: the de-moralization of gender. In: Diana Tietjens Meyers (ed) Feminist Social Thought: a reader. Nova York e Londres, Routledge. GILLIGAN, Carol (1997). In a Different Voice: women’s conceptions of self and morality. In: Diana Tietjens Meyers (ed) Feminist Social Thought: a reader. Nova York e Londres, Routledge. RICOEUR, Paul (2000). Etapa Atual do Pensamento sobre a Intolerância. In: Françoise Barret-Ducrocq (ed.). A Intolerância: foro internacional sobre a intolerância, Unesco, 27 de março de 1997. La Sorbonne, 28 de março de 1997. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. WIESEL, Elie (2000). Prefácio. In: Françoise Barret-Ducrocq (ed.). A Intolerância: foro internacional sobre a intolerância, Unesco, 27 de março de 1997. La Sorbonne, 28 de março de 1997. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. ZIZEK, Slavoy (2009). “A Ecologia é o Ópio do Povo”. Slavoy Zizek entrevistado por Ricardo Sanín. Magis: Revista da Unisinos, no. 5, dez/jan 2009-2010.
7 comentários:
Maria Fernanda Dias
disse...
Terrível ver pessoas inteligentes defenderem o assassinato de crianças inocentes dessa forma.
Não há justificativa para tal atrocidade. Dilma diz que o aborto é uma violência contra a mulher. Ninguém se lembra dos inocentes...
Há alguns anos vi um vídeo sobre o tema. Foi sangustiante que nem quero mais lembrá-lo.
Eu gostaria de ter feito um comentário favorável, mas o aborto é um ato tão hediondo que se torna impossível aceitá-lo. Nada a ver com religiosidade, visto que qualquer pessoa ateia, agnóstica, cristã (católica ou protestante), budista, hinduísta, flamenguista pode muito bem ser contra o aborto.
Eu acho que ninguém é "a favor" do aborto. O que algumas pessoas defendem, inclusive eu, é que esta não é uma questão para ser definida por médicos e juízes, mas pelas pessoas envolvidas.
Muito bom o texto! Mas, ainda há muitos que pensam que a responsabilidade deve recair só nos ombros da mulher quando a relação é consentida. Num país, onde o aborto ainda é ilegal, parece-nos que a mulher deve carregar uma culpa e se condenar por possuir um útero, uma vez que se até os métodos contraceptivos podem falhar. Deveria ela sublimar seus desejos sexuais e somente ter relações quando desejasse engravidar? São condenadas porque engravidam e também por pensarem em abortar. Se será a mulher que carregará o feto por nove meses e um@ filh@ para o resto de sua vida, por que ela não tem o direito de decidir se pretende levar adiante uma gravidez? O nosso Estado e a sociedadde parece que ainda vai demorar muito para se tornarem laicos e discutir seriamente essas questões...
Obrigada, Carol. Mas o mais triste é perceber que desde que esse texto foi publicado a questão da laicidade do Estado só tem piorado: em vez de atores da sociedade civil, as igrejas, sobretudo as evangélicas, são cada vez mais parte integrante do Estado.
E enquanto socióloga, acadêmica e feminista, você visualiza algo que poderia ser feito, ou permanecemos de mãos atadas, já que as decisões perpassam os outros poderes?
Carol, em qualquer lugar do mundo uma das funções do intelectual é contribuir para a formação de uma opinião pública. Da mesma forma que não há democracia sem debate público, não há democracia real sem uma população educada. Há, ainda, a possibilidade de contribuições mais diretas, por ex, na formulação de políticas públicas. A aprovação da legalização do aborto no caso de anencéfalos pelo STF foi um caso assim - se você observar os votos dos Ministros, todos se embasaram em conhecimento construídos por estudiosos do tema. Há, ainda, contribuições menos impactantes mas, nem por isso, menos importantes. Como exemplo, há cerca de dois anos, o SOS Corpo, ONG com base em Recife, organizou um seminário para discutir as possibilidades de novas políticas relativas ao aborto. Neste seminário estavam presentes professoras universitárias, representantes de ONG's, de movimentos de mulheres e diversos tipos de intelectuais. Dentre as presentes, estava Eleonora Menicucci, professora da USP e, pouco depois, Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Claro que isso não é um trabalho individual, isolado, mas mostra que não estamos de mãos atadas. Aliás, as Marchas das Vadias têm sido um excelente veículo de conscientização política.
7 comentários:
Terrível ver pessoas inteligentes defenderem o assassinato de crianças inocentes dessa forma.
Não há justificativa para tal atrocidade. Dilma diz que o aborto é uma violência contra a mulher. Ninguém se lembra dos inocentes...
Há alguns anos vi um vídeo sobre o tema. Foi sangustiante que nem quero mais lembrá-lo.
Eu gostaria de ter feito um comentário favorável, mas o aborto é um ato tão hediondo que se torna impossível aceitá-lo. Nada a ver com religiosidade, visto que qualquer pessoa ateia, agnóstica, cristã (católica ou protestante), budista, hinduísta, flamenguista pode muito bem ser contra o aborto.
Abraços.
Eu acho que ninguém é "a favor" do aborto. O que algumas pessoas defendem, inclusive eu, é que esta não é uma questão para ser definida por médicos e juízes, mas pelas pessoas envolvidas.
Abç
Muito bom o texto!
Mas, ainda há muitos que pensam que a responsabilidade deve recair só nos ombros da mulher quando a relação é consentida.
Num país, onde o aborto ainda é ilegal, parece-nos que a mulher deve carregar uma culpa e se condenar por possuir um útero, uma vez que se até os métodos contraceptivos podem falhar.
Deveria ela sublimar seus desejos sexuais e somente ter relações quando desejasse engravidar?
São condenadas porque engravidam e também por pensarem em abortar.
Se será a mulher que carregará o feto por nove meses e um@ filh@ para o resto de sua vida, por que ela não tem o direito de decidir se pretende levar adiante uma gravidez?
O nosso Estado e a sociedadde parece que ainda vai demorar muito para se tornarem laicos e discutir seriamente essas questões...
Obrigada, Carol. Mas o mais triste é perceber que desde que esse texto foi publicado a questão da laicidade do Estado só tem piorado: em vez de atores da sociedade civil, as igrejas, sobretudo as evangélicas, são cada vez mais parte integrante do Estado.
E enquanto socióloga, acadêmica e feminista,
você visualiza algo que poderia ser feito, ou permanecemos de mãos atadas,
já que as decisões perpassam os outros poderes?
Carol, em qualquer lugar do mundo uma das funções do intelectual é contribuir para a formação de uma opinião pública. Da mesma forma que não há democracia sem debate público, não há democracia real sem uma população educada. Há, ainda, a possibilidade de contribuições mais diretas, por ex, na formulação de políticas públicas. A aprovação da legalização do aborto no caso de anencéfalos pelo STF foi um caso assim - se você observar os votos dos Ministros, todos se embasaram em conhecimento construídos por estudiosos do tema. Há, ainda, contribuições menos impactantes mas, nem por isso, menos importantes. Como exemplo, há cerca de dois anos, o SOS Corpo, ONG com base em Recife, organizou um seminário para discutir as possibilidades de novas políticas relativas ao aborto. Neste seminário estavam presentes professoras universitárias, representantes de ONG's, de movimentos de mulheres e diversos tipos de intelectuais. Dentre as presentes, estava Eleonora Menicucci, professora da USP e, pouco depois, Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Claro que isso não é um trabalho individual, isolado, mas mostra que não estamos de mãos atadas. Aliás, as Marchas das Vadias têm sido um excelente veículo de conscientização política.
Abç
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