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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A concepção de individualidade em Georg Simmel

"Crepúsculo", obra de George Grosz, 1922

Por Ana Rodrigues - Doutoranda no PPGS/UFPE

É possível afirmar que o surgimento da sociologia é concomitante ao nascimento do indivíduo da modernidade, que se caracteriza por uma transformação fundamental na relação entre indivíduo e sociedade e por um maior espaço conferido àquele nas relações sociais. Assim, muito embora a consolidação da sociologia como disciplina autônoma tenha sido marcada por um esforço em desvendar as determinações sociais na explicação da vida social, sempre houve um interesse, por parte de seus melhores teóricos, pela análise das dimensões individuais (Martucelli, 2007b).
A análise do indivíduo nunca esteve completamente ausente da sociologia clássica. Mesmo Durkheim, que é considerado um autor holista, reconheceu que as sociedades modernas outorgam um espaço mais amplo ao indivíduo, chegando a afirmar que este havia se convertido na religião da modernidade. Em 1898, Durkheim publicou um texto – “O individualismo e os intelectuais” – em que em que apresenta duas concepções de individualismo: uma negativa, que rende homenagem ao indivíduo particular (egoísmo), e uma positiva, que considera cada indivíduo como representante da humanidade e da razão e rende homenagem à pessoa humana. O autor defende essa segunda concepção, denominada como “individualismo abstrato” por Martucelli e Singly (2012, p. 16).
Mas é sobretudo Simmel que destaca a crescente liberação do indivíduo das antigas dependências históricas nas sociedades modernas, buscando desenvolver uma teoria sociológica do individualismo de maneira menos maniqueísta que seu contemporâneo, Durkheim. Em O indivíduo e a liberdade, Simmel identifica dois tipos de individualismo desenvolvidos na cultura europeia a partir do século XVIII, fundamentados em duas concepções distintas de liberdade. De acordo com Martucelli e Singly (2012, p. 20), o interesse da obra de Simmel é que, diferentemente de Durkheim, ele não estabelece nenhuma hierarquia entre esses dois individualismos e desloca os termos do problema, tentando compreender de que maneira essas duas concepções opostas se articulam.
A primeira noção de individualismo desenvolve-se a partir do século XVIII e tem na liberdade a sua motivação mais íntima. Segundo Simmel (2005, p. 108), a liberdade se torna a bandeira universal por meio da qual o indivíduo protege seus mais variados desconfortos e tenta se autoafirmar perante a sociedade. O ideal da liberdade individual defende a liberação do indivíduo das instituições religiosas, políticas e econômicas que constrangem os potenciais da personalidade de maneira não-natural. É necessário, portanto, libertá-lo de todas essas influências e das desigualdades artificialmente produzidas para que o indivíduo possa desenvolver todos os valores internos e externos de sua personalidade.
Essa concepção de individualismo tinha como fundamento a igualdade universal, seja esta fundada na natureza, seja na razão ou na humanidade. O centro do interesse dessa época é o homem abstrato, que constitui a essência de qualquer pessoa particular, ao contrário do homem historicamente situado, singularizado e diferenciado pelos seus pertencimentos sociais. Com isso, Simmel (2005, p. 109) aponta um contexto de pertencimento prévio e mútuo entre direito, liberdade e igualdade, uma vez que o homem genérico, que representa o núcleo essencial do homem individualizado, aparece em cada indivíduo particular sempre que este seja libertado das forças sociais e desvios históricos que violentam sua essência mais profunda. Para Martucelli e Singly (2012, p. 19), a concepção de individualismo como independência individual, apresentada por Simmel, corresponde ao “individualismo abstrato” de Durkheim.
Simmel (2005, p. 111) também destaca que “esse conceito de individualidade implica, em sentido prático, o laissez faire, laissez aller”, uma vez que se em todos os homens é possível encontrar o homem abstrato como sua essência e se pressupõe o seu desenvolvimento perfeito, então as relações humanas não necessitariam de intervenções reguladoras especiais. No entanto, o autor afirma que não se conseguiu eliminar totalmente as sombras da liberdade nos indivíduos, uma vez que a igualdade manifestava-se de maneira muito imperfeita na realidade.  Ademais, a própria suposição de que após a conquista da liberdade, seguiriam-se novas iniquidades e opressões impulsionou o acréscimo da exigência da fraternidade ao de liberdade e de igualdade, pois “apenas a renúncia eticamente voluntária que esse conceito expressa pode evitar que a liberdade fosse acompanhada do oposto da igualdade” (Simmel, 2005, p. 111).
De acordo com Simmel (2005, p.111), se a consciência geral daquela época sobre a essência da individualidade escondeu essa contradição entre igualdade e liberdade, ela aparece novamente no século XIX. Nesse momento, surge uma segunda concepção de individualismo que se contrapõe à síntese do século XVIII e sua fundamentação da igualdade pela liberdade e vice-versa. Nessa concepção, há uma ênfase na desigualdade e a liberdade permanece como o denominador comum também com o correlato oposto. Contudo, é importante destacar que se, por um lado, o autor aponta a contraposição entre as duas concepções de individualismo, por outro, ele busca apreender sua articulação, mostrando que o individualismo do século XIX pressupõe a concepção do século XVIII, fundamentada na igualdade. Nas suas palavras, “tão logo o eu, no sentimento da igualdade e universalidade, sentiu-se forte o bastante, passou a procurar a desigualdade, mas apenas aquela que surgia como uma lei interna” (Simmel, 2005, p. 112).
Simmel (2005, p. 112) afirma ainda que após a libertação dos indivíduos de suas antigas dependências históricas, o movimento segue adiante e estes indivíduos tornados autônomos buscam agora distinguir-se entre si. Nesta segunda concepção, o importante não é o indivíduo como tal, mas sim o que este tem de único e distinto. Desse modo, intensifica-se a procura moderna pela diferenciação, a busca do indivíduo por si mesmo, por um ponto de solidez e ausência de dúvidas, que se torna tanto mais necessária quanto maior a complexidade da vida. E essa busca não pode ser encontrada em instâncias externas à própria alma. Para o autor, as relações com os outros são apenas estações no caminho em busca de si mesmo. Tais relações são importantes seja porque o indivíduo se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças, precisando do apoio desse tipo de consciência, seja porque os outros são importantes na comparação e visão da própria singularidade e individualidade do próprio mundo.
Essa concepção de individualismo encontrou seu filósofo em Schleiermacher, para quem não apenas a igualdade, mas a diferenciação é uma obrigação ética. Simmel (2005, p. 113) denomina esse individualismo de qualitativo em oposição ao individualismo numérico do século XVIII e afirma que o romantismo alemão foi o primeiro canal por meio do qual essa concepção permeou a consciência do século XIX.
Segundo Simmel (2005, p. 114), a primeira concepção de individualismo é o produto do liberalismo racional da Inglaterra e da França, enquanto a segunda é uma criação do espírito germânico. Embora em constante tensão, o autor afirma que essas duas grandes forças da cultura moderna procuram um equilíbrio nas mais diversas esferas. No entanto, até o século XIX, os dois tipos de individualismo só foram unidos na constituição de princípios econômicos. Nesta esfera, a concepção da liberdade e da igualdade fundamenta a livre concorrência, enquanto a personalidade diferenciada é o fundamento da divisão do trabalho. Simmel (2005, p. 115) adverte que as consequências “da concorrência sem peias e da especialização da divisão do trabalho para a cultura interna não se deixam apresentar exatamente como o maior benefício dessa cultura”.
A análise de Simmel do individualismo não se restringe ao esboço da emergência de diferentes ideias filosóficas e suas respectivas raízes culturais, dado que ele também busca apreender as mudanças sociais que possibilitaram seu surgimento. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel mostra de que maneira o desenvolvimento de uma economia monetária possibilitou uma margem crescente de liberdade individual e, consequentemente, um maior domínio da consciência pelo indivíduo.
De acordo com Simmel (1977, p. 348), o desenvolvimento de uma economia monetária conduziu a uma maior objetividade das relações sociais. Na medida em que o dinheiro se torna o mecanismo universal de troca, ele permite determinar a igualdade exata dos valores de troca, devido às suas propriedades de divisibilidade e aproveitabilidade ilimitada. Como ele pode ser somado e dividido de maneira ilimitada, ele permite a adoção de um critério quantitativo na apreensão dos produtos, reduzindo toda qualidade e individualidade à questão: “quanto?”. Portanto, nos mais diversos fenômenos, dentro da economia monetária, os objetos tornam-se cada vez mais indiferentes em sua singularidade e individualidade, carentes de essência e intercambiáveis (Simmel, 1977, p. 361).
O princípio da objetividade adotado pela economia monetária também conduziu a uma transformação da forma real que tomam as relações de dependência, possibilitando o desenvolvimento da liberdade individual. Simmel (1977, p. 338) explica que, enquanto nas formações sociais anteriores, a vinculação e o direito do senhor abrangiam não apenas o produto do trabalho como também a personalidade do trabalhador, a economia do dinheiro conduz a uma separação completa da personalidade como tal frente às relações de dever. A adoção do princípio da objetividade frente ao da personalidade conduz a uma transição em que o limite do tempo de trabalho começa a ser determinado e, em seguida, não se exige mais um tempo e uma força de trabalho determinados, mas um produto determinado do trabalho. Desse modo, não há uma subordinação a outra personalidade subjetiva. O dinheiro despersonaliza as relações.
Do mesmo modo, no sistema de trabalho assalariado, o trabalhador adquire certa independência frente ao empresário isolado, devido à frequência com que a economia monetária muda o empresário e pela possibilidade múltipla de eleger ou substituir a este que a forma do salário garante ao trabalhador, concedendo-lhe uma liberdade completamente nova, dentro de suas ataduras. Contudo, Simmel (1977, p. 359) destaca que a liberdade do trabalhador é também a liberdade do empresário, que não existia nas formas de trabalho mais vinculadas. Em sentido social, a liberdade, como a ausência de liberdade, constitui uma relação entre seres humanos.
Simmel (1977, p. 352) adverte que a economia monetária não possibilitou apenas uma liberação do indivíduo, mas também uma configuração especial das relações de dependência mútua que, ao mesmo tempo, deixa margem para um máximo de liberdade. Isso porque essa economia estabelece uma série de vinculações, inexistentes nas formações econômicas anteriores. A dependência de outras pessoas alcançou esferas completamente novas, devido à crescente divisão moderna do trabalho e a especialização das faculdades humanas que a acompanha, além do aparecimento de técnicas mais complexas e de um número maior de intervenções para atender mesmo às necessidades mais elementares. Mas o outro lado do processo de divisão do trabalho é justamente que, à medida que o sujeito se torna dependente de um número crescente de prestação de serviços, ele se torna independente das personalidades que se encontram por trás destes, porque só permite a ação de uma parte das mesmas, “excluindo por completo as outras cuja conjunção é precisamente o que dá lugar à personalidade” (Simmel, 1977, p. 354).
Desse modo, a economia monetária facilita a separação do elemento pessoal das relações entre os seres humanos através de sua essência objetiva. Se o homem se torna, por um lado, mais dependente de uma grande quantidade de provedores, ele é muito mais independente da pessoa isolada e concreta que lhe presta um serviço e que pode ser substituída com facilidade e frequência. Em consequência disso, o indivíduo recebe como recompensa “a indiferença em relação com as pessoas e a liberdade de intercâmbio com elas” (Simmel, 1977, p. 356).
Para Simmel (1977, p. 357), esta é a situação mais favorável para produzir a independência interior e o ser-para-si individual. É só a partir do exercício desta liberdade, que é possível desenvolver a individualidade, de ampliar o núcleo do eu por meio da vontade e sentimento individuais. O autor destaca que tal individualidade não pode ser percebida como uma ausência de relações, mas, precisamente, como uma relação muito determinada com os demais. Uma relação que pressupõe, como toda relação, elementos de aproximação e elementos de distanciamento. Segundo ele, a configuração mais favorável de ambos os elementos para explicar a independência tanto em sua qualidade de fato objetivo como de consciência subjetiva parece se manifestar quando se dão relações extensas com outros homens, dos quais foram distanciados todos os elementos que são de natureza individual. Nas suas palavras,
“a causa e o efeito destas dependências objetivas, nas quais o sujeito como tal é livre, residem na trocabilidade das pessoas; na troca voluntária dos sujeitos ocasionada através da estrutura da relação se revela aquela indiferença do elemento subjetivo, que leva o sentimento da liberdade” (Simmel, 1977, p. 358).

A personalidade surge, assim, como a contraposição subjetiva das circunstâncias de dependências objetivas e de indiferença impostas pela economia do dinheiro que conduz a um largo processo de diferenciação social, do qual resulta a acentuação da importância do eu, por um lado, e da coisa, por outro. Simmel (1977, p. 361) afirma que o surgimento da personalidade é ao mesmo tempo o processo de surgimento da liberdade, uma vez que tudo o que chamamos de personalidade – a unidade de elementos psíquicos, sua concentração em um só ponto, a insubstituibilidade de sua essência – implica também a independência e exclusão de todo o exterior e o desenvolvimento de acordo com as leis da própria essência – a que se chama liberdade.
Segundo Simmel (1977, p. 362), em ambos os conceitos se manifesta um ponto último e profundo da essência do indivíduo que enfrenta a todo objetivo, exterior e sensorial, que se origina tanto fora como dentro da sua própria natureza. Tanto o conceito de liberdade quanto o de personalidade constituem uma “expressão do fato de que aqui surgiu a contrapartida do ser natural, contínuo e objetivamente determinado, contrapartida cuja originalidade não somente reside na aspiração a uma posição especial frente a ele, senão também na busca de uma conciliação com ele mesmo”.
Além da economia do dinheiro, o crescimento dos círculos sociais, que acompanha o seu desenvolvimento, é percebido por Simmel como uma importante transformação para o aumento da liberdade e da individualidade. O autor tenta compreender de que maneira a personalidade se acomoda nos ajustamentos às transformações sociais advindas com a vida na metrópole, lugar em que essa economia se desenvolve. Simmel (1973, p. 12) busca apreender as condições psicológicas criadas pela vida na metrópole, tendo em vista que a mente humana procede a partir de discriminações entre a impressão de um dado momento e o que o precedeu, e a metrópole extrai uma quantidade de consciência maior que a vida rural. O autor afirma que a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação de estímulos nervosos, resultantes da alteração brusca e ininterrupta de estímulos interiores e exteriores.
Diante do ritmo de vida e da rápida convergência de imagens em mudança na metrópole, o indivíduo metropolitano desenvolve uma consciência elevada e uma predominância da inteligência. Segundo Simmel (1973, p. 13), a reação aos fenômenos metropolitanos é transferida a um órgão menos sensível e bastante afastado da zona mais profunda da personalidade, enquanto a intelectualidade assume a preservação da vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana.
Ademais, as relações emocionais íntimas entre pessoas fundadas em sua individualidade, comuns nos pequenos círculos, dão lugar a relações racionais e anônimas, em que se trabalha com o homem como um número, um ser que é em si mesmo indiferente. Simmel (1973, p. 14) afirma que essa atitude “prosaicista” está tão inter-relacionada com a economia do dinheiro que não se sabe se foi a mentalidade intelectualística que primeiro criou essa economia, ou se esta última determinou a primeira.
O autor também destaca que o caráter objetivo da economia do dinheiro – com suas características de exatidão, calculabilidade, etc. – são introduzidos à força pela complexidade e extensão da existência metropolitana, de modo que ele não está apenas intimamente ligado a essa economia, mas também conduz a uma objetivação crescente de conteúdos existenciais. Desse modo, esse caráter permeia o conteúdo da vida e favorece a exclusão daqueles impulsos irracionais e instintivos, que tentam determinar o modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma de vida geral de fora. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel (1977, p. 347) destaca que é justamente essa capacidade de observação objetiva, de prescindir do eu, que separa os homens, no puramente psicológico, das ordens animais inferiores. E é isso o que impulsiona o processo histórico ao seu resultado possivelmente mais nobre e à formação de valores em que os interesses de uma parte não exclui o outro, senão abre caminho a ele.
Simmel (1973, p. 15) afirma que não há fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto a atitude blasé, que expressa a relação entre uma estrutura da mais alta impessoalidade e, em contraposição, uma subjetividade altamente pessoal. Em princípio, essa atitude resulta dos estímulos contrastantes que são continuamente impostos aos nervos. Mas o autor acrescenta que essa fonte fisiológica da atitude blasé é acrescida de outra que flui da economia do dinheiro e corresponde ao embotamento do poder de discriminar toda qualidade dos objetos, de modo que nenhum objeto merece preferência sobre outro. Para o autor, “esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada” (Simmel, 1973, p. 16).
Simmel (1973, p. 17) explica que na atitude blasé, os nervos encontram na recusa a reagir aos incessantes estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma de vida metropolitana. Assim, a autopreservação da personalidade é alcançada ao preço da desvalorização de todo mundo objetivo; uma desvalorização que no final arrasta a personalidade da própria pessoa para uma sensação de igual inutilidade. Além disso, sua autopreservação em face da cidade exige dele um comportamento de natureza social negativa, como a reserva. Essa reserva assume a forma de um fenômeno mais geral da metrópole, conferindo ao indivíduo uma quantidade e qualidade de liberdade pessoal que não tem analogia sob outras condições.
Esse aumento da liberdade está relacionado ao crescimento dos círculos sociais. Segundo Simmel (1973, p. 19), os pequenos círculos permitem apenas relações restritas com os outros grupos e não podem permitir a liberdade individual e o desenvolvimento interior e exterior próprios, uma vez que guardam as realizações, a conduta de vida e a perspectiva do indivíduo. Mas à medida que o grupo cresce, a unidade interna do grupo se afrouxa, bem como a demarcação original contra os outros grupos, possibilitando relações e conexões mútuas. Assim, o indivíduo ganha liberdade de movimento, ao mesmo tempo em que adquire uma individualidade específica, decorrente da divisão do trabalho tornada necessária com o crescimento do grupo.
O caráter extensivo da metrópole para além de suas fronteiras físicas e a independência individual contribuem para que o aspecto quantitativo da vida seja transformado em traços qualitativos de caráter. Simmel (1973, p. 21) afirma que “o homem não termina com os limites do seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente”. Deste modo, a liberdade que acompanha este processo não deve ser entendida apenas no sentido negativo, como liberdade de mobilidade. O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade que todo ser humano possui sejam expressas de alguma forma na elaboração de um modo de vida. A liberdade no sentido de o indivíduo estar seguindo as leis de sua própria natureza só se torna óbvio para ele e para os outros se as expressões dessa natureza diferirem das expressões de outras. A pessoa se volta para diferenças qualitativas, buscando atrair de alguma forma a atenção do círculo social, explorando sua sensibilidade e diferenças. Do mesmo modo, a crescente divisão do trabalho na cidade moderna compele o indivíduo a se especializar em uma função na qual não possa ser prontamente substituído por outros. Esse processo conduz a uma diferenciação crescente (Simmel, 1973, p. 22).
Portanto, a individualidade para Simmel decorre de condições externas, como o pertencimento a diversos círculos sociais separados entre si e, ao mesmo tempo, do trabalho interior, íntimo. Apesar da grande contribuição teórica de Simmel para pensar o crescente processo de individualização na modernidade, ele foi praticamente esquecido depois da Primeira Guerra Mundial e maioria dos sociólogos abandonou a ênfase dos clássicos na importância das formações psíquicas particulares dos indivíduos na explicação da vida social.
Contudo, Martucelli e Singly (2012, p. 23) destacam que a concepção de individualidade desenvolvida por Simmel se torna central quase um século depois para uma corrente sociológica denominada de “Sociologia do Indivíduo”, que defende a necessidade de uma nova abordagem teórica à escala individual, haja vista a intensificação do processo de individualização na sociedade moderna, a partir da segunda metade do século XX – o que muitos teóricos chamam de segunda modernidade. Esses teóricos afirmam que, diante desse processo, o indivíduo não pode ser mais definido apenas pelos vínculos herdados e pelas determinações sociais. Faz-se necessário prestar mais atenção no trabalho que o indivíduo realiza sobre si mesmo. Simmel torna-se um dos principais precursores dessa corrente pela sua ênfase, por um lado, na crescente divisão interna dos indivíduos e a independência entre as diversas partes de seu ser e, por outro lado, na existência de um conflito interior entre essas partes (Martucelli e Singly, 2012, p. 34).

Referências bibliográficas

MARTUCELLI, Danilo (2007a). Cambio de rumbo: la sociedade a escala del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
____________. (2007b) Lecciones de Sociología del Individuo. Santiago.
MARTUCELLI, Danilo & SINGLY, François de (2012). Las Sociologías del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
SIMMEL, Georg. (1977). Filosofia Del Dinero. Madrid: Instituto de Estudios Politicos.
_____________(2005). “O Indivíduo e a Liberdade”. In: J. Souza e B. Oelze (Orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasilia: Ed. UnB.
____________ (1973). “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
___________ (1950). “The Stranger”. In: WOLF, Kurt H. The sociology of Georg Simmel. New York, Knickerbocker Printing Corp.



terça-feira, 19 de julho de 2011

Pierre Bourdieu e Raymond Boudon : sacos da mesma farinha ?!


Tâmara de Oliveira


Outro dia, pesquisando sobre a segregação escolar na França, deparei-me com uma dessas declarações que fazem a gente matutar : o que esse cara está realmente querendo dizer com isso ? O cara foi François Dubet que, formado na trilha dos Novos Movimentos Sociais com Alain Touraine, mas há tempos voando muito bem na sociologia da educação por suas próprias asas, afirmou em entrevista, comme si de rien n’était, que Pierre Bourdieu (1964 ; 1970) e Raymond Boudon (1984) fizeram uma sociologia da educação sem atores sociais.
Uma declaração dessas a propósito de Bourdieu e saindo da boca de um ex-aluno de Touraine, vá lá : consigo imediatamente contextualizá-la e articulá-la às dificuldades que muita gente boa pelo mundo encontra diante do excesso de estrutura com o qual Bourdieu quis resgatar a dimensão construtiva dos agentes sociais (aproveito para declarar para todos os fins que não uso o termo agência porque me lembra banqueiro) na produção/reprodução social. Mas afirmar que o francês do individualismo metodológico fez uma sociologia da educação sem atores, já pede maiores explicações. E quando, ainda por cima, coloca-se esses adversários pouco cordiais como farinha do mesmo saco, assim sem mais nem menos, pode-se estar criando problema para pobres professores obrigados à explicação das diferenças entre a sociologia de Bourdieu e a de Boudon.
Mas a verdade é que, além de ser sociólogo respeitável, Dubet não é o único a aproximar esses dois. Leitores do Cazzo familiarizados com o MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales) já devem conhecer uma posição persistente de seu fundador, Alain Caillé, segundo a qual Pierre Bourdieu e Raymond Boudon, cuja oposição teórico-metodológica é a base do que aprendemos sobre eles na faculdade, possuem uma convergência essencial, relacionada ao que ele chama de virada individualista geral nas ciências sociais e na filosofia política, tornada visivelmente hegemônica a partir dos anos 1980. A primeira vez que tive conhecimento dessa posição de Caillé, meu problema foi o contrário  : falar em individualismo sobre Boudon pode até ser redundante, mas juntar Bourdieu a isso como se os dois fossem sacos diferentes de uma mesma farinha, pode abalar a reputação do sociólogo das estruturas estruturantes estruturadas (desconfio que Bourdieu revolve-se em sua sepultura até hoje, quando lembra do dito de Caillé).
Agora durma com um barulho desse : Dubet criticando os dois Bs por uma sociologia sem indivíduos ; Caillé criticando-os igualmente, por fazerem uma sociologia individualista ! Minha avó diria que é o comunismo chegando, tudo de ponta-cabeça, a bola de fogo descendo…Para escapar desse barulho é importante lembrar que indivíduo e individualismo são termos deslizantes, daqueles que exigem muita atenção para saber do que se está falando com eles.
Dubet estava falando antes de tudo em metodologia, de sua convicção de que a representação estatística dos indivíduos em escolarização foi um instrumento pertinente para estudar o que a sociedade faz com a escola (ponto de vista de Bourdieu e Boudon), mas não o que a escola faz com os indivíduos. Este último sendo o ponto de vista que ele e outros de sua geração teriam adotado em sociologia da educação, implicando em técnicas de pesquisa que partem diretamente dos próprios atores sociais – experiência, sentimentos, relações, motivações, enfim, uma metodologia de inspiração compreensiva e preferencialmente qualitativa, sem contudo renegar o quantitativo.
Ora, de fato o individualismo metodológico de Boudon que, em certo momento, foi explicitamente inspirado pela teoria dos jogos (Boudon, 1992), não é uma sociologia compreensiva e, embora as motivações dos indivíduos estejam em linha de frente em sua sociologia da educação (Boudon, 1984), elas são abordadas a partir de um pressuposto abstrato : o das escolhas individuais como causa e a reprodução social como efeito. Quanto a Bourdieu (1989 ; 1970 ; 1964), sua metodologia parte dos campos da ação e, embora os habitus dos agentes sejam socialmente estruturantes, o são no interior de campos estruturados que por sua vez estruturam os habitus (é inevitável para mim ter a sensação de círculo vicioso diante de Bourdieu). Num caso como noutro, por pressupostos diversos, a possibilidade metodológica de representar as práticas e as representações dos indivíduos em séries estatísticas está facilmente colocada.
Ora, Durkheim (1982) tinha a representação estatística dos fatos sociais como regra metodológica, justificada por uma concepção onto-epistemológica e, cá pra nós, obsessiva, sobre o necessário isolamento metodológico do coletivo, nas expressões individuais dos fatos sociais. A propósito, lembrei de um doutorando em sociologia que conheci quando eu também estava fazendo doutorado em Aix-Marseille, nos idos de 1999. Fazendo uma tese comparativa do ensino da sociologia em diferentes universidades européias, esse estudante francês costumava declarar hilário que a sociologia francesa, mesmo quando exibe desprezo pela herança durkheimiana, ainda era uma presa da sociologia de Durkheim. Será que a reflexão de Dubet sobre a sociologia da educação de Bourdieu e de Boudon refere-se a essa prisão – da qual sua sociologia mais compreensiva sentir-se-ia liberta ?
Em outros termos, não podemos esquecer que metodologia, base da declaração de Dubet, não é uma mera questão de técnicas de pesquisa ; ela envolve princípios onto-epistemológicos, base da posição de Caillé. Este, de fato, não está falando especificamente em metodologia mas em um axioma que, segundo ele, torna-se visivelmente dominante nos anos 1980 e contra o qual desde então se insurge o MAUSS :
Cette manière de penser était parfaitement congruente avec l'évolution récente de la sociologie dont je m'étais alarmé dans un article de Sociologie du travail : « La sociologie de l'intérêt est-elle intéressante ? » (1981) dans lequel je pointais la surprenante convergence, au moins sur un point essentiel, entre des auteurs en apparence diamétralement opposés : Raymond Boudon et Michel Crozier, du coté libéral, Pierre Bourdieu du côté néomarxiste. Pour les uns comme pour les autres l'intégralité de l'action sociale s'expliquait par des calculs d'intérêt, conscients pour les deux premiers, inconscients pour le troisième. Tous trois, par delà leurs divergences criantes, communiaient ainsi dans ce que j'ai appelé l'axiomatique de l'intérêt(…). Pour cette sociologie alors dominante l'homo sociologicus n'était au fond qu'une variante, un avatar ou un déguisement de 'homo œconomicus. Caillé, In : http://valery-rasplus.blogs.nouvelobs.com/archive/2011/02/27/10-questions-a-alain-caille.html

Raciocinando em termos construtivistas em sentido largo (em argumentação que nos remete imediatamente à dupla hermenêutica de que fala Giddens), o fundador do MAUSS entende ainda que tal axioma não se reduz a princípio de conhecimento, mas é também construtor de uma realidade social assentada sob o cálculo dos interesses individuais como fundamento das interações e estruturas sociais, em texto que faz da science économique standard um genuíno « objeto » da sociologia do dom, como abaixo traduzido:
A evidência histórica é que as ciências sociais bem menos interpretaram e descreveram o mundo moderno do que contribuiram à sua edificação e à sua transformação. Na feitura deste último, elas jogaram um papel que sem dúvida não é menos importante do que o do cristianismo na modelagem da Europa. Isso não é nenhum pouco contraditório com sua vocação de conhecimento. Pelo contrário. Há mais chances de se compreender e analisar melhor uma realidade para a qual nós contribuímos fortememente a criar, do que fatos totalmente estrangeiros. E aliás, o cristianismo também, como todas as religiões, não era exclusivamente prescritivo, ele oferecia igualmente uma explicação do mundo. A diferença, com certeza, é que as religiões subordinam todo objetivo de compreensão à enunciação de normas de conduta, que elas só emitem julgamentos de realidade desde que estas concordem e subordinem-se aos seus juízos de valor, enquanto as ciências sociais, quando desembocam em juízos de valor, frequentemente implícitos e não assumidos enquanto tais, entendem ou pretendem deduzi-los de julgamentos de fato, de realidade ou de racionalidade. Mas essa dependência proclamada da dimensão normativa à pretensão cognitiva não proíbiu às ciências sociais de jogarem um papel de parteiras simbólicas da modernidade(…)
(…)Nesse papel de parteiras da modernidade, nem todas as ciências sociais tiveram a mesma importância em todos os momentos e em todos os países. Considerando um período longo, digamos que dois séculos e meio, não há quase dúvida de que o principal papel, eminente, determinante, foi jogado pela ciência econômica. Melhor dizendo, pela economia política transmutada pouco a pouco em ciência econômica(…)
(…)Digamos as coisas mais simples e sinteticamente : o mundo moderno é, em larga medida, a realização do sonho (the dream come true), da profecia e da predicação da ciência econômica. Chegando até ao pesadelo, às vezes. E isso torna-se cada dia mais verdadeiro, em escala planetária, onde nada mais parece dotado de realidade, além dos constrangimentos econômicos e financeiros, da busca do enriquecimento pessoal e material. Face a estes, tudo – todo valor, toda crença, toda ação empreendida por ela mesma, para o prazer, toda existência que não é consagrada à busca da utilidade – tudo parece doravante ilusório, inoperante, sem valer à pena, supérfluo, irreal. (Caillé, 2007, pp. 6/7)

O que poderia haver de convergente no aparente paradoxo entre a declaração de Dubet (os dois Bs fizeram uma sociologia sem atores, logo, sem indivíduos) e a crítica de Caillé (os dois Bs tem em comum uma orientação científica subordinada ao axioma individualista que domina as ciências sociais e a filosofia política) ? Para tentar vislumbrar uma hipótese, continuarei citando longamente François Dubet e Alain Caillé, mesmo porque a preguiça agora não me permite argumentar mais livremente sobre eles – e preguiça é coisa que respeito cada vez mais. Primeiro Dubet, quando este fundamenta sua crítica ao princípio meritocrático da igualdade de oportunidades dos sistemas de ensino democratizados – a partir do caso francês, sua especialidade:
J’en ai tire deux conclusions. La première, c’est que dans une société non aristocratique, l’égalité des chances est le seul principe de justice sur lequel peur s’appuyer l’école : il faut bien que les individus se hiérarchisent selon leur mérite. La seconde, c’est que ce principe est extrêmement difficile à mettre en œuvre. D’une part, les élèves n’ont pas les mêmes chances au départ, en raison de leur origine sociale, de leur capital culturel, d’autre part, c’est un principe très cruel, qui dit aux bons « vous avez droit à tout » et aux mauvais « tant pis pour vous ».
On peut pondérer ce principe, en faisant par exemple valoir ce que John Rawls appelle le principe de différence : il faut faire en sorte que le déroulement de la compétition méritocratique ne dégrade jamais la sort des vaincus. D’où ma défense du collège unique, qui ne doit pas servir à sélectionner des enfants, mais à les amener tous au même niveau.
Ensuite, si les inégalités scolaires ne sont pas parfaitement justes, il est injuste qu’elles déterminent à leur tour les inégalités sociales. L’école ne devrait pas être la seule institution susceptible de distribuer les individus dans la société. Il y a des moyens de détendre un peu le jeu, comme par exemple le développement d’une véritable formation professionnelle, pour que les enfants qui échouent à l’école puissent se dire que leur vie ne s’arrête pas là.
Enfin, je m’inquiète actuellement du fait que l’école française n’a pas, ou plus, de projet éducatif. Les seules questions sont désormais : « les élèves ont-ils un bon niveau ? » et « la sélection est-elle juste ? » Ce que l’école fabrique comme individu, la totalité de l’échiquier politique s’en désintéresse. Pourtant, la seule manière d’éviter que l’école devienne complètement un marché serait de fixer à l’école des objectifs éducatifs : tout élève qui sort de l’école doit par exemple avoir le sentiment d’avoir de la valeur, ou être capable de s’exprimer en public sans avoir honte…( Dubet, 2008)
 
Agora Caillé, em texto coletivo intitulado Un quasi-manifeste institutionaliste :
Aucune communauté politique moderne ne peut être édifiée sans se référer à un idéal de démocratie. La caractéristique d'un régime et d'une société démocratique est qu'ils se soucient de manière effective de donner du pouvoir (empowerment) au plus grand nombre de gens possible et qu'ils le prouvent en les aidant à développer leurs capabilités. Aucune communauté politique ne peut être édifiée et perdurer si elle ne partage pas certaines valeurs centrales, et elle ne peut pas être vivante si la majorité de ses membres n'est pas persuadée - à travers quelque forme de common knowledge et de certitude partagée - que le plus grand nombre d'entre eux (et tout spécialement les leaders politiques et culturels) les respecte en effet. C'est le partage plus ou moins massif des valeurs communes qui rend plus ou moins fort le sentiment que la justice règne, ce sentiment qui est le ciment premier de la légitimité politique.
Si l'existence, la durabilité et la soutenabilité de la communauté politique ne sont pas considérées comme allant de soi mais, au contraire, comme quelque chose qui doit être produit et reproduit, alors il apparaît aussitôt qu'est nécessaire d'étendre la Théorie de la justice de John Rawls. Car il ne suffit pas de dire que les inégalités ne sont justes que dans la mesure où elles contribuent à l'amélioration du sort des plus mal lotis (même si c'est bien sûr tout à fait important). Il convient d'ajouter que les inégalités ne sont supportables que si elles ne deviennent pas excessives au point de faire éclater et de mettre en pièce la communauté morale et politique. Si la démocratie n'est pas vue seulement comme un système politique et constitutionnel, si on la pense en relation, de manière plus générale, avec la dynamique de la montée en puissance (empowerment) des gens, alors il ne suffit pas d'imaginer un système de division des pouvoirs et de contre-pouvoirs au sein du système politique (quelque nécessaire que ce soit par ailleurs), entre l'exécutif, le législatif et le judiciaire (à quoi il faudrait ajouter le quatrième pouvoir, celui des médias). Il est également nécessaire d'instaurer un système d'équilibre des pouvoirs entre l'État, le Marché et la Société ainsi que, du strict point de vue économique, entre l'échange marchand, la redistribution étatique et la réciprocité sociale. »

Democracia (ou sociedade não aristocrática), necessário controle institucional do mercado, desigualdades e justiça sociais e, teoria da justiça de John Rawls: eis alguns dos termos que aparecem tanto na argumentação ao mesmo tempo crítica e prescritiva de Dubet sobre o que a escola democratizada faz com os indivíduos (ponto de vista que, segundo ele, Bourdieu e Boudou teriam negligenciado metodologicamente), quanto na de Caillé para sustentar um projeto societal para além do dominante axioma indivualista do interesse (que, segundo ele, é uma convergência onto-metodológica entre os divergentes Bourdieu e Boudon). Minha hipótese é então a seguinte : a convergência entre Dubet e Caillé no que diz respeito às suas posições sobre Bourdieu e Boudon pode ser traduzida citando Adorno e Horkheimer (1978), num velho texto quase inteiramente impiedoso e unilateral contra a sociologia : « Quanto menos são os indivíduos, tanto maior é o individualismo ».
Com efeito, Adorno e Horkheimer afirmam ali que a disciplina sociológica, pretendendo libertar-se de todas as teleologias para conformar-se à verificação dos vínculos causais e regulares dos fenômenos sociais, abandonou o « impulso de possível transformação do SER, por obra do DEVER-SER, que é próprio da filosofia », dando « margem à sóbria aceitação do SER como DEVE-SER (Adorno/Horkheimer, 1978, p. 17). Todavia, apesar dessa crítica, esses autores reconhecem no mesmo trabalho que :
Sob a influência do liberalismo, da teoria da livre concorrência, surgiu o costume de considerar as mônadas como algo absoluto, um ser em si. Por isso nunca será demais realçar o valor da obra realizada pela sociologia e, antes desta, pela filosofia especulativa da sociedade, quando abalaram essa crença e mostraram que o próprio indivíduo é socialmente mediado ». (Adorno/Horkheimer, 1978, p. 47)

Em suma, quando Dubet critica relativamente e integra Bourdieu e Boudon argumentando que ambos fizeram uma sociologia da educação sem atores, incapaz de compreender o que os indivídos concretos tem na cabeça sobre o que a sociedade lhes faz, diria que ele está nos remetendo à pretensão da sociologia clássica, pelo menos àquela devedora do positivismo comteano que marcou Durkheim e a sociologia francesa posterior, de conformar-se à verificação dos vínculos causais e regulares dos fenômenos sociais. Por outro lado, quando Caillé os critica por participarem, de maneiras diferentes, do mesmo axioma individualista do interesse, diria que ele está nos remetendo à interpenetração entre dimensão normativa e dimensão cognitiva das ciências sociais, ao fato de que o conhecimento sociológico é inevitavelmente mediado pelas visões de mundo (Weber, 1992) do contexto sócio-histórico em que ele se desenvolve. Assim, embora Bourdieu, ao contrário de Boudon, sempre recusou-se teórico-metodologicamente a abordar os fenômenos sociais pelas escolhas individuais (além de ser um crítico vigoroso da sociedade neo-liberal), teve sua sociologia mediada pela hegemonia do princípio do cálculo dos interesses enquanto orientação normativa e cognitiva de seu tempo.
Concluo declarando que sei que este texto está confuso e que espero que algum leitor faça a caridade de apontar problemas. Escrevi-o porque considero que o tema é prometor e o Cazzo um excelente espaço para amadurecer idéias. Pretendo reler Boudon e Bourdieu, sobretudo quando escrevem sobre Durkheim, para esclarecer um caminho para um futuro artigo.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. / HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo, Cltrix, 1978.
BOUDON, R. L’inégalité des chances. Paris : Hachette Littérature, 1984.
__________Tratado de sociologia.São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1992.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa : Difel, 1989.
BOURDIEU, P. / PASSERON, J.-C. La réproduction – éléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris : Les Editions de Minuit, 1970.
CAILLÉ, A. et alii. Un quasi-manifeste institutionnaliste, suivi de Vers une économie politique institutionnaliste ? In : Revue du Mauss n° 30. Paris : La Découverte/MAUSS. Second semestre 2007.
DUBET, F. Déscolariser la société – Rencontre avec F. Dubet. In : Sciences Humaines n° 199. Article de la rubrique « Rencontre avec… ». Paris, décembre 2008.
WEBER, M. Metodologia das Ciências Sociasi (Parte I). São Paulo : Cortez, 1992.