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terça-feira, 7 de dezembro de 2010
Técnica e Liberdade
Jonatas Ferreira
Introdução
Ainda na década de 60, Jürgen Habermas tomou para si a tarefa de repensar o tema central daquilo que se convencionou chamar ‘processo de racionalização do ocidente’, a saber, a relação entre ciência e técnica na modernidade. Seu intuito era tanto purgar a teoria crítica de um certo viés weberiano e pessimista quanto firmar sua própria posição dentro da Escola de Frankfurt. Sob alguns aspectos, o investimento habermasiano desta época, materializado em textos como ‘Técnica e Ciência como Ideologia’, ‘Progresso Técnico e Mundo Vivido Social’, ‘Política Cientificada e Opinião Pública’, parece datado. Ele parece pressupor o welfare state. A reflexão que esse esforço promove ainda se aquece junto às chamas de 68, ainda procura recolocar o problema da liberdade num mundo que se tornara mais afluente sem que uma correspondente liberação política tivesse se verificado. Apesar disto, no que pese a falência do welfare state, a inocuidade de criticar a práxis política marxista a partir da efervescência e dos sonhos do movimento estudantil de então (1973:70-74), apesar dos limites daquela afluência, o esforço habermasiano continua mostrando vitalidade.
Qualquer que seja nossa apreciação de sua obra, a questão específica a partir da qual ela pretende abordar o problema que nos lega a tradição crítica e, num sentido amplo, a própria modernidade, há que ser considerada seriamente. Esta questão poderia ser formulada do seguinte modo: dado o entrelaçamento profundo entre ciência e técnica que, a partir do século dezenove, passa a caracterizar e determinar a história do ocidente, deveríamos aceitar como dado que o espaço reflexivo, e a perspectiva de libertação pela reflexão, passa a ser inextricável do universo da técnica? Mais que isso, aceitaríamos, como a teoria crítica chegou a formular através de Adorno e Horkheimer, que existe aqui um problema metafísico mais profundo, que a própria razão esteve desde o princípio, desde que o astuto Ulisses atou-se ao mastro de seu barco e tapou os ouvidos dos seus companheiros com cera, comprometida com sua dimensão instrumental? A formulação destas questões continua sendo orientadora, quer aceitemos ou não a perspectiva segundo a qual o “homo loquax” resgataria o “homo faber”, ou seja, que a separação entre as esferas da comunicação e da técnica deva ser sustentada como garantia da liberdade humana.
Porém, que tradição é essa sobre a qual Habermas pretende nos oferecer sua própria contribuição? Mais importante: como essa tradição nos ajuda a formular e superar o antagonismo que parece existir entre técnica e liberdade? Tomemos o depoimento de alguns de seus maiores expoentes. Tanto para Horkheimer, quanto para Adorno ou Marcuse, a relação entre ciência e técnica constitui um espaço de investimento intelectual sobre o qual não apenas a modernidade deve ser apreciada mas o próprio projeto crítico em seu esforço libertador e esclarecedor. Em 1944, Horkheimer e Adorno posicionavam-se a este respeito do seguinte modo: “O esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo da calamidade triunfal.” (Adorno/Horkheimer, 1985:19) A associação entre ciência e técnica, que Max Weber já havia pressentido como potencialmente apriosionadora, não resultou no mundo eticamente mais perfeito com o qual sonhara o Iluminismo; sua racionalidade sequer representou o controle e a integração social que o positivismo tanto desejara. Seu resultado foi antes uma brutal instrumentalização do mundo da vida.
[Enquanto estudo Hegel, vai aí outro artigo publicado há alguns anos na revista Lua Nova. Para baixar o arquivo, click aqui.]
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Teoria Crítica
quarta-feira, 21 de abril de 2010
O Politicamente Correto e o Comunismo
Cynthia Hamlin
Que existe uma relação entre o politicamente correto (PC) e um certo tipo de construtivismo social sempre me pareceu evidente: se se parte do princípio de que as palavras não apenas nomeiam, mas de alguma forma constituem os objetos a que se referem, parece óbvio que uma das maneiras de se mudar a ordem social é alterando o significado das palavras (embora já não seja tão óbvio que isso possa ser feito apenas mediante o uso de palavras diferentes, ainda que menos ideologicamente carregadas, como querem alguns defensores do PC).
Também nunca tive dúvidas acerca das raízes do politicamente correto na academia norte-americana, especialmente por meio daquelas disciplinas de alguma forma relacionadas aos estudos culturais, como é o caso dos amorfos “estudos de raça” e de gênero, cuja preocupação principal (e legítima) consiste na erradicação do racismo e do sexismo. Agora, a relação entre politicamente correto e comunismo, essa eu confesso que me escapou completamente. Pois aqui vai um vídeo do ultraconservador Bill Lindt, explicando tudo direitinho.
Sua tese central, exposta no início do vídeo, é a de que “o politicamente correto não é nada mais do que ideologia marxista – o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais”. E essa “tradução” parece seguir uma linha bastante clara para Lindt: de marxistas ocidentais como Gramsci e Lukács, passando pela Escola de Frankfurt (aparentemente os grades vilões do PC, em particular Marcuse), pela Nova Esquerda e desembocando no feminismo e nos estudos culturais.
De fato, é possível pensar acerca de todas essas tradições a partir de um denominador comum, amplamente apropriado por Marx: a negação da famosa separação operada por David Hume entre fato e valor e que é comum a todas as teorias críticas, entendidas como aquelas que se propõem a alterar a realidade que estudam, assim como suas próprias práticas teóricas e metodológicas. Também é possível pensar no desenvolvimento do marxismo ocidental em termos de uma ênfase progressiva na dimensão humanista do pensamento de Marx (talvez à exceção de Althusser) e, portanto, de elementos culturais.
O que Lindt parece “esquecer” é que, especialmente nos EUA, a tradição liberal teve uma influência muito mais marcante nisso que estou chamando genericamente de “estudos culturais” do que o marxismo. Basta pensarmos, por exemplo, na força relativa do feminismo liberal em relação ao feminismo marxista naquele país. Além disso, parece-lhe “escapar” que mesmo nas tradições de raízes claramente marxistas, como é o caso da Escola de Frankfurt, o comunismo, especialmente em sua forma histórica, o Socialismo Soviético, era encarado com ceticismo, o que lhes rendeu acusações sérias em relação a uma ausência de engajamento político – os “residentes do Grande Hotel do Abismo”, nas palavras de Lukács, que se limitavam a olhar para o abismo de dentro de seus quartos confortáveis, ocasionalmente atirando lá uma peça de mobília.
Parece-me, entretanto, que o mais complicado na “análise” de Lindt não é o que ele não sabe, mas a má-fé absoluta com a qual ele interpreta o trabalho de especialistas como Martin Jay (aliás, o que diabos o Martin Jay está fazendo em um vídeo como esse?). Algumas passagens saltam aos olhos.
“O termo teoria crítica foi buscado como um jogo de palavras. Fica-se tentado a perguntar o que é a teoria crítica. A resposta é: a teoria é “criticar”. E, mais adiante, recorre a Jay para fundamentar sua interpretação ao afirmar que “a Escola de Frankfurt teve o cuidado de não definir para quê servia – apenas contra o quê servia. Mais uma vez, Martin Jay, o historiador semi-oficial da Escola de Frankfurt”:
Mais esquisita ainda é a relação que Lindt estabelece entre a Dialética do Esclarecimento e o movimento ambientalista: “Os teóricos críticos chegaram mesmo a integrar a causa PC mais em moda, o ambientalismo, em seu marxismo cultural por meio da Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer”. E, novamente, recorre a Jay:
O estabelecimento de uma relação tão direta entre as preocupações de Adorno e Horkheimer com a racionalidade instrumental presente na técnica e o movimento ambientalista me parece tão legítimo quanto afirmar Heidegger como precursor do veganismo (exceto, talvez, pela dificuldade de justificar o gosto deste pela carne de mulheres judias).
A mesma má-fé parece estar em jogo quando recorre a Jay, em sua explicação acerca do enfraquecimento da classe operária como agente histórico hegemônico, a fim de afirmar “o papel da Escola de Frankfurt na criação [dos] grupos de vítimas que constituem a coalizão PC”:
Não resta dúvidas de que o politicamente correto é por vezes não apenas ingênuo, mas totalitário em suas críticas. O caráter inócuo de formulações como “verticalmente prejudicado/a” em substituição a “baixo/a” parece autoevidente. No entanto, ataques por parte de conservadores como Lindt, que se valem da acusação de fundamentalismo e da defesa de liberdade de expressão como pilar da democracia norte-americana, parecem esquecer que o uso de uma linguagem ofensiva pode, sim, funcionar como elemento de exclusão social. É por essa razão que não apenas os defensores de uma linguagem politicamente correta, mas também aqueles que advogam em favor da reapropriação irônica de termos originalmente derrogatórios (como o uso do termo “queer” pelo movimento gay dos EUA), enfatizam o uso da linguagem como forma de assujeitamento. E como antídoto para os exageros do PC, parece-me apropriado lembrar a ironia que estava na base do surgimento do termo “politicamente correto”, conforme mencionado por David Macey em seu Dictionary of Critical Theory (Londres: Penguin, 2000):

E, no caso brasileiro, a defesa mais interessante que vi recentemente da importância de uma linguagem politicamente correta foi feita por Antônio Prata, citada no blog Na Prática, a Teoria é Outra:
Disse tudo.
Que existe uma relação entre o politicamente correto (PC) e um certo tipo de construtivismo social sempre me pareceu evidente: se se parte do princípio de que as palavras não apenas nomeiam, mas de alguma forma constituem os objetos a que se referem, parece óbvio que uma das maneiras de se mudar a ordem social é alterando o significado das palavras (embora já não seja tão óbvio que isso possa ser feito apenas mediante o uso de palavras diferentes, ainda que menos ideologicamente carregadas, como querem alguns defensores do PC).
Também nunca tive dúvidas acerca das raízes do politicamente correto na academia norte-americana, especialmente por meio daquelas disciplinas de alguma forma relacionadas aos estudos culturais, como é o caso dos amorfos “estudos de raça” e de gênero, cuja preocupação principal (e legítima) consiste na erradicação do racismo e do sexismo. Agora, a relação entre politicamente correto e comunismo, essa eu confesso que me escapou completamente. Pois aqui vai um vídeo do ultraconservador Bill Lindt, explicando tudo direitinho.
Sua tese central, exposta no início do vídeo, é a de que “o politicamente correto não é nada mais do que ideologia marxista – o marxismo traduzido de termos econômicos para culturais”. E essa “tradução” parece seguir uma linha bastante clara para Lindt: de marxistas ocidentais como Gramsci e Lukács, passando pela Escola de Frankfurt (aparentemente os grades vilões do PC, em particular Marcuse), pela Nova Esquerda e desembocando no feminismo e nos estudos culturais.
De fato, é possível pensar acerca de todas essas tradições a partir de um denominador comum, amplamente apropriado por Marx: a negação da famosa separação operada por David Hume entre fato e valor e que é comum a todas as teorias críticas, entendidas como aquelas que se propõem a alterar a realidade que estudam, assim como suas próprias práticas teóricas e metodológicas. Também é possível pensar no desenvolvimento do marxismo ocidental em termos de uma ênfase progressiva na dimensão humanista do pensamento de Marx (talvez à exceção de Althusser) e, portanto, de elementos culturais.
O que Lindt parece “esquecer” é que, especialmente nos EUA, a tradição liberal teve uma influência muito mais marcante nisso que estou chamando genericamente de “estudos culturais” do que o marxismo. Basta pensarmos, por exemplo, na força relativa do feminismo liberal em relação ao feminismo marxista naquele país. Além disso, parece-lhe “escapar” que mesmo nas tradições de raízes claramente marxistas, como é o caso da Escola de Frankfurt, o comunismo, especialmente em sua forma histórica, o Socialismo Soviético, era encarado com ceticismo, o que lhes rendeu acusações sérias em relação a uma ausência de engajamento político – os “residentes do Grande Hotel do Abismo”, nas palavras de Lukács, que se limitavam a olhar para o abismo de dentro de seus quartos confortáveis, ocasionalmente atirando lá uma peça de mobília.
Parece-me, entretanto, que o mais complicado na “análise” de Lindt não é o que ele não sabe, mas a má-fé absoluta com a qual ele interpreta o trabalho de especialistas como Martin Jay (aliás, o que diabos o Martin Jay está fazendo em um vídeo como esse?). Algumas passagens saltam aos olhos.
“O termo teoria crítica foi buscado como um jogo de palavras. Fica-se tentado a perguntar o que é a teoria crítica. A resposta é: a teoria é “criticar”. E, mais adiante, recorre a Jay para fundamentar sua interpretação ao afirmar que “a Escola de Frankfurt teve o cuidado de não definir para quê servia – apenas contra o quê servia. Mais uma vez, Martin Jay, o historiador semi-oficial da Escola de Frankfurt”:
A própria teoria critica relutava em se colocar em uma camisa de força de sistematização e desafiava sua redução a uma definição única.
Mais esquisita ainda é a relação que Lindt estabelece entre a Dialética do Esclarecimento e o movimento ambientalista: “Os teóricos críticos chegaram mesmo a integrar a causa PC mais em moda, o ambientalismo, em seu marxismo cultural por meio da Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer”. E, novamente, recorre a Jay:
Eles [os teóricos da teoria crítica] estavam interessados no que chamavam de dominação da natureza. A Dialética do Esclarecimento deslocou a ênfase da dominação econômica para a dominação do mundo natural pela espécie [humana], inclusive daquilo que poderia ser visto como uma natureza interna, com base na compreensão psicanalítica da repressão. Então, eles estavam muito interessados em reconhecer que precisamos de uma relação mais cuidadosa e, digamos, equilibrada, entre a humanidade e o mundo natural.
O estabelecimento de uma relação tão direta entre as preocupações de Adorno e Horkheimer com a racionalidade instrumental presente na técnica e o movimento ambientalista me parece tão legítimo quanto afirmar Heidegger como precursor do veganismo (exceto, talvez, pela dificuldade de justificar o gosto deste pela carne de mulheres judias).
A mesma má-fé parece estar em jogo quando recorre a Jay, em sua explicação acerca do enfraquecimento da classe operária como agente histórico hegemônico, a fim de afirmar “o papel da Escola de Frankfurt na criação [dos] grupos de vítimas que constituem a coalizão PC”:
... a classe trabalhadora já não poderia desempenhar o papel hegemônico que os marxistas tradicionais esperavam dela e, assim, eles esperavam que os estudantes, os negros, as mulheres e outros grupos minoritários estivessem aptos a se unir.
Não resta dúvidas de que o politicamente correto é por vezes não apenas ingênuo, mas totalitário em suas críticas. O caráter inócuo de formulações como “verticalmente prejudicado/a” em substituição a “baixo/a” parece autoevidente. No entanto, ataques por parte de conservadores como Lindt, que se valem da acusação de fundamentalismo e da defesa de liberdade de expressão como pilar da democracia norte-americana, parecem esquecer que o uso de uma linguagem ofensiva pode, sim, funcionar como elemento de exclusão social. É por essa razão que não apenas os defensores de uma linguagem politicamente correta, mas também aqueles que advogam em favor da reapropriação irônica de termos originalmente derrogatórios (como o uso do termo “queer” pelo movimento gay dos EUA), enfatizam o uso da linguagem como forma de assujeitamento. E como antídoto para os exageros do PC, parece-me apropriado lembrar a ironia que estava na base do surgimento do termo “politicamente correto”, conforme mencionado por David Macey em seu Dictionary of Critical Theory (Londres: Penguin, 2000):
Embora seja parte do senso-comum afirmar que a demanda por correção política indica uma aborrecida ausência de qualquer senso de humor, existem evidências de que o inverso seja verdadeiro. A expressão [politicamente correto], e a correlata “ideologicamente correto”, podem ter se originado no feminismo dos anos de 1970, quando broches dizendo “Eu sou uma feminista sem senso-de-humor” gozaram de alguma popularidade e podiam ser usados em um sentido auto-derrogatório. Um cartão postal amplamente circulado naquela época reproduzia uma fotomontagem de Ray Lowry no qual uma mulher diz para um homem: “Eu poderia tê-la tornado tão feliz, Beryl...”. Uma amiga responde, no lugar de Beryl: “Ela não quer ser feliz, Graham. Ela quer ser ideologicamente correta...”. Beryl acrescenta “Isso mesmo!”.

E, no caso brasileiro, a defesa mais interessante que vi recentemente da importância de uma linguagem politicamente correta foi feita por Antônio Prata, citada no blog Na Prática, a Teoria é Outra:
Imagine uma escola religiosa na Dinamarca. Flores nas janelas, cheiro de lavanda no ar, vinte alunos loiros, com cristo no coração e leite A correndo pelas veias, respondendo a uma chamada oral sobre o Pequeno Príncipe. Ali, o garoto que se levantar e cuspir no chão será ousado. Mostrará que a despeito do aroma de lavanda, o ser humano é áspero, é contraditório, é violento. Quando a realidade fica muito Saint-Exupéry, é importante que surjam uns Sex Pistols para equilibrar. Agora, cuspir no chão de uma escola municipal em São Paulo, diante da professora assustada que não consegue fazer com que os alunos, analfabetos aos dez anos, fiquem quietos, não tem nenhuma valentia. Quando a realidade da polis é o caos, o som e a fúria são a correção política.
O sarcasmo dirigido aos intelectuais de esquerda seria audaz e iconoclasta caso o Brasil tivesse vivido de 37 a 45 e de 64 a 85 sob as ditaduras de Antonio Candido e Paulo Freire. Se antropólogos de pochete e índios com camisa do Flamengo estivessem ameaçando o agronegócio, devastando lavouras de soja para plantar urucum e cabaça para fazer berimbau. Se durante o carnaval as feministas pusessem no lugar da Globeleza drops de filosofia com Marilena Chauí e Susan Sontag. Se a guitarra elétrica fosse banida da MPB pela banda de pífanos de Caruaru. Do jeito que as coisas são, contudo, o neoconservadorismo faz sucesso não porque choca a burguesia, ao cuspir no solo de onde brotam seus nobres valores, mas porque assina embaixo da barbárie vigente – e ri dela.
Disse tudo.
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
Hermenêutica Filosófica

O texto abaixo, anônimo, foi escrito a ponta de facão no balcão de uma bodega no Passo do Elesbão, hoje Tapera, Rio Grande do Sul. Segundo José de Souza Martins, trata-se de um pasquim, narrativa anônima muito comum no Brasil até o século XVIII e geralmente escrito em papel e pregado em mourões e porteiras pelas estradas, contendo denúncia ou protesto. Recebi-o por e-mail e compartilho-o aqui com vocês.
Inicialmente, achei tratar-se de um exemplar de hermenêutica bíblica, à maneira de Lutero. O estranhamento surgiu quando, ao ler a conclusão, achei que ela não era muito compatível com a “tradução” luterana dos dez mandamentos. Especulei então que não se trata de uma tentativa de desvelar o verdadeiro significado das escrituras sagradas, mas diz respeito a um problema muito mais fundamental, trabalhado pela hermenêutica filosófica de Gadamer: a compreensão como um “evento” linguisticamente mediado da tradição. A manifestação da tradição ficou clara, assim como os preconceitos e a “fusão de horizontes” do texto bíblico e de seu intérprete. O problema é que, como sabemos, ao perceber os preconceitos por um viés positivo, Gadamer acaba por considerar a autoridade e a tradição como fontes legítimas de conhecimento. Mas será isso mesmo, ou será que Habermas está certo em ver na ausência de crítica à tradição um empecilho ao entendimento? Sei lá, talvez o fato de a interpretação ter sido feita em uma bodega tenha influenciado: vai ver Hermes encontrou Dionísio no caminho e a experiência que deveria desvelar o mundo foi etílica, em vez de estética...
Cynthia Hamlin
O causo das Escrituras
Pois não sei se já les contei o causo das Escrituras Sagradas.
Se não les contei, les conto agora. A história essa é meio comprida, mas vale a pena contá por causa dos revertério.
De Adão e Eva acho que não é perciso contá os causo, porque todo mundo sabe que os dois foram corrido do Paraíso por tomá banho pelado numa sanga.
Naqueles tempo, esse mundaréu todo era um pasto só sem dono, onde não tinha nem dele nem meu. O primeiro índio a botá cerca de arame foi um tal de Abel. Mas nem chegou a estendê o primeiro fio porque levou um pontaço no peito do irmão dele, um tal de Caim, que tava meio desconforme com a divisão.
O Caim, entonces, ameaçado de processo feio, se bandeou pro Uruguay. Deixou o filho dele, um tal de Noé, tomando conta da estância. A estância essa ficava nas barranca de uma corredera e o Noé, uns ano despois, pegou uma enchente muito feia pela frente. Cosa munto séria. Caiu água uma barbaridade. Caiu tanta água que tinha até índio pescando jundiá em cima de cerro.
O Noé entonces botou as criação em cima de uma balsa e se largou nas correnteza, o índio velho. A enchente era tão braba que quando o Noé se deu conta a balsa tava atolado num banhado chamado Dilúvio.
Foi aí que um tal de Moisés varou aquela água toda com vinte junta de boi e tirou a balsa do atoleiro. Bueno, aí com aquele desporpósito, as família ficaram amiga. A filha mais velha do Noé se casou-se com o filho mais novo do Moisés e os dois foram morá numa estância muito linda, chamada estância da Babilônica.
Bueno, tavam as família ali, tomando mate no galpão, quando se chegou um correntino chamado Golias, com mais uns trinta castelhano do lado dele. Abriram a cordeona e quiseram obrigá as prenda a dançá uma milonga. Foi quando os velho, que eram de muito respeito, se queimaram e deu-se o entrevero. Peleia braba, seu. O correntino Golias, na voz de vamos, já se foi e degolou de um talho só o Noé e o velho Moisés. E já tava largando planchaço em cima do mulherio quando um piazito carretero, de seus dez ano e pico, chamado Davi, largou um bodocaço no meio da testa do infeliz que não teve nem graça. Foi me acudam e tou morto.
Aí a indiada toda se animou e degolaram os castelhano. Dois que tinham desrespeitado as prenda foram degolado com o lado cego do facão. Foi uma sanguera danada. Tanto que até hoje aquele capão é chamado de Mar Vermelho.
Mas entonces foi nomeado delegado um tal de major Salomão. Homem de cabelo nas venta, o major Salomão. Nem les conto! Um dia o índio tava sesteando quando duas velha se bateram em cima dum guri de seus seis ano que tava vendendo pastel. O major Salomão, muito chegado ao piazito, passou a mão no facão e de um taio só cortou as velha em dois. Esse é o muito falado causo do Perjuízo de Salomão que contam por aí. Mas, por essas estimativas, o major Salomão, o que tinha de brabo tinha de mulherengo. Eta índio bueno, seu. Onde boleava a perna, já deixava filho feito. E como vivia boleando a perna, teve filho que Deus nos livre. E tudo com a cara dele, que era pra não havê discordância. Só que quando Deus nosso Senhor quer, até égua véia nega estribo. Logo a filha das predileção do major Salomão, a tal de Maria Madalena, fugiu da estância e foi sê china de bolicho. Uma vergonhera pra família. Mas ela puxou a mãe, que era uma paraguaia meio gaudéria que nunca tomô jeito na vida. O pobre do major Salomão se matou-se de sentimento, com uma pistola Eclesiaste de dois cano.
Mas, vejam como é a vida. Pois essa mesma Maria Madalena se casou-se três ano despois com um tal de coronel Ponciano Pilatos. Foi ele que tirou ela da vida. Eu conheço uns três caso do mesmo feitio e nem um deles deu certo. Como dizia muito bem o finado meu pai, mulher quando toma mate em muita bomba, nunca mais se acostuma com uma só.
Mas nesses contraproducente, até que houve uma contrapartida. O coronel Ponciano Pilatos e a Maria Madalena tiveram doze filho, os tal de aposto, que são muito conhecido pelas caridade que fizeram. Foi até na casa deles que Jesus Cristo churrasqueou com a cunhada de Maria Madalena, que despois foi santa muito afamada. A tal de Santa Ceia.
Pois era uns tempo muito mal definido. Andava uma seca braba pelos campo. São José e a Virge Maria tinham perdido todo o gado e só tavam com uma mula branca no potrero, chamada Samaritana. Um rico animal, criado em casa, que só faltava falá. Pois tiveram que se desfazê do pobre.
E como as desgraça quando vem, já vem de braço dado, foi bem aí que estouraram as revolução. Os maragato, chefiado por um tal de coronel Jordão, acamparam na entrada da Vila. Só não entraram porque tava lá um destacamento comandado pelo tenente Lazo, aquele mesmo que por duas vez foi dado por morto.
Mas aí um cabo dos provisório, um tal de cabo Judas, se passou-se pros maragato e já se veio uns tal de Romano, que tavam numas várzeas, e ocuparam a Vila. Nosso Senhor foi preso pra ser degolado por um preto muito forte e muito feio chamado Calvário. Pois vejam como é a vida. Esse mesmo preto Calvário, degolador muito mal afamado, era filho da velha Palestina, que tinha sido cozinheira da Virge Maria. Degolador é como cobra, desde pequeno já nasce ingrato.
Mas entonces botaram Nosso Senhor na cadeia, junto com dois abigeatário, um tal de João Batista e o primo dele, Heródio dos Reis. Os dois tinham peleado por causo de uma baiana chamada Salomé e no entrevero balearam dois padre, monsenhor Caifás e o cônego Atanásio. Mas aí veio uma força da Brigada, comandada pelo coronel Jesus Além, que era meio parente do homem por parte de mãe e com ele veio mais três corpo de provisório e se pegaram com os maragatos. Foi a peleia mais feia que se tem conhecimento.
Foi quarenta dia e quarenta noite de bala e bala. Morreu três santo na luta: São Lucas, São João e São Marco. São Mateus ficou três mês morre não morre, mas teve umas atenuante a favor e salvou-se o índio. Nosso Senhor pegou três balaço, um em cada mão e um que varou os pé de lado a lado. Ainda levou mais um pontaço do mais velho dos Romanos, o César Romano, na altura das costela. Ferimento muito feio que Nosso Senhor curou tomando vinagre na sexta-feira da paixão.
Mas aí, Nosso Senhor se desiludiu-se dos home, subiu na Cruz, disse adeus pros amigo e se mandou-se de volta pro céu. Mas deixou os dez mandamentos, que são cinco e que se pode muito bem acolherá em dois:
Não se mata home pelas costa,
Nem se cobiça mulher dos outro pela frente.
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quinta-feira, 8 de maio de 2008
Anotações: Hegel, Escola de Frankfurt e Habermas

Estou dando, nesse momento, a seguinte disciplina (o nome tem pompa e circunstância, é verdade): “Sociologia política da democracia contemporânea”. Sinceramente, a elaboração dessa disciplina teve uma motivação bem pessoal. Faz tempo que quero escapar, mesmo que en passant, da minha área de estudo; faz um tempo excessivo que só discuto sociologia da saúde; enfim, faz tempo que quero, sendo impossível fugir da saúde, esse eterno grude na alma, discutir e estudar política. Por quê? Ora, porque sempre gostei de política, afinal, num outro mundo, numa outra época, fazia e discutia política, embora tenha uma certa dificuldade com a chamada “ciência política”.
Bem, mas chega de proselitismo. Minha idéia é transcrever aqui as minhas anotações de aula. Com isso, meus interlocutores terão acesso às sistematizações das explanações (ou das viagens na maionese, como queiram), livrando-se do caos das notas e do quadro-negro (essa entidade que suga, feito um buraco negro, qualquer inteligibilidade de minha parte). A idéia, até pelas características dum blog, já que textos longos sobrecarregam a leitura, é discutir, discutir... em várias postagens — um dia, hei de acabar, para felicidade geral da nação. Evidentemente, sistematizar as anotações pode levar a discussões que não foram realizadas em sala de aula, o que, convenhamos, não deixa de ser uma vantagem, pois haverá acréscimo de análise e de informação — além do fato mais óbvio de que o debate e as polêmicas poderão continuar no espaço dos comentários.
Nesse primeiro momento, tratarei das diversas polêmicas em torno das posições de Habermas, Rawls, Rorty e Taylor. Tais debates giram em torno dos confrontos entre (um certo) republicanismo (Habermas) e liberalismo (Rawls), entre esse mesmo republicanismo e um certo liberalismo etnocentrista (Rorty), e a grande querela entre o liberalismo político (Rawls) e o comunitarismo (Taylor).
Começo por Habermas. Neste post, iniciarei uma breve apresentação de suas posições . Com esse objetivo, segui a boa introdução de Flávio Beno Siebeneichler (nome absolutamente impronunciável; por isso, não ousei proferi-lo, com medo de gaguejar e perder o controle moral sobre os discentes), “Jurgen Habermas: razão comunicativa e emancipação”. O único defeito desse livro é a inexplicável ausência do papel do pragmatismo americano na obra do pensador alemão.
Falar em Habermas, quando examinamos suas origens intelectuais, é falar da Escola de Frankfurt. Antes que alguém entre em desespero com a “dialética negativa” e com as aporias da razão instrumental, aviso logo que a herança frankfurtiana em Habermas é palpável, principalmente na sua relação com o conhecimento, isto é, com a sua tentativa de tornar a teoria crítica, de fato, numa teoria “emancipatória”. Nesse sentido, Habermas é um frankfurtiano que tentou superar os impasses de Frankfurt e, ao superá-los, deixou de ser... frankfurtiano. Ora, nessa tentativa de superação, Habermas seguiu, ainda nos seus traços gerais, uma agenda “marxista”. Assim, por exemplo, há uma preocupação quase compulsiva que aparece constantemente nos seus escritos: a relação entre a teoria e a práxis. Nessa relação, a teoria teria como função explicitar a inscrição ou o “enraizamento” do conhecimento na práxis social. Sendo a teoria, conhecimento, ela mesma estaria imersa na práxis, e sendo histórica, a práxis, a teoria procuraria explicitar sua própria gênese no processo histórico.
Na verdade, a idéia de uma teoria social que explicite sua historicidade não é apenas um projeto marxista ou da Escola de Frankfurt (principalmente, a sua concepção original, na qual pontuava as posições de Horkheimer), mas, sobretudo, um plano hegeliano. O que exigia Hegel? Que a filosofia assumisse sua historicidade, isto é, sua conexão profunda com a história da filosofia (logo, com o passado) e, eis a inovação, sua inscrição no seu tempo — na contemporaneidade. Aqui, o fundamental é a apreensão do presente pelo pensamento, inclusive assumindo todas as redefinições que a teoria poderá sofrer durante o processo. Contudo, há um limite nítido no objetivo hegeliano: como assumir completamente a transformação que a imersão histórica traz ao pensamento, se a apreensão do presente passa ainda pelo crivo de uma pesada metafísica da história (filosofia da história)? Sim, como de fato inscrever o pensamento na história, procurando ao mesmo tempo o sentido último do processo histórico ou a interpretação definitiva do presente e do passado? Ou, em outros termos, como fica a transcendência, se o objetivo é explicitar a historicidade do pensamento? Não fica simplesmente, pois a historicidade é um corrosivo mortal para qualquer transcendência. Se tudo é história, como afirmou Marx, todo processo é imanente.
Qual seria, assim, a solução? Talvez, reinscrever o plano hegeliano de explicitar a historicidade do pensamento num contexto pós-metafísico. Mais ainda: a vocação de pensar o presente precisaria da ligação profunda do pensamento filosófico com as ciências empíricas ou, em outros termos, com os saberes positivos, que têm como objeto esse mesmo presente e um conhecimento metodológico e empiricamente fundado na contemporaneidade. Tal ligação é essencial, pois senão todo discurso sobre o presente histórico pode tornar-se vazio e arbitrário — com o esquecimento desse lema prosaico, Adorno renegou as pretensões originais de Frankfurt e passou a denunciar as ciências empíricas, em particular a sociologia, agora cúmplice da reificação do mundo.
Na minha opinião, Habermas jamais abandonou essa idéia “hegeliana” da Escola de Frankfurt, justamente a sua idéia original, de que tanto prezava Horkheimer: a filosofia não pode mais assumir suas tarefas clássicas, particularmente seus objetivos críticos e de emancipação, sem se tornar um pensamento do presente histórico. E, para isso, precisa conectar-se profundamente às ciências empíricas. Mas, na conexão, subtende-se um valor-guia, que esclarece a própria natureza da conexão: o pensamento, para apreender o presente histórico, só o conseguirá, de fato, sendo crítico e tendo como guia axiológico a emancipação. Por isso, Horkheimer faz uma interessante distinção entre saberes, recusando os dualismos típicos preconizados no campo do conhecimento (ciências exatas x ciências humanas; ciências da natureza x ciências da cultura; ciências nomotéticas x ciências "compreensivas"...). O dualismo será de outra natureza. A diferença residirá, assim, entre uma ciência que tem como objeto o presente histórico, mas que permanece “neutra” em relação às conseqüências transformativas que implica tal conhecimento, e uma ciência que assume totalmente seu papel crítico e, conseqüentemente, sua contribuição para a transformação prática da realidade; em suma, sua vocação à emancipação.
Habermas deduzirá, dessa relação umbilical do pensamento com o presente histórico, de seu papel crítico e de sua vocação à emancipação, um nexo essencial entre teoria e práxis ou, em outras palavras, uma unidade profunda entre conhecimento e interesse.
Mas essa questão e o motivo pelo qual a Escola de Frankfurt esqueceu de seus princípios originais serão temas da próxima postagem. Sei, sei, foi uma parada dramática, mas toda tragédia continua... no outro dia.
Referência:
SIEBENEICHER, Flávio Beno (1989). Jurgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
Artur Perrusi
terça-feira, 29 de abril de 2008
Marcuse, Horkheimer, Adorno, o expressionismo e cerveja Brahma

Enquanto escuto Dança da Cabeças , que não escutava havia uns vinte anos (o disco de Naná e Gismonti pertence agora a uma dessas multinacionais da vida e custa uma fortuna), termino os apontamentos para um seminário da pósgraduação sobre Marcuse (O Homem Unidimensional), Adorno e Horkheimer (Dialética do Esclarecimento) e o expressionismo alemão (uso como textos básicos para este último tema um texto de Mario Micheli (‘O protesto do expressionismo’) e outro de R. Sheppard (‘O expressionismo alemão). Pois então, continuo meu caminho, associando reflexão sociológica, filosófica e estética. Apesar de haver uma afinidade eletiva entre as críticas da Escola de Frankfurt à civilização tecnológica - à modernidade como projeto civilizador que levava fatalmente à vitória da razão instrumental, à ossificação das relações sociais, à mecanização da vida, por um lado - e o grito expressionista contra a sociedade burguesa - contra a acomodação impressionista, sua docilidade em ‘representar’ objetivamente essa sociedade sem criticá-la, por outro - a proposta do tal seminário não é traçar linhas de influência dos artista sobre os filósofos.
O nosso interessante mesmo é perceber esse ambiente cultural que antecede a primeira guerra mundial levantando questões que seriam tratadas pelo dadaísmo e surrealismo, mas também, e isso é o que nos interessa particularmente, problemas sobre os quais se debruçariam com uma esperança mínima Marcuse, Adorno e Horkeheimer. Entre os expressionistas e os frankfurtianos há um intervalo significativo de duas guerras terríveis.
[E neste ponto tive de parar para coordenar o tal seminário]
Volto um dia depois bastante impressionado com o seminário que apresentaram Manoel Sotero, Paula Santana e Henrique Miranda, e ainda sob o impacto da apresentação de Nuit et Brouillard, documentário (1955) de Alain Resnais, sobre os campos de concentração alemães. A projeção do documentário foi uma contribuição do trio. Esse é de fato um bom lugar para começar a pensar sobre A dialética do Esclarecimento e O Homem Unidimensional, de um lado, e obras de arte como o Despertar da Primavera (de Frank Wedekind), O Gabinete de Doutor Caligari (dirigido Robert Wiene), Golem (dirigido Paul Wegener, Carl Boese), Metrópolis (Fritz Lang), de outro. Esses dois momentos são separados por duas guerras mundiais. É bem verdade que há alguns ajustes quanto às datas que precisamos fazer: Wedekind escreveu o Despertar em 1891, mas os filmes mencionados foram realizados durante ou logo após a primeira guerra mundial – momento em que o expressionismo já mostra sinais de extenuação na literatura, artes plásticas. A primeira guerra mundial foi um acontecimento decisivo para que esse esgotamento fosse percebido.
“De certa forma, a política estética, os sonhos utópicos e o intelectualismo abstrato, que caracterizavam, por volta de 1916, o lado literário do movimento eram vistos como uma resposta inadequada e mesmo conservadora às realidades do século XX” (Sheppard, Richard. 1999. Modernismo. Guia Geral, p. 233).
O ódio dos expressionistas à sociedade burguesa, sua convicção de que “as instituições do capitalismo industrial mutilavam e distorciam a natureza humana, desenvolvendo o intelecto e a vontade a serviço da produção material, descurando da alma, dos sentimentos e da imaginação” (Sheppard, p. 225) será apropriado por várias outras vanguardas modernistas, como o dadaísmo e o surrealismo. Esse tom juvenil e iracundo irá se tornar, no pensamento dos frankfurtianos que tiveram de fugir da Alemanha nas décadas de 30 e 40, amargo e, não apenas pessimista, mas desesperado.
Uma tarefas centrais que essa geração de teóricos alemães passa a se propor é procurar expandir as promessas de liberdade do marxismo para pensar o problema da subjetividade. O materialismo histórico e dialético tinha se mostrado pobre para pensar esse problema e a importância revolucionária das idéias na história - ora, qual o sentido geral do Razão e Revolução, de Hebert Marcuse, senão tratar essa deficiência? Neste ponto, tanto o totalitarismo nazi-facista quanto o bolchevismo stalinista mostravam que a questão da liberdade do indivíduo era, mais que um problema do capitalismo, um problema da civilização industrial como um todo. Tanto na Dialética do Esclarecimento, quanto no Homem Unidimensional, o grande vilão é a tecnociência que provém do industrialismo, ou daquilo que Mumford chamará de megamáquinas. Porém, e esse é um ponto importante, já a defesa expressionista de uma subjetividade autêntica adiantava essa preocupação.
Nietzsche, um dos principais ancestrais do expressionismo, falara em Dioniso como um a energia amoral e anárquica, e, ao mesmo tempo, como uma energia auto-reguladora. Da mesma forma, e em período mais recente, Hebert Marcuse definiu Eros como aquilo que “não conhece nenhum valor, nem o bem nem o mal, nenhuma moral”, mas adiante sugere que existe uma “autocontenção natural” em Eros. (Sheppard, p. 227)
Marcuse, como de resto Horkheimer e Adorno, parecem ver pouca chance que uma saída para a modernidade técnica possa ser tentada; as perspectivas, esperanças de liberdade subjetivas parecem sepultadas. Afinal, o capitalismo, através de suas megamáquinas de produção cultural, invadira todos os espaços a partir dos quais o sujeito pudesse exercer crítica, clamar por liberdade. A liberdade no capitalismo maduro, dirá Marcuse, é apenas uma liberdade de escolha entre a marca A e a marca B. O capitalismo, acredita ele, promoveu a colonização do desejo. Essa esfera, no entanto, esteve comumente associada à possibilidade de uma tensão entre coletivo e individual. A produção em massa, entretanto, promove uma 'dessublimação repressiva', responde aos nossos anseios mais ocultos, mais íntimos, com uma resposta fácil: consuma. Em um texto famoso, Benjamin também dirá que o capitalismo projeta nossos sonhos e pesadelos em uma tela de cinema. Deste modo, poderíamos dizer, por exemplo que as propagandas brasileiras fazem com que os heterossexuais consumam cerveja pelo pinto – todas aquelas morenas, loiras, ruivas gelando nossas cervejas e esquentando nosso... coração. Marcelo Miranda disse no seminário algo ainda mais preciso: as propagandas de cerveja “bebem nosso pinto”. Essa é a cena triste, o pesadelo sobre o qual Marcuse procura refletir, e que corresponde ao triste diagnóstico que encontramos na Dialética do Esclarecimento: o destino da razão é se tornar instrumental, o destino da construção da subjetividade racional é controlar, dilapidar a natureza e dela se alienar.
O fatalismo da Escola de Frankfurt (desta que alguns chamam sua segunda geração) é bem conhecido. Evidentemente, ele pode ser criticado – trabalho que não farei aqui, esperando que os seminaristas de ontem completem meu pequeno texto nos comentários - uma sugestão: a relação que há entre o uso que Marcuse faz, mas também Horkheimer e Adorno, do conceito de mimesis e a incapacidade que eles mostram em pensar a comunicação a partir da recepção.
Acredito, todavia, ser imporante compreender aquele fatalismo também à luz da confluência entre “welfare State” e “warfare State” [Estado de Bem Estar e Estado de Guerra, para usarmos a expressão de Marcuse], da consolidação da “ciência e técnica como ideologia”, a disseminação do pressuposto de que o progresso técnico é um fim em si mesmo. Anos mais tarde, Hannah Arendt concluirá: já não podemos mais pensar o político: todas as questões que poderíamos fazer sobre a vida que acreditamos ser digna de viver foram transformadas em decisões sobre a melhor forma de administrar nossa vida biológica. Em outras palavras, poderíamos dizer que ela acredita que a economia comeu o político e tudo o que as democracias liberais ocidentais podem oferecer é uma pobre caricatura dessa que é uma abertura fundamental para a condição humana.
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(por editar)
Jonatas Ferreira
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