Caricatura de Baartman (século XIX; emprestado da wikipedia)
Há três ou quatro anos, a professora Eliane Veras, Cynthia Hamlin e eu pretendíamos fazer um trabalho com o título acima sobre Saartjie Baartman, conhecida como "Vênus hotentote". Baartman era sulafricana e foi exibida na Europa do século XIX como curiosidade, como aberração corporal em circos mambembes. AS dimensões de sua genitália, de suas nádegas, as medidas "incivilizadas" de seu corpo, atraíam a curiosidade européia. Morreu em 1815, vítima de pneumonia, mas o seu corpo permaneceu insepulto por mais de um século - objeto de curiosidade científica, de autópsias e novas exposições em museus. É sobre esse caso que pretendíamos fazer um ensaio. Publico minhas anotações sobre o tema em seguida, em dois ou três posts. Quem sabe Cynthia ou Eliane não se interessam em retomar o projeto.
Quando um lobo vê primeiro um homem, deixa-o subitamente mudo. Quando um basilisco, o monstro em forma de serpente, vê primeiro um homem, seu olhar é fatal, mas, quando sói de o homem vê-lo primeiro, também é capaz de matá-lo pela vista; [...] o basilisco é capaz de fulminar o homem pelo olhar porque, ao vê-lo, dado o seu impulso colérico, põe em movimento pelo corpo um terrível veneno que, lançado pelos olhos, impregna a atmosfera com sua substância mortífera. O homem, ao respirar naquela atmosfera, fica entorpecido e cai fulminado. Mas quando é o homem que vai ao encontro da fera guarnecido de espelhos – com o intuito de matá-la, por exemplo -, o resultado é diverso: o monstro, vendo-se refletido nos espelhos, lança seu veneno contra o seu próprio reflexo: o veneno é repelido, retorna sobre ele e o mata. [Kramer; Sprenger. 1991: Malleus Malificarum. O martelo das feiticeiras, p. 73]
Introdução
Na história do pensamento ocidental, negros, mulheres e monstros têm algo em comum, sua suposta proximidade com a natureza. Em contraposição a essa proximidade, um espaço de civilização deve ser forjado - um espaço em que, da segurança do mundo da cultura, seja possível objetivar e controlar esses seres fronteiriços. Mediante o ardil, a razão, Ulisses deve evitar diluir-se no canto das sereias, nas promessas de prazer de Circe, ou de esquecimento junto aos lotófagos. Macunaíma, nossa promessa de um herói sem areté, deve evitar poderes maiores que os do gigante Venceslau Pietro Pietra: os encantos da Iara, aos quais por fim sucumbe – e com ele as esperanças de uma via brasileira de civilização. A constituição de um discurso civilizador abre-se em oposições: corpo versus mente, prazer versus razão, forma versus essência, matéria versus idéia.
Essas dicotomias, no entanto, fundam compreensões ambíguas acerca do outro, ou seja, daquilo, daqueles ou daquelas sobre o que se procura exercer um controle civilizador. Assim, é comum que o discurso civilizador constitua as seguintes alternativas polares: a natureza alimenta, nutre, e constitui nosso lugar dentro da existência. Ao mesmo tempo, corrompe essa existência, sepulta-a, impõe-se ao homem civilizado como poder incontrolável, caótico, apavorante. A natureza é fecundidade e luto. Não é fortuito que tal percepção esteja associada a algumas imagens culturais da mulher e do negro. Por um lado, a mulher é vista como mãe santificada, mãe puríssima, caminho para a salvação. Seu corpo pode estar associado à fertilidade, à fecundidade, possuir qualidades apotropáicas. Esse é o caso, por exemplo, das Sheelas-na-Gig, esculpidas desde a Idade Média em igrejas e castelos do Reino Unido e França. Essas imagens de corpos femininos seriam dotadas de certas qualidades mágicas, tais como, promover a fecundidade e evitar a aproximação de maus espíritos, que se manifestam na exibição de suas genitálias. Que poder, héin? Ver a esse respeito, por exemplo, Catherine Blackledge (2003, p. 29-33). Mary Del Priore (1993) também nos fala de algumas gravuras medievais em que o Diabo é expulso de determinados ambientes pela exibição da genitália feminina – esse ato é encontrado, de resto, em diversas culturas como parte de rituais de fecundidade ou de exorcismo de maus espíritos.
Ao mesmo tempo a mulher é percebida como puta, agente do demônio, noturna, caminho para a perdição, "vagina dentada", ausência de pênis. Os exemplos de ansiedade diante do corpo feminino são abundantes em várias culturas. No século X, por exemplo, encontramos de um abade o seguinte depoimento, ilustrativo em sua contundência misógina: “A beleza física [feminina] não vai além da pele. Se os homens vissem o que está sob a pele das mulheres, a visão das mulheres lhes viraria o estômago. Quando nem sequer podemos tocar com a ponto do dedo um cuspe ou esterco, como podemos desejar abraçar esse saco de excremento?” (Apud Delumeau, 1999, p. 318). Que coisa terrível, não? Interessa-nos aqui, porém, não essas visões em sua parcialidade, mas a produtividade de sua ambigüidade.
“Essa ambigüidade fundamental da mulher que dá a vida e anuncia a morte foi sentida ao longo dos séculos, e especialmente expressa pelo culto das deusas-mães. A terra é o ventre nutridor, mas também o reino dos mortos sob o solo ou na água profunda. É cálice de vida e de morte” (Delumeau, 1999, p. 312).
Com o negro ocorre algo semelhante. Se é comum encontrarmos discursos onde ele é apresentado como bom selvagem, força da natureza, alma dócil, pacífica, objeto de desejo, o negro é, ao mesmo tempo, desregrado, macaco, lugar de vício, luxúria, repulsa. A docilidade e a intriga, por exemplo, amalgamam-se na descrição do caráter do africano que nos pinta Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala. De modo semelhante, o suicídio da negra Bertoleza, no Cortiço, de Aluísio Azevedo, é traduzido como a voz da natureza acuada, caos de sangue e tripas, escamas de peixe, a confirmação da legitimidade de sua condição subalterna, e ao, mesmo tempo, a negação radical dessa condição. “Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto, e antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado. E depois emborcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue” (Aluísio de Azevedo, O Cortiço. Editora Ática, São Paulo, p. 159) Mas o curioso, e talvez insuportável para o racismo de Aluízio de Azevedo seja o fato de que, ao se suicidar, Bertoleza nega a propriedade sobre seu corpo e, portanto, sua condição escrava.
O discurso civilizador não se estrutura de nenhum dos lados desse tipo de oposição: pois ele precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão. Por isso, positiva ou negativamente avaliada, a proximidade que existiria entre negros, mulheres e a natureza é o que importa aqui. É a produção discursiva dessa proximidade que será objeto de desejo de controle e de ansiedade. Como lembra Homi Bhabha (2001, p. 105), a força ambígua do estereótipo, necessidade de civilização e impossibilidade de civilização, merece nesses casos uma apreciação cuidadosa.
Um aspecto importante do discurso colonial é a sua dependência do conceito de “fixidez” na construção ideológica da alteridade. A fixidez, como signo da diferença cultural/ histórica/ racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal: conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo, que é sua principal estratégia discursiva, é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está “no lugar”, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido... como se a duplicidade essencial do asiático ou a bestial liberdade sexual do africano, que não precisam de prova, não pudessem na verdade jamais provadas no discurso.
Para Richard Sennett, a idéia civilizadora no ocidente implicou uma concepção idealizada do corpo e uma delimitação de espaços específicos de civilidade. O calor civilizado do corpo do jovem ateniense, por exemplo, e a ágora complementam-se; um é extensão do outro. Por isso mesmo, para o ateniense bem-nascido, a “nudez simboliza um povo inteiramente à vontade na sua cidade, expostos e felizes, ao contrário dos bárbaros, que vagavam [cobertos] sem objetivo e sem a proteção da pedra.” (SENNETT, 2003, p. 31).
No presente ensaio, estamos interessados menos na lógica cultural que preside a definição de tais espaços ou do modo como alguns corpos são signos de civilização – como no caso do corpo atlético do jovem guerreiro ateniense, símbolo de sua arete , da virtude de um corpo quente que, situado dentro dos limites protetores da cidade, é capaz de desafiar a natureza. O homem grego busca exibir seu corpo como sinal pleno de distinção: o nu do atleta grego não é apenas uma ostentação cosmética, mas expressão de civilidade desse corpo. Em sua feiúra, desproporção, desordem, o monstro é o outro do civilizado.
Interessa-nos, todavia, a frieza, a obscuridade, a lascívia como marcas de falta de civilidade dos corpos negros, femininos, monstruosos; interessa-nos os lugares ermos que eles ocupam.O que é considerado outro? Qual a lógica de especificação dessa alteridade? Quais os modos de circulação que lhe são próprios? Como mulher, negro ou monstro, o outro é aquilo que em princípio não deve circular, mas também aquilo que não pode deixar de circular, sob pena de privar o discurso civilizador da oposição que o funda. Nós afirmamos que a estruturação de um discurso civilizador se opera no concreto dos corpos e nos caminhos traçados para a sua circulação. Onde tem lugar a produção de tal discurso, de onde ele apenas pode ser concebido? Acreditamos que ele tem necessariamente de se postar dentro e fora de um espaço de civilização. Civilizar significa, nesse sentido, aprender como os corpos devem trafegar e indicar esses caminhos. Indicar esse tráfego só é possível mediante aquele duplo pertencimento. Esse duplo pertencimento, todavia, só é possível a partir de um ocultamento fundamental: a possibilidade do retorno do olhar da natureza, da mulher, do negro, do monstro. Retorno que reflete a mirada civilizadora sobre si e que revela sua ansiedade essencial.
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(por editar)
Jonatas Ferreira
2 comentários:
Jonfer,
Puxa, isso está muito melhor do que o nosso esboço inicial. Estou ansiosa para a introdução da "physis" e o conseqüente retorno ao humanismo. Caso isso não ocorra e você tenha debandado de vez para o pós-humanismo, tento uma crítica Vandenbergheana sobre "a natureza da cultura". Por falar nisso, vc tem uma cópia do livro dele sobre pós-humanismo?
Beijo
A resposta que lhe daria é a mesma que dei ao nosso querido amigo Frederic. Para preservar o humanismo é preciso não ter dó nem piedade; é preciso falar do terror que já se produziu em seu nome, por exemplo. Escrevi em um remoto tempo desses (mentira, fazem só quatro anos) um texto chamado "A condição pós-humana: ou como saltar sobre sua própria sombra". A idéia central do texto é ainda minha posição hoje: saltar sobre o humanismo, saltar sobre a metafísica é um desses sonhos profundamente arraigados na própria metafísica e na tradição humanista. Um delírio metafísico e um perigo e os pós-humanistas, via de regra, não sabem bem o que combatem. Quanto ao texto de Frederic, tenho sim. Eu o estou lendo no momento, mas empresto, caso você precise dele com urgência. Beijo, Jonatas
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