"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
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sábado, 25 de junho de 2011
Marcha das Vadias em Brasília
Vanessa Macedo, que passou recentemente a seguir o Cazzo, fez upload no youtube de um pequeno vídeo sobre a Marcha das Vadias em Brasília. Está logo abaixo. Você também tinha também sugerido um vídeo sobre a perseguição de gays e lésbicas na Alemanha, durante o regime nazista, Vanessa. Mas não o encontrei mais... Estava no meio do documentário. Será que você poderia nos enviar novamente o endereço? Obrigado. Jonatas
domingo, 19 de junho de 2011
Tendências desterritorializadoras e territorializadoras nas tecnologias da vida: o caso da pesquisa nanobiotecnológica no Brasil
Jonatas Ferreira
“A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina: máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle” (Deleuze, 2000, p. 216).
Introdução de uma comunicação apresentada no I Simpósio Internacional de Geografia do Conhecimento e Inovação
Em um texto hoje bastante conhecido, Foucault disse a respeito de Deleuze, não sem uma ponta de ironia, que o século vinte seria conhecido como o “século deleuziano”, que o filósofo da esquizoanálise seria o último pensador de sistemas. Num mundo fragmentado pelos fluxos vertiginosos do capitalismo, teríamos esse anacronismo: alguém que se dedica a pensar o mundo a partir de um princípio único, o desejo, e também a propor a imanência do desejo, que a tudo se conecta, contra o seu amesquinhamento sob o regime capitalista. Pois o capitalismo também é uma máquina de produzir conexões, e isso tem sido enfatizado numa larga literatura sobre globalização, mas o faz de forma automática e restritiva, impedindo a ação criativa em nome da previsibilidade lucrativa. Embora meus interesses teóricos sempre tenham passado ao largo da difícil prosa deleuziana - difícil e surpreendente se a comparamos com o discurso cristalino de suas aulas -, vejo, nisso que entendo ser a base da contribuição deleuziana, possibilidades de análise bastante ricas quando consideramos nossos envolvimentos tecnológicos na contemporaneidade. E me explico imediatamente: sob a influência da cibernética, das tecnologias da informação e comunicação, as ciências hoje operam como máquinas desejantes, sob o impulso de decompor, atomizar, e ao mesmo tempo colocar tudo, mundo vivo e inanimado, o visível e o invisível, numa comunicação absoluta. Ao reduzir tudo a moléculas e átomos, a estruturas genéticas, a bits, e propor a produção de novos materiais, novas formas de vida, novos processos técnicos, as ciências promovem na contemporaneidade algo como uma orgia da matéria. E, ao mesmo tempo, a energia que acena com a realização desse desejo parece ser demasiado reduzida, demasiado territorializada pela máquina de produção capitalista, para poder realizar essas promessas de liberdade e de uma ética da imanência, tal como propunha Gilles Deleuze.
Não me entendam mal. Sou um intelectual para quem certos ecos da geração de 1968 soam já estranhos; sou demasiado tímido para as promessas do desejo; demasiado analisado, neurótico para me entregar as promessas da esquizoanálise. E se a filosofia deleuziana me coloca como alternativas uma filosofia que busca o sentido e outra que busca entender o mecanismo das coisas, não tenho dúvidas de qual seria minha opção: ainda sou um anjo caído, protestante que fui em minha formação, ainda tenho saudades de um sentido que oriente a vida. Entretanto, o vitalismo deleuziano lança um desafio teórico que acredito ser produtivo para alguém que, como eu, se dedica a pensar as novas tecnologias da vida. E o desafio inicial é precisamente entender que o vitalismo sempre propôs, de alguma forma, entender a máquina de produção da vida para tentar libertá-la do mecanismo, da repetição empobrecedora. Em Nietzsche, Bergson ou Deleuze, busca-se um princípio que estabelece a contingência, e não a lei mecânica, como momento ético de afirmação do ser humano como ser capaz da criação, de estabelecer o novo. Neste sentido, eles seriam bons companheiros para pensar as ciências da vida.
Inicialmente eu afirmaria, usando o jargão deleuziano a contrapelo, que há algo de ‘maquínico’ e ‘desejante’ na dinâmica do capitalismo contemporâneo que cabe analisar - Deleuze talvez diria que teríamos diante de nós apenas o desejo transformado culturalmente numa pulsão, em algo previsível, automatizado. O capitalismo transforma tudo para não precisar mudar os princípios destrutivos sobre os quais opera. Há aqui, portanto, a necessidade de um esclarecimento. Distinguindo entre um poder de “autoprodução” e um poder de “antiprodução”, para Deleuze: “Na produção, o desejo é inteiramente imanente no processo; não há capacidades não realizadas deixadas de lado, e uma máquina funciona tão bem quanto ela pode, consumindo e transformando a si mesma no processo – ela se afeta a si própria. Na antiprodução, entretanto, não há suficiente energia ou desejo para criar relações plenas, consistentes, e mutuamente afetivas entre as engrenagens [assemblages] que se encontram” (Goodchild, 1996, p. 73). Neste sentido, a máquina capitalista não pode ser plenamente desejante pois sua energia é constantemente reterritorializada de acordo com as necessidades de reprodução do sistema. O capitalismo não pode se abrir à contingência das conexões entre os seres humanos, por exemplo, ou destes com outros seres vivos, pois a pulsão que o guia se territorializa como necessidade de controle, como previsibilidade, como vontade de aceleração, como compulsão de extenuação das forças vitais.
Ao longo dos últimos dez anos, venho insistindo na importância da cibernética para entendermos tanto os elementos “desterrritorializadores”, nômades, quanto os elementos “reterritorializadores” das novas tecnologias da vida. Primeiro, há sempre neste contexto a tentativa de decompor a vida, a matéria, nos elementos básicos constitutivos. Se na teoria da comunicação, como bem sabemos, esse elemento é o bit, para a biologia molecular é o gene, a sequência de DNA; na nanotecnologia, teríamos o átomo, a estrutura nanométrica. A pergunta que a ciência contemporânea se faz é sempre: o que esses elementos básicos podem expressar, atualizar no mundo das coisas concretas, vivas? Pensada como codificação de uma língua franca, o que a estrutura do DNA pode expressar que a natureza, deixada à sua dinâmica própria, não pode? E novas propriedades a matéria estruturada em dimensão nanoscópica pode expressar? Assim, em todo caso, uma questão linguística, uma questão de sintaxe sempre se coloca. Que organização atômica, ou genética produz efeitos tais ou quais? Que combinações possíveis entre essas estruturas “linguísticas” básicas produzem resultados relevantes para a indústria de cosméticos, de fármacos, de comunicação?
Além disso, as máquinas que operam sob esse novo modelo técnico e científico devem ser entendidas, como as entende Deleuze, isto é, como sistemas abertos, inacabados, sempre aptos a estabelecer, com o meio exterior, relações que as transformarão. Um tear opera como um sistema fechado no sentido de que ela não se adapta por si às variações de seu meio ambiente; um computador, por outro lado, realizará tarefas bastante flexíveis - em todo caso, tarefas paras as quais for programado. Tomemos outro exemplo. Os medicamentos inteligentes produzidos pela nanobiotecnologia, tal qual mísseis teleguiados, são desenhados para identificar alvos específicos no organismo vivo e a partir dessa identificação estabelecer uma relação específica, atacar uma célula tumoral e apenas ela, por exemplo. A nanobiotecnologia tem se preparado teórica e tecnicamente no sentido de fornecer uma gama ampla de aparatos como esses capazes, não apenas de despejar fármacos no organismo, com os efeitos colaterais que esse método acarreta, mas de analisar, diagnosticar e entregar medicamentos em alvos pré-determinados. Um medicamento pensado como máquina inteligente, eis aqui a base de uma inovação considerável.
Para que isso ocorra, todavia, o próprio corpo não é mais pensado como conjunto de engrenagens, como o concebeu a medicina do século XIX, mas como território. Um território com sua defesas, topografias, invasores, por certo, mas sobretudo um território produzido por códigos, mensagens, pela ação de máquinas moleculares – uma topografia virtual. Assim, se nos séculos XIX e XX o corpo do operário deveria ser disciplinado para obedecer a comandos de forma previsível, eficiente e imediata, ou seja, se a disciplina militar era o paradigma de adestramento dos “corpos dóceis”, de que fala Foucault, na sociedade de controle, por outro lado, o corpo é pensado como um campo cujo produtividade, cuja performance deve ser constantemente intensificada. Se o corpo do soldado é o ideal para a da indústria dos séculos XIX e XX, o corpo do atleta, constantemente excitado pelas demandas da indústria do espetáculo, é o paradigma de corporeidade no contexto da sociedade da informação, do controle, ou como a queiram chamar. Em livros como Máquina de visão, Política e velocidade, Paul Virilio disse a esse respeito que aceitamos passivamente a aceleração sem sentido de nossas vidas, de nossos corpos, porque a sociedade da informação implodiu as distâncias, o tempo, deixando-nos sem profundidade reflexiva para resistir. Não creio que Virilio esteja certo, mas acredito que coloque questões que merecem nossa atenção.
Tomemos o conceito de doping genético como ilustração. Mediante a inserção de DNA transgênico no corpo do atleta, forçando-o a produzir substâncias que melhorem o seu desempenho: a produção de glóbulos vermelhos, por exemplo. Em fevereiro de 2010, a Folha de São Paulo publicava entrevista com Mark Frankel, “especialista em modificação genética e bioética da Associação Americana para o Avanço da Ciência”. Acerca da perspectiva do doping genético, ele declarava:
“Nós sabemos agora que existem genes com impacto na velocidade, nos músculos, na resistência. Acho que, nos próximos anos, vamos saber cada vez mais sobre eles e sobre outros genes. Mas ainda temos muito a aprender sobre o que os genes controlam no corpo humano. Além disso, existem outros fatores que importam no desempenho de um atleta, como o tipo de vida que ele tem, o seu treinamento. Mas a comunidade olímpica precisa estar preparada para o próximo grande passo do doping, que envolve os genes. Até onde sabemos, o doping genético ainda não aconteceu, mas vai. É inevitável.”1
Mais recentemente, li na Internet que cientistas alemães já haviam descoberto um método de identificar esse tipo de doping com uma margem de segurança de até dois meses. As experiências de terapia genética, até poucos anos, tinham redundado não apenas em fracassos, mas em desastres. Geralmente, o vetor de introdução da informação genética desejada no organismo sob intervenção terapêutica eram vírus, o que acarretava em reação sistêmica do organismo ao procedimento. Os pacientes submetidos a tal procedimento morriam sangrando por todos os poros. Hoje, a nanobiotecnologia tem auxiliado a criar processos de intervenção menos arriscados. Mas é curioso que um número considerável de avanços no campo das biotecnologias sirvam, ao mesmo tempo, para corrigir configurações orgânicas que poderíamos considerar patológicas e para intensificar a produtividade, a performance do corpo humano. Pensemos nas promessas da terapia gênica, por exemplo, mas também no uso que hoje damos a medicamentos como o Viagra, ou a Ritalina (FERREIRA E SILVA, 2011).
Em todo caso, o corpo pensado como território, ou um ciberterritório, é passível de uma desterritorialização profunda com relação aos processos ditos naturais. E há neste contexto, evidentemente, oportunidades consideráveis para a saúde humana, para a melhoria das condições de vida no planeta na exata medida em que nos damos conta daquilo que talvez Deleuze chamasse de intensidade do desejo de estabelecer conexões inusitadas entre os organismos vivos. O mapeamento do genoma humano serviu para mostrar que sem nos apropriarmos de sequências genéticas de certas bactérias, por exemplo, jamais seríamos os seres que somos. Temos aqui efetivamente uma lição importante a aprender no que diz respeito ao vínculo fundamental que temos com o meio ambiente, com o planeta, com os seres vivos. Podemos aprender essa lição? Sob a territorialização do capitalismo contemporâneo, todavia, os corpos são compelidos não ao prazer, à possibilidade de fazer nascer a diferença, à ação criativa, mas à agitação constante, a super-excitação vazia, ao automatismo.
O que pretendemos mostrar nesta breve comunicação é precisamente como esse processo duplo de desterritorialização e territorialização é produzido na biologia molecular no Brasil. Faremos isso operando uma análise que se opera em dois planos: buscamos entender, por um lado, como a ciência elabora uma compreensão de corpo em que esses dois movimentos prevalecem; buscamos entender, por outro, como a própria prática científica estabelece essa dupla dimensão.
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1 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u694117.shtml
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sábado, 5 de março de 2011
A controvérsia do Rei Momo e a paródia moderna dos corpos
Por Liana Lewis
Departamento de Ciências Sociais da UFPE
No período pré carnavalesco a Prefeitura da Cidade do Recife, em uma atitude inédita, modificou os critérios do concurso de Rei Momo e o resultado foi, para surpresa dos carnavalescos de plantão, e mesmo dos avessos a esta festa popular, um Rei Momo “sarado”. A Prefeitura tem sido acusada pela mídia de lipofobia e de findar, por decreto, uma tradição centenária das mais populares.
Nós poderíamos afirmar que a valorização da magreza e consequente desvalorização das pessoas gordas é resultado de um processo mais amplo de individualização do ser humano que vem ocorrendo desde o final da idade média. Naquela época, era valorizado, nos termos de Mikhail Bakhtin, um corpo aberto, poroso e relacional com o mundo e outros corpos. A nova ordem industrial precisava, para otimizar sua produção, de uma reestruturação do espaço de trabalho, bem como de corpos disciplinados e individualizados que se conformassem à arquitetura e jornada de trabalho das fábricas.
Obviamente que aqui não interessa mais um corpo lúdico e indisciplinado. O corpo começa a ser vigiado, punido e disciplinado através das instituições nascentes como prisões, escolas e asilos. Além de professores e moralistas, a figura do médico começa a ganhar destaque e, se antes a medicina operava como minimizadora da dor frente aos vários males, começa a ganhar o status de prolongador da vida. O corpo passa a ser escrutinizado cada vez mais detalhadamente pelo poder médico.
Ao longo da última década, além do desejo de perpetuação do corpo, temos assistido a uma circulação em escala global de imagens de corpos vendidos como modelos desejáveis. Começamos a testemunhar uma mercantilização sem precedentes de produtos de beleza, produtos da linha diet/light, próteses de silicone, empresas estéticas que prometem dentes e corpos perfeitos e programas de computador cada vez mais sofisticados cuja missão é erradicar marcas, saliências, manchas. Além de um corpo magro, apenas um corpo liso e isento das marcas do tempo, do próprio processo histórico do indivíduo, deve ser considerado.
É interessante observar que, no início da crise mundial, quando o futuro imediato do Brasil era bastante incerto, a indústria da beleza não apenas não foi afetada, como continuou crescendo a contento. Vale ainda ressaltar que não é qualquer corpo que está submetido aos rigores desta indústria, é o corpo feminino que historicamente é visto como coisa, como um objeto a ser manipulado, imaginado e transformado.
Ser gordo acaba se tornando um ato pecaminosos para algumas instituições e poderes como o médico, os meios de comunicação de massa, a indústria de cosméticos, parte da indústria alimentícia e, especialmente, para as mulheres de classe média, alvos privilegiados do controle de uma estética da modernidade. Estas mulheres, em especial, estão submetidas a técnicas cada vez mais minuciosas de escrutinamento de seus corpos como, por exemplo, balanças digitais que não apenas fornecem o peso como medida, mas a porcentagem de gordura, de músculo, etc.
Já o padrão estético da classe popular tem como ideal formas mais arredondadas, mais volumosas. É um corpo que foge à rígida disciplina que conforma os corpos das mulheres de classe média. Quando observamos os anúncios televisivos, revistas de fofoca e de saúde ou estética, são estes os corpos representados, e é sobretudo às mulheres que eles comunicam.
Quanto à decisão da Prefeitura, a figura do Rei Momo é proveniente da tradição popular, do corpo lúdico da idade média e vem sendo apropriada pelo poder público a partir de um gerenciamento, uma governança do carnaval. Acredito que a questão da obesidade, uma questão de saúde pública, teria muito mais a ver com um controle público de uma indústria alimentícia perversa que massifica exponencialmente alimentos pobres em valor nutritivo, barateando sua circulação. Já ficou provado, por exemplo, que o açúcar e a gordura trans, o tipo mais maléfico, leva à dependência. Por outro lado, somos um dos países mais ricos em possibilidade de produção de frutas, verduras e legumes e a produção destes alimentos vêm sendo cada vez mais solapada pelo agronegócio, que atende à demanda da exportação e utiliza produtos químicos os mais nocivos à saúde.
Em contraposição à governança do carnaval, foi produzido um concurso popular do Rei Momo, cujo vencedor foi o professor universitário Everson Melchiades Araújo Silva de 34 anos que pesa 116 Kg. A governança do poder público, além de ter se constituído em um ato de violência simbólica em relação à cultura popular, deveria lançar seu controle sobre as poderosas indústrias que invadem os corpos dos indivíduos com alimentos perversamente beneficiados, estes sim, inimigos atrozes da saúde pública, bem como da indústria da estética, que transforma corpos de mulheres saudáveis em uma paródia do humano.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não-civilizados
Trailer do filme A Vênus Negra, de Abdellatif Kechiche
Por Jonatas Ferreira e Cynthia Hamlin
Publicado em Rev. Estud. Fem. vol.18 no.3 Florianópolis set./dez. 2010
RESUMO
A dinâmica ocidental de civilização implica uma relação tensa entre corpo e mente, cultura e natureza, civilização e barbarismo. No ensaio que se segue, exploramos a construção deste último dualismo ao investigarmos os espaços nos quais certos corpos são definidos como monstruosos. Em particular, estamos interessados na constituição de uma visão científica de diferenças raciais, sua especificidade em relação à percepção medieval do lugar da alteridade, seu papel em legitimar a circulação de corpos 'monstruosos' como mercadorias e sua reivindicação de desvendar uma hierarquia objetiva de raças e gênero. De Lavater a Curvier, a classificação das espécies oferece um modelo hierárquico que será apropriado pelos discursos de raça e gênero na biologia. Nesse contexto, um caso pode ser considerado paradigmático: a 'Vênus Hotentote'. Argumentamos que a negociação política do status ontológico de Sara Baartman, durante os séculos XIX e XX, representa precisamente tal esforço para estabelecer as fronteiras de civilidade mediante a circulação e a exclusão de corpos incivilizados.
Palavras-Chave: mulheres; corpos negros; teratologia; ciência.
"O basilisco [monstro em forma de serpente] é capaz de fulminar o homem pelo olhar porque, ao vê-lo [...] põe em movimento pelo corpo um terrível veneno que, lançado pelos olhos, impregna a atmosfera com sua substância mortífera [...] Mas quando é o homem que vai ao encontro da fera guarnecido de espelhos [...] o resultado é diverso: o monstro, vendo-se refletido nos espelhos, lança seu veneno contra o seu próprio reflexo: o veneno é repelido, retorna sobre ele e o mata."
(Malleus Maleficarum: o martelo das feiticeiras - Heinrich KRAMER e James SPRENGER, 1991, p. 73)
Introdução
Na história do pensamento ocidental, mulheres, negros e monstros têm algo em comum: uma suposta proximidade com a natureza que configura a essência liminar de sua humanidade. Segundo tal forma de pensar, um espaço de civilização que se contraponha a essa proximidade deve ser forjado - um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços. De fato, a constituição de um discurso civilizador abre-se em oposições fundamentadas na identificação de um hiato entre natureza e cultura: corpo versus mente, prazer versus razão, forma versus essência, matéria versus ideia etc. Assim, é comum que o discurso civilizador constitua as seguintes alternativas polares: a natureza alimenta, nutre e constitui nosso lugar dentro da existência; ao mesmo tempo, corrompe essa existência, sepulta-a, impõe-se ao homem civilizado como poder incontrolável, caótico, apavorante. A natureza é simultaneamente fecundidade e luto.
É importante considerar que o discurso civilizador não se estrutura exclusivamente em um dos polos dessa oposição, mas na arquitetura que coloca tais alternativas como algo inquestionável. Na prática, porém, tal discurso precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão. É, portanto, da própria ambiguidade que deriva sua força, embora, paradoxalmente, seja tanto mais forte quanto menos ambíguo se mostre. É a constituição desses lugares que será investigado aqui. Em linhas gerais, nosso propósito é demonstrar como a ambiguidade diante da alteridade foi objeto de negociações distintas ao longo da história do Ocidente. Em particular, interessa-nos o modo como a constituição da sociedade moderna e de um discurso científico resultou em imagens monstruosas de alteridade, na produção discursiva de corpos considerados exóticos e, no limite, abjetos.
Inicialmente, consideraremos os elementos ambíguos que marcaram as representações culturais da mulher e do negro e que possibilitam sua caracterização como um/a Outro/ a monstruoso/a. Argumentaremos que o monstruoso aparece como o lugar da alteridade por excelência, um lugar que marca a fronteira entre criação e corrupção, ordem e caos, civilização e barbárie. Na sociedade medieval, em que a circulação dos corpos era restrita pela sua própria lógica econômica (o mercado tinha uma importância restrita, local),o monstruoso sempre esteve associado à ideia de circulação imprópria. Numa sociedade que se moderniza, a partir do comércio, da circulação de corpos e mercadorias, uma outra lógica civilizadora teve que ser concebida. Nesse sentido, argumentamos que o surgimento de um sistema de classificação taxonômico representou um primeiro passo legitimador do aumento da circulação de corpos e objetos transformados em mercadoria com o processo de expansão capitalista. Esse sistema de classificação, que constitui a baseda ciência moderna, representa uma ruptura. Para usarmos uma distinção semelhante àquela que Michel Foucault faz com respeito à loucura, diríamos que o monstruoso deixa de ser concebido, primordialmente, como objeto de julgamento moral e passa a ser explicado pela biologia. Distintamente do argumento foucaultiano, acreditamos que o elemento moralizante continuou claramente vivo, subjacente à explicação científica. Essa nova concepção do monstruoso, na exata medida em que se pretende científica, busca ocultar sua matriz valorativa, concebendo esses seres como espécimes naturais. A suposta isenção daquilo que se considera 'natural' é o ponto a partir do qual se essencializa uma explicação histórica e política. Tal naturalização é o equivalente moderno do ritual de exorcismo descrito no Martelo das feiticeiras: ao promover hierarquias raciais e de gênero e localizar o/a Outro/a do civilizado na base dessas hierarquias, a reflexão científica busca, ao mesmo tempo, neutralizar seus poderes, funcionando como o espelho que reflete a mirada do monstro sobre si mesmo. É justamente quando se percebe que esse olhar não é axiologicamente neutro que esse/a Outro/a monstruoso/a surge como um problema real cuja emergência e efeitos precisam ser explicados.
A fim de ilustrar nossos argumentos, efetuaremos um estudo de caso referente a Sara Baartman, mais conhecida como Vênus Hotentote. Baartman nos interessa porque representa uma convergência importante entre os principais pontos levantados aqui. Em primeiro lugar, além de mulher, é negra. Em segundo lugar, representa um caso extremo de constituição de identidade a partir do olhar do outro. Privada de sua própria voz e da perspectiva cultural de seu povo, sua identidade pessoal foi inteiramente subsumida à sua identidade social, fazendo dela uma espécie de significante vazio que reflete os valores dos grupos que a constituem como um tipo específico de sujeito. Por fim, ao ser submetida a três tipos de olhares distintos - a selvagem perigosa e amoral; o negro como raça biologicamente distinta e a heroína dos modernos movimentos sociais - a circulação de seu corpo, desde o século XIX, tem garantido a manutenção da lógica civilizatória europeia.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Corpos e Emoções
O Programa de Acción Colectiva y Conflicto Social (Conicet, Argentina), acaba de lançar dois livros em formato digital sobre corpos e emoções, com autoria de diversos pesquisadores da América Latina. O primeiro volume, intitulado Sensibilidades en juego: miradas múltiples desde los estudios sociales de los cuerpos y las emociones, é uma coletânea organizada por Adrián Scribano y Pedro Lisdero. O segundo, Cuerpos y Emociones desde América Latina, compilado por José Luis Grosso y María Eugenia Boito, é resultado do esforço de edição conjunta entre aquele Programa e o Doutorado em Ciências Humanas da Universidade de Catamarca. Abaixo, um breve resumo dos dois livros e os links para download.
Sensibilidades en juego: miradas múltiples desde los estudios sociales de los cuerpos y las emociones (clique aqui para baixar o livro)
Adrián Scribano y Pedro Lisdero (comp.)
Los textos que hemos reunidos en este libro se inscriben en una “micro historia” de relaciones académicas e institucionales, que se puede describir sucintamente como las interrelaciones entre el Grupo de Trabajo sobre Sociología de los Cuerpos y las Emociones de la Asociación Latinoamericana de Sociología (ALAS), la Red Latinoamericana de Estudios Sociales sobre el Cuerpo y las Emociones, el Programa de Estudios sobre Acción Colectiva y Conflicto Social (CEA-UE-UNC-CONICET) y el Grupo de Estudios Sociales sobre los Cuerpos y la Emociones (IIGG-UBA).
Desde este múltiple espacio surge la idea de “Poner en juego las sensibilidades”, que tal como se propone, supone un acto de incorrección que contrasta con el paisaje social predominante en las latitudes desde donde el mismo se produce. Problematizar y dar cuenta de la centralidad del cuerpo y las emociones en los estudios sociales es una clara apuesta por indagar uno de los nodos sensibles asociados a las condiciones de re-producción de la estructura social colonial. La relación entre conocimiento, ciencia y sociedad se re-configura en la potencia que adquieren las tonalidades que- aunque múltiples y diversas- reconocen una ciencia con capacidad de producir de manera reflexiva sus propias condiciones de producción.
Es así que “Las miradas múliples desde los estudios sociales de los cuerpos y las emociones” liberan un plus de significación que excede a las diversas problemáticas puntuales abordadas en cada artículo, dando lugar a la potencia colectiva del acto incorrecto. Aquí reside de manera general y unívoca un valor excedente de la compilación.
Cuerpos y Emociones desde América Latina (clique aqui para baixar o livro)
José Luis Grosso y María Eugenia Boito (comp.)
Este libro remite a lo producido desde diversos espacios de investigación en America Latina (Argentina, Bolivia, Colombia, Chile, Perú y Uruguay) y también incluye un artículo generado desde Barcelona: España en diálogo con equipos de investigación de nuestro continente. Los diez textos que se presentan, manifiestan una práctica de reflexión compartida que se materializa en los ejercicios de lectura y apropiación de autores y tradiciones en común, en referencias cruzadas a las producciones teóricas de los distintos autores de los trabajos y en algunos casos en la producción en co-autoría de artículos especialmente preparados para esta publicación.
Este hecho refiere a un posicionamiento político sobre como pensar-realizar el trabajo académico, e indica el necesario diálogo que permita la interrogación en este campo tramado por cuerpos y emociones. Una especie de obligatoria práctica de interdiscursividad, que teje núcleos de sentidos que nunca son definitivamente conclusos, sino más bien ‘apuestas presentes’ a problematizar un fenómeno tan actual y complejo como el que refiere a los ejes de la corporalidad y la emocionalidad en las escenas contemporáneas.
Sensibilidades en juego: miradas múltiples desde los estudios sociales de los cuerpos y las emociones (clique aqui para baixar o livro)
Adrián Scribano y Pedro Lisdero (comp.)
Los textos que hemos reunidos en este libro se inscriben en una “micro historia” de relaciones académicas e institucionales, que se puede describir sucintamente como las interrelaciones entre el Grupo de Trabajo sobre Sociología de los Cuerpos y las Emociones de la Asociación Latinoamericana de Sociología (ALAS), la Red Latinoamericana de Estudios Sociales sobre el Cuerpo y las Emociones, el Programa de Estudios sobre Acción Colectiva y Conflicto Social (CEA-UE-UNC-CONICET) y el Grupo de Estudios Sociales sobre los Cuerpos y la Emociones (IIGG-UBA).
Desde este múltiple espacio surge la idea de “Poner en juego las sensibilidades”, que tal como se propone, supone un acto de incorrección que contrasta con el paisaje social predominante en las latitudes desde donde el mismo se produce. Problematizar y dar cuenta de la centralidad del cuerpo y las emociones en los estudios sociales es una clara apuesta por indagar uno de los nodos sensibles asociados a las condiciones de re-producción de la estructura social colonial. La relación entre conocimiento, ciencia y sociedad se re-configura en la potencia que adquieren las tonalidades que- aunque múltiples y diversas- reconocen una ciencia con capacidad de producir de manera reflexiva sus propias condiciones de producción.
Es así que “Las miradas múliples desde los estudios sociales de los cuerpos y las emociones” liberan un plus de significación que excede a las diversas problemáticas puntuales abordadas en cada artículo, dando lugar a la potencia colectiva del acto incorrecto. Aquí reside de manera general y unívoca un valor excedente de la compilación.
Cuerpos y Emociones desde América Latina (clique aqui para baixar o livro)
José Luis Grosso y María Eugenia Boito (comp.)
Este libro remite a lo producido desde diversos espacios de investigación en America Latina (Argentina, Bolivia, Colombia, Chile, Perú y Uruguay) y también incluye un artículo generado desde Barcelona: España en diálogo con equipos de investigación de nuestro continente. Los diez textos que se presentan, manifiestan una práctica de reflexión compartida que se materializa en los ejercicios de lectura y apropiación de autores y tradiciones en común, en referencias cruzadas a las producciones teóricas de los distintos autores de los trabajos y en algunos casos en la producción en co-autoría de artículos especialmente preparados para esta publicación.
Este hecho refiere a un posicionamiento político sobre como pensar-realizar el trabajo académico, e indica el necesario diálogo que permita la interrogación en este campo tramado por cuerpos y emociones. Una especie de obligatoria práctica de interdiscursividad, que teje núcleos de sentidos que nunca son definitivamente conclusos, sino más bien ‘apuestas presentes’ a problematizar un fenómeno tan actual y complejo como el que refiere a los ejes de la corporalidad y la emocionalidad en las escenas contemporáneas.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
Fazendo Sexo: as fronteiras (não-)discursivas do corpo em Thomas Laqueur

Cynthia Hamlin
Em seu “Inventando o Sexo: corpo e gênero dos Gregos a Freud” (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001), o historiador Thomas Laqueur desconstrói 2.000 anos de diferença sexual, transitando no espaço ínfimo entre corpos de carne, sangue e sêmen, de um lado, e suas representações, de outro. Estabelecendo o que parece ser uma versão fraca da tese segundo a qual o sexo é construído por meio de categorias de gênero, Laqueur se afasta daquelas tendências do feminismo contemporâneo que esvaziam o sexo de todo conteúdo ao propor que as diferenças naturais são, na verdade, culturais, não havendo distinção entre elas. O que estou chamando de tese fraca do caráter socialmente construído do sexo repousa, em vez disso, na afirmação de que a concepção de corpo como algo privado, fechado e estável – e que fundamenta as noções modernas de diferença sexual – é efeito de contextos históricos e culturais. Assim, em lugar de negar o que chama de “abismo” entre representação e realidade ou da distinção entre “ver” e “ver como” que, em última instância, levaria ao desaparecimento completo do corpo, ele mantém a distinção fundamental entre este e sua construção discursiva. O movimento é sutil, mas importante, pois, além de estabelecer os limites da desconstrução na produção de conhecimento, abre a possibilidade de um movimento de reconstrução com base na (investigação da) dimensão material dos corpos.
Creio que isso pode ser melhor compreendido com a afirmação de Laqueur de que, embora sua preocupação no livro seja a de examinar as diferentes interpretações do corpo com base desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos (o que equivale a dizer que tudo o que se afirma sobre o sexo é contaminado por determinadas concepções de gênero), não tem interesse em negar a realidade do sexo ou do dimorfismo sexual como um processo evolutivo. Talvez essa última posição seja especialmente esclarecedora, pois marca sua diferença em relação a teóricas como Fausto-Sterling, MacKinnon e Butler (dentre outras). Embora Laqueur evite polemizar com essas autoras, eu acho a comparação irresistível.
A negação do dimorfismo sexual está intimamente associada à crítica pós-estruturalista dos dualismos, especialmente três deles: sexo/gênero, natureza/cultura; real/construído. Embora reconheça a validade da crítica, em particular no que diz respeito à relação de incomensurabilidade, de dominância relativa entre os termos de cada um dos pares e da invisibilidade da interdependência que se estabelece entre eles, acredito que, de um ponto de vista analítico, existem algumas vantagens em transformá-los de dualismos em oposições – exceto o par real/construído, que pressupõe a negação ontológica de fenômenos culturais. Mas não pretendo desenvolver esse argumento aqui. O que me interessa no momento é mostrar como a dissolução desses dualismos é feita com base numa elisão entre realidade e representação que impede qualquer movimento reconstrutivo na teoria feminista. Tal movimento, em minha modesta opinião, é fundamental para seus projetos emancipatórios, especialmente aqueles que implicam em transformações corporais mais “profundas” do que as possibilitadas pelo uso de roupas, cosméticos e mesmo exercícios e dietas - como o uso de drogas, cirurgias e, no limite, a criação de organismos totalmente novos por meio de tecnologias como o DNA recombinante (Soper, 1995).
Embora tanto Fausto-Sterling (2000) quanto Butler (1993) se esforcem por admitir a dimensão material dos corpos, a ênfase em sua dimensão ideológica ou simbólica não apenas erode a distinção entre o corpo físico e o corpo cultural, mas prioriza o segundo, transformando o primeiro em mero epifenômeno: “... nós literalmente, não apenas ‘discursivamente’ (isto é, por meio da linguagem e de práticas culturais), construímos nossos corpos, incorporando a experiência em nossa própria carne”, diz Fausto-Sterling (p. 20-21), e complementa, mais adiante: “[A] sexualidade é um fato somático criado por um efeito cultural” (ênfases da autora). Não se trata, aqui, de negar a necessidade do deslocamento das fronteiras biológicas, gerando um certo borramento entre seus limites com a cultura, mas de negar a prioridade conferida ao cultural que impede que o sexo seja concebido como algo mais do que aquilo “que a sociedade designa ou o que a sociedade faz dele” (Weeks, citado em Laqueur, 2000, p. 13). A este propósito, é interessante notar que tanto Butler quanto Fausto-Sterling tratam sexo e sexualidade como intercambiáveis, impedindo qualquer critica mais consistente àquelas abordagens deterministas que, pelo lado avesso, estabelecem a identidade entre anatomia, genes e hormônios, por um lado, desejo, identidade e práticas, por outro. Para ser justa, Laqueur também faz isso ocasionalmente, inclusive no ambíguo título de seu livro “making sex” (fazendo sexo), gerando eventuais escorregadas na falácia epistêmica, ou a confusão entre o real e a concepção que se tem do real ou, ainda, a dissolução da ontologia na epistemologia.
Parte do apelo do pós-estruturalismo, especialmente no que diz respeito ao colapso da distinção sexo/gênero, decorre de questões políticas: para Fausto-Sterling, sua manutenção exclui a possibilidade de qualquer crítica feminista às ciências biológicas; para Catherine MacKinnon (ainda que ela não possa ser considerada pós-estruturalista, num sentido estrito), a distinção deve ser abandonada porque o sexo (como o gênero) diz respeito a relações sociais “organizadas de tal forma que os homens possam dominar e as mulheres devem se submeter” (citado em Laqueur, 1992, p. 13); para Butler (1993), a recuperação do corpo material por parte do feminismo (em relação à biologia) implica na negação da associação entre feminilidade e materialidade (via o conceito de matrix, relacionado ao útero e às questões reprodutivas). Neste sentido, não deixa de ser irônico que a justificativa oferecida por Laqueur (Ibid. p. 15) para a manutenção da distinção entre o corpo material e o corpo como discursivamente construído seja também, embora não exclusivamente, de ordem política:
diferentes obrigações [éticas e políticas] decorrem do fato de o observador ver (ou tocar) e representar. Também é desonesto escrever uma história da diferença sexual, ou da diferença, de forma geral, sem reconhecer a correspondência vergonhosa entre formas particulares de sofrimento e formas particulares de corpo, não importa como o corpo seja concebido. O fato de que a dor e a injustiça são gendradas e que correspondem a sinais corpóreos de sexo é precisamente o que confere importância a uma descrição da construção do sexo. Além disso, houve claramente progresso na compreensão do corpo humano, em geral, e da anatomia e fisiologia reprodutiva, em particular.
Como afirma Tony Lawson (citado em Hull, 2006, p. 5), “posições políticas que não têm outra base que não suas vantagens estratégicas percebidas provavelmente serão desafiadas e questionadas mais cedo ou mais tarde”. É justamente por isso que a abertura que Laqueur confere ao conhecimento produzido pelas ciências biológicas e, como consequência, à distinção sexo/gênero, não me parece, ao contrário do que afirma Jurandir Freire Costa (2001), uma tentativa de continuar a falar desses termos de forma moralmente neutra, mas de trabalhar a desconstrução de forma a permitir o movimento de reconstrução teórica que estabelece as condições ontológicas daquilo que Butler chama de corpos abjetos.
Embora de forma alguma imune àquilo que Frédéric Vandenberghe (2010) já se referiu como “ontofobia”, vale ler o excelente trabalho de desconstrução efetuado por Laqueur. De maneira geral, seu livro deve ser compreendido como a tentativa de demonstrar que, de um ponto de vista histórico, nenhum conjunto de fatos relativos ao sexo determinou a forma como ele foi representado e compreendido e - no que poderíamos caracterizar como um pequeno passo em falso em direção à falácia epistêmica- nem engendra qualquer concepção particular de diferença sexual. Isso porque a própria forma como esses fatos são construídos (de um ponto de vista de sua representação) dependem de desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos. Diferentemente de Foucault, para quem epistemes são substituídas umas pelas outras, tornando-se incomensuráveis, para Laqueur, modelos sexuais distintos sempre coexistiram, embora a ênfase possa recair sobre um em detrimento de outros.
Para o autor, desde a Grécia clássica até o século XVII, dominou um modelo corporal de sexo único no qual as diferenças sexuais decorriam de um sistema hierárquico segundo o qual a mulher é um homem invertido – e menos perfeito. Mas isso não deve ser entendido como uma fundamentação biológica dos papéis sexuais – algo que só surge na modernidade: as próprias categorias sociais eram naturais, estando ambas no mesmo nível explanatório.
O modelo de sexo único fundamenta-se na teoria da causalidade de Aristóteles, em A Geração dos Animais, para quem o sexo era o signo de tipos distintos de causa: os machos representavam a causa eficiente (geram em outro, contribuindo com a alma); as fêmeas, a causa material (geram em si mesmas, contribuindo com o corpo). Embora isto aponte para uma divisão em dois sexos, inclusive do ponto de vista genital (assim como o pênis era peculiar aos machos, o útero era peculiar às fêmeas), uma economia dos fluidos e dos prazeres e até mesmo uma estética do pênis levam a um borramento das fronteiras do corpo - e dos genitais, em particular - transformando sua retórica na de um modelo de sexo único. Em relação à estética, por exemplo, a preferência dos gregos por um pênis pequeno e um prepúcio proeminente aparece claramente no drama e na arte: um pênis grande, associado aos sátiros, era considerado cômico (para um excelente artigo sobre as conceituações médicas acerca do prepúcio ideal na Grécia e em Roma antigas, veja o artigo de Frederick Hodges) . Segundo Laqueur, ao trazer esse tema cultural mais amplo para sua teoria da geração, Aristóteles progressivamente enfraquece a conexão pênis/macho, sugerindo que um pênis grande tornaria um homem menos masculino, dado que menos fértil porque tornaria o esperma excessivamente frio para possibilitar a geração.
A relação entre pênis pequeno e fertilidade (ou geração, que é, afinal de contas, o que está implícito em sua discussão sobre causalidade) também é sustentada por uma economia dos fluidos corporais segundo a qual a temperatura diferenciada de homens e mulheres (os homens seriam mais quentes não só do que as mulheres, mas também do que os escravos e os estrangeiros, o que aponta para o caráter social, relativo a status, da presença do calor vital). Isso faria com que os órgãos genitais destas fossem internos - ainda que homólogos aos masculinos. Os fluidos produzidos pelo corpo (sangue, suor, sêmen, leite e mesmo gordura) eram, em parte, convertíveis uns nos outros e um tipo de fluido era liberado sempre que havia excesso de outro e calor suficiente para convertê-los. Assim, os homens não menstruavam porque, sendo mais quentes, não dispunham do mesmo excedente nutricional que as mulheres; estas não menstruavam quando precisavam converter o excedente de sangue liberado pela menstruação em leite e os rapazes púberes podiam produzir leite, talvez por ainda não serem quentes o suficiente.
Fatores sociais também aparecem claramente na forma como as relações (sexuais) entre pessoas do mesmo sexo eram concebidas. Relações entre homens mais velhos e rapazes púberes não eram consideradas perversas porque não havia inversão na ordem social. Fosse entre homens ou entre mulheres, não era a identidade sexual que importava, mas a diferença de status: o mollis e o cinaedus, o homem adulto efeminado; a tríbade, a mulher que adotava o papel ativo (masculino) na relação; o pathicus, aquele que era penetrado, eram moral e medicamente condenados porque invertiam de forma não-aceitável os lugares de poder e prestígio, e não porque portavam determinados marcadores corporais de sexo. De fato, o sexo entre e escravos nem chegava a ser reconhecido como tal por Aristóteles: “o escravos não têm sexo porque seu gênero não importa politicamente” (Laqueur, 1992, p. 54).
O modelo do sexo único, no qual o corpo paradigmático era o corpo quente, masculino, civilizado, exerceu influência significativa durante toda a Idade Média e o Renascimento e o ponto importante deste modelo é que ele não possibilitava uma diferenciação entre os sexos de ordem qualitativa, mas meramente quantitativa, no sentido de que os sexos eram classificados em função do grau de aproximação deste corpo paradigmático. Com efeito, a preocupação com o estabelecimento de distinções de ordem física era tão reduzida que, até o século XVIII, o termo testes (ou orcheis em latim) era usado de forma indistinta para testículos e ovários, o canal vaginal não era reconhecido como uma estrutura independente do útero e as trompas de falópio eram chamadas de vasos deferentes. Mas é importante não perder de vista que essa “falta de interesse” aponta para a dominância sócio-cultural atribuída ao corpo masculino.
Isso é interessante, se considerarmos que o Renascimento foi o período no qual as dissecações de corpos começaram a ser feitas de forma mais ou menos sistemática. Até mesmo artistas do porte de um Leonardo da Vinci pareciam tão impregnados pelo modelo do sexo único que representavam os órgãos internos femininos como se fossem a inversão perfeita da genitália externa masculina. As ilustrações retiradas do que é considerada a obra fundadora da anatomia moderna, a De humani corporis fabrica (1543), de Andreas Versalis, demonstra bem o papel da crença no modelo do sexo único na percepção do corpo. A vagina é “realmente” um pênis (à direita); o útero equivale à bolsa escrotal e, os ovários, aos testículos (ilustração da esquerda). Pelo menos até o “aparecimento” do clitóris – ironicamente, descoberto por um tal de Colombo (Renaldus, não Cristóvão) à época dos grandes descobrimentos.

Não que a descoberta do clitóris tenha servido para desestabilizar a hegemonia do modelo do sexo único, mas, dada a homologia estabelecida entre ele e o pênis, agora era preciso lidar com o “fato” de que as mulheres tinham não um, mas dois pênis! Apesar disso, como a análise de alguns casos de hermafroditismo efetuada por Laqueur sugere, apenas um desses pênis isomórficos realmente contava neste período: o interno. Diante de casos ambíguos, como em hermafroditas em que era impossível determinar se o que se via era um pênis pequeno ou um clitóris grande, os critérios sociais (aliás, como ainda hoje), assumem uma importância maior. Mas longe de concluir, como o fazem Fausto-Sterling, Butler, e mesmo Laqueur, que isso ilustra o caráter decididamente convencionalista do sexo, creio que isso pode ser compreendido em termos de que, onde as fronteiras naturais não existem ou não são claras o suficiente, as categorias tendem a ser política e culturalmente alocadas.
Seja como for, a emergência do modelo (moderno) de dois sexos ocorre em algum momento do século XVIII. Aqui, mais uma vez, é possível perceber uma série de escolhas semânticas que apontam para a elisão ocasional entre realidade e representação:
À medida que o próprio corpo natural tornou-se o padrão dominante de discurso social, os corpos das mulheres – o eterno outro – tornaram-se o campo de batalha para redefinir uma relação social antiga, íntima e fundamental: aquela entre o homem e a mulher. Os corpos femininos, em sua concretude corpórea, cientificamente acessível, na própria natureza de seus ossos, nervos e, mais importante, órgãos sexuais, passaram a suportar um novo peso de significado. Dois sexos, em outras palavras, foram inventados como a nova fundação para o gênero. (Laqueur, 1992, p. 150. Minhas ênfases).
Dois conjuntos de fatos explicam a emergência do novo modelo: um epistemológico e um político. De um ponto de vista epistemológico, o desenvolvimento da ciência não apenas possibilitou uma melhor distinção entre fato e ficção, ciência e religião, razão e crença (palavras do próprio Laqueur!), mas a mudança paradigmática (ou epistêmica) ocorrida neste período diz respeito à substituição de um tratamento hierárquico entre semelhanças por um sistema de diferenciação reduzido a um plano único: o natural. Assim, em lugar do modelo baseado na continuidade e hierarquização que caracterizava o sexo único, constrói-se um modelo baseado na discontinuidade e oposição (reducionista) que dividia o sexo em dois. Houve, entretanto, um contexto político que tornou essa mudança possível: o alargamento da esfera pública ocorrido entre os séculos XVIII e XIX que gerou novas lutas por poder e status, inclusive entre homens e mulheres. Não por acaso, contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau (este último, em particular), terminam por estabelecer o corpo como fundamento da sociedade civil ao subordinar as mulheres aos homens no contrato social em virtude de suas (in)capacidades reprodutivas.
Ao descrever como certos fatos, ou “o que eram considerados fatos” (aqui fala Laqueur, o realista), tornaram-se o fundamento de determinadas distinções sociais, Laqueur demonstra como essas distinções retroalimentam teorias científicas, reforçando o ciclo infernal de desigualdades. Sua análise da teoria freudiana da sexualidade feminina é particularmente instrutiva, na medida em que não apenas demonstra como o lugar de subordinação das mulheres é determinado em função de sua anatomia (anatomia é destino), mas também como o próprio Freud provê as ferramentas para o desmonte deste modelo ao propor que a libido não tem sexo. Esta é uma afirmação ontologicamente ousada a que Laqueur parece subscrever e que tem consequências importantes para a crítica do determinismo biológico. Afirmações ontológicas pressupõem um comprometimento em relação a determinadas propriedades atribuídas aos objetos. Mas isso Laqueur só faz de forma indireta. De fato, ao lamentar a omissão de “uma discussão sistemática da experiência no corpo”, ele parece reconhecer a necessidade de reconstrução - no sentido de afirmar claramente a que tipos de experiências esses corpos estão sujeitos em virtude de sua estrutura, para dar conta da crítica dos elementos excludentes do modelo de dois sexos. Neste sentido, parafraseando Bhaskar, talvez o que lhe falte seja a coragem de transformar sua cautela epistemológica em ousadia ontológica.
Bibliografia
BUTLER, Judith (1993). Bodies that Matter: on the discursive limits of sex. Routledge, Nova York e Londres.
COSTA, Jurandir Freire (2001). “O sexo segundo de Laqueur”. Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, 25 de março de 2001. Disponível em:
< http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/laqueur.html>. Acesso em 21 de junho de 2010.
FAUSTO-STERLING, Anne (2000). Sexing the Body: gender politics and the construction of sexuality. Basic Books, Nova York.
HULL, Carrie (2006). The Ontology of Sex: a critical inquiry into the deconstruction and reconstruction of categories. Routledge, Londres e Nova York.
LAQUEUR, Thomas (1992). Making Sex: body and gender from the Greeks to Freud. Harvard University Press, Cambridge (MA) e Londres.
SOPER, Kate (1995) What is Nature? Culture, politics and the non-human. Oxford, Blackwell.
VANDENBERGHE, Frédéric (2010) Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, UFMG/Iuperj.
domingo, 16 de maio de 2010
A incrível e triste história de Loretta e sua realidade desalmada
Cynthia Hamlin
(Para Eveline Rojas)
Um dos pilares do realismo critico é a distinção entre epistemologia e ontologia, ou, em termos Bhaskarianos, entre um domínio transitivo (aquilo que conhecemos) e um domínio intransitivo (aquilo que existe de maneira relativamente independente de nossas concepções). “Relativamente” porque a existência de alguns objetos, como é o caso da maioria dos objetos sociais, depende da concepção que os atores têm deles, embora independa das concepções do pesquisador (no sentido específico de que não são as categorias utilizadas para descrevê-las que geram sua existência). Ao que tudo indica, essa distinção tem sido uma enorme fonte de angústia entre as alunas do curso de teoria realista que estou ministrando na Pós-Graduação. Frequentemente surgem questões do tipo “gênero é transitivo ou intransitivo?”, “a esquizofrenia é transitiva ou intransitiva?”, “se o sexo é uma construção social, ele é transitivo ou intransitivo?”.
Colocadas desta forma, tais questões não fazem sentido. A transitividade ou intransitividade de objetos particulares deve ser estabelecida pelas ciências particulares, não pela filosofia. Sendo assim, a distinção transitivo/intransitivo é sempre objeto de controvérsia, pois a ontologia é sempre estabelecida via epistemologia – ou seja, o que é considerado real depende de argumentos teóricos que, como tais, são sempre do domínio transitivo. Não se pode escapar do pensamento e da linguagem. Mas se é este o caso, porque simplesmente não concordarmos com os pós-estruturalistas e com construtivistas como Quine e Nelson Goodman? Por uma série de razões, mas, em minha opinião, uma das mais importantes é porque tais abordagens impedem qualquer afirmação razoável relativa a um domínio não-cultural. Do fato de que o mundo natural é culturalmente interpretado não se segue que ele seja culturalmente constituído em um sentido forte. Embora a linha que separa a natureza e a cultura seja extremamente fluida e que suas fronteiras estejam cada vez mais borradas, ignorar os limites impostos pela natureza (aqui considerada em sua dimensão intransitiva) sobre as nossas ações tem conseqüências práticas pífias, quando não desastrosas.
Tomemos como exemplo a dissolução entre natureza e cultura efetuada por feministas pós-estruturalistas. Ao afirmarem que as categorias de sexo (intransitivo, para as feministas realistas) são, no fundo, expressões de gênero (transitivo, de um ponto de vista de comunidades particulares), o argumento político que geralmente se segue é o de que “as possibilidades para transformações societais reais seriam ilimitadas se a naturalidade do gênero [incluindo o sexo biológico] pudesse ser questionada” (Kessler & McKeenna, Gender: an ethnomethodological approach, Chicago: Chicago University Press, 1978, p. 163). Questionemos, então. Mas como parece que meus questionamentos filosóficos e teóricos não tem surtido muito efeito entre minhas alunas, mudarei minha estratégia e recorrerei ao Monty Python. Com vocês, a incrível e triste história de Loretta:
(Para Eveline Rojas)
Um dos pilares do realismo critico é a distinção entre epistemologia e ontologia, ou, em termos Bhaskarianos, entre um domínio transitivo (aquilo que conhecemos) e um domínio intransitivo (aquilo que existe de maneira relativamente independente de nossas concepções). “Relativamente” porque a existência de alguns objetos, como é o caso da maioria dos objetos sociais, depende da concepção que os atores têm deles, embora independa das concepções do pesquisador (no sentido específico de que não são as categorias utilizadas para descrevê-las que geram sua existência). Ao que tudo indica, essa distinção tem sido uma enorme fonte de angústia entre as alunas do curso de teoria realista que estou ministrando na Pós-Graduação. Frequentemente surgem questões do tipo “gênero é transitivo ou intransitivo?”, “a esquizofrenia é transitiva ou intransitiva?”, “se o sexo é uma construção social, ele é transitivo ou intransitivo?”.
Colocadas desta forma, tais questões não fazem sentido. A transitividade ou intransitividade de objetos particulares deve ser estabelecida pelas ciências particulares, não pela filosofia. Sendo assim, a distinção transitivo/intransitivo é sempre objeto de controvérsia, pois a ontologia é sempre estabelecida via epistemologia – ou seja, o que é considerado real depende de argumentos teóricos que, como tais, são sempre do domínio transitivo. Não se pode escapar do pensamento e da linguagem. Mas se é este o caso, porque simplesmente não concordarmos com os pós-estruturalistas e com construtivistas como Quine e Nelson Goodman? Por uma série de razões, mas, em minha opinião, uma das mais importantes é porque tais abordagens impedem qualquer afirmação razoável relativa a um domínio não-cultural. Do fato de que o mundo natural é culturalmente interpretado não se segue que ele seja culturalmente constituído em um sentido forte. Embora a linha que separa a natureza e a cultura seja extremamente fluida e que suas fronteiras estejam cada vez mais borradas, ignorar os limites impostos pela natureza (aqui considerada em sua dimensão intransitiva) sobre as nossas ações tem conseqüências práticas pífias, quando não desastrosas.
Tomemos como exemplo a dissolução entre natureza e cultura efetuada por feministas pós-estruturalistas. Ao afirmarem que as categorias de sexo (intransitivo, para as feministas realistas) são, no fundo, expressões de gênero (transitivo, de um ponto de vista de comunidades particulares), o argumento político que geralmente se segue é o de que “as possibilidades para transformações societais reais seriam ilimitadas se a naturalidade do gênero [incluindo o sexo biológico] pudesse ser questionada” (Kessler & McKeenna, Gender: an ethnomethodological approach, Chicago: Chicago University Press, 1978, p. 163). Questionemos, então. Mas como parece que meus questionamentos filosóficos e teóricos não tem surtido muito efeito entre minhas alunas, mudarei minha estratégia e recorrerei ao Monty Python. Com vocês, a incrível e triste história de Loretta:
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quinta-feira, 4 de março de 2010
Véus muçulmanos na França e olhar sociológico : bom caso da tensão entre análise sociológica e tomada de posição

Tâmara de Oliveira
Chegando há pouco na França, meu coração tropical foi perdendo a paciência: como ela é cansativa, essa République, com seus dilemas sobre a identidade nacional e suas inimigas muçulmanas! Desde o final dos anos 1980 que esse país se enrola com o affaire du voile islamique. Segundo mídias, os franceses estariam em plena quarta questão do véu islâmico, estrelada agora pelo niqab ou véu integral, tipo de vestimenta parecido/confundido com a burka afegã, porque em geral deixa os olhos visíveis mas pode ser complementado por um tecido transparente cobrindo também os olhos. Sem falar nos velhos dilemas de integração, agora com os imigrantes de terceira ou quarta geração. Falando em quarta, um antigo partido trotskista recomposto e renomeado como Nouveau Parti Anticapitaliste, ousou colocar uma jovem adepta do véu (não integral) como sua candidata para as próximas eleições regionais. Lendo certos jornais e artigos, vendo programas ou documentários na tv, consultando sites e blogs e, tomando conhecimento das demandas por legislação repressiva e das queixas na justiça contra outros « atentados aos valores de liberdade e laicidade republicanos », dir-se-ia que a França sofre uma invasão de uma espécie de Quarta Internacional Muçulmana… Haja !
Ainda bem que a imaginação sociológica sempre está circulando e pode fazer contraponto à impaciência dos corações – tropicais ou temperados. Imaginação que, no caso, materializou-se a partir de duas fontes : um post do Cazzo com Chimamanda Adichie e uma reportagem do Le Monde Magazine de 30 de janeiro último (realizada por Agnès De Féo). Adichie remeteu-me a um sentido profundo do « perigo muçulmano », qual seja o da articulação entre esses « dilemas de quarta geração » e a história única do olhar colonizador sobre os fluxos migratórios. Agnés De Féo refrescou minha imaginação sobre a importância de uma metodologia que considere os atores sociais em sua atividade de construção social da realidade, trazendo empiricamente a pluralidade das histórias contra a única história de que fala Adichie.
No caso em questão, a única história, a dos republicanos universalistas, convergindo orientações políticas diversas e confortando o senso comum em torno da defesa da liberdade das mulheres como valor inalienável da République e da inadequação entre o véu integral e esse valor, aparece imediatamente contraposta a uma outra única história : a do universalismo dominador da França, impermeável à diversidade cultural real do país, estigmatizando a parte muçulmana de si própria e, por isso mesmo, incapaz de lidar com a expressão de uma religiosidade vinda das ex-colônias – eis a história dos mais ou menos multiculturalistas. Os defensores da primeira única história demandam uma lei que proíba o uso do véu integral nos serviços públicos (inclusive nos transportes), sendo capitaneados por uma Missão Parlamentar cujo relatório em favor de uma lei interditiva foi tornado público em 26 de janeiro de 2010. Já os defensores da segunda única história são contra uma lei desse calibre, argumentando sobre a insensatez de se legislar sobre um fenômeno marginal (mesmo as estimativas governamentais falam em menos de 2000 pessoas sobre uma população em torno de 65.000.000 de habitantes) e, principalmente, sobre o acréscimo de estigmatização que ela trará à população francesa muçulmana.
Seria então algo como « dois em um » ou « pague uma e leve duas», a história inacabada da descolonização à francesa, aquela que você paga de qualquer maneira, escolhendo uma ou outra de suas versões. História em que o princípio da análise e da avaliação é o da separação entre “franceses de origem” e “franceses saídos da imigração », cuja afinidade com a sistêmica e dicotômica distinção tradição/modernidade é considerável. Enquanto os inimigos da burka constatam a separação para julgar que o melhor é reprimir as « tradições imigrantes », seus adversários constatam a mesma separação para julgar entretanto que o melhor é reeducar/integrar os tradicionais, trazê-los à modernidade por esclarecimento e não por repressão. As mulheres veladas são assim unilateramente abordadas e avaliadas exclusivamente como portadoras, coagidas por homens muçulmanos, de uma tradição religiosa estrangeira e obscurantista.
Daí a importância de reportagens como a de Agnès De Féo (2010) que, vivendo dois meses em espaços parisienses de moradia dessas mulheres, quis descrever a diversidade das experiências e discursos sobre o nikab/burka por seus sujeitos concretos : as muçulmanas integralmente cobertas. De Féo diferenciou suas entrevistadas em três tipos etários : as jovens entre 19/24 anos, para quem o uso do niqab é a expressão de sua condição de futuras boas-esposas e de seu zelo religioso, mas que têm o cuidado de só usá-lo em ambientes muçulmanos ; as de 30/40 anos – que usam o niqab como meio para se lavar de um passado julgado feio para a moralidade muçulmana ; as que têm mais de cinquenta anos, viúvas ou divorciadas – que resolveram se consagrar à vida religiosa. Dois componentes as unificariam : a) elas seguem os princípios de dois movimentos muçulmanos fundamentalistas que preconizam uma vida regrada estritamente sobre o exemplo suposto do Profeta, suas esposas e seus companheiros, ou seja, voluntária e vestuariamente distinta dos outros ; b) elas vivem sob um princípio de « obssessiva » (De Féo, p. 20) separação entre os sexos, acedendo ao espaço público, reservado aos homens, exatamente quando usam o niqab,.
Descritas assim, penso que as diferenças propriamente sociológicas entre os três tipos etários dessas mulheres ficam no ar, enquanto a visibilidade do que é comum pode ser facilmente interpretada como demonstração do caráter unilateralmente tradicional de sua conduta, remetendo-nos novamente à única história dicotômica : todas articulam o uso do niqab à religiosidade/moralidade sexista desses movimentos fundamentalistas ; todas têm seu acesso ao espaço público condicionado a uma vestimenta criando uma barreira comunicativa entre elas e todos os que não são muçulmanos fundamentalistas. Considero que isso se deve ao fato de que De Féo não realizou uma metodologia tipológico-compreensiva para a sua reportagem ; sua démarche parece muito mais com o que Dominique Schnapper (1999) chamaria de procedimento classificatório, onde as práticas e representações sociais são distribuídas segundo critérios exteriores aos sentidos da ação dos atores e ao seu contexto social amplo – no caso, a simples diferença etária, sem nenhuma relação entre diferentes faixas de idade e evolução recente da sociedade francesa. Por exemplo, a particularidade das jovens de 19/24 anos que põem ou tiram o niqab segundo estejam ou não em ambientes muçulmanos, poderia ser reconstruída sociologicamente se a coleta e a análise dos dados tivessem sido efetuadas através da atenção metodológica às justificativas dessas entrevistadas sobre sua particularidade, bem como à relação entre tais justificativas e a dinâmica sócio-histórica da imigração francesa, desde os anos 1950 até agora. Dinâmica esta que poderia trazer luz sociológica às diferentes formas de praticar/justificar o uso do niqab segundo gerações diferentes de mulheres.
Felizmente, enquanto titular de um mestrado e doutoranda em sociologia, a jornalista De Féo soube aproveitar sua experiência de pesquisadora que usa procedimentos etnográficos, trazendo componentes das práticas/representações cotidianamente observadas que falam muito mais sociologicamente do que sua classificação etária. Eu diria que há duas ordens de componentes diferentes, uma articulada por De Féo ao que chamo aqui de « ordem social interna » dos movimentos muçulmanos fundamentalistas, onde o niqab parece praticado/representado como expressão de status social (mulheres cobertas não precisam trabalhar), controle da sexualidade dos maridos (todas cobertas = tentações extra-conjugais suspensas) e/ou sensação de potência diante dos homens (uso do niqab = poder de observar sem ser observada + estímulo de fantasias masculinas, numa ordem social onde a visibilidade do corpo feminino é sistematicamente negada). Esses componentes já revelam que os sentidos do uso do niqab são sociologicamente bem mais complexos do que o de uma simples coerção masculina tradicional.
Prefiro entretanto exercitar a imaginação sociológica sobre a segunda ordem de componentes que a jornalista apresenta sem analisar/interpretar, pois que eles podem ser articulados ao contexto amplo da França contemporânea, ou seja, ao fato de que essas mulheres são integrantes de uma sociedade que, ao mesmo tempo, não cicatrizou suas feridadas da colonização e participa de tendências sócio-políticas visíveis nesse nosso mundo globalizado. Trata-se de representações justificativas visivelmente orientadas para o conjunto da sociedade francesa, cujos conteúdos principais são : preocupação em se distinguir do terrorismo dos movimentos muçulmanos integristas ; afirmação da convergência entre o uso do niqab e posições feministas (pois é…) ; crítica do projeto de interdição legal do niqab, sob argumentos do Estado de direito. Tais conteúdos merecem ser citados (extraídos da reportagem de De Féo e traduzidos por mim) :
«As pessoas nos associam aos terroristas mas isso é completamente falso. É exatamente porque nós tememos Alá que nós não devemos fazer mal ao nosso próximo. (…) Eu compartilho todos os seus combates [das feministas]. Eu recuso obedecer ao que os homens nos impõem. Eu não sou um vulgar pedaço de carne na prateleira, mas uma mulher. As mulheres não são objetos no islam, elas têm direito ao respeito. É esse respeito que eu encontro no niqab.» (Oum Alkheiyr, quinquagenária).
E ainda :
« (…)Na França existem estruturas suficientes para que uma mulher possa se defender. Se meu marido ou meu pai tivessem me forçado, eu teria ido a uma delegacia ou em associações. Neste país, a gente é livre ! (…) No início eu não pensava que fosse ter problemas com a sociedade. Eu via a França como um país de liberdade, onde cada um é indiferente aos outros e pode se vestir como lhe apraz » (Oum Aldina, trintenária)
Por causa dessa articulação problemática mas significativa entre uso do niqab, feminismo e Estado de direito, penso que analisar o véu integral muçulmano pede que abandonemos uma abordagem sob aquela única história dicotômica de « mulheres subjulgadas por uma tradição estrangeira ». E, verdade seja dita, para além de De Féo, há vários atores do debate na França que vão além desse «dois em um » – principalmente entre intelectuais para quem o Islam é familiar. Foi então num estudioso da religião islâmica contrário a uma lei repressiva (Abdennour Bidar) que tive o prazer de ver que as « inimigas da République » podem ser vistas como integrantes de uma França contemporânea, para além de uma separação analítica/avaliativa que as classifica a priori numa tradição estrangeira :
« (…)Deste ponto de vista, a burka pediria uma interpretação para além de suas significações habitualmente invocadas, como a expressão de uma dessas rebeliões vestimentárias da individualidade contemporânea que se exprimem contra a espécie de uniformidade e de pura aparência que lhe é colocada! Rebelião que essas mulheres exprimem conscientemente quando reivindicam alto e forte fazer uma escolha contra o ‘sistema ambiente’. E para além disso, rebelião, provavelmente não vivida conscientemente como tal, contra o sofrimento da individualidade contemporânea, a quem tinha sido prometido um mundo centrado sobre ela e dedicado à sua expressão, mas que se acha frequentemente frustrada nessa promessa de aprofundamento de si e que só encontra, como remédio, esse tipo de recurso à produção de um aparecer público suicidado – tal ‘aparecer’ sendo, no caso, um ‘desaparecer’ porque ele exprime a recusa dessa redução ao aparecer. A identidade completamente escondida atrás da burka é a identidade profunda do eu moderno, tornado não encontrável por trás da profusão de suas imagens e de suas superfícies ostentadas no vazio deixado pela ausência de qualquer grande projeto de existência » (Bidar, Le Monde, 24.01.2010. Tradução pessoal)
Sem abraçar a hipótese demasiadamente ensaística de Bidar (que, aliás, publicou um livro em favor de um « islam existencialista ») , acredito entretanto que pensar o véu integral como fenômeno inscrito no cenário urbano contemporâneo, ao invés de abordá-lo necessariamente como tradição estrangeira a ser suprimida pelos princípios normativos modernos (quer por repressão, quer por esclarecimento), é uma démarche fundamental. Por exemplo : em pesquisa exploratória com adolescentes franceses, tomei conhecimento do uso de turbante muçulmano à moda palestina por rapazes não necessariamente muçulmanos, nem « saídos da imigração », nem defensores da causa palestina, cuja motivação pode ser aproximada a de uma busca de expressividade provocativa contra a uniformidade vestimentária das griffes. Mas embora Bidar construa sua hipótese através da subjetividade dos atores sociais, as práticas destes são aí deduzidas de uma argumentação exclusivamente teórica sobre um projeto moderno falido que teria deixado a individualidade contemporânea em tamanha carência que exprimir-se-ia também na burka. Isso faz-me pensar no que Jonatas disse aqui sobre seus amigos lacanianos que «não sabem o que fazer com a pá com que enterraram a última metanarrativa» : já pensou se eles resolvem jogar a pá e enfiar uma burka?!!
Porque, francamente, o nikab não assusta apenas républicains universalistas e criancinhas desavisadas. Confesso que, pessoalmente, sinto-me bastante incomodada quando cruzo essas mulheres (em geral na Prefeitura de Polícia de Marseille, lutando por um visa, mas às vezes no metrô ou na rua) cobertas dos pés à cabeça, com mãos enluvadas e às vezes com olhos velados. A possibilidade de interação parece absolutamente recusada ! O sentimento ameaçante de ser observada sem poder observar é inevitável ! A tentação de concluir, sobretudo se ao lado está um homem, que uma dominação masculina tradicional é unilateralmente responsável por essa fantasia sinistra, é grande ! Sendo assim, devemos manter a tensa distância entre tomada de posição e olhar sociológico diante desse fenômeno – com diante de todos, aliás. O caráter visivelmente estratégico das representações justificativas que foram aqui citadas, usando calculadamente ideais feministas e do Estado de direito para militar em favor de uma orientação de vida segregada, proíbe que recusemos a essas mulheres, analiticamente, sua condição de atores modernos e globalizados. Um opositor comum do niqab pode sustentar, e sustenta muitas vezes, que o discurso dessas mulheres é perigoso e exprime simplesmente « um consentimento a uma pressão sofrida » ou « uma forma de fascinação, de subjugação » típica dessas conversões sectárias à cultura do harém (Wassyla Tamzali, 2010). Mas um observador sociólogo não deve ter essa facilidade de julgamento, posto que seu primeiro papel é o de analista dessas práticas e representações, bem como da dinâmica entre os atores opostos no debate.
É verdade que devemos também considerar a evolução recente das sociedades, vivendo uma dinâmica que segundo Alain Touraine ( 2005) marca a passagem de questões do « social » para questões do « cultural », mas que eu prefiro, seguindo Robert Castel (2009), pensar como cruzamento de questões (sócio-econômica, étnico-cultural e urbana). Seja como for, essa evolução recente implica que as ciências sociais não podem esquecer que os discursos contra a discriminação de franceses com ascendência nas ex-colônias orientava-se nos anos 1980 por um sentido sócio-econômico e político, mas desde os anos 1990 eles têm sido cada vez mais atravessados por um sentido étnico-religioso.
Mas é verdade também que essas questões cruzadas são tratadas pelo governo francês a partir de uma lógica politicamente securitária e economicamente neoliberal – desde 2002 quando os socialistas perderam as eleições e, diria eu, o juízo. Não são apenas os niqabs das muçulmanas fundamentalistas que sofrem ataques sistemáticos de reformas e projetos de lei, bem como de políticas governamentais de controle repressivo da população. Reforçando instrumentos legais de supressão da liberdade em casos de controle policial e, impondo aos agentes de segurança pública cotas de produtividade (viva a Capes !), o governo francês tem inflacionado de maneira assustadora o chamado « garde à vue » (instrumento do direito penal que permite a guarda de suspeitos durante um mínimo de 24 horas por « necessidade de enquete policial »). Para 2009, estimativas falam em mais ou menos 830.000 « gardes à vue » (Mucchielli, 2010) sobre uma população em torno de 65.000.000 habitantes ! A maioria dessas « gardes à vue » atingem estrangeiros irregulares, mas são crescentes os testemunhos de « franceses de origem » que tiveram sua casa invadida pela polícia em horários típicos de ditaduras militares, foram algemados diante do cônjuge e dos filhos e sofreram humilhações físicas e psicológicas em celas sujas, fedorentas e frias, por causas como : transgressão pedestre no trânsito, seguida do que o policial decidiu interpretar como « desacato à autoridade » ; uso (sem tráfico) de droga ilegal ; participação em manifestação reivindicativa, etc. Caso emblemático : um jornalista do Le Monde que, no quadro de um processo aberto por calúnia e difamação contra o presidente da república, sofreu todas essas violências no ano passado.
A midiatização dos projetos e políticas de controle repressivo da população em geral, é menor e menos espetacular do que aquela referente aos véus muçulmanos. Fica aqui a pergunta : poderíamos levantar a hipótese de que a hiper-midiatização da provável interdição dos niqabs e outras burquas é um bom véu para encobrir a crescente repressão policial dos cidadãos franceses como um todo ? Afinal de contas, pretende-se proibir o véu integral em nome da liberdade (das mulheres) e contra o obscurantismo de movimentos religiosos fundamentalistas típicos de « tradições estrangeiras ». Pretensão que, confortando franceses dos mais diferentes matizes ideológicos, pode distraí-los do fato de que todos, e não apenas as populações « saídas da imigração », são objeto da vontade securitária dos governos franceses recentes. Lembrando do que disse Luciano Oliveira sobre a especificidade da violência estatal no Brasil da ditadura militar, na França atual os historicamente não-torturáveis ou seja, os « franceses de origem », também parecem ameaçados…Será que estudos feministas e leituras críticas do conceito foucaultiano de biopoder trariam mais luz sobre essas muçulmanas totalmente cobertas em nome da dignidade das mulheres e sobre esses guardados/humilhados em nome da produtividade do trabalho policial, num contexto neoliberal?
BIBLIOGRAFIA
BIDAR, Abdennour. La burqa, symptôme d’un malaise. Le Monde, Paris, 24.01.2010.
CASTEL, R. La montée des incertitudes – travail, protections, statut de l’individu. Paris, Éditions du seuil, 2009.
DE FÉO, A. Derrière le voile. In : Le monde magazine – Niqab un autre regard. Paris, Suplément au Monde du samedi 30 janvier 2010. pp. 16-21.
MUCCHIELLI, L. Comprendre l’explosion des gardes à vue. In : www.laurent-mucchielli.org Publicado em 18.02.2010.
SCHNAPPER, D. La compréhension sociologique – démarche de l’analyse typologique. Paris : PUF, 1999.
TAMZALI, W. Porter le niqab, c’est aberrant. In : Le monde magazine – Niqab un autre regard. Paris, Suplément au Monde du samedi 30 janvier 2010. p. 19.
TOURAINE, A. Un nouveau paradigme – pour comprendre le monde aujourd’hui. Paris : Fayard, 2005.
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segunda-feira, 15 de junho de 2009
Pudor, despudor e modernidade
Abaixo, trecho de um ensaio a ser apresentado no próximo encontro da Sociedade Brasileira de Sociologia.

Jonatas Ferreira e Antônio Ricardo Silva
Precisamente por ter sido compreendido como uma experiência ontológica fundamental, ou seja, uma abertura à nossa finitude como tal, o pudor é necessariamente histórico. É possível falar de uma história do pudor, ou seja, da mudança no modo como experimentamos a nossa própria nudez, portanto. E de pronto percebemos que embora remetendo a algo fundamental em nós, a percepção da própria nudez pode se manifestar de diversos modos. Poderíamos dizer que o pudor é um elemento que articula a oposição entre o que é civilizado, ou seja, próprio de seres humanos, e incivilizado, região indigna de animalização. Não é fortuito, portanto, que o que foi considerado civilizado ao longo da história moderna do ocidente tenha produzido uma educação corporal e um sentido moral que se articularam em torno da idéia de responsabilidade pessoal. E isso já nos coloca na perspectiva de uma certa ascese. Assim, será em nome do decoro e da educação que Erasmo falará em Da civilidade das crianças: “Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo. 'Evite isso', diz Erasmo. 'Não é decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada'” (ELIAS, 1993, vol. 1, p. 71). À mesa e fora dela, o processo civilizador no ocidente caminhará com a modernidade no sentido de um controle corporal cada vez mais individualizador, como passam a demandar códigos de etiqueta de um mundo cada vez mais racional.
A pudicícia passa paulatinamente a requerer um controle das disposições naturais dos corpos: suas secreções, hálitos, nudez, emoções e tudo que se possa associar diretamente à existência de um tal 'corpo animal', incivilizado. A partir do século XVII, por exemplo, esse controle começa a impor como despudorado o hábito parisiense de tomar banhos nus no rio Sena. Isso não impede, ainda no século XVIII, Mme de Châtelet de banhar-se diante de seu criado ou que Luís XIV se sentisse absolutamente confortável em receber seus convidados enquanto defecava. No primeiro caso, a diferença social entre ela e o seu lacaio torna esse último invisível, objeto impossível de constrangimento precisamente por não ser considerado exatamente humano, mas algo como um autômato (BOLOGNE, 1986, p. 44 e 45). Mme de Châtelet despe-se, assim, diante de alguém menos visível que o bichano de Derrida. E isso faz diferença, pois a nudez depende precisamente da reflectividade que o outro proporciona. No século XIX, por exemplo, ficar despida diante de um médico era uma experiência de nudez bem mais intensa que ficar nua diante de um pintor (Ibid., p. 111).
Se a sociedade burguesa caminha de um modo geral em direção à pudicícia, posto que se torna mais individualizadora, racional, disciplinar, parece estranho que em nome desses valores o Antigo Regime pudesse ter lançado um profundo grito de despudor. Esse brado é a obra de Sade, do “sargento do sexo”, como se não nos falha a memória dizia Blanchot; deste acerca de quem teria dito Rousseau: a jovem que ler uma só página de seus livros estará perdida para sempre (BLANCHOT, 1990, p. 17). Como é sobejamente comentado, a literatura do marquês de Sade se estrutura sobre a solidão absoluta da lei do prazer (Ibid., 19). E, assim, o moto perpétuo sadeano seria:
O universo sadeano pode nos dar a impressão de algo desordenado, caótico. Não é obviamente o que Sade tem em mente. Se ele investe contra o interdito, ele o faz com regras de um rigor extremo; suas orgias são administradas com precisão, com regras intransponíveis, hierarquias estritas, sucessões de prazer que devem ser obedecidas, por uma apuro na busca de uma ordem de prazeres que sempre está a serviço da intensificação do gozo, mas que não é menos burocrática por isso. Essa racionalização do gozo, o poder de sua lógica, é condição para que Sade possa investir contra toda forma de interdição, e portanto contra toda forma de pudor: o divino, os laços sanguíneos, a vida do outro, o sofrimento do outro, a própria morte. Protegido no rigor de sua lógica iconoclasta, nada envergonha Sade. “Oh, Juliette, diz a Borghese, eu quisera que os meus extravios pudessem me levar como a última das criaturas à sorte para a qual nos conduz o abandono. O patíbulo mesmo será para mim o trono das voluptuosidades, ali desafiarei a morte, gozando de prazer de espirar vítima de minhas maldades” (SADE apud BLANCHOT, 1990, p. 33 e 34).
Em Sade, o homem e o animal estão submetidos a um só princípio natural: a busca egoísta pelo prazer. Tudo se move na natureza em torno desse princípio que, seguido, diluiria as fronteiras da interdição e do pudor. É isso que concluiríamos se, como Eugênia, escutássemos a voz de Dalmâncio, seu preceptor.
Como a ciência moderna, Sade busca um princípio, uma mathesis universalis, a partir do qual todos os viventes seriam compreensíveis; e se como a ciência o domínio de tudo é também uma motivação, o fim último de todo esforço intelectual ou físico é um só: desprender tudo no gozo, no prazer. No primeiro sentido, Sade é a consumação metafísica do humanismo naquilo que ele tem de impensado, ou seja, em sua redução do humano ao animalitas. “O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre, lançado no mundo como qualquer outro animal, está 'acorrentado à natureza', sujeitando-se como um 'escravo' às suas leis”, diz Robert de Moraes (2006, p. 30). O libertino apenas está em condições de projetar no outro, em seu corpo, o poder inapelável dessa natureza. Diferentemente dessa consumação da racionalidade, ou do logos ocidental, entretanto, todo esse esforço visa apenas ao excesso, ao gozo, ao noturno, ao ato absoluto de dispêndio, como diria Bataille. A radicalidade do seu gesto confinou sua literatura durante décadas até que os surrealistas se interessassem pelo sentido despudorado, excessivo dessa violência literária1.
Se o surrealismo de Breton, Leiris namorou com o anti-humanismo sadeano, com a violência, a exceção, com uma região da experiência humana colocada para além do interdito, do pudor, é a obra de Bataille que levará as conclusões literárias e filosóficas do marquês mais longe. A literatura batailleana investe claramente no excessivo, como poderemos perceber em obras como O azul do céu, ou História do olho. Sua contribuição filosófica, como pode ser constatado em O erotismo, é uma elaboração teórica da relação entre erotismo e violência, Eros e Thanatos, que já se apresenta na obra de Sade. A apropriação dionisíaca do erotismo em Bataille também é algo que salta aos olhos, como na frase que abre O erotismo: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. E o elemento fundamental da experiência do erotismo é precisamente o desnudamento.
O erotismo seria um ato despudorado por princípio. A nudez que ele proporciona pressupõe a transgressão das fronteiras do interdito e, assim, a experiência “dionisíaca”, de afirmar vida e morte como partes de um todo, a perturbação da descontinuidade dos corpos e sua afirmação a um só tempo, a perda de si e da individualidade como condição da afirmação da vida como um princípio maior. Impossível, de fato, não escutar a voz do velho e libertino marquês aqui. Do mesmo modo, é preciso afirmar o sentido cultural desse investimento na região de limite onde pudor e despudor, nudez e desnudamento se articulam: a experiência do excesso, sua reincorporação nas práticas da cultura ocidental, seria um antídoto contra a razão individualizadora, disciplinadora que submete tudo à lógica do trabalho e da produtividade. De um modo amplo, esse é um grito surrealista ao qual a cultura ocidental – suas contra-culturas – abriu bem os ouvidos. É a desestabilização dos lugares de segurança do sujeito, do humano, do logos, que constituem o foco desse investimento na fronteira entre o pudor e o despudor. O discurso de liberação pela sexualidade ecoa aquele brado de modo muitas vezes impensado.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. 2004. The Open. Man and Animal. California, Stanford University Press.
BATAILLE, Georges. 1987. O erotismo. São Paulo, L&PM.
BLANCHOT, Maurice. 1990. Lautréamont e Sade. México, Fondo de Cultura Económica.
BOLOGNE, Jean-Claude. 1986. História do Pudor. Rio de Janeiro, Elfos Editora.
DERRIDA, Jacques. 2002. O Animal que logo sou. São Paulo, Editora da UNESP.
-----------. S/d. “Os Fins do Homem”. In Margens da Filosofia. Porto, Rés-Editora.
ELIAS, Nobert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
FREUD, Sigmund. 1976. “O 'estranho'”. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago.
GLENDINNING, Simon. 1998. On Being with the Others. New York, Routledge.
HEIDEGGER, Martin. 1987. Carta sobre o Humanismo. Lisboa, Guimarães Editores.
MORAES, Eliane R. 1994. Sade: A felicidade Libertina. Rio de Janeiro, Imago.
---------. 2006. Lições de Sade. Lições sobre a imaginação libertina. São Paulo, Iluminuras.
SADE. 1998. Ciranda dos Libertinos. (coletânea organizada por L.A. Contador-Borges). São Paulo, Max Limonad.
--------. 2006. Os 120 dias de Sodoma. A escola da libertinagem. São Paulo, Iluminuras.

Jonatas Ferreira e Antônio Ricardo Silva
Precisamente por ter sido compreendido como uma experiência ontológica fundamental, ou seja, uma abertura à nossa finitude como tal, o pudor é necessariamente histórico. É possível falar de uma história do pudor, ou seja, da mudança no modo como experimentamos a nossa própria nudez, portanto. E de pronto percebemos que embora remetendo a algo fundamental em nós, a percepção da própria nudez pode se manifestar de diversos modos. Poderíamos dizer que o pudor é um elemento que articula a oposição entre o que é civilizado, ou seja, próprio de seres humanos, e incivilizado, região indigna de animalização. Não é fortuito, portanto, que o que foi considerado civilizado ao longo da história moderna do ocidente tenha produzido uma educação corporal e um sentido moral que se articularam em torno da idéia de responsabilidade pessoal. E isso já nos coloca na perspectiva de uma certa ascese. Assim, será em nome do decoro e da educação que Erasmo falará em Da civilidade das crianças: “Você talvez queira oferecer a alguém de quem gosta a carne que está comendo. 'Evite isso', diz Erasmo. 'Não é decoroso oferecer a alguém alguma coisa semimastigada'” (ELIAS, 1993, vol. 1, p. 71). À mesa e fora dela, o processo civilizador no ocidente caminhará com a modernidade no sentido de um controle corporal cada vez mais individualizador, como passam a demandar códigos de etiqueta de um mundo cada vez mais racional.
"O que faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo não havia sido desenvolvido no mesmo grau, era a parede invisível das emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e outro, repelindo e separando, a parede que é freqüentemente perceptível à mera aproximação de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outra pessoa, e que se manifesta como embaraço à mera vista de funções corporais de outrem, e não raro à sua mera menção, ou como um sentimento de vergonha quando nossas próprias funções são expostas à vista de outros, e em absoluto apenas nessas ocasiões" (Ibid., p. 82).
A pudicícia passa paulatinamente a requerer um controle das disposições naturais dos corpos: suas secreções, hálitos, nudez, emoções e tudo que se possa associar diretamente à existência de um tal 'corpo animal', incivilizado. A partir do século XVII, por exemplo, esse controle começa a impor como despudorado o hábito parisiense de tomar banhos nus no rio Sena. Isso não impede, ainda no século XVIII, Mme de Châtelet de banhar-se diante de seu criado ou que Luís XIV se sentisse absolutamente confortável em receber seus convidados enquanto defecava. No primeiro caso, a diferença social entre ela e o seu lacaio torna esse último invisível, objeto impossível de constrangimento precisamente por não ser considerado exatamente humano, mas algo como um autômato (BOLOGNE, 1986, p. 44 e 45). Mme de Châtelet despe-se, assim, diante de alguém menos visível que o bichano de Derrida. E isso faz diferença, pois a nudez depende precisamente da reflectividade que o outro proporciona. No século XIX, por exemplo, ficar despida diante de um médico era uma experiência de nudez bem mais intensa que ficar nua diante de um pintor (Ibid., p. 111).
Se a sociedade burguesa caminha de um modo geral em direção à pudicícia, posto que se torna mais individualizadora, racional, disciplinar, parece estranho que em nome desses valores o Antigo Regime pudesse ter lançado um profundo grito de despudor. Esse brado é a obra de Sade, do “sargento do sexo”, como se não nos falha a memória dizia Blanchot; deste acerca de quem teria dito Rousseau: a jovem que ler uma só página de seus livros estará perdida para sempre (BLANCHOT, 1990, p. 17). Como é sobejamente comentado, a literatura do marquês de Sade se estrutura sobre a solidão absoluta da lei do prazer (Ibid., 19). E, assim, o moto perpétuo sadeano seria:
“a natureza nos faz nascer sós, não existe nenhuma espécie de relação entre um homem e outro. A única regra de conduta é, pois, que eu prefira tudo o que me afete de modo feliz, sem ter em conta as conseqüências que esta decisão pode acarretar no próximo” (Ibid., p. 19).
O universo sadeano pode nos dar a impressão de algo desordenado, caótico. Não é obviamente o que Sade tem em mente. Se ele investe contra o interdito, ele o faz com regras de um rigor extremo; suas orgias são administradas com precisão, com regras intransponíveis, hierarquias estritas, sucessões de prazer que devem ser obedecidas, por uma apuro na busca de uma ordem de prazeres que sempre está a serviço da intensificação do gozo, mas que não é menos burocrática por isso. Essa racionalização do gozo, o poder de sua lógica, é condição para que Sade possa investir contra toda forma de interdição, e portanto contra toda forma de pudor: o divino, os laços sanguíneos, a vida do outro, o sofrimento do outro, a própria morte. Protegido no rigor de sua lógica iconoclasta, nada envergonha Sade. “Oh, Juliette, diz a Borghese, eu quisera que os meus extravios pudessem me levar como a última das criaturas à sorte para a qual nos conduz o abandono. O patíbulo mesmo será para mim o trono das voluptuosidades, ali desafiarei a morte, gozando de prazer de espirar vítima de minhas maldades” (SADE apud BLANCHOT, 1990, p. 33 e 34).
Em Sade, o homem e o animal estão submetidos a um só princípio natural: a busca egoísta pelo prazer. Tudo se move na natureza em torno desse princípio que, seguido, diluiria as fronteiras da interdição e do pudor. É isso que concluiríamos se, como Eugênia, escutássemos a voz de Dalmâncio, seu preceptor.
“Foram os primeiros cristãos, diariamente perseguidos por seu sistema imbecil, que gritaram a quem queria ouvi-los: 'Não nos queimem, não nos esfolem. A natureza diz que não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos seja feito'. Imbecis! Como ela, aconselhando-nos sempre ao deleite, e jamais imprimindo em nós outras inspirações, poderia, em seguida, numa inconseqüência sem limites, assegurar-nos de que não devemos nos deleitar se isso pode causar pena nos outros? Ah! Crede, Eugênia, crede, a natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos; nada é tão egoísta quanto sua voz” (SADE, 1988, p. 45).
Como a ciência moderna, Sade busca um princípio, uma mathesis universalis, a partir do qual todos os viventes seriam compreensíveis; e se como a ciência o domínio de tudo é também uma motivação, o fim último de todo esforço intelectual ou físico é um só: desprender tudo no gozo, no prazer. No primeiro sentido, Sade é a consumação metafísica do humanismo naquilo que ele tem de impensado, ou seja, em sua redução do humano ao animalitas. “O ponto de partida do ateísmo de Sade é o desamparo humano. Ninguém nasce livre, lançado no mundo como qualquer outro animal, está 'acorrentado à natureza', sujeitando-se como um 'escravo' às suas leis”, diz Robert de Moraes (2006, p. 30). O libertino apenas está em condições de projetar no outro, em seu corpo, o poder inapelável dessa natureza. Diferentemente dessa consumação da racionalidade, ou do logos ocidental, entretanto, todo esse esforço visa apenas ao excesso, ao gozo, ao noturno, ao ato absoluto de dispêndio, como diria Bataille. A radicalidade do seu gesto confinou sua literatura durante décadas até que os surrealistas se interessassem pelo sentido despudorado, excessivo dessa violência literária1.
"Na base da admiração dos surrealistas por Sade está uma espécie de materialismo cósmico, que põe em xeque o primado do homem no universo, operando um deslocamento radical dos valores humanistas que sustentam, no Ocidente, vários séculos de cultura. Se é desse materialismo que nasce a erótica sádica do marquês, é também dele que partem os signatários do Manifesto na tentativa de reinventar o mundo sob o princípio fundante do desejo" (ROBERT DE MORAES, 2006, p. 116)
Se o surrealismo de Breton, Leiris namorou com o anti-humanismo sadeano, com a violência, a exceção, com uma região da experiência humana colocada para além do interdito, do pudor, é a obra de Bataille que levará as conclusões literárias e filosóficas do marquês mais longe. A literatura batailleana investe claramente no excessivo, como poderemos perceber em obras como O azul do céu, ou História do olho. Sua contribuição filosófica, como pode ser constatado em O erotismo, é uma elaboração teórica da relação entre erotismo e violência, Eros e Thanatos, que já se apresenta na obra de Sade. A apropriação dionisíaca do erotismo em Bataille também é algo que salta aos olhos, como na frase que abre O erotismo: “Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte”. E o elemento fundamental da experiência do erotismo é precisamente o desnudamento.
"A ação decisiva é o desnudamento. A nudez se opõe ao estado fechado, isto é, ao estado de existência contínua. É um estado de comunicação que revela a busca de uma continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão acesso ao sentimento da obscenidade. A obscenidade significa a desordem que perturba um estado dos corpos que estão conforme à posse de si, à posse da individualidade durável e afirmada. [...] O desnudar-se, visto nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, é, quando não um simulacro, pelo menos uma equivalência sem gravidade da imolação" (BATAILLE, 1987, p. 17)
O erotismo seria um ato despudorado por princípio. A nudez que ele proporciona pressupõe a transgressão das fronteiras do interdito e, assim, a experiência “dionisíaca”, de afirmar vida e morte como partes de um todo, a perturbação da descontinuidade dos corpos e sua afirmação a um só tempo, a perda de si e da individualidade como condição da afirmação da vida como um princípio maior. Impossível, de fato, não escutar a voz do velho e libertino marquês aqui. Do mesmo modo, é preciso afirmar o sentido cultural desse investimento na região de limite onde pudor e despudor, nudez e desnudamento se articulam: a experiência do excesso, sua reincorporação nas práticas da cultura ocidental, seria um antídoto contra a razão individualizadora, disciplinadora que submete tudo à lógica do trabalho e da produtividade. De um modo amplo, esse é um grito surrealista ao qual a cultura ocidental – suas contra-culturas – abriu bem os ouvidos. É a desestabilização dos lugares de segurança do sujeito, do humano, do logos, que constituem o foco desse investimento na fronteira entre o pudor e o despudor. O discurso de liberação pela sexualidade ecoa aquele brado de modo muitas vezes impensado.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. 2004. The Open. Man and Animal. California, Stanford University Press.
BATAILLE, Georges. 1987. O erotismo. São Paulo, L&PM.
BLANCHOT, Maurice. 1990. Lautréamont e Sade. México, Fondo de Cultura Económica.
BOLOGNE, Jean-Claude. 1986. História do Pudor. Rio de Janeiro, Elfos Editora.
DERRIDA, Jacques. 2002. O Animal que logo sou. São Paulo, Editora da UNESP.
-----------. S/d. “Os Fins do Homem”. In Margens da Filosofia. Porto, Rés-Editora.
ELIAS, Nobert. 1993. O Processo Civilizador, vols. 1 e 2. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
FREUD, Sigmund. 1976. “O 'estranho'”. In Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago.
GLENDINNING, Simon. 1998. On Being with the Others. New York, Routledge.
HEIDEGGER, Martin. 1987. Carta sobre o Humanismo. Lisboa, Guimarães Editores.
MORAES, Eliane R. 1994. Sade: A felicidade Libertina. Rio de Janeiro, Imago.
---------. 2006. Lições de Sade. Lições sobre a imaginação libertina. São Paulo, Iluminuras.
SADE. 1998. Ciranda dos Libertinos. (coletânea organizada por L.A. Contador-Borges). São Paulo, Max Limonad.
--------. 2006. Os 120 dias de Sodoma. A escola da libertinagem. São Paulo, Iluminuras.
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