Cynthia Hamlin
Em seu “Inventando o Sexo: corpo e gênero dos Gregos a Freud” (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001), o historiador Thomas Laqueur desconstrói 2.000 anos de diferença sexual, transitando no espaço ínfimo entre corpos de carne, sangue e sêmen, de um lado, e suas representações, de outro. Estabelecendo o que parece ser uma versão fraca da tese segundo a qual o sexo é construído por meio de categorias de gênero, Laqueur se afasta daquelas tendências do feminismo contemporâneo que esvaziam o sexo de todo conteúdo ao propor que as diferenças naturais são, na verdade, culturais, não havendo distinção entre elas. O que estou chamando de tese fraca do caráter socialmente construído do sexo repousa, em vez disso, na afirmação de que a concepção de corpo como algo privado, fechado e estável – e que fundamenta as noções modernas de diferença sexual – é efeito de contextos históricos e culturais. Assim, em lugar de negar o que chama de “abismo” entre representação e realidade ou da distinção entre “ver” e “ver como” que, em última instância, levaria ao desaparecimento completo do corpo, ele mantém a distinção fundamental entre este e sua construção discursiva. O movimento é sutil, mas importante, pois, além de estabelecer os limites da desconstrução na produção de conhecimento, abre a possibilidade de um movimento de reconstrução com base na (investigação da) dimensão material dos corpos.
Creio que isso pode ser melhor compreendido com a afirmação de Laqueur de que, embora sua preocupação no livro seja a de examinar as diferentes interpretações do corpo com base desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos (o que equivale a dizer que tudo o que se afirma sobre o sexo é contaminado por determinadas concepções de gênero), não tem interesse em negar a realidade do sexo ou do dimorfismo sexual como um processo evolutivo. Talvez essa última posição seja especialmente esclarecedora, pois marca sua diferença em relação a teóricas como Fausto-Sterling, MacKinnon e Butler (dentre outras). Embora Laqueur evite polemizar com essas autoras, eu acho a comparação irresistível.
A negação do dimorfismo sexual está intimamente associada à crítica pós-estruturalista dos dualismos, especialmente três deles: sexo/gênero, natureza/cultura; real/construído. Embora reconheça a validade da crítica, em particular no que diz respeito à relação de incomensurabilidade, de dominância relativa entre os termos de cada um dos pares e da invisibilidade da interdependência que se estabelece entre eles, acredito que, de um ponto de vista analítico, existem algumas vantagens em transformá-los de dualismos em oposições – exceto o par real/construído, que pressupõe a negação ontológica de fenômenos culturais. Mas não pretendo desenvolver esse argumento aqui. O que me interessa no momento é mostrar como a dissolução desses dualismos é feita com base numa elisão entre realidade e representação que impede qualquer movimento reconstrutivo na teoria feminista. Tal movimento, em minha modesta opinião, é fundamental para seus projetos emancipatórios, especialmente aqueles que implicam em transformações corporais mais “profundas” do que as possibilitadas pelo uso de roupas, cosméticos e mesmo exercícios e dietas - como o uso de drogas, cirurgias e, no limite, a criação de organismos totalmente novos por meio de tecnologias como o DNA recombinante (Soper, 1995).
Embora tanto Fausto-Sterling (2000) quanto Butler (1993) se esforcem por admitir a dimensão material dos corpos, a ênfase em sua dimensão ideológica ou simbólica não apenas erode a distinção entre o corpo físico e o corpo cultural, mas prioriza o segundo, transformando o primeiro em mero epifenômeno: “... nós literalmente, não apenas ‘discursivamente’ (isto é, por meio da linguagem e de práticas culturais), construímos nossos corpos, incorporando a experiência em nossa própria carne”, diz Fausto-Sterling (p. 20-21), e complementa, mais adiante: “[A] sexualidade é um fato somático criado por um efeito cultural” (ênfases da autora). Não se trata, aqui, de negar a necessidade do deslocamento das fronteiras biológicas, gerando um certo borramento entre seus limites com a cultura, mas de negar a prioridade conferida ao cultural que impede que o sexo seja concebido como algo mais do que aquilo “que a sociedade designa ou o que a sociedade faz dele” (Weeks, citado em Laqueur, 2000, p. 13). A este propósito, é interessante notar que tanto Butler quanto Fausto-Sterling tratam sexo e sexualidade como intercambiáveis, impedindo qualquer critica mais consistente àquelas abordagens deterministas que, pelo lado avesso, estabelecem a identidade entre anatomia, genes e hormônios, por um lado, desejo, identidade e práticas, por outro. Para ser justa, Laqueur também faz isso ocasionalmente, inclusive no ambíguo título de seu livro “making sex” (fazendo sexo), gerando eventuais escorregadas na falácia epistêmica, ou a confusão entre o real e a concepção que se tem do real ou, ainda, a dissolução da ontologia na epistemologia.
Parte do apelo do pós-estruturalismo, especialmente no que diz respeito ao colapso da distinção sexo/gênero, decorre de questões políticas: para Fausto-Sterling, sua manutenção exclui a possibilidade de qualquer crítica feminista às ciências biológicas; para Catherine MacKinnon (ainda que ela não possa ser considerada pós-estruturalista, num sentido estrito), a distinção deve ser abandonada porque o sexo (como o gênero) diz respeito a relações sociais “organizadas de tal forma que os homens possam dominar e as mulheres devem se submeter” (citado em Laqueur, 1992, p. 13); para Butler (1993), a recuperação do corpo material por parte do feminismo (em relação à biologia) implica na negação da associação entre feminilidade e materialidade (via o conceito de matrix, relacionado ao útero e às questões reprodutivas). Neste sentido, não deixa de ser irônico que a justificativa oferecida por Laqueur (Ibid. p. 15) para a manutenção da distinção entre o corpo material e o corpo como discursivamente construído seja também, embora não exclusivamente, de ordem política:
diferentes obrigações [éticas e políticas] decorrem do fato de o observador ver (ou tocar) e representar. Também é desonesto escrever uma história da diferença sexual, ou da diferença, de forma geral, sem reconhecer a correspondência vergonhosa entre formas particulares de sofrimento e formas particulares de corpo, não importa como o corpo seja concebido. O fato de que a dor e a injustiça são gendradas e que correspondem a sinais corpóreos de sexo é precisamente o que confere importância a uma descrição da construção do sexo. Além disso, houve claramente progresso na compreensão do corpo humano, em geral, e da anatomia e fisiologia reprodutiva, em particular.
Como afirma Tony Lawson (citado em Hull, 2006, p. 5), “posições políticas que não têm outra base que não suas vantagens estratégicas percebidas provavelmente serão desafiadas e questionadas mais cedo ou mais tarde”. É justamente por isso que a abertura que Laqueur confere ao conhecimento produzido pelas ciências biológicas e, como consequência, à distinção sexo/gênero, não me parece, ao contrário do que afirma Jurandir Freire Costa (2001), uma tentativa de continuar a falar desses termos de forma moralmente neutra, mas de trabalhar a desconstrução de forma a permitir o movimento de reconstrução teórica que estabelece as condições ontológicas daquilo que Butler chama de corpos abjetos.
Embora de forma alguma imune àquilo que Frédéric Vandenberghe (2010) já se referiu como “ontofobia”, vale ler o excelente trabalho de desconstrução efetuado por Laqueur. De maneira geral, seu livro deve ser compreendido como a tentativa de demonstrar que, de um ponto de vista histórico, nenhum conjunto de fatos relativos ao sexo determinou a forma como ele foi representado e compreendido e - no que poderíamos caracterizar como um pequeno passo em falso em direção à falácia epistêmica- nem engendra qualquer concepção particular de diferença sexual. Isso porque a própria forma como esses fatos são construídos (de um ponto de vista de sua representação) dependem de desenvolvimentos epistemológicos e políticos específicos. Diferentemente de Foucault, para quem epistemes são substituídas umas pelas outras, tornando-se incomensuráveis, para Laqueur, modelos sexuais distintos sempre coexistiram, embora a ênfase possa recair sobre um em detrimento de outros.
Para o autor, desde a Grécia clássica até o século XVII, dominou um modelo corporal de sexo único no qual as diferenças sexuais decorriam de um sistema hierárquico segundo o qual a mulher é um homem invertido – e menos perfeito. Mas isso não deve ser entendido como uma fundamentação biológica dos papéis sexuais – algo que só surge na modernidade: as próprias categorias sociais eram naturais, estando ambas no mesmo nível explanatório.
O modelo de sexo único fundamenta-se na teoria da causalidade de Aristóteles, em A Geração dos Animais, para quem o sexo era o signo de tipos distintos de causa: os machos representavam a causa eficiente (geram em outro, contribuindo com a alma); as fêmeas, a causa material (geram em si mesmas, contribuindo com o corpo). Embora isto aponte para uma divisão em dois sexos, inclusive do ponto de vista genital (assim como o pênis era peculiar aos machos, o útero era peculiar às fêmeas), uma economia dos fluidos e dos prazeres e até mesmo uma estética do pênis levam a um borramento das fronteiras do corpo - e dos genitais, em particular - transformando sua retórica na de um modelo de sexo único. Em relação à estética, por exemplo, a preferência dos gregos por um pênis pequeno e um prepúcio proeminente aparece claramente no drama e na arte: um pênis grande, associado aos sátiros, era considerado cômico (para um excelente artigo sobre as conceituações médicas acerca do prepúcio ideal na Grécia e em Roma antigas, veja o artigo de Frederick Hodges) . Segundo Laqueur, ao trazer esse tema cultural mais amplo para sua teoria da geração, Aristóteles progressivamente enfraquece a conexão pênis/macho, sugerindo que um pênis grande tornaria um homem menos masculino, dado que menos fértil porque tornaria o esperma excessivamente frio para possibilitar a geração.
A relação entre pênis pequeno e fertilidade (ou geração, que é, afinal de contas, o que está implícito em sua discussão sobre causalidade) também é sustentada por uma economia dos fluidos corporais segundo a qual a temperatura diferenciada de homens e mulheres (os homens seriam mais quentes não só do que as mulheres, mas também do que os escravos e os estrangeiros, o que aponta para o caráter social, relativo a status, da presença do calor vital). Isso faria com que os órgãos genitais destas fossem internos - ainda que homólogos aos masculinos. Os fluidos produzidos pelo corpo (sangue, suor, sêmen, leite e mesmo gordura) eram, em parte, convertíveis uns nos outros e um tipo de fluido era liberado sempre que havia excesso de outro e calor suficiente para convertê-los. Assim, os homens não menstruavam porque, sendo mais quentes, não dispunham do mesmo excedente nutricional que as mulheres; estas não menstruavam quando precisavam converter o excedente de sangue liberado pela menstruação em leite e os rapazes púberes podiam produzir leite, talvez por ainda não serem quentes o suficiente.
Fatores sociais também aparecem claramente na forma como as relações (sexuais) entre pessoas do mesmo sexo eram concebidas. Relações entre homens mais velhos e rapazes púberes não eram consideradas perversas porque não havia inversão na ordem social. Fosse entre homens ou entre mulheres, não era a identidade sexual que importava, mas a diferença de status: o mollis e o cinaedus, o homem adulto efeminado; a tríbade, a mulher que adotava o papel ativo (masculino) na relação; o pathicus, aquele que era penetrado, eram moral e medicamente condenados porque invertiam de forma não-aceitável os lugares de poder e prestígio, e não porque portavam determinados marcadores corporais de sexo. De fato, o sexo entre e escravos nem chegava a ser reconhecido como tal por Aristóteles: “o escravos não têm sexo porque seu gênero não importa politicamente” (Laqueur, 1992, p. 54).
O modelo do sexo único, no qual o corpo paradigmático era o corpo quente, masculino, civilizado, exerceu influência significativa durante toda a Idade Média e o Renascimento e o ponto importante deste modelo é que ele não possibilitava uma diferenciação entre os sexos de ordem qualitativa, mas meramente quantitativa, no sentido de que os sexos eram classificados em função do grau de aproximação deste corpo paradigmático. Com efeito, a preocupação com o estabelecimento de distinções de ordem física era tão reduzida que, até o século XVIII, o termo testes (ou orcheis em latim) era usado de forma indistinta para testículos e ovários, o canal vaginal não era reconhecido como uma estrutura independente do útero e as trompas de falópio eram chamadas de vasos deferentes. Mas é importante não perder de vista que essa “falta de interesse” aponta para a dominância sócio-cultural atribuída ao corpo masculino.
Isso é interessante, se considerarmos que o Renascimento foi o período no qual as dissecações de corpos começaram a ser feitas de forma mais ou menos sistemática. Até mesmo artistas do porte de um Leonardo da Vinci pareciam tão impregnados pelo modelo do sexo único que representavam os órgãos internos femininos como se fossem a inversão perfeita da genitália externa masculina. As ilustrações retiradas do que é considerada a obra fundadora da anatomia moderna, a De humani corporis fabrica (1543), de Andreas Versalis, demonstra bem o papel da crença no modelo do sexo único na percepção do corpo. A vagina é “realmente” um pênis (à direita); o útero equivale à bolsa escrotal e, os ovários, aos testículos (ilustração da esquerda). Pelo menos até o “aparecimento” do clitóris – ironicamente, descoberto por um tal de Colombo (Renaldus, não Cristóvão) à época dos grandes descobrimentos.
Não que a descoberta do clitóris tenha servido para desestabilizar a hegemonia do modelo do sexo único, mas, dada a homologia estabelecida entre ele e o pênis, agora era preciso lidar com o “fato” de que as mulheres tinham não um, mas dois pênis! Apesar disso, como a análise de alguns casos de hermafroditismo efetuada por Laqueur sugere, apenas um desses pênis isomórficos realmente contava neste período: o interno. Diante de casos ambíguos, como em hermafroditas em que era impossível determinar se o que se via era um pênis pequeno ou um clitóris grande, os critérios sociais (aliás, como ainda hoje), assumem uma importância maior. Mas longe de concluir, como o fazem Fausto-Sterling, Butler, e mesmo Laqueur, que isso ilustra o caráter decididamente convencionalista do sexo, creio que isso pode ser compreendido em termos de que, onde as fronteiras naturais não existem ou não são claras o suficiente, as categorias tendem a ser política e culturalmente alocadas.
Seja como for, a emergência do modelo (moderno) de dois sexos ocorre em algum momento do século XVIII. Aqui, mais uma vez, é possível perceber uma série de escolhas semânticas que apontam para a elisão ocasional entre realidade e representação:
À medida que o próprio corpo natural tornou-se o padrão dominante de discurso social, os corpos das mulheres – o eterno outro – tornaram-se o campo de batalha para redefinir uma relação social antiga, íntima e fundamental: aquela entre o homem e a mulher. Os corpos femininos, em sua concretude corpórea, cientificamente acessível, na própria natureza de seus ossos, nervos e, mais importante, órgãos sexuais, passaram a suportar um novo peso de significado. Dois sexos, em outras palavras, foram inventados como a nova fundação para o gênero. (Laqueur, 1992, p. 150. Minhas ênfases).
Dois conjuntos de fatos explicam a emergência do novo modelo: um epistemológico e um político. De um ponto de vista epistemológico, o desenvolvimento da ciência não apenas possibilitou uma melhor distinção entre fato e ficção, ciência e religião, razão e crença (palavras do próprio Laqueur!), mas a mudança paradigmática (ou epistêmica) ocorrida neste período diz respeito à substituição de um tratamento hierárquico entre semelhanças por um sistema de diferenciação reduzido a um plano único: o natural. Assim, em lugar do modelo baseado na continuidade e hierarquização que caracterizava o sexo único, constrói-se um modelo baseado na discontinuidade e oposição (reducionista) que dividia o sexo em dois. Houve, entretanto, um contexto político que tornou essa mudança possível: o alargamento da esfera pública ocorrido entre os séculos XVIII e XIX que gerou novas lutas por poder e status, inclusive entre homens e mulheres. Não por acaso, contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau (este último, em particular), terminam por estabelecer o corpo como fundamento da sociedade civil ao subordinar as mulheres aos homens no contrato social em virtude de suas (in)capacidades reprodutivas.
Ao descrever como certos fatos, ou “o que eram considerados fatos” (aqui fala Laqueur, o realista), tornaram-se o fundamento de determinadas distinções sociais, Laqueur demonstra como essas distinções retroalimentam teorias científicas, reforçando o ciclo infernal de desigualdades. Sua análise da teoria freudiana da sexualidade feminina é particularmente instrutiva, na medida em que não apenas demonstra como o lugar de subordinação das mulheres é determinado em função de sua anatomia (anatomia é destino), mas também como o próprio Freud provê as ferramentas para o desmonte deste modelo ao propor que a libido não tem sexo. Esta é uma afirmação ontologicamente ousada a que Laqueur parece subscrever e que tem consequências importantes para a crítica do determinismo biológico. Afirmações ontológicas pressupõem um comprometimento em relação a determinadas propriedades atribuídas aos objetos. Mas isso Laqueur só faz de forma indireta. De fato, ao lamentar a omissão de “uma discussão sistemática da experiência no corpo”, ele parece reconhecer a necessidade de reconstrução - no sentido de afirmar claramente a que tipos de experiências esses corpos estão sujeitos em virtude de sua estrutura, para dar conta da crítica dos elementos excludentes do modelo de dois sexos. Neste sentido, parafraseando Bhaskar, talvez o que lhe falte seja a coragem de transformar sua cautela epistemológica em ousadia ontológica.
Bibliografia
BUTLER, Judith (1993). Bodies that Matter: on the discursive limits of sex. Routledge, Nova York e Londres.
COSTA, Jurandir Freire (2001). “O sexo segundo de Laqueur”. Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, 25 de março de 2001. Disponível em:
< http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_html/laqueur.html>. Acesso em 21 de junho de 2010.
FAUSTO-STERLING, Anne (2000). Sexing the Body: gender politics and the construction of sexuality. Basic Books, Nova York.
HULL, Carrie (2006). The Ontology of Sex: a critical inquiry into the deconstruction and reconstruction of categories. Routledge, Londres e Nova York.
LAQUEUR, Thomas (1992). Making Sex: body and gender from the Greeks to Freud. Harvard University Press, Cambridge (MA) e Londres.
SOPER, Kate (1995) What is Nature? Culture, politics and the non-human. Oxford, Blackwell.
VANDENBERGHE, Frédéric (2010) Teoria Social Realista: um diálogo franco-britânico. Belo Horizonte e Rio de Janeiro, UFMG/Iuperj.
5 comentários:
Cynthia,
Desculpe minha ignorânica no tema, mas sempre fico impressionada com o que parece ser a persistência da perspectiva de supressão da diferença sexo/gênero no universo teo'rico-metodolo'gico feminista. Por causa disso, o que mais gostei em seu post foi a argumentação em torno da vulnerabilidade dessa perspectiva diante da redução de tudo a genes e hormônios - abordagem que bombardeia cotidianamente as sociedades contemporâneas, com toda a legitimidade de sua "cientificidade". Fico com a impressão de que realmente a correlação de forças no interior do movimento feminista precisa mudar, se se pretende combater a reatualização do naturalismo das desigualdades. Valeu. Abraço.
Pois é, Tâmara, a distinção sexo/gênero é bastante espinhosa, mas não mais do que a distinção natureza/cultura. Eu acho que os pós-estruturalistas têm razão em se preocupar com o estabelecimento das condições de emergência de determinados discursos acerca do que conta como realidade e eu tento levar muito a sério o que eles dizem. Mas essa recusa em partir para o passo seguinte me incomoda bastante. Butler, por exemplo, diz que não nomeia (ou seja, não estabelece o que acredita existir) porque, tendo sido vítima de diversas formas de assujeitamento, não quer correr o risco de excluir aqueles corpos que não se encaixam em sua ontologia. Sempre que a leio, me sinto como Michelângelo que, diante da perfeição do seu Moisés, desferiu uma martelada em seu joelho e gritou "PARLA!".
Parla, Butler!
Cynthia,
li uma entrevista em Laqueur argumenta que o sexo é "situacional", e por isso construído culturalmente, mas que isto ocorre "afora questões de produção e reprodução" (Ver: <>). Daí fiquei me perguntando até onde, ou se não é, justamente, apartir deste "afora" que o sexo da perspectiva de Laqueur cai na armadilha da falácia epistêmica (?).
No mais, apesar de não ter lido ainda, parece que ele deu continuídade a sua tese na obra Sexo solitário (Solitary Sex - a Cultural History of Masturbation) - ao menos é o que afirma a resenha por Fabien Lamouche (Ver: <<>).
Erli.
Cynthia,
li uma entrevista em Laqueur argumenta que o sexo é "situacional", e por isso construído culturalmente, mas que isto ocorre "afora questões de produção e reprodução" (Ver: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7664&cod_canal=34). Daí fiquei me perguntando até onde, ou se não é, justamente, apartir deste "afora" que o sexo da perspectiva de Laqueur cai na armadilha da falácia epistêmica (?).
No mais, apesar de não ter lido ainda, parece que ele deu continuídade a sua tese na obra Sexo solitário (Solitary Sex - a Cultural History of Masturbation) - ao menos é o que afirma a resenha por Fabien Lamouche (Ver: Fonte: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7664&cod_canal=34Acesso: 25/06/10).
Erli.
Oi, Erli,
Eu acho que é justamente o contrário. Como a continuação da frase que está no link que vc enviou refere-se às questões biológicas, fica claro que ele está se referindo puramente à dimensão cultural (que inclui discursos e práticas) quando fala de situacionalidade.
Mas ao colocar a questão dessa forma, eu acho que o problema vira outro: ele acaba cortando de maneira absoluta a relação entre prática cultural e reprodução biológica (e aí, como dar conta de coisas como as tecnologias reprodutivas, por exemplo?). Eu creio que essa distinção só é útil na medida em que nos força a reconhecer que as práticas culturais se dão sobre um corpo materialmente constituído, mas não reconhecer que a influência ocorre também no sentido cultura-natureza é tratar a cultura como epifenômeno.
Acho que tem duas questões em jogo aí. A primeira é a importância de distinções como a efetuada por Kate Soper acerca de gradações múltiplas da relação natureza/cultura: não se pode tratar aquelas transformações culturalmente condicionadas (como roupas e cosméticos) como se fossem equivalentes a transformações mais profundas (ocasionadas por exercícios, uso de drogas e cirurgias) ou, num nível mais profundo, com as construções corporais feitas em laboratório. As fronteiras são, de fato, borradas. Mas, nos primeiros casos, a menos que vc seja lamarckiana, vai perceber que os mecanismos estão em níveis distintos da realidade.
Quando as fronteiras não são nítidas, eu creio que talvez faça mais sentido trabalhar em termos de uma distinção analítica entre discursos e práticas, por um lado, e corpos materiais, por outro. Isso permitiria dar conta da objetivação da cultura nos corpos. Mas aí, a dimensão temporal para o tratamento do dualismo é fundamental.
Enfim, tem um universo de questões ontológicas e epistemológicas por trás dessas coisas. Não cheguei a ler o livro sobre masturbação, mas creio que aí os problemas epistemológicos são mais fáceis de resolver.
Beijo!
Postar um comentário