Luciano Oliveira
O título é uma paródia de uma frase célebre que Ferreira Gullar teria dito em relação à crase: ela não foi feita para humilhar ninguém; o marco teórico também não. Mas, pelo que vejo, ele continua maltratando desnecessariamente nossos candidatos à glória sociológica. Assim, dou minha pequena e humilde contribuição sobre o assunto, esperando ser de alguma utilidade.
Como ocorre com tudo na vida, é melhor começarmos por esclarecer o significado dos termos do assunto que estamos tratando - como, aliás, recomendava Voltaire, um francês que nasceu antes de Derrida! Ocorre que, depois de uns vinte anos metido nesse negócio de orientação, ainda me surpreendo com certas perguntas que orientandos meus me fazem. Dou como exemplo uma que me foi feita recentemente: “Professor, meu trabalho é sobre democracia. O Senhor [nesses tempos de hoje, alguns me tratam de Você] acha que Bobbio é o meu marco teórico?” Quando digo, com toda sinceridade, que não sei, eles acham que estou gozando. Não estou.
Começando do começo, marco teórico é uma tradução supostamente literal do inglês theoretical framework. Disse supostamente porque Cynthia Hamlin, que sabe muito mais inglês e entende dessas coisas muito mais do que eu, observou-me certa vez que, nesse caso, não deveríamos dizer “marco”, e sim “moldura”. Dá no mesmo. Voltairianamente eu direi que isso não importa, já que a tradução que lhe demos foi essa e que, nesse caso, esse é o sentido de marco teórico: theoretical framework. Mas o que é isso e como chegou até nós?
Acho... (mas só acho, porque não pesquisei a coisa a fundo e imagino que pessoas como Silke Weber e Heraldo Souto Maior sabem melhor do que eu se é isso mesmo) ... acho, como dizia, que a expressão aportou entre nós no início dos anos 70, período em que, sob o regime militar, estruturou-se em termos nacionais a pós-graduação brasileira, momento em que os usos e costumes da graduation (não sei se se diz assim!) americana teve uma influência nos usos e costumes que terminamos adotando por aqui. Pelo menos em termos de forma, pois no que diz respeito a conteúdos, continuamos ainda hoje reverenciando mais os europeus do que os americanos.
Pois bem. No seu contexto original, theoretical framework é uma expressão que se insere no estilo que aqui costumamos chamar, um tanto depreciativamente, “positivista” de fazer ciência, em que uma teoria já assentada gera novas hipóteses de pesquisa que são testadas. O modelo, acho (quase tudo neste texto é “achismo”, como já devem ter notado), vem das chamadas ciências “duras”, “normais” (química, física etc.), como as chamou Thomas Kuhn, em que os cientistas trabalham dentro de determinados paradigmas “unanimemente” aceitos e nos quais se inserem, elaborando novas hipóteses e espichando o saber acumulado para novos objetos, o que vai gerando novas hipóteses que por sua vez etc. etc.
Tudo é muito certinho na teoria e na prática pode não ser bem assim (como acho que Bruno Latour tem enfatizado), mas é razoavelmente assim.
Nas ciências “anormais”, “moles” (as ciências sociais), dentro das quais nos situamos, a coisa é bem mais complicada, até porque não existem paradigmas universalmente compartilhados. Na verdade não existe uma coisa chamada A Sociologia, mas vários autores, tradições, escolas, grupos e grupinhos que lançaram sobre o mundo e vários dos seus objetos sociais o que chamaria de “olhar sociológico” (expressão que prefiro a Sociologia – que simplesmente não existe!), olhar que qualquer um de nós pode adotar para também mirar análogos objetos, geralmente com a ajuda deles ou de um deles, ou simplesmente de uma frase de um deles etc. etc. Isso seria o famoso “marco teórico”, cuja aplicação, nos moldes que alcunhei de “positivista”, nem sempre é fácil, até porque as formulações dos autores que adotamos não costumam ter o rigor que se observa nas outras ciências.
Há casos, porém, em que isso acontece. Lembro um.
No seu famoso “Carnavais, Malandros e Heróis”, Roberto DaMatta escreve uma série de ensaios que são o desenvolvimento de brilhantes “insights” sobre o comportamento do brasileiro no que ele chama de casa e de rua (ou seja, na rua, nos comportamos como se estivéssemos na casa da Mãe Joana...) Mas a base empírica do seu trabalho é bem chochinha. Se não me engano (e como isso não chega a ser um artigo acadêmico estou me desonerando da trabalheira de localizar a referência), se não me engano, como dizia, ele se refere a entrevistas com alunos, amigos, conhecidos etc., tudo sem maior rigor ou controle. Pois bem. Faz alguns anos um sujeito chamado Alberto Carlos Almeida pegou esses insights de DaMatta e transformou-os em hipóteses empíricas, com indicadores e tudo o mais, e saiu por aí entrevistando gente. Dessa vez tudo sob controle. O resultado é um livro chamado A Cabeça do Brasileiro, que comprei mas ainda não li (aí... às vezes me desespero pensando em todos os livros que não lerei na vida, porque a arte é longa, mas a vida é breve!) e portanto não sei o que dizer desse exercício de aplicação de um marco teórico específico. Cito apenas o caso como exemplo. Quem quiser conferir o resultado, bom trabalho!
Voltando à história de Bobbio com que comecei.
O meu inocente aluno achava que, como ele escreveu bastante sobre democracia, ele, o aluno, que também gostaria de escrever sobre o tema, Bobbio iria servir.
Respondo-lhe agora.
Pode, sim, mas depende do seu objeto de pesquisa. Poxa, pra começo de assunto, pela vastidão, antiguidade e imensidão do que existe sobre o assunto, democracia não é exatamente um objeto de pesquisa, mas uma área temática. Lógico que, eventualmente, pode sim ser um objeto de pesquisa. Mas isso não é coisa para principiantes. Só para dar um exemplo, pensem num outro tema igualmente vasto: a justiça. Pô!, imaginem o quanto é necessário de erudição, experiência, tempo, talento etc. etc. para escrever uma obra como A Teoria da Justiça de John Rawls... É a obra de uma vida!
Voltemos ao italiano.
Bem, Bobbio pode ou não ser um marco teórico? Pode. Mas o que de Bobbio? Pelo que já conheço, meu aluno é a favor da democracia e vai fazer uma leitura laudatória de Norberto, realçando o quanto ela e ele são importantes... Vai também, pela experiência que já tenho, juntar num mesmo saco Habermas, Rousseau, Schumpeter, Marilena Chauí... É uma mistura de feijoada com salada que não leva a nada!
Mas Bobbio pode, sim, ser um marco teórico, insisto. Tudo vai depender do corte. Dou um exemplo.
Num dos seus livros, escrito se não me engano (mais preguiça de ir procurar...) nos anos 80, A Era dos Direitos, Bobbio faz uma afirmação sobre a universalidade dos direitos humanos que se tornou problemática na era do multiculturalismo que estamos vivendo. Diz ele mais ou menos que, na atualidade (lembrem que era há trinta anos...), a questão dos direitos humanos não é mais a do seu fundamento, “agora” aceito por todos, mas de sua realização. Ora, alguém pode, a partir dessa afirmação, transformá-la em hipótese de pesquisa, problematizá-la à luz do que está acontecendo no mundo de hoje (basta pensar no Irã daquele presidente cujo nome não sei escrever - acho que Lula também não -, aquele que parece um cego de feira), e fazer um trabalho bem interessante que, eventualmente, dependendo do talento do autor, pode até ser genial! Bobbio seria, nesse caso, um marco teórico – ainda que fosse para ser contrariado.
Foi o que uma vez aconteceu comigo.
Eu já passei duas vezes na vida por essa angústia do marco teórico: uma no mestrado, outra no doutorado. Conto rapidamente.
O mestrado, primeiro. Era na área da Sociologia Jurídica e, na época (começo dos anos 80), Boaventura de Souza Santos, que havia feito uma pesquisa sobre uma experiência de justiça informal numa favela do Rio de Janeiro operada pela Associação de Moradores local, estava na moda. Elegi-o como meu marco teórico. O conceito-chave do dito era o de “pluralismo jurídico”, que virou uma coqueluche entre os acadêmicos da minha área. O objeto empírico que elegi foi a polícia – ou seja, comissariados de polícia em bairros populares do Recife que também exerciam uma espécie de “justiça informal”, resolvendo pendengas das chamadas classes populares. Pois bem, no decorrer do trabalho de campo dei-me conta de que o conceito de “pluralismo jurídico”, cuja especificidade era a existência de um direito operado fora dos aparelhos de estado (a associação de moradores), não servia para mim! Afinal, que instituição mais estatal do que a polícia?... Não sem angústia, abandonei-o!
A outra experiência, a do doutorado, foi “melhor” sucedida. Meu tema eram os direitos humanos e o pensamento político de esquerda no Brasil. Meio acidentalmente (não é o caso aqui de relatar todas as peripécias intelectuais de então), cheguei a um texto de Claude Lefort, “Direitos do Homem e Política”, que parecia caber como uma luva no meu objeto. E coube! O meu marco teórico foi aplicado e confirmado por meus dados!
Fico por aqui.
Se adotei uma linguagem um tanto “esportiva” para escrever sobre tão grave assunto, é porque acho cada vez mais que, como diria Guimarães Rosa, “a alegria é o vau do mundo”!
47 comentários:
Luciano,
Ainda bem que o Cazzo postou rapidamente seu texto - ja' que você esqueceu de anexa'-lo ao e-mail que me enviou. A propo'sito, acho que Cytnhia precisa lhe oferecer mais cursos sobre o uso das TICs.
No mais, estou com você e Guimarães Rosa. E acho que temos uma combinação curiosa entre sacralização e esculhambação do tal marco teo'rico. Usamos o termo com a reverência de fiéis entrando numa igreja, mas quantas vezes lemos trabalhos onde o tal marco aparece como uma espécie de tumor atacando os dados empi'ricos? Ou então onde ele é essa feijoada com salada de que você fala? Ou ainda como substituto do empi'rico?
Quanto ao trabalho de Alberto Carlos Almeida, meu amigo, de meu ponto de vista é uma expressão de outra terri'vel sacralização: a da quantificação nas ciências sociais. Ca' para no's, os insights de DaMatta parecem-me muito mais sociolo'gicos do que o que Almeida fez. E menos perigosos: quando deparamo-nos com tabelas quantitativas, temos a tendência automa'tica a aceita'-las como demonstração.Pois bem, como você não sabe quando tera' tempo para ler o livro, ouso sugerir uma visita ao Cazzo de 26 de outubro de 2009, onde apresento o que acho do que li de A Cabeça do Brasileiro. Quem sabe inspire sua vontade de ler e você possa até relativizar meu profundo desgosto diante desse livro. Grande abraço.
Exijo dos meus orientandos um marco teórico. Podem até chorar, mas que tenham um marco qualquer.
Tendo um, peço imediatamente outro. Há choro, muito choro, mas findam encontrando um segundo marco teórico.
Aí falo da importância de ter três marcos teóricos.
_Sem três marcos teóricos não há tese. Digo galunfante.
Os orientandos entram em parafuso e abandonam a orientação.
Por isso, cada vez mais, estou sem alunos e alunas. Além do mais, o último e o único orientando que conseguiu juntar três marcos teóricos teve um colapso nervoso na hora da defesa.
A maldade positivista é uma ambrosia (hehe).
Eita, Artur!
Não é em Rumo à Estação Finlândia que o autor fala do cara'ter encantato'rio do nu'mero três no pensamento ocidental - que explicaria a obsessão de Marx pela dialética hegeliana? Pai/Filho/Espi'rito Santo; dois testi'culos/um pênis; tese/anti'tese/si'ntese. Pois é...e Artur com seus três marcos teo'ricos. E se você esta' perdendo alunos e alunas com essa obsessão, isso pode significar que ha' luz no fim do tu'nel. Abraço.
Pois lá no PPGS, quem vier com 3 marcos teóricos é defenestrado da sala de seminários, no 12 andar. A gente escolheu Silke para essa tarefa por sua robustez física e teórica.
Caro professor Luciano, seus textos são sempre formidáveis.
Eu como você sabe sempre tive horror ao chamado marco teórico. Não por ser difícil e demandar trabalho intelectual exigente. Simplesmente por entender que a escolha(quase sempre a priori) de autores como sendo um "marco teórico" estabelecia uma relação diretiva demais com o objeto de estudo (daí talvez o viés positivista)engessando a qualidade analítica propriamente sociológica dos trabalhos.(Outro dia Cynthia publicou algo aqui sobre o realismo crítico e tocava em algumas questões relevantes sobre um referencialismo talvez inerente à ideia de ciência). Em trabalhos empíricos, o marco teórico se transforma muitas vezes num monstro deglutidor da empiria usada apenas (quando feita) para "provar" ou "comprovar" a "tese" defendida por sábios de várias estirpes. Acho que o melhor marco teórico é aquele que se dissolve no esqueleto do texto e não se faz notar como tal.Acho que esse tipo de fusão só é produzido em massa em instituições que valorizam elementos concretos e práticos da pesquisa nas mesmas proporções que valorizam os recursos teóricos. Em sociologia, concordo aqui plenamente com o professor Luciano, que não é uma ciência como outras o são, a explicação e/ ou interpretação não se dá necessariamente através da prova e da verificação no sentido popperiano do termo. Justamente por isso, acredito que o critério de validação das teses sociológicas não devem ser medidos pela capacidade de "aplicação" de marcos teóricos a objetos empíricos no sentido formal que a idea de aplicação traz. Mais interessante é avaliar o potencial descritivo da utilização de conceitos "confrontados" (no lugar de aplicados) a realidades que resitem ao potencial analítico inicial, antes comprovado pela dita teoria(o velho racionalismo aplicado à moda de Bachelard). Dessa forma entendemos até melhor o porquê do método comparativo ser tão importante nas ciências sociais e a razão pela qual não podemos, como se faz com certa tranquilidade em algumas disciplinas, desprezar nossos clássicos. É que se aceito o que disse acima, e a validação sociológica exige essa confrontação sempre nova com novos contextos e objetos, o rigor descritivo e analítico do pesquisador social dependerá de sua capacidade de controlar os ajustes semânticos necessários para que os conceitos descrevam o melhor possível uma realidade e contexto novos. Exemplo (clássico?) disso percebemos em Florestan Fernandes (Revolução burguesa no Brasil) que usa termos utilizados originalmente para descrever contextos europeus para entender a realidade brasileira historicamente situada. Revolução e burguesia recebem modificações semânticas e o livro fala de burguesia à brasileira, de uma revolução conservadora.A inteligibilidade propriamente sociológica se dá no "contraste" que dilui o marco teórico(que em Florestan é vasto como era a erudição dele) na análise que descreve e explica na e pela resitência da realidade específica.
Bem, vejo que já me alonguei bastante para um comentáriode blofue. Paro aqui com meu positivismo realista tosco...
saudações,
João Paulo
Caro professor Luciano, seus textos são sempre formidáveis.
Eu como você sabe sempre tive horror ao chamado marco teórico. Não por ser difícil e demandar trabalho intelectual exigente. Simplesmente por entender que a escolha(quase sempre a priori) de autores como sendo um "marco teórico" estabelecia uma relação diretiva demais com o objeto de estudo (daí talvez o viés positivista)engessando a qualidade analítica propriamente sociológica dos trabalhos.(Outro dia Cynthia publicou algo aqui sobre o realismo crítico e tocava em algumas questões relevantes sobre um referencialismo talvez inerente à ideia de ciência). Em trabalhos empíricos, o marco teórico se transforma muitas vezes num monstro deglutidor da empiria usada apenas (quando feita) para "provar" ou "comprovar" a "tese" defendida por sábios de várias estirpes. Acho que o melhor marco teórico é aquele que se dissolve no esqueleto do texto e não se faz notar como tal.Acho que esse tipo de fusão só é produzido em massa em instituições que valorizam elementos concretos e práticos da pesquisa nas mesmas proporções que valorizam os recursos teóricos. Em sociologia, concordo aqui plenamente com o professor Luciano, que não é uma ciência como outras o são, a explicação e/ ou interpretação não se dá necessariamente através da prova e da verificação no sentido popperiano do termo. Justamente por isso, acredito que o critério de validação das teses sociológicas não devem ser medidos pela capacidade de "aplicação" de marcos teóricos a objetos empíricos no sentido formal que a idea de aplicação traz. Mais interessante é avaliar o potencial descritivo da utilização de conceitos "confrontados" (no lugar de aplicados) a realidades que resitem ao potencial analítico inicial, antes comprovado pela dita teoria(o velho racionalismo aplicado à moda de Bachelard). Dessa forma entendemos até melhor o porquê do método comparativo ser tão importante nas ciências sociais e a razão pela qual não podemos, como se faz com certa tranquilidade em algumas disciplinas, desprezar nossos clássicos. É que se aceito o que disse acima, e a validação sociológica exige essa confrontação sempre nova com novos contextos e objetos, o rigor descritivo e analítico do pesquisador social dependerá de sua capacidade de controlar os ajustes semânticos necessários para que os conceitos descrevam o melhor possível uma realidade e contexto novos. Exemplo (clássico?) disso percebemos em Florestan Fernandes (Revolução burguesa no Brasil) que usa termos utilizados originalmente para descrever contextos europeus para entender a realidade brasileira historicamente situada. Revolução e burguesia recebem modificações semânticas e o livro fala de burguesia à brasileira, de uma revolução conservadora.A inteligibilidade propriamente sociológica se dá no "contraste" que dilui o marco teórico(que em Florestan é vasto como era a erudição dele) na análise que descreve e explica na e pela resitência da realidade específica.
Bem, vejo que já me alonguei bastante para um comentáriode blofue. Paro aqui com meu positivismo realista tosco...
saudações,
João Paulo
Oi, João Paulo!
Você é o João Paulo que foi meu aluno, que se interessava (academicamente, entendam!!!) por usuários de crack?
Se for, bom saber que está na ativa. E obrigado pela palavra generosa.
Olha o Loup-Loup Cibalena ai', gente!
Um dia ele ainda completa seu processo de reconciliação com as TICs - e eu também, quem sabe...
E vou dizer uma coisa: embora também tenha sido formada sob a alergia imediata à palavra positivismo, acho que ja' esta' mais do que na hora de pararmos com essa reação alérgica. Nem so' de positivismo os males acadêmico-cienti'ficos são compostos. Sem contar que ele, o positivismo, é parte das aquisições cienti'ficas. A não ser que se seja adepto de um relativismo absoluto, ha' que se dialogar com certas aquisições vindas do positivismo. Assim, se pensar os conceitos como confrontação e comparação é positivismo tosco, João Paulo, viva o tosco!
E Cynthia: continuo aguardando o desenvolvimento de sua proposta culina'rio-sociolo'gica.
Abraço.
Prezado Luciano:
devo decepcioná-lo. Não sou eu o João Paulo do Crack. Disso não entendo nada, nem academicamente.Assim de empiria, sei do assunto porque alguns amigos se envolveram. Mas isso não vem ao caso...
Sou o Jampa, o que tem a mania de discordar de você em matéria de sociologia da literatura, mas que admira demais você e seus trabalhos. Nem estou tão na ativa assim. Uma pena.
Abraço.
Pôxa, Jampa!
desculpe a gafe!
Mas muito contente com o seu comentário, que achei ótimo!
Dê notícias de vez em quando, ok? E quando quiser "discordar", o prazer será meu.
Abração,
Luciano
Luciano:
sem problemas pela gafe! Afinal, como diz em seu texto a voz de Rosa: "a alegria é o vau do mundo"
Tamara:
sou um enterno defensor do tosco na sociologia. As vezes fico até envergonhado. Porque eu digo coisas anacrônicas e fora de moda tipo: a sociologia é uma ciência empirica baseada em lastro histórico referenciado, documentado. Aí fico pensando ensimesmado e parafraseio minha própria avó: todo positivismo para tosco é pouco. Penso isso com a vermelhidão marxiana nas bochechas.
Eu acho que até teria alguma coisa a dizer sobre isso, mas esse clima de férias dá uma preguiça...! Quem sabe amanhã eu acorde mais espertinha.
Tâmara, nossos planos estão de pé. Ou mezzo de pé, já que, no momento, estou meio mineira: querendo "que o mundo se acabe de barranco pra eu morrer encostada". Ou será que isso é ditado de goiano? Sei lá. Preguiça de pensar.
Bem, João Paulo,
Você me faz pensar em meu orientador francês que, lendo meus trabalhos iniciais, vaticinou mais ou menos assim :"vê-se que você teve uma boa formação teo'rica, mas isso ai' não é sociologia e sim filosofia social; a sociologia é uma disciplina empi'rica. Mas tenho a convicção de que pessoas com boa formação teo'rica são mais preparadas para aprenderem a lidar com o empi'rico do que inversamente. Sua tese sai".
Ou seja, neste ponto estou mais com Luciano, quando ele diz que usa o termo "olhar sociolo'gico" ao invés de "sociologia", porque esta não existe. Melhor dizendo, tenho satisfação por ter feito o doutorado na França, onde o empi'rico continua sendo critério de definição da disciplina, porque isso abriu meu olhar sociolo'gico à confrontação entre abordagens/conceitos e a realidade concreta. Mas por outro lado, continuo achando que a reflexão teo'rica e conceitual, a elaboração de teorias sociais são fundamentais para a maior abertura do olhar sociolo'gico. E para isso, é preciso que sensibilidades teo'ricas possam mergulhar no que elas fazem bem. O dia'logo constante entre a pesquisa e a reflexão teo'rica torna-se assim ainda mais necessa'rio. Abraço
Cynthia, menina!
Quer dizer que mineiro diz isso, é? E' por isso que eu sempre me dou bem com eles: fazer o que quando as afinidades, antes de serem eletivas, são espontâneas?
Submeto-me então à sua sagrada preguiça. Beijão
Tâmara,
eu não sei se discordo do que você disse, ou melhor, do que seu orientador disse. Acho que discordo em parte, porque acho que ao dizermos que uma pessoa pode adquirir em sociologia formação teórica sem pesquisa empirica, separamos o que, na ciência concreta, quero dizer praticada, se dá de maneira indissociavel.(Como se aprende pesquisa empirica?)
Perceba que o nosso desacordo é parcial, porque acho que, como você, fui formado dessa forma. E hoje até me considero um sociólogo... o que é uma contradição, admito. Digo isso para dizer que também acho que não existe discrepância entre o que Luciano chama de visão sociológica e a ideia segundo a qual a sociologia existe, de fato. O problema político-sociológico que temos é que parto de uma ideia de prática científica específica que tendo a considerar como mínimamente necessária para designar o "estatuto espistemológico da sociologia".Este que, a meu entender, estaria fora da produção de uma "filosofia social", e até mesmo de uma "teoria social", se esta for vista em seu sentido de ser um "sistema formalmente coerente e articulado de conceitos que explicam funcionamentos genéricos das sociedades". Algo que alguns chamam hoje de "grande teoria".
Aqui, claro, você me dirá que posso estar sendo normativo, admitindo que uma boa sociologia seria aquela que deve sua robustez ao imbricamento sofisticado entre teoria e empiria. Não entendo empiria como apenas o volume de dados empíricos, acho que não precisava dizer, né?, mas ao trabalho de confrontação dos conceitos com que chamamos ou entendemos por "dados". Isso pode ser material estatístico, de arquivo, de entrevista, etnográfico, etc. O dado, só é importante quando traduzido pela linguagem decifradora e arbitrária (quem escolhe as palavras-conceito é o sociólogo)do pesquisador. Eu só acho que a sociologia já tem uma história que prova sua existência e que o fato de haver controversias quanto ao que significa sua falta de homogeneidade (multiplas visões do que é sociologia), não pode servir de justificativa para o que alguém já chamou de "preguiça empirica". Digo isso pensando que meu julgamento normativo, embasado numa visão de sociologia já existente e praticada por muitos,avalia que boa teoria sociológica (difere do que seja uma boa teoria stricto sensu -Cynthia vai me matar!)precisa de um volume importante de "contaminação social e histórica", contaminação que é produzida pela necessária imbricação salutar entre o sgnificado histórico das palavras-conceito e o universo social que as produziu.
Já me empolguei demais novamente e isso daria para horas na frente dessa telinha. Fui escrevendo as coisas sem muito controle, então, havendo abobrinhas, podem fritá-las com azeite.
Abraço, Tâmara.
Danou-se!
Nunca pensei que meu pequeno texto iria levantar um debate Tâmara vs. Jampa que entrará nos anais das ciências sociais!
Creiam, meus caros amigos, que estou lisonjeadíssimo e feliz. Acho que o Cazzo, aliás, é pra isso mesmo.
Só um pequeno esclarecimento. Eu sou meio "glauberiano", como diz o professor Fernando Mota, e de vez em quando gosto de um exagero. (Aliás, Weber certa feita teria dito que "minha profissão é exagerar" - onde? Helpem me!)Quando disse que prefiro "olhar sociológico" a "Sociologia", e acrescentei que esta simplesmente não existe, estava simplesmente dizendo que não existe uma coisa chamada A sociologia com "A" maiúsculo. Lógico que existem sociólogos e sociologias... Aqueles e estas exercem um ofício que se distingue (ou deve se distinguir) da mera "doxa". E se distingue pelo rigor dos enunciados e da argumentação, por exemplo; a objetividade e a neutralidade axiológicas na aplicação dos métodos e mesmo das técnicas de pesquisa que escolhem, deve ser de regra! Vejam: a escolha do tema, do marco teórico, da metodologia e mesmo das técnicas, tudo isso é arbitrário. No momento de "aplicarmos" isso na realidade, não! Senão... Vale tudo! Sei que é difícil, numa cultura como a nossa pervasada pelo perspectivismo nietzscheano, acreditar que a verdade existe e é objetiva. Pois bem. Ela existe e é objetiva! Ou, melhor dizendo, "objetivável"... Senão...
Pronto, tá certo, concedamos: a verdade não existe! Ok. Mas me digam: e a mentira, existe? Existe! Os "Protocolos dos Sábios e Sião" são uma mentira, um documento falso fabricado por algum anti-semita raivoso na Rússia Czarista para justificar a prática abominável dos pogrooms. Hitler adotou-os na Alemanha nazista. Será que se aquele vagabundo chamado Adolf tivesse ganho a guerra eles teriam se tornado verdadeiros?... Será que algum de nós, no foro mais profundo de suas convicções, acredita nisso?
Ih... entrei pela perna do pinto e saí pela perna do pato!
Nem sei mais o que era que queria dizer...
Abração.
E' bom isso, né? Mas infelizmente a aceleração social do tempo exige que a gente pare sem concluir - para não falar de outras coisas, como por exemplo, os no's na cabeça que essa discussão traz. Ja' estou aqui com o juizo quase cozinhado! Falando nisso, preciso ir urgente à cozinha porque vou receber amigos à noite: quitutes concretos.
Bem, João Paulo, eu acho que meu orientador concorda com você. E eu também - em geral.
Quanto a você, Luciano, proponho aquela canção de Chico Buarque e Edu Lobo: "a mentira e a verdade/são as donas da razão", etc. Abração aos dois.
Ei! Pode parar de usar meu santo nome em vão, João Paulo!
Primeiro que eu não acredito nessa estória de teoria stricto sensu, que me parece excessivamente presa a uma concepção positivista da relação entre conceito e empiria. Como boa realista, acredito que o real não se resume ao empírico, daí o papel da imaginação, das metáforas, das analogias etc., inclusive na definição do que conta como o empírico.
Segundo, eu acho que existe uma distinção fundamental entre teoria social e teoria sociológica: a primeira é muito mais ampla do que a segunda e inclui elementos interdisciplinares (especialmente filosóficos), alguns dos quais não têm relação direta com o mundo empírico.
Terceiro, que entender teoria sociológica, mesmo que de forma independente de um problema contemporâneo concreto, implica compreender a realidade a que esta teoria se refere (ou seja, toda teoria tem um elemento descritivo, além de explicativo, o que significa dizer que os "teóricos" não são criaturas descoladas do mundo real).
Quarto, acredito que determinados usos da dimensão empírica para a construção de explicações sobre o mundo podem gerar teorias muito mais "descoladas" e distanciadas da realidade do que uma especulação filosófica honesta. A este respeito, vide o uso dos dados extraídos da pesquisa de Bourdieu sobre a sociedade cabília para supostamente embasar uma teoria geral das relações de gênero. (Convenhamos, aquele livro é uma nódoa na carreira de Bourdieu).
Por fim, acho que uma ênfase excessiva na questão empírica tende, ao contrário do que vc parece acreditar, a gerar uma concepção excessivamente instrumental da teoria, o que impede concepções alternativas da realidade. Neste sentido, continuo uma defensora ardorosa da independência relativa entre teoria e pesquisa empírica, embora, como socióloga, nunca tenha me furtado a pesquisar empiricamente quando isso me pareceu importante para a questão teórica que me anima.
A diferença, portanto, é de ênfase: quando faço uma pesquisa empírica, meu objetivo é resolver uma questão teórica para que pesquisadores talentosos como sua pessoa possam aplicá-los na explicação de questões que necessariamente não me despertam o interesse necessário ao desenvolvimento de um bom trabalho.
Sacou?
;)
Cynthia,
não sei se saquei, mas vamos lá. Primeiramente desculpe se usei seu santo nome em vão, é que de férias forçadas, tendo a minimizar nuances provacando debates atabalhoados. Acho que da maneira como coloquei as coisas deixei a ideia segundo a qual você não fazia a distinção entre teoria social e teoria socilógica, né? Bom, se é isso que entendemos do que escrevi, não foi bem isso que quis dizer. Explico-me.
Veja, eu concordo com as coisas que você diz. Sou desde a graduação um voraz leitor de trabalhos de "filosofia honesta", e em nenhum momento quis me colocar contra a produção de disciplinas que produzam "teoria social", nos termos por você situada. O que é acho problemático, justamente, é quando essas coisas (teoria social e sociológica) se tornam indistintas, e passam operar de maneira inapropriada (a meu ver) uma redução da sociologia a "qualquer discurso que fale de sociedade". Acho que concordamos a esse respeito.
Sei que não é esse seu ponto de vista.E entendo que, quando cita o trabalho de Bourdieu, infira que tendo a me conformar ao decoro da relação entre teoria social e empiria decorrente daquela perspectiva. Cofesso algo aqui para você: eu gosto muito mais do Bourdieu sociólogo do que do teórico social.Digo isso sabendo que é bastante difícil na obra dele dissociar a produção de sua "teoria social" do trabalho propriamente sociológico do autor. Veja minha contradição. Acho que o grande mérito dele, que não o isenta de erros como os que você bem indica (acho que também existe na obra dele o inverso, uma teorização exarcerbada de uma empiria insuficiente:ex. disso é Reprodução),é justamente mostrar a "diferença" construída em toda sua obra, entre uma teoria social que dependeu de uma construção sociológica sólida e uma que não.
Esclarecido isso, fico lisojeado pelo elogio. Saiba que quando leio seus textos é na busca mesmo de aprimorar e entender como funcnionam as coisas que, por estar preocupado com coisas que não te animam, só podem ser bem entendidas e explicadas quando dominamos o arsenal teórico e conceitual de nossa querida disciplina.
Saquei?
Abraços
Tâmara e Luciano,
obrigado pela oportunidade dessa troca de ideias. Muito legal. Abraço e bom jantar!
Hummmm. Continuemos a polêmica, Jampa. Pegue um autor como Habermas que, a rigor, produz teoria social. Agora, faça uso de algumas de suas categorias e conceitos, por ex., o de colonização do mundo da vida, em uma pesquisa empírica. Onde está a distinção entre teoria social e teoria sociológica na produção de uma pesquisa sociológica? Como você mesmo sugere nas entrelinhas, o que vai caracterizar a pesquisa como sociológica é o uso de uma série de técnicas (entrevistas, documentos históricos, estatísticas etc.), e não no uso da teoria sociológica no sentido estrito. Sendo assim, Habermas pode ser o marco teórico de uma pesquisa sociológica? Como disse Loup Loup, tudo vai depender do "corte" (da teoria, da realidade, do problema de pesquisa, dos objetivos etc., etc., etc.). Isso também significa que quem trabalha com teoria sociológica pode e deve ter um certo distanciamento das questões empíricas, aparentemente mais "úteis" para a pesquisa do que as "meras" especulações.
Agora uma pergunta para provocar (e atrapalhar suas férias, que eu estou me sentindo ligeiramente perversa hoje): por que um bourdieusiano declarado tem tanta preocupação em se definir como, antes de tudo, um sociólogo? Convenhamos, ele só fez boa sociologia porque também fazia antropologia e filosofia, além de atuar politicamente. Olha Jonatas aí, misturando culinária e metafísica hegeliana! Qualquer hora dessas esse doido pega a energia das empadinhas e acarajés e transforma numa interpretação das tecnologias que têm afetado a vida de milhões de pessoas mundo afora. E se não fizer, pode ser que outra pessoa o faça. Conhecimento é isso. Não precisa compartimentalizar tanto.
E estou curiosa para ler a autoanálise sobre o seu feminismo. Prometeu, lascou-se.
Ai, eu não presto mas eu vos amo! Já que Cynthia falou em Habermas, deixem-me dizer que nunca consegui lê-lo! Na verdade acho, sim, que se pode pegar esse negócio de colonização do mundo da vida e daí se extrair sugestões e mesmo hipóteses de pesquisa (que certamente validarão a teoria!...). O que acho exagerado é a magnífica, extraordinária, original qualidade que as pessoas vêem no seu trabalho. Talvez esteja exagerando no meu "glauberianismo"; afinal, como comecei cofessando, nunca consegui lê-lo. Ou seja: lê-lo mesmo, e não pegar aqui e ali uma ou outra frase de antologia que serve para tudo - que acho que é o que a maioria dos nossos estudantes termina fazendo. Mas, devo dizer em meu favor que, se não consegui, pelo menos tentei. Por três vezes na vida peguei aquela maçaroca intitulada "A Teoria do Agir Comunicacional" e dispus-me, com a maior sinceridade e humildade, a ler. Desisti. Achava tudo simplesmente impenetrável. Um dia recorri a um desses "Habermas em 10 Lições", ou algo do tipo, e cunhei uma frase arrogante para resumir sua teoria "É conversando que a gente se entende"...
Lógico que é uma brincadeira. Mas... Francamente, do que entendi que ele quer dizer, me pergunto: o que há de novo sob o sol que já não esteja no velho e querido (embora na maioria das vezes chato) Weber - com sua "teoria" sobre a burocracia e o processo de racionalização do mundo moderno? Não estou, ao contrário do que talvez possa parecer, dizendo que Habermas não tem valor. Santo Jesus! Quem sou eu para dizer isso? Ele tem valor, sim, nem que seja como um intelectual de muito peso e densidade no meio de uma intelligentsia "pós-moderna" que desertou ou, pior, comprazeu-me em menosprezar, epistemologicamente falando, algumas das promessas do Iluminismo (e não preciso citar Foucault e seu grande mestre Nietzsche, ambos objeto da minha grande mas ambígua admiração), que ele, Habermas, pelo que entendo, tenta recuperar. (O Iluminismo, quero dizer!)
O que critico é a atitude de pegar esses autores e ficar, custe o que custar (mesmo se não os tenhamos lido no sentido autêntico da palavra), tentando "aplicá-lo" a algum objeto sociológico que precisamos formatar dentro dos cânones do que se considera um projeto de pesquisa que, pela minha experiência (desculpem!), termina parecendo um formulário que as pessoas preenchem...
Paro por aqui.
Até porque talvez um ou outro leitor já tenha desconfiado de que, "porque hoje é sábado", como diria Vinícius, estou escrevendo este "post" sob o influxo de algumas latinhas...
Bem,Cynthia, aceito a provocação.
Vamos lá: "Agora, faça uso de algumas de suas categorias e conceitos, por ex., o de colonização do mundo da vida, em uma pesquisa empírica. Onde está a distinção entre teoria social e teoria sociológica na produção de uma pesquisa sociológica?"
Bem, eu diria que a distinção está, a rigor, no esforço de utilização conceitual para dar conta da realidade, simplesmente. Habermas continuará sendo um teórico social enquanto o utilizador de sua teoria, talvez, se bem o fizer, será um sociólogo, ou um antropólogo, quem sabe um historiador, aí sim, depende do corte. Veja, não sou contra trabalhos como os de Habermas. Como disse o professor Luciano, quem sou eu? Acho que eles podem, como se diz, ajudar na imaginação sociológica.Só não acho legal, repito aqui Luciano, atribuir qualidades que ele não tem. Mas o que eu percebo também, e posso estar errado, corrija-me por favor se for o caso, é que uma teoria social construída "dentro de um esforço sociológico" potencializa a rentabilidade científica dos trabalhos que dela derivam. Veja a aberração que algumas cervejinhas me fazem dizer: não é por acaso que a obra de Bourdieu produziu mais derivados em todas as áreas onde a pesquisa sociológica propriamente dita se fez presente. Não falo nem das qualidades desses trabalhos, já vi péssimas apropriações.
Nunca fiz cálculos a esse respeito, mas imagino que o volume de trabalhos empíricos derivados de uma teoria como a bourdieusiana é infinitamente superior aos derivados da de Habermas. É claro que isso pode ter a ver com política acadêmica. Você tem razão nesse ponto, Bourdieu foi alguém de muito habil nesse sentido. Derrubou muita gente. Vejo, porém, que os conceitos de Bourdieu, porque forjados dentro do aparato técnico da sociologia, possuem características que tornam viáveis procedimentos técnicos de análise. Um conceito como de habitus, por exemplo, foi construído através de tratamentos estatísticos, de trabalhos etnográficos, tornando possível, por exemplo, quantificações de elementos antes de difícil operacionalização, como a ideia de capital escolar, medido de maneira razoável por indicadores tradicionais, como nível de escolaridade(medido pelos diplomas adquiridos), ou o capital simbólico, mensurável por indicadores de frequentação a museus, teatros, etc. Veja, não defendo aqui a "teoria social presente na obra de Bourdieu". Só quero ressaltar que nos conceitos como os de Habermas essa sensibilidade prática quase não existe, tonando mais complexa a utilização e tratamento adequado do arcabouço teórico que não tem ainda esse tato, digamos assim, para a confrontação com o universo empirico.(Continua)
O outro ponto: "por que um bourdieusiano declarado tem tanta preocupação em se definir como, antes de tudo, um sociólogo?"
Agora sou eu que peço para não citar meu sacro-bourdieusianismo em vão. Na verdade, nunca me declarei bourdieusiano, fui um leitor voraz de parte significativa de sua obra, é bem verdade. Aí ganhei o rótulo. Mas veja como são as coisas, em minha defesa, fui acusado de não citá-lo com devida ênfase pelo Miceli. Eu não me defendi sobre esse ponto naquele momento porque não achei importante, mas lembro que o próprio P.B foi acusado inúmeras vezes de não por em evidência todos os créditos por trás de suas análises. Acho que ele tinha as razões dele para citar da maneira que fazia, mas isso não vem ao caso. Acho que o ponto mais importante de sua pergunta é o outro aspecto: por que tanta preocupação em me declarar sociólogo?
Eu diria que a principal razão é a confiança que eu tenho na especificidade histórica da disciplina. Acho que colocaria ao lado da sociologia, sem problemas de identidade, as outras ciências sociais históricas, como a antropologia e a história. Eu acho que concretamente, se pensarmos no legado da sociologia tida como clássica,dá para identificar no seu propósito historicista, a razão de ser de nossa disciplina. Se não tivesse essa convicção, não teria feito uma pesquisa em meu doutorado voltada para o tratamento de material empírico(esforço específico de historicização), e teria talvez feito um trabalho de reflexão a respeito das formas já existentes de tratar sociologicamente a literatura. Poderia ser um trabalho interessante, não duvido. Mas eu quero crer que a grande qualidade do meu trabalho consistiu justamente no esforço de problematizar sociologicamente aspectos resistentes à sociologia. Acho que Freud dizia isso: aplicar a teoria não produz conhecimento, mas a confimação ou refutação de um já produzido. Para ele, esse não era o papel da ciência. Eu concordo, daí meu apego a uma visão certamente restrita da ciência do social, mas a única que eu encontrei capaz de potencializar minha verve curiosa.
Olhe, já estou com medo de minha autoanálise sobre o feminismo.
Abraço feliz a todos,
Jampa.
Ps. o limite de caracteres me fez cortar duas por duas vezes esse texto. Não chega a ser o twitter, mas...
ps.2 Sempre assinei João Paulo pelo respeito que nutro pelos professores. Vou assinar Jampa, mas o respeito é continua o mesmo.
Maravilha!
Eu não vou dizer mais quase nada porque não estou movida à cerveja (que pena). Mas essa discussão vai terminar realmente nos anais das ciências sociais. Luciano, você esta' de parabéns. E alia's, acho que nessa discussão toda estou cada vez mais com você (embora minha simpatia por Habermas pareça maior do que a sua): o problema não é o da validade de teorias sociais ou sociolo'gicas, mas de como usa'-las. Em minha tese, por exemplo, começei com Habermas e Bourdieu, além de brasileiros como DaMatta, o pai de Chico, Chaui', etc., e eles ficaram presentes até o fim. Mas não como confirmação de uns ou de outros e sim como instrumentos de dia'logo com o que encontrei no campo. E ai', vejam so', a sociologia compreensiva de Weber foi o que apareceu como meio de coerência interna do tal do "meu marco teo'rico".
Agora, na falta de cerveja, vou me intoxicar com a rabada romântico-hegeliana. Abraço
Gente, que implicância é essa com o pobre do Habermas? Tá certo que ele é particularmente difícil de operacionalizar, mas não acho que isso se deva ao seu caráter filosófico - Giddens é sociólogo e sua teoria da estruturação também é muito difícil de ser operacionalizada.
Talvez o cerne do problema aqui seja justamente uma visão muito instrumental de teoria implícita neste modelo popperiano de refutação/corroboração de hipóteses. (Aliás, Lulu, é para mim um mistério essa sua simpatia por gente como Foucault e Nietzsche e uma concepção de marco teórico em moldes tipicamente popperianos - para não falar da distinção positivista/weberiana entre fato e valor).
Em minha modesta opinião, o marco teórico não deve conter apenas uma teoria a ser operacionalizada em conceitos, indicadores, índices etc, mas também uma concepção de realidade (uma ontologia) e de construção do conhecimento (uma epistemologia) que possibilite construir pontes entre as diversas teorias que podem ser aplicadas na explicação/interpretação do objeto em questão. Caso contrário, termina-se com uma de duas possibilidades (nos casos mais graves, com as duas): uma combinação de teorias à moda do samba do crioulo doido, ou a tentativa de se forçar uma teoria a explicar um objeto para o qual ela não foi pensada.
Esse modelo de projeto de pesquisa (com marco teórico, hipóteses, objetivos etc), embora me pareça bastante útil, origina-se, salvo engano, em uma concepção de pesquisa típica dos institutos de pesquisa norte-americanos desenvolvidos por Paul Lazarsfeld. Como bom empirista, Lazarsfeld tinha uma visão extremamente instrumental de teoria: algo que deveria ser reduzido a índices e indicadores empíricos, de preferência quantificáveis, que dava uma aparência de "ciência dura" às pesquisas sociológicas (a tal "rentabilidade científica" a que Jampa se refere?). Todos os problemas relativos à construção de conceitos (embora não de índices), do que conta como existente na realidade social etc. eram deixados de lado. Pessoalmente, acho isso uma aberração que nunca foi inteiramente abandonada, apesar das contribuições de diversas abordagens em lançar uma pá de cal no cadáver do positivismo.
Gosto de pensar no marco teórico como algo que impõe limites à loucura que é ter que lidar com um objeto que pode ser visto de infinitas formas. Mas como algo que está mais para um ansiolítico leve do que para uma camisa de força.
E por falar nisso, vou aproveitar o dia chuvoso para ler o capítulo teórico da tese de uma orientanda. Vamos ver se o ansiolítico dela está fazendo efeito...
Bravo, Tâmara! Antes que esse negócio termine em duelo, proponho um fictício diálogo entre duas figuras célebres com o mesmo sobrenome:
"Este mundo é um problema sem conserto"
Diria Karl
"Então proponho fazermos um concerto"
Diria Groucho
Quem gosta de duelo é arture. O bicho veste uma armadura (ele é meio anacrônico), vai até o bar do surfista em João Pessoa e toma umas cervejas enquanto espera por uns oponentes que nunca aparecem. Isso sempre garante sua vitória.
Uma boa estratégia, convenhamos.
Ai, Cynthia!
Não leve a vida tão a sério...
Porque hoje é sábado
Pé de quiabo
Amanhã é domingo
Pé de cachimbo.
E tudo recomeça
Na próxima sexta,
Porque não existe
Semana bissexta!
Menino, fazia anos que tentava me lembrar dessa rima!
Não existe semana bissexta mas, pelo jeito, a semana de alguns de nós tem dois sábados, né, Lulu? Encalhou no sábado desde ontem, foi?
Vou voltar para a minha tese.
:*
Eita, não tem uma estória de um cachimbo que cai num buraco e se acaba o mundo? Sua rima tá esquisita.
Diacho de ressaca, não aguento bebidas. Lembraria Freud mais uma vez em plena dor de cabeça. Habermas e tambem Giddens me fazem pensar no caso de compulsão de um rapaz que o pai da psicanálise descreve. O cara não parava de limpar os óculos, e nunca o colova no rosto. Eu vejo teoria como um mapa, que intensionalmente muda a escala na qual percebemos o mundo. Um mapa que fosse do tamanho da realidade, simplesmente perde sua função de auxiliar do pensamento. Isso para dizer que acho que minha visão de sociologia está a milhas de distância da de rentabilidade como encontrada o empiricismo extremo de Paul L. Abcs com ressaca,
A dor de cabeça passando diria que não aguentaria um duelo, pois sei que a espada que uso é enferrujada, Luciano. E Cynthia é uma guerreira Jedi. Eu morreria rapidinho, acuado. Você e Tâmara teriam que intervir, pedindo piedade, salvando o pobre jovem sociólogo...
Mas foi muito legal o debate. Agradeço aos participantes a oportunidade de discorrer sobre essas ideias. Principalmente a Luciano, que com seu texto fomentou o resto. Reconheço que são raras as ocasiões onde se pode expor e debater com tanta qualidade como feito a cima. E fazer isso num blogue, em clima descontraído,
Valeu demais! Grande abraço.
Que imagem ótima! Pois eu acho que prefiro Giddens na época em que só limpava os óculos. Seus trabalhos de interpretação dos clássicos são excelentes e devem ter ajudado muita gente a enxergar melhor o mundo. No dia em que resolveu vestí-los (óculos se veste?), passou a ver coisas como a terceira via e, de quebra, cegou meio mundo. Né não?
Em relação ao seu último comentário, Jampa, acho que seu mea culpa, quero dizer, sua autoanálise, renderia um ótimo debate. Não fuja, não!
Vou fugir não, é que uma autoanálise não sai assim, do dia para noite... principalmente depois de umas cervejinhas! :)
Veja só que engraçado: sobre Giddens estamos de acordo, como sociólogo, ele é um ótimo leitor dos clássicos. Ele é melhor sem óculos, sem dúvida. Taí uma falha na metáfora do óculos que nunca havia percebido: não precisa se aprender a usar óculos, mas a ser sociólogo, leva bons anos. Vai ver que foi por isso que ele ao desistir da miopia se tornou o cego da terceira via. hihihi
Cynthia,
Pelo que me lembro, a brincadeira da minha longínqua infância era assim:
Hoje é sábado
Pé de quiabo
Amanhã é domingo
Pé de cachimbo
Cachimbo é ouro
Ouro é tenente
Tenente é fraco
Caiu no buraco
O buraco é fundo
Acabou o mundo!
Não tem nenhum sentido, a menos que algum Jung ou Lévi-Strauss descubra na inocência do jogo de palavras alguma invariável escondida da mente humana...
O modo como apresentei a brincadeira foi, a partir do quarto verso, invenção minha.
No mais... Uau! Uau! Uau!
Parabéns por ter descoberto minha derrapagem dos dois sábados!
Escrevendo na sexta, e meio biritado, referi-me ao dia como sendo sábado!
O sábado veio, mas no dia seguinte, isto é, hoje! Igualmente dia de birita...
O que só prova (e juro que isso é minha última provocação), que a verdade existe e é objetiva!
Tchau everybody!
Eu lembro assim:
Hoje é Domingo,
pé de cachimbo,
o cachimbo é de ouro,
bate no touro,
o touro é valente,
bate no tenente,
o tenente é fraco,
cai no buraco,
o buraco é fundo,
acabou-se o mundo.
Eu passei um tempo acreditando que essas rimas eram algo cifrado contra a ditadura... Só porque o danado do tenente caia no buraco. O tenente, Luciano, é uma espécie de "Tertião" do Jampa.
"Taí uma falha na metáfora do óculos que nunca havia percebido"... Eu não acho que seja uma falha, Jampa, acho que a metáfora é perfeita: algumas pessoas limpam os óculos para que outras enxerguem melhor. O trabalho em teoria às vezes é isso, e Giddens é um bom exemplo da importância dessa divisão do trabalho intelectual. Eu acho que me sentiria muito realizada se conseguisse me tornar uma boa limpadora de lentes para outras pessoas usarem.
Quanto à rima, a que eu aprendi era mais parecida com a sua do que com a de Luciano. Mas, no lugar do tenente, "o touro é valente e bate na gente, a gente é fraco, cai no buraco". Será que essa versão afetou minha relação com a política?
E para as pessoas que fizeram cirurgia de miopia, como é que fica, hein, hein?!
Ah, eu acho que sei como eles ficam! Esses já resolveram o primeiro problema. Agora podem ver as coisas... bem, podem ver as coisas visíveis com os próprios olhos. Mas fica ainda uma margem importante para ele ser um... um cientista, caso queira. Ele pode fazer como Galilleu, fabricar lunetas, para ver mais longe, ou, me falha o nome do outro rapaz, fabricar o microscópio para ver o pequeno. Mas a metáfora da visão tem limite, é verdade, porque sabemos que ver bem demais já foi princípio pra muita cegueira. Sempre achei, contudo, que isso, que traz o apelo para uma reflexão moral para ciência, não tem a ver com a produção do conhecimento a a vontade de saber que talvez a impulsione em alguns... Em todo caso meu apego aos óculos é limitado, eu só os uso como metáfora mesmo. É que sei que as vezes, estamos tão acostumados com os óculos que esquecemos que os temos em nossa cara. :)
Mas essa da cirurgia foi ótima, heim!
Lá vem Artur com sua aversão a Freud. Os que fizeram cirurgia de miopia são os melhores limpadores de lentes, já que se incomodavam o suficiente com a própria falta de visão para tentar dar um jeito nisso.
Cynthia, fiz o texto de "autoanálise", para onde mando?
Manda pro meu email que eu vou enviar para os nossos pareceristas, ad hoc, pero no mucho.
;)
Hoje, para ser positivista, só fazendo cirurgia de miopia, e olhe lá!
O positivismo é apenas uma palavra, e olhe lá.
Cynthia, enviei. Se o texto não atingir o padrão do Cazzo!, porde recusar, pero no mucho...
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