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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

ÍNDICE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO



Marina Félix de Melo

O Índice de Desenvolvimento Humano (ou IDH) foi criado por Mahdub ul Haq e Amartya Sen, em 1990. A parceria entre o ex-Ministro da Economia do Paquistão e o celebrado economista indiano produziu esse importante instrumento de análise do desenvolvimento e da desigualdade sociais. Retomando uma importante vertente ética do liberalismo para o campo da economia, Sen é particularmente conhecido por sua defesa do desenvolvimento das capacidades humanas como elemento fundamental da própria possibilidade de liberdade – e por sustentar que a desigualdade entre grupos sociais não pode ser pensada apenas a partir de suas respectivas rendas, ou seja, a partir de um critério de estratificação financeira. Adotado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) desde 1993 como instrumento de mensuração do desenvolvimento humano ao redor do mundo, o IDH estrutura-se em três dimensões: longevidade; acesso ao conhecimento e padrão de vida. O segundo desses itens, por seu turno, é subdividido em: taxa de alfabetização de adultos e taxa de escolarização bruta. Essas três dimensões buscam sintetizar aspectos interpretados pela ONU como básicos ao desenvolvimento social: saúde, educação e renda.

A grande tentação neste ponto é criticar o uso de indicadores quantitativos para as ciências sociais, apontar suas limitações técnicas, bem como amplamente metodológicas. Como afirmar, por exemplo, que longevidade representa saúde? Ora, ela é apenas um possível indicador da saúde, interessante e importante parâmetro, mas não exclusivo. Dizer que em 2010 a expectativa de vida em Manari (Sertão de Pernambuco) era de aproximadamente 66 anos não nos diz muito acerca de como se vive e em que condições de conforto físico-mental se chega até essa idade. Igualmente, a longevidade é uma casa de medição alcançada por média aritmética, que consiste em somar tudo e dividir pelo número de casos. Este procedimento não suspende as ocorrências de “outliers”, que são os resultados extremos encontrados nas pontas da distribuição numérica de análise. Quanto ao quesito educação, sua avaliação leva a questões ainda mais delicadas que a medição da longevidade. Na Inglaterra, por exemplo, chegou-se a adotar como critério para aferir analfabetismo funcional saber ou não usar um forno micro-ondas e um aparelho de DVD. Um critério como este seria significativo para avaliar a alfabetização funcional de alguém que more, por exemplo, no sertão de Pernambuco? (tomemos o exemplo de Manari - IDHM1 de 0,487 em 2010 -, analisado por Fabiana Moraes em matéria de 18 de agosto de 2013 no Jornal do Commercio). Numa suposta comparação entre os resultados do IDHM de Manari e Londres, por exemplo, essas diferenças deveriam ser consideradas.

O IDH também não especifica os limites do que considera alfabetização. No Brasil, o PNUD utiliza dados colhidos pelo IBGE, que tem a alfabetização como auto declarável, e isso pode esconder o exemplo do analfabetismo funcional. Mais que isso, algumas pessoas que respondem ser alfabetizadas podem estar simplesmente dando uma resposta à dificuldade de reconhecerem o próprio analfabetismo diante do recenseador. Outro ponto é a escolarização bruta, medida em anos de estudo. Diante da qualidade do ensino oferecida por algumas instituições, esses dados podem esconder mais que revelar. Anos de escolaridade, igualmente, não indicam a quantidade de horas atribuídas a atividades educacionais (horários integrais e aulas esporádicas semanais são fenômenos distintos), tampouco responde sobre a qualidade da educação. Por fim, o fator renda. A renda utilizada no IDH é a renda per capita, isto é, o PIB (produto interno bruto) dividido pelo número de habitantes. Tal medida, como toda média aritmética, é pobre por ocultar um dado importante de estratificação social: a concentração de renda2.

O cálculo do IDH também não pondera suas dimensões analíticas. Eis um dos principais impasses sobre o indicador que não deveria apenas selecionar “arbitrariamente” as variáveis que o compõe, mas também, saber que peso cada uma destas “mereceria” na fórmula. A partir desta caracterização mais geral, pensemos em alguns outros recortes do IDH. Sua fórmula vem sofrendo adaptações a cada ano, adaptações matemáticas. Por exemplo: passou da utilização de média aritmética simples para média aritmética ponderada e, depois, para média geométrica, Assim, os indexadores que compõem sua fórmula geometrizam as médias antes destas serem divididas. Em termos “empíricos”, isto quer dizer que o suposto baixo rendimento de uma das dimensões não é mais linearmente compensado por outra dimensão supostamente elevada. Um ponto interessante do IDH é que seu resultado é uma grandeza adimensional, ou seja, já que procura comparar resultados, coeficientes, tem a magnitude de valores padronizada numa unidade, já que sua fórmula é posta dentro de uma raiz cúbica:­


Fonte: Relatório de Desenvolvimento Humano, PNUD, 2013.

Se pensamos no IDH, na sua utilização clássica de comparação entre países, ajustamos alguns pontos. Existem diferenças entre os institutos de pesquisa de onde são extraídos os dados. Dizer que o IBGE no Brasil tem a mesma administração de controle dos dados que INE em Portugal, seu equivalente, já seria uma aposta muito alta. Agora, imaginemos isso em esfera global. Alternativas educacionais e contextos culturais configuram um problema para bases comparativas como um todo. O erro mais comum que encontramos nas citações da mídia sobre resultados de IDH é a comparação entre resultados de diferentes anos. Vejamos: cada resultado, disposto em listagem, deve ser analisado em comparação e, unicamente, com a lista em que se aloca. O resultado do IDH varia entre 0 e 1 (melhorando em medida crescente). Dizer que um país X melhorou de um ano para outro porque seu coeficiente pulou de 0,75 para 0,78 em alguns anos não faz sentido. A fórmula vem sofrendo alterações a cada coleta, como já mencionamos e, não apenas isso, mas também, os resultados brutos só fazem sentido quando considerados o restante da lista, nomeadamente os resultados superiores ao do país em análise. Nem todos os países fizeram/fazem parte de todas as listas publicadas pelo PNUD. A Alemanha, por exemplo, não era contabilizada até poucos anos e, quando entrou no ranking, sem muita surpresa, ocupou as primeiras posições mundiais no Índice de Desenvolvimento Humano, mexendo com os resultados de posição dos países “abaixo” de si. Dizer que uma nação esteve em 30º lugar só faz sentido se a lista não tiver alteração dos elementos de análise até o 29º elemento. Por outra mão, a lista mundial tende a ficar cada vez mais completa e homogênea no que, salvaguardando às readaptações da fórmula, poderemos ter mais possibilidades interpretativas do ranking daqui certos anos. Em 2011, o Brasil ocupava a 84º posição na temida lista, numa pesquisa que considerou 187 países (18 países a mais do que a listagem anterior).
Aparte às limitações esboçadas, o IDH é o principal indicador social de que dispomos, a compor uma definição de desenvolvimento humano via as três dimensões observadas. É parcimonioso quanto ao número de variáveis que utiliza, sendo estas de fácil acessibilidade, bem como permite a comparação entre diferentes países e regiões por lista divulgada. Em julho de 2013 tivemos pública a lista de IDH-M no Brasil, que é o Índice de Desenvolvimento Humano por Municípios, calculado a partir de dados desagregados (cedidos pelo PNAD-IBGE). A vantagem do olhar sobre os dados desagregados é que o índice geral de um país tende a esconder suas particularidades, os diferentes níveis de cada região. Os dados desagregados podem ser selecionados com relação à renda, grupo racial e/ou étnico, gênero etc.
Alagoas obteve o menor Índice de Desenvolvimento Humano entre os estados do País, com o resultado de 0,63 numa escala de 0 a 13. A média nacional é de 0,71. Concentremo-nos neste Estado. Ao observarmos o Índice de Gini de Alagoas, notamos que este também é pior do que a média nacional. Numa escala de 0 a 1 (quanto mais próximo de 1, mais desigual é a amostra), o Gini (2010) do Brasil é de 0,59, enquanto o de Alagoas é de 0,63 (coincidentemente, o mesmo coeficiente de seu IDH).
Mais grave é quando desagregamos os dados dentro do Estado. A capital Maceió tem um IDH-M na grandeza de 0,72, o que não surpreende, posto ser a cidade onde se localiza a elite política financeira local, concentradora da renda e dos acessos à educação e à saúde em cerca de cinco bairros litorâneos, os cartões postais do turismo. O problema social pesa neste espaço entre o 0,72 de Maceió e o 0,63 de Alagoas. Cidades destacadas no Estado têm resultados que valem a pena mencionar: Porto Calvo (0,58); Penedo (0,63); Marechal Deodoro (0,64) e; Arapiraca, onde está parte da Universidade Federal de Alagoas (0,64). E, além destes municípios de destaque, passamos por resultados ainda mais deprimentes, como o da cidade de Olho D’água (0,50). Alagoas tem cinco municípios entre os piores do Brasil no que se refere a tais resultados. (PNUD, 2013).
Se compararmos Maceió a demais capitais da região Nordeste, vemos que o 0,72 da cidade fica abaixo das vizinhas fronteiriças Aracaju e Recife (0,77), ou de Fortaleza e Salvador (0,75). Voltemos aos níveis estaduais: realizamos o que em estatística habitua-se chamar de análise de clusters, que nada mais é do que a separação dos resultados estaduais em grupos de homogeneidade. Com os resultados do IDH-M de 2013, temos um primeiro grupo composto apenas pelos estados de São Paulo, Santa Catarina e pelo Distrito Federal (0,82 grupo). O segundo grupo é formado por estados diversos do centro-oeste, sudeste e sul, salva raras exceções, como o Amapá (0,78 grupo). O terceiro grupo concentra os estados do Norte e Nordeste (0,63 grupo). Logo, nota-se que o discurso de que o Nordeste tem “crescido” exponencialmente nos últimos anos prende-se ao fato de que as demais regiões também não são unidades estanques, no que o dinamismo de desenvolvimento nacional e regional ainda marca fortes diferenças entre as regiões, não apenas por termos segregado estes estados em três grupos mas, infelizmente, pela diferença substancial dos resultados entre eles.

Referências:

PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) (2010), Relatório de Desenvolvimento Humano. http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2010_PT_TechNotes_reprint.pdf

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) (2013), Índice de Desenvolvimento Humano por Município. www.ibge.gov.br



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1 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.
2 Já existem tentativas interessantes de um IDH ajustado à desigualdade, o IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade), mas ainda em estágio relativamente embrionário de aplicação. Para isso, buscou-se adequar a fórmula do Índice de Gini (Índice que mede a estratificação social) à fórmula do IDH. Entretanto, percebeu-se o impacto da vulnerabilidade da fórmula de Gini, criada a partir da curva de Lorenz que tem pouca sensibilidade matemática. Para se notar a diferença entre uma realidade e outra a partir do Índice de Gini é preciso que a realidade tenha mudado substancialmente - cada centésimo do Gini corresponde à demasiada alteração entre as sociedades estudadas. (Relatório de Desenvolvimento Humano, 2010, p. 227).

3 O Brasil tem cerca de 12% de taxa de analfabetismo. O estado de Alagoas tem 24%, isto é, o dobro do problema nacional.

domingo, 26 de maio de 2013

Cadernos do Sociofilo: entre a sociologia e a filosofia I


Em seu terceiro número, o Cadernos do Sociofilo, uma publicação do Laboratório do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), apresenta uma reflexão sobre as relações entre sociologia e filosofia. Abaixo, reproduzimos a introdução deste número,  de autoria de Frédéric Vandenberghe e Marcos Lacerda. A publicação completa pode ser acessada aqui

O núcleo de pesquisa Sociofilo nasceu em 2008 como um artefato de uma exigência burocrática. O nome, porém, escolhido em analogia com os Cafés Philo que se encontram na França e alhures, foi escolhido com hesitação. Somos sociólogos por vocação. De jeito nenhum queremos estimular a arrogância dos jovens teóricos. Nada pior do que um sociólogo que se acha filósofo! Se pudermos aprender alguma coisa da grande filosofia é a necessidade de praticar a “paciência do conceito”, esta aliança exemplar de rigor, humildade e especulação. Como os filósofos somos “obcecados textuais” (para reciclar uma frase justamente aplicada a Paul Ricoeur). Precisamente porque somos sociólogos por vocação e não filósofos por profissão, defendemos o direito de tratar das questões mais filosóficas dentro da sociologia mesmo. “Entre a sociologia e a filosofia”, tal é o título deste terceiro número dos Cadernos do Sociofilo, mas o que nos interessa, na verdade, é a filosofia dentro da sociologia e a sociologia dentro da filosofia. Precisamos não somente de uma lógica, uma ontologia e uma epistemologia sociológica, mas também de uma ética, uma estética, uma teologia, uma ideologia, uma política e uma pratica própria à sociologia. Da mesma maneira, pensamos que a maior parte da filosofia moral e política contemporânea carecem de uma teoria da sociedade, da intersubjetividade e da interação. No mínimo uma vez na vida e durante um tempo de reflexão intenso,como Descartes, o sociólogo tem que enfrentar as grandes questões filosóficas, metateóricas e metametodológicas que cercam a sociologia. De onde vem esta certeza que a sociedade existe realmente como realidade sui generis e que ela não é uma ficção, uma reificação que transforma um projeto cientifico em objeto auto-consistente? Como sabemos que não estamos sozinhos no mundo (solipsismo) e que podemos ter acesso à mente do outro? Qual é a relação entre o corpo e a mente, a linguagem e o pensamento, a pessoa e a identidade? Como podemos integrar os achados das ciências sociais numa visão complexa da totalidade? Será que a sociologia com sua visão implícita de uma sociedade justa e bem ordenada não é já uma filosofia moral e política que se ignora enquanto tal? Já que não há consenso entre os filósofos, será que na sociologia podemos evitar os debates entre materia- listas e idealistas, racionalistas e empiristas, realistas e nominalistas, universalistas e relativistas, liberais e comunitaristas?

Mesmo que não seja possível responder a estas questões metassociológicas numa pesquisa de campo ou com um questionário, estamos convencidos que a sociologia só pode ganhar se ela se autoriza a pensar sem complexos e sem diletantismo. O que queremos é uma teoria social que dialoga com a filosofia (como é o caso de Anthony Giddens, Randall Collins e Margaret Archer) e de uma filosofia que dialoga com a teoria social (como é o caso de Jürgen Habermas, Alasdair Macintyre e Paul Ricoeur) para tratar das questões fundamentais da disciplina que tem a ver, como a palavra indica, com os fundamentos da sociologia, com os pressupostos que sustentam as suas indagações. Já que há uma sociologia econômica, uma sócio-antropologia, uma sócio-linguistica e mesmo um sociologia clínica, por que recusar a existência de uma sociologia filosófica que investiga reflexivamente e conceitualmente as condições de possibilidade e os limites da sociologia? Se o filósofo ruim é aquele que raciocina no vazio, o bom sociólogo é aquele que pesquisa com consciência e que sabe dos limites da sua própria disciplina. Saber dos limites significa também se dar a liberdade de transgredi-los quando for necessário. Contra os franceses e os americanos que pensam a sociologia contra a filosofia, mas com os alemães, os italianos e os brasileiros recusamos a solução de continuidade entre o conceitual e o empírico, o ideal e o material, o transcendental e o experiencial. Com alguma ironia notamos a volta do recalcado francês na teoria social anglo-saxã e ainda mais nos chamados “estudos” (cultural studies, gender studies, etc.) que se inspiram abertamente na Frenchtheory para propor uma ontologia do presente. Na esteira de Georg Simmel, defendemos uma concepção aberta da sociologia que reconhece a legitimidade de uma sociologia filosófica. De fato, a sociologia é abordada por dois âmbitos filosóficos que transbordam a pesquisa empírica: O primeiro pertence à teoria do conhecimento da disciplina e “abrange as condições, os conceitos fundamentais, os pressupostos da pesquisa concreta que não podem ser apreendidos pela pesquisa, pois constituem sua base”; o segundo pertence à metafísica da pesquisa e “é dirigida as conclusões, conexões, problemas e conceitos que não tem lugar no contexto da experiência e do saber objetivo imediato”.[i] Extrapolando a fala de Simmel, poderíamos dizer que a sociologia não só trata do socius e da sociedade, mas que ela deve também tratar do logos e da razão. É graças a esta conexão com a razão que a sociologia se mantém aberta ao que a funda e ao que a transcende. Neste sentido, a tarefa de uma sociologia filosófica consiste, como diz Habermas, em vigiar e manter em aberto, dentro da ciência, o lugar da razão que não capitula diante da fragmentação acadêmica e mantém a preocupação com a totalidade.[ii]

Será que a sociologia pode ser pensada como um campo de conhecimento distinto tanto das ciências positivas de cunho empírico-descritivo quanto da filosofia “abstrata” de cunho transcendental-normativo? Como campo de conhecimento situado entre um pensamento indutivo e experimentalista, relativo e particular, ou na verdade tratar-se-ia de uma forma de pensamento com pretensão universalista, envolta em quadros dedutivos apriorísticos? Ou uma forma “intermediária”, indecisa, entre o conhecimento regulado empiricamente e as especulações de cunho metafísico? Serão estas as principais questões tratadas neste terceiro número dos Cadernos do Sóciofilo que é também o primeiro que trata da relação entre sociologia e filosofia. Teremos um segundo número em breve. Tínhamos apre- sentado nas outras duas edições, uma abordagem sobre o legado de Bourdieu para a sociologia contemporânea e a sugestão de uma nova dimensão do pensamento sociológico, atravessando os domínios micro e macro sociológico: a dimensão nano. A indagação sobre o legado de Bourdieu para a sociologia contemporânea em “Ainda somos bourdieuseanos” e as reflexões sobre um domínio além e aquém da micro (e, por extensão, da macro) sociologia no caderno sobre a “nanossociologia” conduziam nossas reflexões para o campo do pensamento mais “abstrato” e especulativo. Mas, ao mesmo tempo, nos exigia uma teoria geral da sociedade e a imersão em questões “concretas” da teoria sociológica, e mesmo em algumas das suas discussões mais contemporâneas, nos colocando, em certa medida, problemas e questões que iam muito além da polarização ação e estrutura, ou mesmo, se quisermos, uma sociologia empírica em contraposição a uma sociologia teórica. Neste novo número trataremos do tema espinhoso da relação entre a sociologia e a filosofia e começaremos justamente com um artigo que apresenta um modelo de análise sociológica e filosófica através da tríade metateoria, teoria social e teoria sociológica, escrito pelo sociólogo belga Frédéric Vandenberghe, intitulado Metateoria, teoria social e teoria sociológica.

O texto propõe um duplo movimento: de um lado “universalizar” a perspectiva sociológica, a pensando dentro do quadro da pretensão universalista filosófica; de outro lado, “relativizar” a filosofia, inserindo as suas reflexões e conceitos na dimensão concreta e relativa em que trabalha a sociologia. Neste sentido, não estaríamos nem naquela posição confortável que situa o pensamento filosófico numa condição “insituável”, tampouco estaríamos na posição – não menos confortável - que, sorrateiramente, faz da sociologia a autoridade do saber, na medida em que reduz o conhecimento às determinações sociais, ou sociológicas. Assim, “O movimento duplo de universalização (característico da sociologia filosofante) e de relativização (próprio da filosofia “sociologizante”) corresponde aos dois momentos complementares de uma crítica da razão sociológica que pretende enriquecer a sociologia com uma consciência aguda das suas condições de possibilidade, bem como de seus limites” (Cf. p.16). Tal situação liminar à filosofia sociológica ou à sociologia filosófica permite pensar o fundamento mesmo das ciências humanas e da condição humana na modernidade, sem com isso abandonar as pretensões objetivas da ciência e sistêmicas da razão. Foi por conta disso que obras como as de Karl Mannheim, Talcott Parsons, Pierre Bourdieu e Jürgen Habermas permanecem ainda hoje relevantes e fundamentais para o campo do pensamento em geral, incluindo aqui a própria filosofia.

Para que seja possível fazer tal movimentação, entre o “universalismo” filosófico e o “relativismo” sociológico é preciso se ater a três movimentos analíticos distintos, divididos da seguinte maneira: a) metateoria; b) teoria social e c) teoria sociológica. No primeiro movimento o autor destaca os pressupostos transcendentais da sociologia e os associa à filosofia, dividindo-os em ontológicas, epistemológicas, metodológicas, normativas e antropológicas. A teoria social se situa entre a metateoria e a teoria sociológica, fazendo a relação entre os pressupostos transcendentais e a análise de uma sociedade realmente existente, através da escolha definida de uma posição metateórica e da tentativa de integrar esta posição a uma teoria geral da sociedade. Isso a permite abranger um amplo leque de questões, tais como “a unidade da sociologia e sua relação com as ciências humanas; o pluralismo de paradigmas e escolas; a natureza e as formas da ação, das instituições e da estrutura social; a relação entre indivíduo e sociedade, agência e estrutura, ordem e conflito; os problemas da sociedade, da globalização e do pós-colonialismo; pós-modernismo, desconstrução, identidade etc”(Cf. 26). Ainda que os temas sejam amplos, a dimensão histórica e as variações históricas são fundamentais para a teoria social e é em relação a estes aspectos que ela se aproxima da teoria sociológica. Como já o dissemos, ela faz uma espécie de mediação entre a metateoria e a teoria sociológica, pois as grandes generalizações da teoria social “são a dobradiça que conecta as abstrações da metateoria às análises sociológicas do passado e do presente”. Por fim, a teoria sociológica tem uma dimensão mais “datada” e está diretamente associada ao advento da “sociedade moderna”, ao surgimento da “modernidade ocidental”, à lógica mesmo do que chamávamos até pouco tempo de “os tempos modernos”. A teoria sociológica deriva dos fenômenos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais da “modernidade”, especialmente as revoluções científicas, industrial e política e, inclusive, podemos pensar numa situação na qual com o “fim” da modernidade, a própria sociologia estaria condenada também. A sociologia e o próprio “humano”, ou melhor dizendo, os pressupostos quase-transcendentais que informam (ou informavam?) a antropologia filosófica.

A tríade complexa sugerida por Vandenberghe se apresenta como uma vigorosa alternativa ao já algo enfadonho debate que reduz o escopo da sociologia à dicotomia “agência” e “estrutura”, ao mesmo tempo em que consegue superar de forma elegante e clara a polarização sociologia empírica e sociologia teórica e até mesmo sociologia e filosofia. No entanto, permanecemos com a polarização “universalismo” e “relativismo”, que chamaremos aqui de aspecto transcendental e as- pectos empíricos da sociologia. É neste âmbito que se situa a reflexão de Daniel Chernilo, sociólogo chileno trabalhando na Universidade de Loughborough no Reino Unido, no segundo artigo dessa revista, “Universalismo: Reflexões sobre os fundamentos filosóficos da sociologia”. Nele, Chernilo se propõe retomar a pretensão universalista e a herança filosófica da sociologia, investigando o passado da sociologia e sua relação com as noções de “crise”, “modernidade” e os “direitos naturais” e, ao mesmo tempo, responder a alguns dos desafios normativos e conceituais da sociologia e da sociedade contemporânea, especialmente temas como o “relativismo”, o “desconstrucionismo”, o “pós-modernismo” e as teorias da “globalização”. Assim, inicialmente, o autor mostra o vínculo entre a noção de crise, o surgimento da sociologia e o problema do universalismo. A retomada da pretensão universalista da sociologia é apresentada através de sua relação com a pretensão universalista da filosofia dos direitos naturais. Esta relação se dá como afinidade eletiva e seletiva. A afinidade eletiva se explica pelo fato de ambas compartilharem a pretensão universalista. A afinidade seletiva pelo fato de que a sociologia “destrancendentaliza” e historiciza as pretensões da filosofia. É neste sentido que podemos dizer que a nascente sociologia é todavia uma forma de filosofia política que não renuncia à pretensão universalista que está o centro de sua própria tradição. Mas já não é filosofia política, pois que é também a nascente ciência empírica do social. O surgimento da sociologia se associa assim com a promessa de romper com os pressupostos metafísicos do direito natural, mantendo o ímpeto e a pretensão universalista da filosofia moral que fundamenta os direitos naturais. A questão do universalismo, portanto, é crucial para o desenvolvimento do projeto sociológico.

Do mesmo modo que em Vandenberghe, Chernilo mostra o caráter ambivalente da sociologia, entre a dimensão empírico-descritiva e a dimensão transcendental-normativa. O nosso próximo autor irá insistir no caráter ambivalente, o apresentando na sua dimensão aporética, realçando assim os seus aspectos mais contestáveis. Intitulado “Discurso sociológico da modernidade”, o artigo de Marcos Lacerda pretende mostrar a relação originária da sociologia com a constituição de “sujeições antropológicas” diretamente associadas à emersão do discurso das “ciências humanas” e do homem como sujeito-objeto do conhecimento, o duplo empírico-transcendental analisado por Foucault em As palavras e as coisas (2002 [1966]). O autor procura fazer uma analogia entre a figura do homem como duplo empírico-transcendental e o conceito de sociedade forjado pelos sociólogos, mostrando como a “sociedade dos sociólogos” é, em verdade, a versão sociológica do homem como duplo empírico-transcendental, sendo a sociedade objeto e pressuposto da análise sociológica, assim como o homem duplo empírico-transcendental, objeto e pressuposto da episteme moderna das ciências humanas. O artigo está dividido em quatro partes: a) A sociologia como discurso, onde se discute o caminho metodológico, se propondo a pensar a sociologia não como ciência, filosofia moral ou campo de conhecimento, mas como “discurso”; b) O homem como duplo empírico-transcendental, no qual se apresenta a constituição dessa “imagem de pensamento”, através, sobretudo, das reflexões de Foucault em “As palavras e as coisas” c) Como é possível a sociedade?, parte do artigo em que o autor discute as diferentes formas como a sociologia forjou o conceito de sociedade, em suas dimensões ontológica, histórica, epistemológica, normativa, lógica e antropológica; e, por fim, d) O social como duplo empírico-transcendental, parte na qual o autor sintetiza o argumento da analogia entre a figura do homem como duplo empírico-transcendental e a definição sociológica de sociedade.

O último artigo destes Cadernos é o de Gabriel Peters, in- titulado “A via mundana para o sublime: preliminares a uma sociologia psicológica do talento e da genialidade”. Nele, Peters apresenta uma instigante análise sobre a questão do “gênio” em suas mais diferentes facetas (artes, esportes, ciências, práticas cotidianas etc.), admitindo de antemão a relativa equivalência de fatores biológicos, psíquicos e sócio-lógicos na sua constituição. Afinal de contas, haveria um fator causal que definiria o gênio como gênio? Seriam os fatores sociais, a coerção estrutural da sociedade, ou a dimensão simbólico-cultural? Conjunto de técnicas aprendidas, capacidade cognitiva inata, transcendência sobre-humana, aquisição de competências contingentes, relação ambiente (físico, social, cultural, político, econômico etc.) e ação/reação de genes etc.? Como se pode ver, há muitas possibilidades e o conjunto de reflexão sobre o tema em algum momento se ancorou em uma delas, ou mesmo construiu combinações e arranjos os mais variados entre elas. Em certa medida, o artigo de Peters se apresenta dessa maneira. Desfilando elegantemente entre uma miríade de autores, tais como Platão, Valéry, Ericson, Musil, Homero, Lahire, Bourdieu e muitos outros mais, o autor sugere como forma de pensar o problema a constituição de uma “sociologia psicológica” ancorada numa perspectiva “nanossociológica”, propondo uma alternativa en- tre abordagens hiper-coletivistas e hiper-individualistas, sem recorrer com isso a argumentos hiperconstrutivistas. Como o leitor poderá perceber, o tema do gênio nos coloca diante de uma escolha fundamental: estamos falando de uma condição “natural” ou “cultural”? “Genética” ou “social”? Peters procura superar o impasse, afirmando que “A aquisição de capacidades supõe capacidades (inatas) de aquisição, embora qualquer fronteira precisa entre inato e adquirido seja explodida diante do fato de que as influências ambientais sobre o modo de expressão do material genético operam desde cedo, antes mesmo do nascimento, assim como diante do caráter cumulativo e estratificado das habilidades aprendidas via socialização, construídas, por assim dizer, uma sobre as outras”(Cf. p.218). É neste sentido que o autor pode afirmar a relevância das abordagens biológicas do comportamento humano, pois “nossos organismos operam como base (ou causa formal, no sentido aristotélico) de quaisquer processos subjetivos e práticos que descrevamos em linguagem psicológica e sociológica” (idem), o que o permite, não só abandonar um “determinismo” biológico ou genético (algo já há tempos abandonado por biológicos e geneticistas), mas se distanciar do hiperconstrutivismossociocêntricos que, por vezes, se disfarçam com uma roupagem relativista, tentando esconder o sociologismo ou culturalismo que o fundamenta.

Poderíamos dizer que tanto Frédéric Vandenberghe quanto Daniel Chernilo apresentam alternativas vigorosas para algumas das questões contemporâneas com que se defronta a sociologia, buscando superar o relativismo desconfiado e niilista do“pós-modernismo”, forjando um novo caminho para o pen- samento sociológico. A sociologia, assim, seria algo como um revigoramento crítico do universalismo filosófico e não a sua negação relativista, culturalista ou historicista. Nos dois casos, nos parece, o movimento de retorno às pretensões universalistas da sociologia conduz não só a uma retomada e explicitação dos pressupostos transcendentais que informam o ofício do sociólogo, mostrando assim a sua relação de dependência com a tradição de pensamento filosófico, como também nos apresenta a sua relativa independência, na medida em que a sociologia teria trazido para o pensamento filosófico aspectos da realidade social, histórica, cultural e política capazes de fortalecer, conferindo mais densidade e complexidade ao universalismo filosófico. Já Lacerda e Peters parecem desconfiar desse universalismo sociológico. O primeiro claramente associa a noção de social a uma concepção de “homem” que só é “universal” enquanto acontecimento discursivo ou dispositivo estratégico hegemônico e o segundo apresentauma necessidade de se rever a perspectiva “sócio-cêntrica”, admitindo sem culpa a importância de fatores biológicos e até mesmo da gramática gerativa de Chomski na “formação do gênio”. Poderíamos, por fim, como tentativa de sintetizar – de um modo bem parcial e assumidamente incompleto, diga-se de passagem – as principais ideias dos artigos, dizer que os dois primeiros se apresentam como soluções vigorosas da crise de legitimidade da sociologia como campo de conhecimento, renovando a sua dimensão universalista, enquanto que os dois últimos artigos já não falam mais em termo de crise do paradigma sociológico e de uma possível superação, mas de mutação deste paradigma, sendo que Peters sugere tal mutação na forma do texto, na estrutura narrativa, no formato ensaístico do artigo (além das referências bibliográficas heterodoxas e da coragem e ousadia de certas afirmações), e Lacerda a apresenta como argumento central do seu artigo, associando a sociologia às “sujeições antropológicas” dos discursos filosóficos da modernidade, deixando implícita a necessidade de uma “libertação” dessas sujeições, quem sabe através de um discurso sociológico pós-humano e, consequentemente, pós-social e pós-sociedade.

Mas, se de fato podemos mostrar algumas das diferenças entre os artigos, não podemos deixar de dizer que há um consenso que os une, a saber, a convicção de que pensar a “origem” e o “sentido” da sociologia nos leva inevitavelmente a uma forma de pensamento altamente reflexivo e desde já distante do que costuma se entender por “ciência” e até mesmo por “sociologia”, o que nos permite desvencilhar de uma perspectiva mais fechada característica da “ciência que não pensa”, para lembrar a bela expressão de Heidegger. Em certa medida – e guardada as devidas proporções – é este o objetivo da terceira edição dos Cadernos do Sociofilo, dedicado a pensar as relações de diferença e complementaridade entre a sociologia e a filosofia.


[i] Simmel, G. (2006): Questões fundamentais da sociologia, p. 36 (Rio de Janeiro: Zahar).
[ii] Habermas, J. (1983):"A Filosofia como Guardador de Lugar e como Intérprete", in Consciência Moral e Agir Comunicativo, pp. 17-35 (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro).

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Compreensão antropológica e objetivação participante: mais um estudo de cazzo sobre a sociologia reflexiva de Bourdieu



O delicado equilíbrio entre a objetividade e o tornar-se nativo na compreensão da alteridade


Por Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ)

O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de padrões de conduta significativamente diferenciados daqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência histórico-descritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição mais ostensivamente epistêmica. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]).

O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia. Como Dumont, Bourdieu passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sociais dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo, transpondo-a da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988).

Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que a cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de experiência humana. A passagem pela antropologia também é relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos. A antropologia cultural impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374). Tal captação, continua o antropólogo polonês, estaria calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas seria dependente também de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo.

Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu para a criação de um mito: o “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão de toda espécie de insatisfações intensas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como demonstração acachapante da implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen [a compreensão] quando o einfühlen [a empatia] desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248; Peters, 2011: 324) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica, concebendo o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados.

A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada.

Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274).

Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”. A objetivação participante é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias de entendimento, bem como sobre os interesses que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria a ele controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir.

Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a ideia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:
Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).
Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do nativo. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada. Isto vale, em particular, para o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-no-mundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123) - por exemplo, as caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem na teoria da escolha racional ou no “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21).

Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação hermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante, capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação (social e epistêmica) do sujeito cognoscente com tal objeto não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico, no caso da investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método.

Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas das práticas sociais que são invisíveis à cognição consciente dos agentes, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito.

É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post.

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Bibliografia
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________Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
PETERS,G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu
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quinta-feira, 30 de junho de 2011

Admirável senso comum? Agência e estrutura na sociologia fenomenológica



Por Gabriel Peters - doutorando, IESP-UERJ

Artigo originalmente publicado em Ciências Sociais Unisinos 47(1):85-97, janeiro/abril 2011. Cedido ao Cazzo pelo autor.

Resumo

O artigo realiza uma incursão seletiva ao terreno plural das microssociologias interpretativas, perfazendo uma análise crítica das contribuições à teoria social legadas pela sociologia fenomenológica de Alfred Schutz e pelo desdobramento desta na abordagem etnometodológica de Harold Garfinkel, com foco especial sobre o problema fundacional da relação entre a ação individual subjetivamente propelida, de um lado, e os contextos societários nos quais ela se desenrola, de outro. No jargão que se tornou hegemônico na teoria sociológica desde a emergência do “novo movimento teórico” (Alexander), o que pretendo fazer é discutir possibilidades e limites da sociologia fenomenológica no enfrentamento da questão do relacionamento entre agência e estrutura.

A inescapável dimensão compreensiva da sociologia

Desde sua “dupla fundação” (Vandenberghe, 1999, p. 34) pelo positivismo de Comte na França e pelo historicismo hermenêutico de Dilthey na Alemanha, a paisagem da sociologia permanece atravessada pela divisão entre paladinos do monismo ou naturalismo epistemológico – isto é, da ideia de que as ciências sociais devem trabalhar sob a égide dos mesmos parâmetros metodológicos vigentes nas ciências da natureza – e defensores do dualismo ou separatismo epistêmico – os quais, defrontando- se com especificidades iniludíveis da vida social e, por extensão, dos tipos de inquérito que podem ser feitos sobre esta, defendem a perspectiva de que o conhecimento sociológico, embora possa ser fidedignamente caracterizado como científico, possui um status gnosiológico significativamente distinto daquele da investigação científico-natural. As diferentes concepções metateóricas acerca do status epistêmico da sociologia também estiveram, desde cedo, associadas a desacordos fundamentais quanto às caracterizações ontológicas das entidades e processos constitutivos do mundo societário, bem como quanto às orientações metodológicas tidas como heuristicamente mais fecundas para o estudo empírico desse universo.

Com efeito, é possível propor a tese de que a prima ratio da posição antimonista encontra-se em um insight ontológico substantivo acerca da ação e da experiência humana em sociedade, insight fraseado de inúmeras formas ao longo da teoria social do século XX, mas que poderíamos expressar assim: di- ferentemente dos fenômenos estudados pelas ciências naturais, os atores humanos que constituem o objeto da sociologia possuem, eles mesmos, concepções e representações acerca do próprio comportamento e dos seus múltiplos contextos de ação, concepções e representações (discursivamente articuladas ou tacitamente supostas) que não seriam elementos simplesmente adjacentes às suas condutas, mas instâncias constitutivas das suas atividades e, portanto, dos mecanismos pelos quais o mundo social se reproduz ou transforma. Nesse sentido, o naturalismo epistêmico preconizado por Comte, Durkheim e tutti quanti negligenciaria a especificidade que as ciências sociais derivam do seu caráter hermenêutico (do grego hermeneus, que significa “intérprete”) ou compreensivo, isto é, do fato de que elas têm como uma de suas dimensões essenciais e inescapáveis a tarefa de interpretação dos significados (inter)subjetivos engendrados pelos seres humanos no curso de sua existência conjunta.

Se fosse necessário encontrar um patrono para a defesa do projeto teórico-metodológico da sociologia compreensiva, concebida em sentido lato ou ecumênico (isto é, para além da sua identificação exclusiva com a versão formulada pelo seu ad- vogado mais famoso: nosso velho herói Max Weber [2000, cap. 1]), não faríamos mal em escolher Giambattista Vico como um dos mais fortes candidatos ao posto. Em Scienza Nuova, publicada na primeira metade do século XVIII, o sábio napolitano inaugurou uma espécie de humanismo epistemológico que contrapunha a exterioridade insuperável do modus cognoscendi científico-natural ao acesso à vida interior de atores conscientes no estudo das ações e produtos históricos do anthropos (Merquior, 1983, p. 15-19). Tal tema veio à baila com força na famosa controvérsia, que chacoalhou a academia alemã no final do século XIX e início do XX, acerca do estatuto epistemológico das chamadas ciências do espírito ou da cultura (Geisteswissenschaften) em relação às ciências naturais (Naturwissenschaften). Foi Max Weber quem assumiu, talvez, a posição mais singular nesse debate, a qual se diferencia tanto do monismo naturalista cego ao caráter impregnado de significado do mundo social (ou, ao menos, às implicações metodológicas desse fato) quanto do dualismo metodológico radicalizado de representantes destacados do historicismo germânico, como Rickert e o próprio Dilthey. Este último, embora um pensador dos mais complexos cuja contribuição resiste à simplificação, passou à história da disciplina sociológica sobretudo como defensor de uma cisão radical entre Erklären e Verstehen, isto é, entre os procedimentos causal-explicativos das ciências naturais e os procedimen- tos compreensivos das ciências humanas. No que toca a esses últimos, Dilthey também adquiriu o vulto de principal teórico da empatia como caminho de elucidação das ações desenroladas em universos sócio-históricos diversos, concebidos, sob a influência de Hegel, como exteriorizações do espírito humano as quais reclamariam, para a sua compreensão, a reativação psíquica dos significados subjetivos que elas coagulam historicamente (Outhwaite, 1985, p. 23-31). Weber, por outro lado, ao mesmo tempo em que reconhecia a especificidade do empreendimento científico-social, não concluía daí que o inquérito sociológico disporia de métodos radicalmente distintos daqueles presentes nas ciências naturais ou substituiria a explicação causal empiricamente verificada pelo intuicionismo empático puro e simples. Tanto Schutz como Parsons permaneceram, cada um à sua sin- gular maneira, fiéis à proposta weberiana de incorporar o ponto de vista subjetivo do ator como central à teoria sociológica (e como differentia specifica em relação às ciências da natureza) sem abdicar das exigências lógicas e metodológicas implicadas no projeto de uma ciência da vida social.

Para ler o artigo completo, clique aqui.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Breve Metametodologia das Ciências Sociais



Acaba de ser lançado o primeiro número da Revista Latinoamericana de Metodología de la Investigación Social, editada em Buenos Aires. Abaixo, a introdução de artigo de minha autoria, cujo texto integral pode ser acessado aqui, juntamente com os demais.

Cynthia Hamlin

Resumo: O propósito deste artigo é demonstrar que as questões metodológicas, entendidas no sentido da reflexão crítica de todas as etapas envolvidas no processo de pesquisa, estão no cerne das ciências sociais desde sua institucionalização. A fim de demonstrar isso, discorro brevemente sobre o processo de institucionalização da sociologia a partir da obra dos chamados “pais fundadores”. Argumento que as posições metodológicas destes autores estão indissociavelmente ligadas a questões ontológicas, epistemológicas e teóricas marcadas por um debate implícito entre cientificismo e humanismo, com ênfase em uma concepção fundamentalmente positivista de ciência. Esta concepção torna-se hegemônica com a internacionalização da sociologia no Pós-Guerra, patrocinada, sobretudo, pelo governo dos EUA, por agências como a Ford e a Rockefeller, assim como por organizações internacionais como a Unesco. A partir da década de 1960, o cientificismo positivista é questionado, abrindo espaço para concepções alternativas de ciência e de tradições de caráter mais humanístico, conforme representado pelo pragmatismo, pela fenomenologia, pela filosofia da linguagem, dentre outros. Por fim, a crítica aos elementos da filosofia moderna que fundamentam a produção científica, a partir da década de 1980, terminam por expandir as reflexões metodológicas, no sentido da inclusão de questões relativas aos significados da ciência, de suas instituições, tecnologias, aplicações e outros elementos relativos à cultura e à prática científica.

Introdução

As ciências naturais falam de seus resultados. As ciências sociais, de seus métodos.

A epígrafe acima, atribuída a Henri Poincaré (cf. Gerring, 2001:xi),  aponta para o caráter reflexivo das ciências sociais, um caráter interpretado por muitos como sinal de sua imaturidade intrínseca. Tal interpretação deriva de uma perspectiva extremamente simplista de acordo com a qual a reflexão acerca de questões supra-empíricas - relativas, por exemplo, à formação de conceitos, à natureza das relações causais, do que constitui a realidade, a verdade, a objetividade, assim como das técnicas e instrumentos mais adequados para apreender o real – devem ser meramente pressupostas, mas nunca debatidas entre os cientistas naturais, exceto naquilo que Thomas Kuhn (1989) caracterizou como crises paradigmáticas. Ainda que autores como o próprio Kuhn e, por vias bastante diversas, Gadamer, Latour, dentre outros, tenham contribuído para a ideia de que essas práticas são irremediavelmente contaminadas por preconceitos e visões de mundo, permanece como hegemônica a noção de que as questões metodológicas podem e devem ser excluídas das ciências naturais[1]

Em contraste com isso, a metodologia sempre assumiu um papel central nas ciências sociais. Pretendo argumentar aqui que, longe de representar um sinal de imaturidade, as questões metodológicas não apenas são constitutivas destas, mas representam uma prática reflexiva saudável. Neste sentido, o propósito deste artigo é tentar promover uma reflexão sobre o papel da metodologia nas ciências sociais: uma metametodologia, por assim dizer. Dadas as limitações de espaço, limitar-me-ei a uma breve exposição da forma como as questões metodológicas estiveram no cerne do processo de institucionalização das ciências sociais (da sociologia, em particular), ajudando a delimitar o contorno da área. O foco do artigo refere-se, portanto, àquelas gerações de sociólogos mais diretamente envolvidas no processo de institucionalização da sociologia, o que significa dizer também em seu processo de internacionalização no Pós-Guerra. 

De forma geral, o termo “metodologia” refere-se a duas áreas de interesse nas ciências sociais: “questões derivadas de, e relacionadas a, perspectivas teóricas, como a metodologia funcionalista, marxista ou feminista; e, segundo, questões de técnicas, conceitos e métodos de pesquisa específicos” (Outhwaite e Turner, 2007: 2). Longe de caracterizarem uma mera descrição de métodos e técnicas de pesquisa, as reflexões metodológicas estão indissociavelmente ligadas a um conjunto de questões metateóricas relacionadas à ontologia, à epistemologia e à teoria, quer isso seja feito de forma explícita ou não. De fato, como a própria origem etimológica do termo “método” (de meta - depois, além - e hodos, caminho) indica, a metodologia refere-se ao estudo dos caminhos adotados na pesquisa: trata-se de uma espécie de  elemento de ligação entre o empírico e o supra-empírico, entre a realidade e tudo aquilo que é construído e acionado por nós para apreendê-la. Sendo assim, diz respeito à reflexão sobre todas as etapas envolvidas na produção de conhecimento sobre o mundo empírico que, no caso das ciências sociais nascentes, assumiu características particulares.


[1] Não se trata, obviamente, de uma ausência de reflexão acerca dos significados das práticas dos cientistas, conforme atestam a obra de autores tão diversos quanto Bruno Latour, Steve Fuller ou Michel Foucault, mas do fato de que essas reflexões são efetuadas de “fora” da ciência. Como Harding certa vez declarou em uma entrevista, “as tradições dominantes na ciência sempre evitaram lidar com os significados da ciência. [...] Elas tentaram restringir suas preocupações às referências da ciência [e] consideram ‘não-cientificos’ seus significados, instituições, tecnologias, aplicações e uma série de aspectos da ciência relativos à cultura e à prática” (Hirsch e Olson, 1995). Exceções importantes têm, entretanto, aparecido, como é o caso de Anne Fausto-Sterling, cujas reflexões acerca das políticas de gênero na construção de conceitos etc. são efetuadas de “dentro” da biologia (cf. Fausto-Sterling, 2000).

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Marco teórico não foi feito para humilhar ninguém! (meras notas para um futuro e talvez improvável artigo)



Luciano Oliveira

O título é uma paródia de uma frase célebre que Ferreira Gullar teria dito em relação à crase: ela não foi feita para humilhar ninguém; o marco teórico também não. Mas, pelo que vejo, ele continua maltratando desnecessariamente nossos candidatos à glória sociológica. Assim, dou minha pequena e humilde contribuição sobre o assunto, esperando ser de alguma utilidade.

Como ocorre com tudo na vida, é melhor começarmos por esclarecer o significado dos termos do assunto que estamos tratando - como, aliás, recomendava Voltaire, um francês que nasceu antes de Derrida! Ocorre que, depois de uns vinte anos metido nesse negócio de orientação, ainda me surpreendo com certas perguntas que orientandos meus me fazem. Dou como exemplo uma que me foi feita recentemente: “Professor, meu trabalho é sobre democracia. O Senhor [nesses tempos de hoje, alguns me tratam de Você] acha que Bobbio é o meu marco teórico?” Quando digo, com toda sinceridade, que não sei, eles acham que estou gozando. Não estou.

Começando do começo, marco teórico é uma tradução supostamente literal do inglês theoretical framework. Disse supostamente porque Cynthia Hamlin, que sabe muito mais inglês e entende dessas coisas muito mais do que eu, observou-me certa vez que, nesse caso, não deveríamos dizer “marco”, e sim “moldura”. Dá no mesmo. Voltairianamente eu direi que isso não importa, já que a tradução que lhe demos foi essa e que, nesse caso, esse é o sentido de marco teórico: theoretical framework. Mas o que é isso e como chegou até nós?

Acho... (mas só acho, porque não pesquisei a coisa a fundo e imagino que pessoas como Silke Weber e Heraldo Souto Maior sabem melhor do que eu se é isso mesmo) ... acho, como dizia, que a expressão aportou entre nós no início dos anos 70, período em que, sob o regime militar, estruturou-se em termos nacionais a pós-graduação brasileira, momento em que os usos e costumes da graduation (não sei se se diz assim!) americana teve uma influência nos usos e costumes que terminamos adotando por aqui. Pelo menos em termos de forma, pois no que diz respeito a conteúdos, continuamos ainda hoje reverenciando mais os europeus do que os americanos.

Pois bem. No seu contexto original, theoretical framework é uma expressão que se insere no estilo que aqui costumamos chamar, um tanto depreciativamente, “positivista” de fazer ciência, em que uma teoria já assentada gera novas hipóteses de pesquisa que são testadas. O modelo, acho (quase tudo neste texto é “achismo”, como já devem ter notado), vem das chamadas ciências “duras”, “normais” (química, física etc.), como as chamou Thomas Kuhn, em que os cientistas trabalham dentro de determinados paradigmas “unanimemente” aceitos e nos quais se inserem, elaborando novas hipóteses e espichando o saber acumulado para novos objetos, o que vai gerando novas hipóteses que por sua vez etc. etc.

Tudo é muito certinho na teoria e na prática pode não ser bem assim (como acho que Bruno Latour tem enfatizado), mas é razoavelmente assim.

Nas ciências “anormais”, “moles” (as ciências sociais), dentro das quais nos situamos, a coisa é bem mais complicada, até porque não existem paradigmas universalmente compartilhados. Na verdade não existe uma coisa chamada A Sociologia, mas vários autores, tradições, escolas, grupos e grupinhos que lançaram sobre o mundo e vários dos seus objetos sociais o que chamaria de “olhar sociológico” (expressão que prefiro a Sociologia – que simplesmente não existe!), olhar que qualquer um de nós pode adotar para também mirar análogos objetos, geralmente com a ajuda deles ou de um deles, ou simplesmente de uma frase de um deles etc. etc. Isso seria o famoso “marco teórico”, cuja aplicação, nos moldes que alcunhei de “positivista”, nem sempre é fácil, até porque as formulações dos autores que adotamos não costumam ter o rigor que se observa nas outras ciências.

Há casos, porém, em que isso acontece. Lembro um.

No seu famoso “Carnavais, Malandros e Heróis”, Roberto DaMatta escreve uma série de ensaios que são o desenvolvimento de brilhantes “insights” sobre o comportamento do brasileiro no que ele chama de casa e de rua (ou seja, na rua, nos comportamos como se estivéssemos na casa da Mãe Joana...) Mas a base empírica do seu trabalho é bem chochinha. Se não me engano (e como isso não chega a ser um artigo acadêmico estou me desonerando da trabalheira de localizar a referência), se não me engano, como dizia, ele se refere a entrevistas com alunos, amigos, conhecidos etc., tudo sem maior rigor ou controle. Pois bem. Faz alguns anos um sujeito chamado Alberto Carlos Almeida pegou esses insights de DaMatta e transformou-os em hipóteses empíricas, com indicadores e tudo o mais, e saiu por aí entrevistando gente. Dessa vez tudo sob controle. O resultado é um livro chamado A Cabeça do Brasileiro, que comprei mas ainda não li (aí... às vezes me desespero pensando em todos os livros que não lerei na vida, porque a arte é longa, mas a vida é breve!) e portanto não sei o que dizer desse exercício de aplicação de um marco teórico específico. Cito apenas o caso como exemplo. Quem quiser conferir o resultado, bom trabalho!

Voltando à história de Bobbio com que comecei.

O meu inocente aluno achava que, como ele escreveu bastante sobre democracia, ele, o aluno, que também gostaria de escrever sobre o tema, Bobbio iria servir.

Respondo-lhe agora.

Pode, sim, mas depende do seu objeto de pesquisa. Poxa, pra começo de assunto, pela vastidão, antiguidade e imensidão do que existe sobre o assunto, democracia não é exatamente um objeto de pesquisa, mas uma área temática. Lógico que, eventualmente, pode sim ser um objeto de pesquisa. Mas isso não é coisa para principiantes. Só para dar um exemplo, pensem num outro tema igualmente vasto: a justiça. Pô!, imaginem o quanto é necessário de erudição, experiência, tempo, talento etc. etc. para escrever uma obra como A Teoria da Justiça de John Rawls... É a obra de uma vida!

Voltemos ao italiano.

Bem, Bobbio pode ou não ser um marco teórico? Pode. Mas o que de Bobbio? Pelo que já conheço, meu aluno é a favor da democracia e vai fazer uma leitura laudatória de Norberto, realçando o quanto ela e ele são importantes... Vai também, pela experiência que já tenho, juntar num mesmo saco Habermas, Rousseau, Schumpeter, Marilena Chauí... É uma mistura de feijoada com salada que não leva a nada!

Mas Bobbio pode, sim, ser um marco teórico, insisto. Tudo vai depender do corte. Dou um exemplo.

Num dos seus livros, escrito se não me engano (mais preguiça de ir procurar...) nos anos 80, A Era dos Direitos, Bobbio faz uma afirmação sobre a universalidade dos direitos humanos que se tornou problemática na era do multiculturalismo que estamos vivendo. Diz ele mais ou menos que, na atualidade (lembrem que era há trinta anos...), a questão dos direitos humanos não é mais a do seu fundamento, “agora” aceito por todos, mas de sua realização. Ora, alguém pode, a partir dessa afirmação, transformá-la em hipótese de pesquisa, problematizá-la à luz do que está acontecendo no mundo de hoje (basta pensar no Irã daquele presidente cujo nome não sei escrever - acho que Lula também não -, aquele que parece um cego de feira), e fazer um trabalho bem interessante que, eventualmente, dependendo do talento do autor, pode até ser genial! Bobbio seria, nesse caso, um marco teórico – ainda que fosse para ser contrariado.

Foi o que uma vez aconteceu comigo.

Eu já passei duas vezes na vida por essa angústia do marco teórico: uma no mestrado, outra no doutorado. Conto rapidamente.

O mestrado, primeiro. Era na área da Sociologia Jurídica e, na época (começo dos anos 80), Boaventura de Souza Santos, que havia feito uma pesquisa sobre uma experiência de justiça informal numa favela do Rio de Janeiro operada pela Associação de Moradores local, estava na moda. Elegi-o como meu marco teórico. O conceito-chave do dito era o de “pluralismo jurídico”, que virou uma coqueluche entre os acadêmicos da minha área. O objeto empírico que elegi foi a polícia – ou seja, comissariados de polícia em bairros populares do Recife que também exerciam uma espécie de “justiça informal”, resolvendo pendengas das chamadas classes populares. Pois bem, no decorrer do trabalho de campo dei-me conta de que o conceito de “pluralismo jurídico”, cuja especificidade era a existência de um direito operado fora dos aparelhos de estado (a associação de moradores), não servia para mim! Afinal, que instituição mais estatal do que a polícia?... Não sem angústia, abandonei-o!

A outra experiência, a do doutorado, foi “melhor” sucedida. Meu tema eram os direitos humanos e o pensamento político de esquerda no Brasil. Meio acidentalmente (não é o caso aqui de relatar todas as peripécias intelectuais de então), cheguei a um texto de Claude Lefort, “Direitos do Homem e Política”, que parecia caber como uma luva no meu objeto. E coube! O meu marco teórico foi aplicado e confirmado por meus dados!

Fico por aqui.

Se adotei uma linguagem um tanto “esportiva” para escrever sobre tão grave assunto, é porque acho cada vez mais que, como diria Guimarães Rosa, “a alegria é o vau do mundo”!