"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
Mostrando postagens com marcador filosofia da linguagem. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador filosofia da linguagem. Mostrar todas as postagens
domingo, 19 de dezembro de 2010
Um dia de banca
Por Artur Perrusi
Farei um dropes -- nada de jujuba ou de chiclete. Um drops sobre banca de doutorado, para ser mais específico. Tive a ideia, agorinha, de partilhar minhas experiências de bancas de dissertação e de tese. Por que não?! Pensei. As bancas, em certa medida, geram discussões bem interessantes. Muitas são divertidas, algumas até trágicas. É um ritual de passagem bastante curioso, uma liturgia que, para os mais pessimistas, é uma “violência simbólica”. De todo modo, pode ser uma situação tensa e cheia de expectativas. Como sou psiquiatra, logo, um vampiro do sofrimento alheio, as bancas proporcionam bons momentos de ansiedade e angústia. Dá barato, podem ter certeza. Mas, como disse acima, meus comentários focalizarão apenas o lado cognitivo das bancas, inclusive para evitar constrangimentos.
(não falarei, por exemplo, daquela banca em que o orientando cortou os pulsos na frente de todo mundo e tentou morder o orientador – não, não falarei disso. Jonatas, uma vez... bem... er... deixa pra lá.)
Pessoalmente, gosto das bancas de outras áreas que não a sociologia. Aprendo bastante e escuto atentamente a discussão. Nas bancas de sociologia, é raro me surpreender, já que os participantes têm o mesmo defeito: são todos da mesma área. Já noutras bancas, a surpresa rola e o aprendizado aparece na forma da perplexidade – pois é, defendo que a perplexidade é uma postura cognitiva superior
(Inicialmente, pensei que a faculdade de ficar perplexo era um sinal de envelhecimento, afinal, os jovens não se espantam; mas, depois, descobri que poderia ser, embora não descarte problemas degenerativos cerebrais, um sinal de sabedoria).
Na semana passada, participei de uma banca de doutorado na área de filosofia. Foi uma banca composta por seis membros, contando com o orientador – bem numerosa, portanto. Durou um bocado, mais de quatro horas. Nela, estava cercado de filósofos, olhando-me de forma curiosa e atentos à minha arguição.
_São simpáticos, os filósofos! Pensei. Vixe, como seus olhos são grandes. E as orelhas... E os dentes... nossa, como são grandes seus dentes!
Marcadores:
banca,
dropes,
filosofia da linguagem,
naturalização,
violência
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Hermenêutica Filosófica

O texto abaixo, anônimo, foi escrito a ponta de facão no balcão de uma bodega no Passo do Elesbão, hoje Tapera, Rio Grande do Sul. Segundo José de Souza Martins, trata-se de um pasquim, narrativa anônima muito comum no Brasil até o século XVIII e geralmente escrito em papel e pregado em mourões e porteiras pelas estradas, contendo denúncia ou protesto. Recebi-o por e-mail e compartilho-o aqui com vocês.
Inicialmente, achei tratar-se de um exemplar de hermenêutica bíblica, à maneira de Lutero. O estranhamento surgiu quando, ao ler a conclusão, achei que ela não era muito compatível com a “tradução” luterana dos dez mandamentos. Especulei então que não se trata de uma tentativa de desvelar o verdadeiro significado das escrituras sagradas, mas diz respeito a um problema muito mais fundamental, trabalhado pela hermenêutica filosófica de Gadamer: a compreensão como um “evento” linguisticamente mediado da tradição. A manifestação da tradição ficou clara, assim como os preconceitos e a “fusão de horizontes” do texto bíblico e de seu intérprete. O problema é que, como sabemos, ao perceber os preconceitos por um viés positivo, Gadamer acaba por considerar a autoridade e a tradição como fontes legítimas de conhecimento. Mas será isso mesmo, ou será que Habermas está certo em ver na ausência de crítica à tradição um empecilho ao entendimento? Sei lá, talvez o fato de a interpretação ter sido feita em uma bodega tenha influenciado: vai ver Hermes encontrou Dionísio no caminho e a experiência que deveria desvelar o mundo foi etílica, em vez de estética...
Cynthia Hamlin
O causo das Escrituras
Pois não sei se já les contei o causo das Escrituras Sagradas.
Se não les contei, les conto agora. A história essa é meio comprida, mas vale a pena contá por causa dos revertério.
De Adão e Eva acho que não é perciso contá os causo, porque todo mundo sabe que os dois foram corrido do Paraíso por tomá banho pelado numa sanga.
Naqueles tempo, esse mundaréu todo era um pasto só sem dono, onde não tinha nem dele nem meu. O primeiro índio a botá cerca de arame foi um tal de Abel. Mas nem chegou a estendê o primeiro fio porque levou um pontaço no peito do irmão dele, um tal de Caim, que tava meio desconforme com a divisão.
O Caim, entonces, ameaçado de processo feio, se bandeou pro Uruguay. Deixou o filho dele, um tal de Noé, tomando conta da estância. A estância essa ficava nas barranca de uma corredera e o Noé, uns ano despois, pegou uma enchente muito feia pela frente. Cosa munto séria. Caiu água uma barbaridade. Caiu tanta água que tinha até índio pescando jundiá em cima de cerro.
O Noé entonces botou as criação em cima de uma balsa e se largou nas correnteza, o índio velho. A enchente era tão braba que quando o Noé se deu conta a balsa tava atolado num banhado chamado Dilúvio.
Foi aí que um tal de Moisés varou aquela água toda com vinte junta de boi e tirou a balsa do atoleiro. Bueno, aí com aquele desporpósito, as família ficaram amiga. A filha mais velha do Noé se casou-se com o filho mais novo do Moisés e os dois foram morá numa estância muito linda, chamada estância da Babilônica.
Bueno, tavam as família ali, tomando mate no galpão, quando se chegou um correntino chamado Golias, com mais uns trinta castelhano do lado dele. Abriram a cordeona e quiseram obrigá as prenda a dançá uma milonga. Foi quando os velho, que eram de muito respeito, se queimaram e deu-se o entrevero. Peleia braba, seu. O correntino Golias, na voz de vamos, já se foi e degolou de um talho só o Noé e o velho Moisés. E já tava largando planchaço em cima do mulherio quando um piazito carretero, de seus dez ano e pico, chamado Davi, largou um bodocaço no meio da testa do infeliz que não teve nem graça. Foi me acudam e tou morto.
Aí a indiada toda se animou e degolaram os castelhano. Dois que tinham desrespeitado as prenda foram degolado com o lado cego do facão. Foi uma sanguera danada. Tanto que até hoje aquele capão é chamado de Mar Vermelho.
Mas entonces foi nomeado delegado um tal de major Salomão. Homem de cabelo nas venta, o major Salomão. Nem les conto! Um dia o índio tava sesteando quando duas velha se bateram em cima dum guri de seus seis ano que tava vendendo pastel. O major Salomão, muito chegado ao piazito, passou a mão no facão e de um taio só cortou as velha em dois. Esse é o muito falado causo do Perjuízo de Salomão que contam por aí. Mas, por essas estimativas, o major Salomão, o que tinha de brabo tinha de mulherengo. Eta índio bueno, seu. Onde boleava a perna, já deixava filho feito. E como vivia boleando a perna, teve filho que Deus nos livre. E tudo com a cara dele, que era pra não havê discordância. Só que quando Deus nosso Senhor quer, até égua véia nega estribo. Logo a filha das predileção do major Salomão, a tal de Maria Madalena, fugiu da estância e foi sê china de bolicho. Uma vergonhera pra família. Mas ela puxou a mãe, que era uma paraguaia meio gaudéria que nunca tomô jeito na vida. O pobre do major Salomão se matou-se de sentimento, com uma pistola Eclesiaste de dois cano.
Mas, vejam como é a vida. Pois essa mesma Maria Madalena se casou-se três ano despois com um tal de coronel Ponciano Pilatos. Foi ele que tirou ela da vida. Eu conheço uns três caso do mesmo feitio e nem um deles deu certo. Como dizia muito bem o finado meu pai, mulher quando toma mate em muita bomba, nunca mais se acostuma com uma só.
Mas nesses contraproducente, até que houve uma contrapartida. O coronel Ponciano Pilatos e a Maria Madalena tiveram doze filho, os tal de aposto, que são muito conhecido pelas caridade que fizeram. Foi até na casa deles que Jesus Cristo churrasqueou com a cunhada de Maria Madalena, que despois foi santa muito afamada. A tal de Santa Ceia.
Pois era uns tempo muito mal definido. Andava uma seca braba pelos campo. São José e a Virge Maria tinham perdido todo o gado e só tavam com uma mula branca no potrero, chamada Samaritana. Um rico animal, criado em casa, que só faltava falá. Pois tiveram que se desfazê do pobre.
E como as desgraça quando vem, já vem de braço dado, foi bem aí que estouraram as revolução. Os maragato, chefiado por um tal de coronel Jordão, acamparam na entrada da Vila. Só não entraram porque tava lá um destacamento comandado pelo tenente Lazo, aquele mesmo que por duas vez foi dado por morto.
Mas aí um cabo dos provisório, um tal de cabo Judas, se passou-se pros maragato e já se veio uns tal de Romano, que tavam numas várzeas, e ocuparam a Vila. Nosso Senhor foi preso pra ser degolado por um preto muito forte e muito feio chamado Calvário. Pois vejam como é a vida. Esse mesmo preto Calvário, degolador muito mal afamado, era filho da velha Palestina, que tinha sido cozinheira da Virge Maria. Degolador é como cobra, desde pequeno já nasce ingrato.
Mas entonces botaram Nosso Senhor na cadeia, junto com dois abigeatário, um tal de João Batista e o primo dele, Heródio dos Reis. Os dois tinham peleado por causo de uma baiana chamada Salomé e no entrevero balearam dois padre, monsenhor Caifás e o cônego Atanásio. Mas aí veio uma força da Brigada, comandada pelo coronel Jesus Além, que era meio parente do homem por parte de mãe e com ele veio mais três corpo de provisório e se pegaram com os maragatos. Foi a peleia mais feia que se tem conhecimento.
Foi quarenta dia e quarenta noite de bala e bala. Morreu três santo na luta: São Lucas, São João e São Marco. São Mateus ficou três mês morre não morre, mas teve umas atenuante a favor e salvou-se o índio. Nosso Senhor pegou três balaço, um em cada mão e um que varou os pé de lado a lado. Ainda levou mais um pontaço do mais velho dos Romanos, o César Romano, na altura das costela. Ferimento muito feio que Nosso Senhor curou tomando vinagre na sexta-feira da paixão.
Mas aí, Nosso Senhor se desiludiu-se dos home, subiu na Cruz, disse adeus pros amigo e se mandou-se de volta pro céu. Mas deixou os dez mandamentos, que são cinco e que se pode muito bem acolherá em dois:
Não se mata home pelas costa,
Nem se cobiça mulher dos outro pela frente.
Marcadores:
filosofia da linguagem,
Frankfurteanos,
Gadamer
sábado, 2 de agosto de 2008
quarta-feira, 2 de janeiro de 2008
Romeu, Julieta e Peter Winch (Parte II)

Descrever as condições de possibilidade do conhecimento é considerado por Winch como uma pergunta essencial para as ciências sociais na medida em que a vida social depende do nosso conhecimento acerca dela ou, dito de outra forma, as relações sociais entre as pessoas dependem das nossas idéias sobre a realidade e sobre essas relações. Daí sua famosa frase: “as relações sociais são expressões de idéias sobre a realidade” (Ibid.: 23). A aproximação, quase ao ponto identitário, entre filosofia e sociologia é então estabelecida: esta é entendida como a disciplina que procura entender a natureza dos fenômenos sociais; entender a natureza dos fenômenos sociais significa elucidar o conceito de forma de vida, que é também o objetivo da epistemologia. Winch admite que o ponto de partida da sociologia é diferente do ponto de partida da epistemologia, no entanto, as duas estariam de fato muito próximas: a sociologia é concebida por ele como uma “epistemologia que foi mal planejada”, isto é, ele acredita que os problemas da sociologia foram mal construídos e, portanto, mal manejados, dado que foram tratados como problemas científicos. E isto ocorreu, em parte, porque o tratamento da linguagem foi, até Wittgenstein, colocado de forma equivocada: não é que inicialmente exista uma linguagem na qual as palavras têm um significado estabelecido e as sentenças podem ser tratadas como verdadeiras ou falsas e, depois, esta linguagem entra nas relações sociais. Na verdade, para o autor, as categorias de significado são, elas próprias, logicamente dependentes (para que tenham sentido) das relações entre as pessoas. Pense, por exemplo, no significado de uma palavra como negro: seu significado depende das relações sociais no seio das quais o termo é usado e não da cor da pele que se apresenta objetivamente aos nossos sentidos.
É por esta razão que as idéias são consideradas o próprio objeto das instituições sociais e o que nós pensamos acerca da realidade social, ou os conceitos que usamos para nos referirmos a ela, constituem o objeto das ciências sociais. Mas o que eu penso acerca da realidade não constitui um sentido privado e cada forma de vida a partir da qual meu sentido deriva refere-se a um aspecto particular da realidade (a jogos de linguagem específicos) e tais aspectos não podem ser comparados. É isto que gera um certo hermetismo em relação às formas de vida, tornando a tradução impossível – e impossibilitando que os leões sejam compreendidos.
Recapitulando: compreender a natureza de um fenômeno social é elucidar o significado de uma forma de vida e, dado que este também é o objetivo da epistemologia, as ciências sociais têm uma relação como esta que não encontra equivalência nas ciências naturais. Isto significa, para Winch, que o objeto das ciências sociais é mais complexo que o das ciências naturais e sua maior complexidade implica conceitos logicamente distintos daqueles utilizados na explicação causal.
A inadequação da explicação causal para as ciências sociais é demonstrada por meio da crítica à visão de J. S. Mill de que “compreender uma instituição social consiste em observar as regularidades no comportamento de seus participantes e expressar tais regularidades sob a forma de generalizações” (Winch, 1968: 86). O problema que Winch percebe nesta abordagem diz respeito à questão de como observar tais regularidades: a fim de estabelecer que o mesmo tipo de fenômeno ocorreu em duas situações diferentes (uma condição da generalização), o cientista natural deve se referir às regras que regem a investigação científica; para estabelecer que o mesmo tipo de comportamento ocorreu em duas situações distintas, o cientista social deve se referir não apenas às regras que regem a investigação social, mas também àquelas que definem o que, numa situação específica, conta como “estar fazendo a mesma coisa”. Neste sentido, embora Winch não descarte a possibilidade de se identificar regularidades na vida social, a forma como apreendemos essas regularidades é fundamentalmente diferente da forma como um cientista natural o faz.
Essas diferenças também são enfatizadas na crítica que ele faz ao processo weberiano de se checar a validade das interpretações em termos daquilo que Weber chama de “conhecimento nomológico” (com base na formulação de regularidades estatísticas baseadas na observação empírica). Na verdade, Winch questiona a idéia de que o Verstehen é logicamente incompleto, devendo ser complementado por um método naturalista. Para ele, uma interpretação equivocada deve ser substituída por uma interpretação melhor, não por algo logicamente diferente. Aqui, talvez Winch esteja contaminado por uma interpretação positivista de Weber. Como William Outhwaite (1986) argumentou, Weber coloca a necessidade de verificar a validade de uma interpretação naquelas circunstâncias em que uma pluralidade de explicações parecem fazer igualmente sentido em uma forma de vida. Isto sugere que, para Weber, não existe uma diferença muito nítida entre motivos, razões e causas e o ponto realmente importante levantado por ele foi o de que a compreensão das ações envolve a compreensão de intenções, motivos e razões.
A exclusão de relações causais do domínio da sociedade humana confere uma forma muito particular à compreensão advogada por Winch. As conexões lógicas envolvidas nas ciências sociais dizem respeito a conceitos, não a eventos empíricos, e tais conexões apresentam um caráter intrínseco (ou necessário), no sentido de que a existência dos fenômenos sociais não apenas é dependente dos conceitos usados para descrevê-los, mas idêntica a eles! O ideal e o real parecem coincidir de forma absoluta. Se é este o caso, apesar das afirmações de Winch em contrário, a linguagem dos cientistas sociais deve coincidir com a linguagem “nativa” – o que leva ao questionamento da utilidade das ciências sociais.
Acredito que parte do problema que leva a isto é uma concepção excessivamente hermética da idéia de forma de vida. Winch adere a uma perspectiva holística radical segundo a qual a linguagem (e as formas de pensamento) de uma cultura só são compreensíveis em seus próprios termos e isto, no limite, impede a compreensão, pelo menos a compreensão daquilo que interessa: não apenas o estrangeiro não pode penetrar na linguagem nativa, dado que não pode se livrar de seus próprios horizontes, mas isto geraria um problema mesmo para a socialização infantil. Como a criança nascida em uma determinada comunidade poderia aprender a linguagem de seus pais e assimilar sua cultura se ela não compartilha dos seus conceitos antes de aprendê-los?
Este holismo radical pressupõe, ainda, que as idéias de uma dada cultura ou sociedade são absolutamente homogêneas, e todos sabemos que este não é o caso. Especialmente depois dos pós-estruturalistas, sabemos que os diversos significados atribuídos por grupos sociais distintos estão em uma luta constante por hegemonia, isto é, eles são contestados, negociados, desestabilizados.
Foi contra este essencialismo lingüístico radical que Julieta se insurgiu quando pediu a Romeu que renunciasse ao seu nome. Ao contestar as referências simbólicas que identificavam um Montecchio com um inimigo, ela estava contestando os pressupostos, valores e práticas de sua forma de vida. Além disso, contrariamente a Winch, que defende que o significado de uma ação deriva exclusivamente do sistema de regras que guia o comportamento, e nunca de suas intenções, ao levar a sério a resposta de Romeu, Julieta reintroduz a subjetividade do agente de uma forma que Winch jamais conseguiu fazer. E Romeu? Ah, carcamano do inferno...
Gellner, Ernest. (1974) The New Idealism: Cause and Meaning in the Social Sciences. Anthony Giddens (ed.) Positivism and Sociology. Londres: Heinemann.
Outhwaite, William (1986). Understanding Social Life: The Method Called Verstehen. Lewes: The Beacon Press.
Winch, Peter (1958) The Idea of a Social Science: and its Relation to Philosophy. Londres: Routledge.
Cynthia Hamlin
Marcadores:
epistemologia,
filosofia da linguagem,
J.S. Mill,
Sociologia Clássica,
Winch,
Wittgenstein
terça-feira, 1 de janeiro de 2008
Romeu, Julieta e Peter Winch

O Renascimento é geralmente considerado uma das principais fontes da noção moderna de indivíduo, concebido como uma essência interna única, autônoma, universal. Dentre os autores renascentistas, não há ninguém maior do que Shakespeare. De fato, já se afirmou que o bardo inglês foi o inventor da “natureza humana” e que a obra de Freud não era nada mais do que Shakespeare em prosa. Não sei se isto é verdade e deixo esta questão para os meus colegas psi resolverem. Mas o fato é que, sempre que leio Peter Winch, vem-me à mente a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta. A minha hipótese é a de que, se Julieta tivesse lido A Idéia de uma Ciência Social, jamais teria dado aquele mole que hoje nos faz perceber a impossibilidade do amor romântico. Deixo vocês, por um instante, com os dois amantes, numa tradução portuguesa que encontrei na Internet, embora sem os devidos créditos ao tradutor ou tradutora:
“Jardim de Capuleto
(Entra Romeu)
ROMEU- Só se ri das cicatrizes aquele que nunca sentiu uma ferida. (Julieta aparece à janela) Mas... devagarinho! Qual é a luz que brilha através daquela janela? É o oriente, e Julieta é o Sol. Ergue-te, ó Sol resplandecente, e mata a Lua invejosa, que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu, sua sacerdotisa, és muito mais bela do que ela própria. Não queiras mais ser sua sacerdotisa, já que tão invejosa é! As roupagens de vestal são doentias e lívidas, e somente os loucos as usam. Deita-as fora! Esta é a minha dama! Oh, eis o meu amor! Se ela o pudesse saber! O seu olhar é que fala e eu vou responder-lhe... Sou ousado de mais; não é para mim que ela fala. Duas das mais belas estrelas de todo o firmamento, quando têm alguma coisa a fazer, pedem aos olhos dela que brilhem nas suas esferas até que elas voltem. Oh! Se os seus olhos estivessem no firmamento e as estrelas no seu rosto! O esplendor da sua face envergonharia as estrelas do mesmo modo que a luz do dia faria envergonhar uma lâmpada. Se os seus olhos estivessem no Céu, lançariam, através das regiões etéreas, raios de tal esplendor que as aves cantariam, esquecendo que era noite. Vede como ela encosta a face à sua mão. Oh! quem me dera ser a luva dessa mão, para poder tocar a sua face.
JULIETA- Ai de mim!
ROMEU- Está a falar... Oh! continua, anjo resplandecente! Porque esta noite tu brilhas tão esplendorosamente sobre a minha cabeça como um alado mensageiro do Céu perante o olhar extasiado dos mortais, que escondem a íris nas pálpebras ao inclinarem-se para o contemplar quando ele perpassa por entre as nuvens indolentes e navega no seio do ar.
JULIETA- Oh! Romeu, Romeu! Mas porque és tu Romeu? Renega o teu pai, o teu nome; ou, se o não quiseres fazer, jura apenas que me amas e deixarei eu de ser uma Capuleto.
ROMEU (aparte)- Deverei eu continuar a ouvi-la, ou responder-lhe?
JULIETA- É apenas o teu nome que é meu inimigo; tu és tu mesmo, e não um Montecchio. E que é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte que pertença a um homem. Oh! Sê qualquer outro nome! O que é que existe num nome? Aquilo a que nós chamamos rosa teria o mesmo perfume embora lhe déssemos outro nome! Assim, Romeu, ainda que não se chamasse Romeu, conservaria a mesma perfeição que agora possui. Romeu, renuncia ao teu nome, e em vez dele, que não faz parte de ti mesmo, apodera-te de mim!
ROMEU- Aceito. Chama-me apenas teu amor, e far-me-ei de novo baptizar. De ora avante nunca mais serei Romeu.”
A questão que deve me guiar aqui é uma espécie de exercício weberiano de explicação contrafactual (tá legal, tá legal, tô exagerando nos termos, mas façam uso de um pouco de caridade interpretativa pelo bem do argumento): Se Julieta tivesse lido Winch, e concordasse com a leitura que ele faz de Wittgenstein (essa é uma condição importante!), jamais teria acreditado que Romeu pudesse renunciar ao próprio nome sem modificar sua essência. Vejamos.
Peter Winch é um autor pouco explorado no Brasil, o que é uma pena, pois ele consegue relacionar um autor relativamente complexo, Wittgenstein, a questões sociológicas clássicas e bastante familiares aos cientistas sociais. Acredito que ele faça isso emprestando ao pensamento deste último um certo essencialismo lingüístico que não tenho certeza se Wittgenstein aprovaria. Apesar disso, acho que é um dos melhores caminhos para se introduzir a virada lingüística nas ciências sociais, especialmente para alunos de graduação.
De certa forma, Winch inverte um dos princípios de Wittgenstein acerca dos jogos de linguagem. Como argumentou Ernest Gellner (1974), se para Wittgenstein o significado das expressões corresponde ao uso que se faz delas, para Winch, o uso de expressões (e de qualquer outro comportamento social) é igual ao seu significado. Colocando em outros termos, o que Winch se propõe é a explicar as “formas de vida” em termos de jogos de linguagem.
Sua obra principal, A Idéia de uma Ciência Social, exemplifica um argumento anti-naturalista radical que afirma que o entendimento dos fenômenos naturais ocorre em termos de causas relativas a leis gerais, enquanto o entendimento dos fenômenos sociais se dá em termos de motivos e razões das ações dos indivíduos em uma dada comunidade. Mais tarde, depois que os críticos praticamente arrancaram seu couro, especialmente os de origem neo-kantiana, Winch admite que motivos e razões podem ser concebidos como causas, embora não como causas naturais regidas por leis gerais (veja, por ex., a introdução à segunda edição de seu livro).
O anti-naturalismo de Winch é defendido a partir de uma aproximação entre os objetos da filosofia e das ciências sociais, o que ele faz por meio de uma crítica às concepções usuais das duas disciplinas. Seu objetivo é poder afirmar que as ciências sociais são, na verdade, uma forma filosófica de se produzir conhecimento e que a filosofia, por seu turno, envolve o conhecimento da sociedade humana. O que é, então, filosofia, para este autor? Contrariamente a posições defendidas pelos positivistas do Círculo de Viena (e pelos positivistas, em geral) este ramo do conhecimento não deve ser concebido como um mero ajudante de obra das ciências, no sentido de eliminar as confusões lingüísticas relativas a determinados termos científicos - como nas infindáveis discussões dos autores do Círculo acerca do significado de termos teóricos como “solúvel”. Winch argumenta que a atividade filosófica não depende da atividade científica, pois enquanto as questões da ciência são empíricas, as da filosofia são conceituais. Assim, o problema da filosofia é muito mais amplo do que acreditavam os membros do Círculo, pois trata de esclarecer como o pensamento se relaciona com a realidade.
Seguindo Wittgenstein de perto, Winch retoma a idéia de que os limites da minha linguagem constituem os limites do meu mundo e afirma que “nossa idéia do que pertence ao mundo nos é dada pela linguagem que usamos. Os conceitos que nós temos definem para nós a forma de experiência que temos do mundo [...] O mundo é para nós aquilo que nos é apresentado por meio dos nossos conceitos” (Winch, 1958:15). Por esta razão, ele confere à epistemologia (teoria do conhecimento) uma dimensão central na filosofia, já que ela pode ser concebida como as formas pelas quais pensamos sobre o mundo. Sendo assim, a tarefa da filosofia é “descrever as condições que devem ser satisfeitas, caso existam critérios de compreensão” (Ibid.: 21) ou, reformulando em termos mais kantianos, descrever as condições de possibilidade do conhecimento.
(Continua...)
Cynthia Hamlin
Marcadores:
epistemologia,
filosofia da linguagem,
Winch,
Wittgenstein
domingo, 30 de dezembro de 2007
Wittgenstein, o Filme
Cena do filme “Wittgenstein” (1993), dirigido por Derek Jarman, com roteiro de Terry Eagleton. E para quem ainda não está com o inglês em dia, aí vai uma tradução aproximada.
Wittgenstein: Um cachorro não pode mentir. Nem ser sincero. Um cachorro pode esperar seu dono chegar. Por que ele não pode esperar que ele chegue na próxima quarta feira? Seria porque ele não tem uma linguagem? Se um leão pudesse falar, nós não seríamos capazes de entender o que ele disse. Por que eu diria tal coisa?
Estudante 1: Se nós pudéssemos entendê-lo, eu diria que não teríamos problema para entender um leão.
Estudante 2: Nós poderíamos conseguir um tradutor.
Wittgenstein: Para mim ou para o leão? Sim, sim, nós poderíamos conseguir um tradutor. Mas que diferença isso faria? Imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. É o que nós fazemos e o que nós somos que confere significado às nossas palavras. Eu não posso entender a linguagem de um leão porque eu não sei como é o seu mundo. Como eu posso conhecer o mundo que um leão habita? Será que eu não consigo compreendê-lo porque não posso espiar o que se passa em sua mente? (Desenhando um abacaxi). O que está se passando por trás das minhas palavras quando eu digo “este é um abacaxi muito agradável”? Podem pensar com calma.
Estudante 1: O pensamento, professor.
Wittgenstein: Sei... Qual é o pensamento que se esconde por trás das palavras “este é um abacaxi muito agradável”?
Estudante 1: “Este é um abacaxi muito agradável”.
Wittgenstein: Ouça: nós imaginamos o significado do que dizemos como algo estranho, misterioso, escondido das nossas vistas, mas nada é oculto, tudo está aberto à visão. São os filósofos que turvam as águas.
Estudante 1 (batendo na própria face): Professor Wittgenstein! O senhor não pode conhecer essa dor. Só eu posso.
Wittgenstein: Você tem certeza que a conhece? Você duvida de que sentiu dor?
Estudante 1: Como eu poderia duvidar disso?
Wittgenstein: Se não podemos falar de dúvida, também não podemos falar de conhecimento.
Estudante 1: Não estou entendendo.
Wittgenstein: Não faz sentido falar de conhecer alguma coisa num contexto em que não podemos duvidar, portanto, “eu sei que estou sentindo dor” é completamente desprovido de significado. Quando você quer conhecer o significado de uma palavra, não procure dentro de você, procure pelos usos daquela palavra em nossa forma de vida. Olhe para como nos comportamos.
Bertrand Russell: Você está dizendo que não existem problemas filosóficos?
Wittgenstein: Existem problemas lingüísticos, matemáticos, éticos, lógicos e religiosos, mas não existem problemas filosóficos genuínos.
Bertrand Russell: Você está banalizando a filosofia.
Wittgenstein: A filosofia é apenas um subproduto da incompreensão da linguagem! Por que vocês não percebem isso?
Bertrand Russell: Ai, meu deus... ele não tolera discordâncias, não é?
Ma Che Cazzo Dici Tu??! O Leão de Wittgenstein e a Virada Lingüística
Certa tarde, dois meninos, Joãozinho e Juquinha, foram ao zoológico. Ao passarem diante da jaula dos leões, um dos bichos escapou, soltando um rugido enorme. “Vamos sair daqui!”, gritou Joãozinho. “Pode ir se quiser”, disse Juquinha, “eu vou ficar e assistir o filme”. Moral da história: Ludwig Wittgenstein parece ter razão quando afirmou que “se um leão pudesse falar, nós não poderíamos entendê-lo”. Este aforismo já fez com que filósofos eminentes consumissem muita tinta e papel em torno do pequeno bestiário descrito nas Investigações Filosóficas, repleto de patos-coelhos, gansos com dentes nas asas, cachorros hipócritas, dentre outras bestas absurdas. Um deles, cujo nome não me recordo, chegou a afirmar que se o leão estivesse dizendo “Ludwig, eu vou devorar você!”, seria possível inferir do seu tom de voz (tom de rugido?) que ele não estava contando uma história para seus filhotes dormirem.
Mas o que faz com que filósofos tão ilustres gastem seu tempo precioso (e o nosso) com questões dignas da patafísica, “ciência revolucionária” que deu origem ao teatro do absurdo? Como essas questões podem ilustrar as preocupações centrais da filosofia da linguagem e, o que é mais importante para nós, a relação entre ciências sociais e a tão falada virada lingüística? Uma forma possível é (tchan, tchan!) via sociologia do humor. Peter Berger, sociólogo da tradição interpretativa (fenomenológica) e mais conhecido por seus estudos sobre religião, estabelece uma relação muito interessante entre o teatro do absurdo de Beckett, Ionescu e Jean Genet e a idéia de linguagem. Segundo ele, o termo absurdum, em latim, significa literalmente “retirado da surdez”. De acordo com uma das definições do Houaiss, absurdo é aquilo que é contrário à sensatez e ao bom senso e, sendo assim, uma interpretação possível para o uso do termo é que absurdo é aquilo que as pessoas surdas à razão dizem. Absurdo seria, portanto, mais ou menos sinônimo de irracionalidade. Mas Berger (1997: 175) sugere ainda uma outra interpretação: “o absurdo é uma visão da realidade que deriva da própria surdez – isto é, uma observação de ações que não são mais acompanhadas de uma linguagem. Tais ações são, precisamente, desprovidas de sentido [...] e o efeito é geralmente cômico”. Mas antes que eu me enrede nas minhas infindáveis divagações sobre humor e conhecimento, deixem-me focar uma questão relevante para a filosofia da linguagem, que é a relação entre linguagem e ação para a compreensão do significado.
O que estamos dizendo quando afirmamos que compreendemos o significado de uma proposição qualquer? Se alguém me diz algo como “estou alegre hoje”, o que, nesta proposição, me permite compreender o que a pessoa está sentindo? Será que existe uma série de sinais “objetivos”, como sorrisos, gestos, tom de voz etc que me permitam relacionar à expressão “alegre” e que “espelhem” esta expressão? Certamente que, se alguém me diz que está alegre e sua linguagem corporal, tom de voz etc me “dizem” o contrário, é possível interpretar esta afirmação como ironia, como “falta de sinceridade” ou como simples absurdo (ausência de sentido) por parte de quem a profere. No entanto, existe algo mais do que a simples referência a tais sinais “objetivos” envolvida na interpretação de uma sentença como esta. O que é que conta como um “sinal objetivo” de alegria? Será que os sinais que permitem a um inglês identificar alguém como estando alegre são os mesmos sinais que permitem que um brasileiro o faça? O que, afinal de contas, determina a possibilidade da aplicação de um termo como “alegria” para ações e expressões que não são nunca idênticas umas às outras, mas que guardam apenas “relações de familiaridade” entre si?
São questões desta ordem que ocupam a filosofia da linguagem, cujo insight mais fundamental é o de que as palavras não são simples rótulos para as coisas que existem no mundo. A chamada “virada lingüística”, expressão popularizada por Richard Rorty em uma coletânea de textos de filósofos da linguagem datada de 1967, diz respeito àquelas tendências da filosofia ocidental que levam à conclusão de que a linguagem ou o discurso representam o limite das investigações acerca da verdade e do mundo, ou a visão de que não há nada fora da linguagem. Como Wittgenstein colocou no Tratactus Logicus Philosophicus, “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Numa visão um pouco mais contemporânea, o filósofo francês Jacques Derrida afirma que “não existe nada além do texto”. O que há de comum nas diversas tradições que compõem a virada lingüística é a idéia básica de que o significado não é uma referência a uma entidade, mas um produto sociolingüístico, uma questão de uso da linguagem. Em um sentido importante, portanto, a linguagem não representa ou espelha a realidade, mas a constitui. Wittgenstein, mais do que ninguém, contribuiu para esta concepção que atuou como uma verdadeira revolução copernicana para as ciências sociais.
Para o filósofo austríaco, nenhuma linguagem é privada e mesmo os pensamentos mais íntimos de alguém devem ser expressos em uma linguagem comum a uma determinada comunidade ou “forma de vida”. Isto significa que conhecer o significado de um termo pressupõe a nossa habilidade para empregá-lo corretamente. E o que é empregar um termo corretamente? É seguir as regras que definem o seu uso ou, nos termos de Wittgenstein, tomar as palavras como parte de um “jogo de linguagem”, isto é, com parte dos símbolos e das ações que se conformam às expectativas de uma forma de vida particular.
A forma como o jogo de linguagem relaciona linguagem, práxis e contexto pode ser compreendida a partir da forma como as crianças aprendem a falar. Quando elas aprendem a usar uma linguagem, o processo de aprendizagem ocorre por meio da associação entre palavras e um certo tipo de ação. Se eu digo, por exemplo, “beba a água”, espero que a criança desempenhe um certo tipo de ação, ou que reaja de uma determinada forma ao ouvir essas palavras. Compreender uma proposição como esta pressupõe, portanto, “o uso de símbolos compartilhados, uma reação a determinadas expectativas comportamentais e um consenso acerca do desempenho dessas expectativas” (Habermas, 1970: 130). É justamente este todo, composto dos símbolos e das ações nas quais a linguagem é tecida que Wittgenstein chama de jogo de linguagem. Compreender uma linguagem e estar apto a falá-la indica que a pessoa adquiriu determinadas habilidades, que aprendeu como desempenhar certas atividades. Se, ao invés de beber a água a criança a derrama no chão, dizemos que ela não compreendeu a frase (ou que compreendeu e se recusou a desempenhar a ação por alguma razão qualquer). Em ambos os casos, a comunicação e a interação são perturbadas, podendo fazer com que a última se desintegre. Isto requer a restauração do entendimento (ou concordância acerca do significado) que está falho ou ausente, fazendo da compreensão lingüística um processo importantíssimo para as ciências sociais.
Mas e o leão? Ora, se o significado das palavras e das sentenças dependem de uma forma de vida particular, então seria necessário conhecer a forma de vida dos leões para compreender o que contaria como o uso correto de suas expressões. Alguém aí se aventura, ou preferem seguir os passos de Habermas e chamar Hermes para ajudar na tradução?
Berger, Peter (1997). Redeeming Laughter: The Comic Dimension of Human Experience. Berlim e Nova York: Walter de Gruyter.
Habermas, Jürgen (1979). On the Logic of the Social Sciences. Cambridge, MA: The MIT Press.
Rorty, Richard (1967). The Linguistic Turn: Essays in Philosophical Method. Chicago: The University of Chicago Press.
Cynthia Hamlin
Assinar:
Postagens (Atom)