quinta-feira, 24 de junho de 2010

Fazendo Sexo: as fronteiras (não-)discursivas do corpo em Thomas Laqueur



Cynthia Hamlin

Em seu “Inventando o Sexo: corpo e gênero dos Gregos a Freud” (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001), o historiador Thomas Laqueur desconstrói 2.000 anos de diferença sexual, transitando no espaço ínfimo entre corpos de carne, sangue e sêmen, de um lado, e suas representações, de outro. Estabelecendo o que parece ser uma versão fraca da tese segundo a qual o sexo é construído por meio de categorias de gênero, Laqueur se afasta daquelas tendências do feminismo contemporâneo que esvaziam o sexo de todo conteúdo ao propor que as diferenças naturais são, na verdade, culturais, não havendo distinção entre elas. O que estou chamando de tese fraca do caráter socialmente construído do sexo repousa, em vez disso, na afirmação de que a concepção de corpo como algo privado, fechado e estável – e que fundamenta as noções modernas de diferença sexual – é efeito de contextos históricos e culturais. Assim, em lugar de negar o que chama de “abismo” entre representação e realidade ou da distinção entre “ver” e “ver como” que, em última instância, levaria ao desaparecimento completo do corpo, ele mantém a distinção fundamental entre este e sua construção discursiva. O movimento é sutil, mas importante, pois, além de estabelecer os limites da desconstrução na produção de conhecimento, abre a possibilidade de um movimento de reconstrução com base na (investigação da) dimensão material dos corpos.

Creio que isso pode ser melhor compreendido com a afirmação de Laqueur de que, embora sua preocupação no livro seja a de examinar as diferentes interpretações do corpo com base desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos (o que equivale a dizer que tudo o que se afirma sobre o sexo é contaminado por determinadas concepções de gênero), não tem interesse em negar a realidade do sexo ou do dimorfismo sexual como um processo evolutivo. Talvez essa última posição seja especialmente esclarecedora, pois marca sua diferença em relação a teóricas como Fausto-Sterling, MacKinnon e Butler (dentre outras). Embora Laqueur evite polemizar com essas autoras, eu acho a comparação irresistível.


5 comentários:

Tâmara disse...

Cynthia,
Desculpe minha ignorânica no tema, mas sempre fico impressionada com o que parece ser a persistência da perspectiva de supressão da diferença sexo/gênero no universo teo'rico-metodolo'gico feminista. Por causa disso, o que mais gostei em seu post foi a argumentação em torno da vulnerabilidade dessa perspectiva diante da redução de tudo a genes e hormônios - abordagem que bombardeia cotidianamente as sociedades contemporâneas, com toda a legitimidade de sua "cientificidade". Fico com a impressão de que realmente a correlação de forças no interior do movimento feminista precisa mudar, se se pretende combater a reatualização do naturalismo das desigualdades. Valeu. Abraço.

Cynthia disse...

Pois é, Tâmara, a distinção sexo/gênero é bastante espinhosa, mas não mais do que a distinção natureza/cultura. Eu acho que os pós-estruturalistas têm razão em se preocupar com o estabelecimento das condições de emergência de determinados discursos acerca do que conta como realidade e eu tento levar muito a sério o que eles dizem. Mas essa recusa em partir para o passo seguinte me incomoda bastante. Butler, por exemplo, diz que não nomeia (ou seja, não estabelece o que acredita existir) porque, tendo sido vítima de diversas formas de assujeitamento, não quer correr o risco de excluir aqueles corpos que não se encaixam em sua ontologia. Sempre que a leio, me sinto como Michelângelo que, diante da perfeição do seu Moisés, desferiu uma martelada em seu joelho e gritou "PARLA!".

Parla, Butler!

Erliane disse...

Cynthia,
li uma entrevista em Laqueur argumenta que o sexo é "situacional", e por isso construído culturalmente, mas que isto ocorre "afora questões de produção e reprodução" (Ver: <>). Daí fiquei me perguntando até onde, ou se não é, justamente, apartir deste "afora" que o sexo da perspectiva de Laqueur cai na armadilha da falácia epistêmica (?).
No mais, apesar de não ter lido ainda, parece que ele deu continuídade a sua tese na obra Sexo solitário (Solitary Sex - a Cultural History of Masturbation) - ao menos é o que afirma a resenha por Fabien Lamouche (Ver: <<>).

Erli.

Erli disse...

Cynthia,
li uma entrevista em Laqueur argumenta que o sexo é "situacional", e por isso construído culturalmente, mas que isto ocorre "afora questões de produção e reprodução" (Ver: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7664&cod_canal=34). Daí fiquei me perguntando até onde, ou se não é, justamente, apartir deste "afora" que o sexo da perspectiva de Laqueur cai na armadilha da falácia epistêmica (?).
No mais, apesar de não ter lido ainda, parece que ele deu continuídade a sua tese na obra Sexo solitário (Solitary Sex - a Cultural History of Masturbation) - ao menos é o que afirma a resenha por Fabien Lamouche (Ver: Fonte: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7664&cod_canal=34Acesso: 25/06/10).

Erli.

Cynthia disse...

Oi, Erli,

Eu acho que é justamente o contrário. Como a continuação da frase que está no link que vc enviou refere-se às questões biológicas, fica claro que ele está se referindo puramente à dimensão cultural (que inclui discursos e práticas) quando fala de situacionalidade.

Mas ao colocar a questão dessa forma, eu acho que o problema vira outro: ele acaba cortando de maneira absoluta a relação entre prática cultural e reprodução biológica (e aí, como dar conta de coisas como as tecnologias reprodutivas, por exemplo?). Eu creio que essa distinção só é útil na medida em que nos força a reconhecer que as práticas culturais se dão sobre um corpo materialmente constituído, mas não reconhecer que a influência ocorre também no sentido cultura-natureza é tratar a cultura como epifenômeno.

Acho que tem duas questões em jogo aí. A primeira é a importância de distinções como a efetuada por Kate Soper acerca de gradações múltiplas da relação natureza/cultura: não se pode tratar aquelas transformações culturalmente condicionadas (como roupas e cosméticos) como se fossem equivalentes a transformações mais profundas (ocasionadas por exercícios, uso de drogas e cirurgias) ou, num nível mais profundo, com as construções corporais feitas em laboratório. As fronteiras são, de fato, borradas. Mas, nos primeiros casos, a menos que vc seja lamarckiana, vai perceber que os mecanismos estão em níveis distintos da realidade.

Quando as fronteiras não são nítidas, eu creio que talvez faça mais sentido trabalhar em termos de uma distinção analítica entre discursos e práticas, por um lado, e corpos materiais, por outro. Isso permitiria dar conta da objetivação da cultura nos corpos. Mas aí, a dimensão temporal para o tratamento do dualismo é fundamental.

Enfim, tem um universo de questões ontológicas e epistemológicas por trás dessas coisas. Não cheguei a ler o livro sobre masturbação, mas creio que aí os problemas epistemológicos são mais fáceis de resolver.

Beijo!