quinta-feira, 8 de maio de 2008

Anotações: Hegel, Escola de Frankfurt e Habermas


Estou dando, nesse momento, a seguinte disciplina (o nome tem pompa e circunstância, é verdade): “Sociologia política da democracia contemporânea”. Sinceramente, a elaboração dessa disciplina teve uma motivação bem pessoal. Faz tempo que quero escapar, mesmo que en passant, da minha área de estudo; faz um tempo excessivo que só discuto sociologia da saúde; enfim, faz tempo que quero, sendo impossível fugir da saúde, esse eterno grude na alma, discutir e estudar política. Por quê? Ora, porque sempre gostei de política, afinal, num outro mundo, numa outra época, fazia e discutia política, embora tenha uma certa dificuldade com a chamada “ciência política”.

Bem, mas chega de proselitismo. Minha idéia é transcrever aqui as minhas anotações de aula. Com isso, meus interlocutores terão acesso às sistematizações das explanações (ou das viagens na maionese, como queiram), livrando-se do caos das notas e do quadro-negro (essa entidade que suga, feito um buraco negro, qualquer inteligibilidade de minha parte). A idéia, até pelas características dum blog, já que textos longos sobrecarregam a leitura, é discutir, discutir... em várias postagens — um dia, hei de acabar, para felicidade geral da nação. Evidentemente, sistematizar as anotações pode levar a discussões que não foram realizadas em sala de aula, o que, convenhamos, não deixa de ser uma vantagem, pois haverá acréscimo de análise e de informação — além do fato mais óbvio de que o debate e as polêmicas poderão continuar no espaço dos comentários.

Nesse primeiro momento, tratarei das diversas polêmicas em torno das posições de Habermas, Rawls, Rorty e Taylor. Tais debates giram em torno dos confrontos entre (um certo) republicanismo (Habermas) e liberalismo (Rawls), entre esse mesmo republicanismo e um certo liberalismo etnocentrista (Rorty), e a grande querela entre o liberalismo político (Rawls) e o comunitarismo (Taylor).

Começo por Habermas. Neste post, iniciarei uma breve apresentação de suas posições . Com esse objetivo, segui a boa introdução de Flávio Beno Siebeneichler (nome absolutamente impronunciável; por isso, não ousei proferi-lo, com medo de gaguejar e perder o controle moral sobre os discentes), “Jurgen Habermas: razão comunicativa e emancipação”. O único defeito desse livro é a inexplicável ausência do papel do pragmatismo americano na obra do pensador alemão.

Falar em Habermas, quando examinamos suas origens intelectuais, é falar da Escola de Frankfurt. Antes que alguém entre em desespero com a “dialética negativa” e com as aporias da razão instrumental, aviso logo que a herança frankfurtiana em Habermas é palpável, principalmente na sua relação com o conhecimento, isto é, com a sua tentativa de tornar a teoria crítica, de fato, numa teoria “emancipatória”. Nesse sentido, Habermas é um frankfurtiano que tentou superar os impasses de Frankfurt e, ao superá-los, deixou de ser... frankfurtiano. Ora, nessa tentativa de superação, Habermas seguiu, ainda nos seus traços gerais, uma agenda “marxista”. Assim, por exemplo, há uma preocupação quase compulsiva que aparece constantemente nos seus escritos: a relação entre a teoria e a práxis. Nessa relação, a teoria teria como função explicitar a inscrição ou o “enraizamento” do conhecimento na práxis social. Sendo a teoria, conhecimento, ela mesma estaria imersa na práxis, e sendo histórica, a práxis, a teoria procuraria explicitar sua própria gênese no processo histórico.

Na verdade, a idéia de uma teoria social que explicite sua historicidade não é apenas um projeto marxista ou da Escola de Frankfurt (principalmente, a sua concepção original, na qual pontuava as posições de Horkheimer), mas, sobretudo, um plano hegeliano. O que exigia Hegel? Que a filosofia assumisse sua historicidade, isto é, sua conexão profunda com a história da filosofia (logo, com o passado) e, eis a inovação, sua inscrição no seu tempo — na contemporaneidade. Aqui, o fundamental é a apreensão do presente pelo pensamento, inclusive assumindo todas as redefinições que a teoria poderá sofrer durante o processo. Contudo, há um limite nítido no objetivo hegeliano: como assumir completamente a transformação que a imersão histórica traz ao pensamento, se a apreensão do presente passa ainda pelo crivo de uma pesada metafísica da história (filosofia da história)? Sim, como de fato inscrever o pensamento na história, procurando ao mesmo tempo o sentido último do processo histórico ou a interpretação definitiva do presente e do passado? Ou, em outros termos, como fica a transcendência, se o objetivo é explicitar a historicidade do pensamento? Não fica simplesmente, pois a historicidade é um corrosivo mortal para qualquer transcendência. Se tudo é história, como afirmou Marx, todo processo é imanente.

Qual seria, assim, a solução? Talvez, reinscrever o plano hegeliano de explicitar a historicidade do pensamento num contexto pós-metafísico. Mais ainda: a vocação de pensar o presente precisaria da ligação profunda do pensamento filosófico com as ciências empíricas ou, em outros termos, com os saberes positivos, que têm como objeto esse mesmo presente e um conhecimento metodológico e empiricamente fundado na contemporaneidade. Tal ligação é essencial, pois senão todo discurso sobre o presente histórico pode tornar-se vazio e arbitrário — com o esquecimento desse lema prosaico, Adorno renegou as pretensões originais de Frankfurt e passou a denunciar as ciências empíricas, em particular a sociologia, agora cúmplice da reificação do mundo.

Na minha opinião, Habermas jamais abandonou essa idéia “hegeliana” da Escola de Frankfurt, justamente a sua idéia original, de que tanto prezava Horkheimer: a filosofia não pode mais assumir suas tarefas clássicas, particularmente seus objetivos críticos e de emancipação, sem se tornar um pensamento do presente histórico. E, para isso, precisa conectar-se profundamente às ciências empíricas. Mas, na conexão, subtende-se um valor-guia, que esclarece a própria natureza da conexão: o pensamento, para apreender o presente histórico, só o conseguirá, de fato, sendo crítico e tendo como guia axiológico a emancipação. Por isso, Horkheimer faz uma interessante distinção entre saberes, recusando os dualismos típicos preconizados no campo do conhecimento (ciências exatas x ciências humanas; ciências da natureza x ciências da cultura; ciências nomotéticas x ciências "compreensivas"...). O dualismo será de outra natureza. A diferença residirá, assim, entre uma ciência que tem como objeto o presente histórico, mas que permanece “neutra” em relação às conseqüências transformativas que implica tal conhecimento, e uma ciência que assume totalmente seu papel crítico e, conseqüentemente, sua contribuição para a transformação prática da realidade; em suma, sua vocação à emancipação.

Habermas deduzirá, dessa relação umbilical do pensamento com o presente histórico, de seu papel crítico e de sua vocação à emancipação, um nexo essencial entre teoria e práxis ou, em outras palavras, uma unidade profunda entre conhecimento e interesse.

Mas essa questão e o motivo pelo qual a Escola de Frankfurt esqueceu de seus princípios originais serão temas da próxima postagem. Sei, sei, foi uma parada dramática, mas toda tragédia continua... no outro dia.

Referência:

SIEBENEICHER, Flávio Beno (1989). Jurgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

Artur Perrusi

7 comentários:

Le Cazzo disse...

Bom ler seus textos neste Cazzo, Artur. Estou curioso para ver a continuação desta boa introdução ao pensamento político de Habermas. Abraço, Jonatas

Le Cazzo disse...

E mais um comentário: por que Deus é tão bom e generoso com uns e a outros apenas a panela do feijão queimado para lavar? Velho, esse cabelinho repartido e abundante do jovem Jürgen dá uma inveja do cacete! Qual será o shampoo que ele usava? Jonatas

Anônimo disse...

Arture,

Perfeito o seu timing: daqui a duas semanas, estarei introduzindo o pensamento de Habermas no meu curso de teoria contemporânea da graduação. Aproveito, portanto, para explorar sua expertise.

Como você mesmo indica em seu texto, Habermas estabelece uma divisão entre as ciências intrisecamente ligadas ao interesse emancipatório e aquelas ligadas a fins instrumentais. Será que este dualismo não pressupõem uma crítica extremamente rasa ao positivismo nas ciências naturais? Em outros termos, será que seu dualismo não acaba considerando o positivismo como uma epistemologia adequada às ciências da natureza? Será que não seria justamente isso que autorizaria essa divisão dualista entre ciências sociais (emancipatórias) e ciências naturais (instrumentais)? O que aconteceria se a crítica ao positivismo fosse estendida às ciências da natureza? O dualismo ainda seria mantido?

Bjs

Anônimo disse...

Jonatas: escolhi a dedo esse retrato de Habermas. Olhando-o, fico com um enorme complexo. Mas, por outro lado, esse é o preço faustiano?

Cynthia: embora Habermas, num primeiro momento, aceite esse dualismo, quem o faz, de fato, é Horkheimer (seguinte texto: "théorie traditionnelle et théorie critique - 1937). Mas não saberia responder a tuas questões. Como o positivismo é identificado à instrumentalidade, como ele domina, de fato e de direito, as ciências naturais (sendo sua "epistemologia natural"), logo, estas são instrumentais e esvaziam qualquer conteúdo de emancipação. Acho que a visão frankfurtiana do positivismo já anuncia uma crítica total das ciências empíricas, em particular das ciências da natureza.

Pessoalmente, acho as críticas frankfurtianas ao positivismo um tanto sectárias, completamente "paranoiadas" pelo medo da técnica e da razão instrumental. Minhas críticas ao positivismo (afinal, que diabo é isso?) passam por um caminho mais conciliador (lembre-se, sou um médico que adora alopatia e a felicidade química). Inclusive, acho redutor dividir as ciências por uma externalidade, atropelando e relevando a lógica interna (epistemológica) das ciências, através de um valor moral como a emancipação humana -- aliás, até hoje não sei bem como dividir as ciências.

Minha impressão é que o último Adorno e o derradeiro Horkheimer têm uma visão bastante negativa das ciências naturais, bastião da dominação (da técnica, da razão instrumental, do escambau!) na contemporaneidade.

Serei sectário: muitas críticas adornianas parecem seguir o modelo de escrita dos moralistas e dos romancistas -- ele mandou para as calendas a ciência empírica, seja da natureza, seja as humanas.

Teria pesadelos, se me refugiasse, adornianamente, na total negatividade do mundo presente ou se pensasse que a última coisa que restou foi a obra de arte, concebida como a única força de contestação possível de um mundo, no qual se esgotaram todos os recursos de emancipação social e politica.

O que mata a Escola de Frankfurt é a Frescura.

abraços e beijos

Anônimo disse...

Artur,

Enquanto você e Jonatas debatem sobre os méritos da cabeleira de Habermas, reflito sobre os famosos dualismos. Acabo de me dar conta de que "perdi" minha cópia do debate entre a Escola de Frankfurt e Popper. Acho que deveria existir uma seção especial no Código Penal dedicada às penas aplicáveis a quem surrupia nossos livros.

Vou fazer o seguinte: daqui para a semana que vem, se conseguir corrigir pelo menos parte da montanha de provas que me espera, vejo se consigo postar as minhas anotações de aula sobre Habermas. Assim, talvez a gente consiga trocar umas figurinhas.

A propósito: duvido muito que suas anotações no quadro negro sejam piores do que as minhas, que são a própria expressão do caos. Tem dia que saio da aula com pena dos alunos...

Bjs

Anônimo disse...

Tuas anotações no quadro-negro são piores do que as minhas?! Vc não sabe o que diz... Meu quadro-negro, repito, é um buraco negro da mesma família daquele que existe no centro de nossa galáxia. Uma vez, um aluno aproximou-se e foi tragado imediatamente. Parece que foi parar no limbo. Quando o Papa acabou com essa dimensão, o rapaz voltou, mas já estava louco de pedra, coitado. Pelo menos, descobri uma boa arma contra discentes recalcitrantes: mando-o ao quadro-negro!

Anônimo disse...

Boa idéia...