sexta-feira, 9 de maio de 2008

NEGROS, MULHERES E OUTROS MONSTROS: um ensaio sobre corpos não civilizados (continuação)


Caricatura francesa de 1812.

O Monstruoso: visibilidade e trânsito

A epígrafe que abre este ensaio (ver post anterior) sintetiza alguns motivos pelos quais elegemos o corpo monstruoso como imagem que sintetiza algumas de nossas preocupações teóricas. Primeiro, o conteúdo misógino do referido trecho do Malleus Malificaram, manual da Inquisição que levou à perseguição e à morte mais de 100 mil mulheres em quatro séculos, é aqui apresentando nos termos de uma relação entre ver e ser visto; entre controlar e ser controlado pelo olhar; entre a possibilidade do domínio de homens ou de monstros; entre tornar alguém objeto ou tornar-se objeto deste alguém. Ver, neste contexto, significa a possibilidade de controlar. Ser visto significa a iminência de ser destruído – pois, tornar-se objeto e ser destruído aqui significam a mesma coisa.
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Existem miradas capazes de nos paralisar, de exercer controle sobre nossos espíritos – e os aniquilar como tais. A este tipo de conclusão chega com freqüência o pensamento francês. Sartre, Bataille, Foucault, em particular, mostraram-se bastante sensíveis com relação ao poder do olhar no ocidente, com a cumplicidade íntima que existe entre filosofar, teorizar, fixar o outro no pensamento e no ocidente[1]. A citação em questão pode ser entendida como aceitação, implícita é claro, dessa relação: contra o poder do olhar do Outro, da Outra, o espelho, o ardil, a tortura, a fogueira. Segundo, a mirada do monstro, da bruxa, envenena a atmosfera, atuando como veículo de forças demoníacas, coléricas, caóticas. Lembremos que a moderna ótica ainda não se instalou: o olho não é apenas uma tela que recebe os raios de luz rebatidos pelos objetos; o olhar projeta sua luz. Se o outro me vê, diluo-me enquanto sujeito, desfaço-me enquanto instância primordial que antecede ontologicamente o seu existir.

O monstro é caos formal, é carência de um princípio ordenador no concreto de seu corpo. Um lado do discurso civilizador afirma que a monstruosidade não constitui portanto a ameaça de um novo poder civilizador, mas o risco de que toda civilizade pereça. De acordo com Kramer e Sprenger, o demônio não possui força criativa, seu poder corruptor está em, com a permissão de Deus, misturar de modo nocivo elementos já existentes no mundo. Assim, poder-seía dizer que o demônio é pura entropia. Sua força reside em retirar tais elementos de seu lugar próprio, combinando-os de modo caótico, monstruoso. A ação do demônio evoca necessariamente questões de pertencimento e de circulação, de trânsito de lugares adequados para lugares inadequados.

Nesses termos, insinua-se no Malleus uma discussão acerca da prerrogativa divina sobre a criação. Lembremos que é exatamente uma usurpação dessa prerrogativa que faz cair Lúcifer. O Demônio está fadado a atuar mediante a corrupção da ordem, esse é seu único poder e seu ardil, já que todo princípio de criação, tendo origem Divina, lhe é vetado. A misoginia daquele texto está intimamente relacionada a um investimento civilizador no ato de criação e de procriação - ato 'natural' por excelência. Ora, o que aqui está em discussão é em que medida a associação entre mulher e fecundidade não deve estar subordinada ao controle masculino e civilizador. De um lado, temos o poder, o direito de um deus capaz de propiciar a concepção mesmo na ausência do ato sexual, um deus capaz de criar o mundo ex nihilo; de outro, a resistência de mulheres que são levadas à fogueira por reivindicarem um acesso não subordinado à natureza e à procriação.

A solução desse impasse é fundamental na estruturação do poder patriarcal. Perguntariamos o que tem orientado recentemente a postura da Igreja Católica no que diz respeito a assuntos controvertidos como engenharia genética, pesquisa com células-tronco, clonagem terapêutica senão a afirmação da necessidade desse controle: quem teria o direito de produzir a vida – falamos produzir e não reproduzir - senão Deus? Desde o Da Geração dos Animais, de Aristóteles, a reivindicação de tal acesso é encarada com preocupação. Ali aprendemos que se forças materiais, naturais, femininas prevalecem sobre forças formais, civilizadoras e masculinas o processo de geração resultará na produção de corpos monstruosos. Não é fortuita a confluência entre helenismo e cristianismo, patente na utilização do mito de Medusa como lastro das considerações religiosas de Kramer e Sprenger acerca do poder da visão. Digamos algo a esse respeito.

Para o grego, o monstruoso é hybris, desproporção, falha ou impossibilidade de civilização. Essa falha materializa tanto no corpo feminino quanto no corpo do bárbaro, demasiadamente frios para trafegarem sem o auxílio de roupas, demasiado frios para ocuparem espaços políticos de decisão. Sem o calor do princípio formal e civilizador masculino, a natureza se reproduz de modo metastático, monstruoso. A produção de monstros seria, portanto, o resultado de um tipo peculiar de acasalamento entre dois princípios fundamentais: de um lado, um princípio formal, uma causalidade eficiente, uma força masculina e quente; de outro a matéria, o âmbito feminino, material e frio de geração do mundo biológico: "Aquilo que o masculino contribui para a geração é a forma e a causa eficiente, enquanto que o feminino contribui com o material... Se, então, o masculino significa o efetivo e ativo, e o feminino, significa o passivo, segue-se daí que aquilo que o feminino contribuirá para o sêmen masculino é [...] o material sobre o qual o sêmen trabalhará”(Aristóteles, 729a).


Em Alexandre e César: Vidas comparadas, Plutarco se refere ao calor do corpo de Alexandre como sendo uma evidência de sua virilidade. Mas não apenas isso, esse calor também é responsável pela fragrância de seu hálito e o cheiro de seu corpo. “Li, nas memórias de Aristoxeno, que sua pele era perfumada, exalando-lhe da boca e de todo o corpo um odor agradável, que lhe perfumava a roupa. Talvez isso se devesse ao calor de se temperamento, que era ardentíssimo; pois o bom odor é [...] o produto da cocção de humores, mediante o calor natural”.

Sempre que a força e o calor do princípio formal não prevalecerem sobre o mundo material e feminino, teremos a produção de seres monstruosos. Em sua negatividade o corpo monstruoso intima, não apenas ao ver, mas ao ver a partir de uma lente ordenadora. Por oposição, essa experiência materializa um campo que corresponde à mirada civilizada. No caso do homem grego, essa mirada projeta um mundo gerado segundo princípios de ordem e de proporção. A educação civilizada [a Paidéia] significa a busca da proporção, da beleza das formas como princípios que devem se realizar no concreto desse homem. A natureza sem controle, o monstruoso, o bárbaro, devem ser sempre remetidos para além do mundo civilizado, masculino – na privacidade do lar, fora dos muros da polis.
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Por esse motivo, o Minotauro precisa ser confinado. A fúria desmedida de Aquiles diante do corpo de Heitor, sua recusa em conceder-lhe sepultamento, deve ser punida: a desproporção dessa fúria não pode constituir um princípio de convívio entre os homens. Ela é tempestade, pura potência natural. A górgona Medusa deve viver apartada dos homens, numa caverna, a espera de suas vítimas[2], ela própria vítima de sua pretensão desmedida: mortal, comparou sua beleza à de Atena. Também se diz que sua cabeça vaga no limite entre o Hades e o mundo dos vivos. Como lembra Jean-Pierre Vernant (1988, p. 393), as górgonas (Medusa, Euríale e Esténea) são “instrumento de morte mágica”, capazes de transformar pelo olhar o corpo quente (calor associado ao corpo masculino e civilizado) na pedra fria.

O monstro é um encontro com o Outro, com a Outra, com algo não facilmente passível de apropriação pela mirada civilizada. Não é à toa, portanto, que é para o viajante, para aqueles que perderam provisoriamente o seu lugar, como Alexandre, como Marco Pólo como Colombo, que os monstros se revelam com mais freqüência. Por isso mesmo, o Oriente é para a imaginação ocidental cenário de maravilhas terrenas, de perfeição incomparável ou inalcançável, mas também de monstros. A descoberta de terras povoadas ao sul do Equador produzirá um efeito semelhante na imaginação européia. É comum que a cosmografia medieval confira um lugar próprio a cada criatura. Há um lugar adequado para o extraordinário, o fantástico, para o avesso. Para o pensamento medieval, “cada criatura é o seu próprio lugar” (Ibid, p. 46). Disso decorre a necessidade lógica de uma divisão necessária do mundo em dois pólos: existe um lugar para a perfeição, beleza e bondade; e outro lugar para o disforme e mau. “A terra é como um corpo cuja parte mais nobre é o rosto. [...] É evidente que só podemos habitar a parte superior do universo, ‘a dianteira da terra’, ou seja, a parte que está voltada para a ‘dianteira do céu’. [...] O hemisfério de baixo estaria, de algum modo, ‘estragado’, corrompido, pois foi nele que Satã se enfiou como ponto final da queda” (Kappler, 1994, p. 32).
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Se é possível para Agostinho pensar num lugar para os monstros no projeto Divino, esse lugar é da alteridade, o lugar não-civilizado diante do qual a beleza civilizada é realçada. Como sugerimos acima, retirar o próprio de seu lugar é agir de modo a contrariar os propósitos Divinos, ou procurar usurpar seu poder de colocar cada coisa em seu próprio lugar. A circulação de bens, mercadorias, seres humanos que acompanha as grandes navegações põe em xeque um fundamento do projeto medieval de civilização, ou, ao menos, age de modo a tornar problemática a cosmografia sobre a qual se constituem lugares civilizados em oposição a lugares bárbaros. Para a imaginação medieval esse tipo de deslocamento significaria tirar o próprio de seu lugar. O Malleus Malificarum é prolífico em exemplos e considerações acerca do significado demoníaco do ato de deslocar elementos de seu âmbito.

A feitiçaria, como vimos, envolveria o trânsito de elementos para fora de seu lugar adequado, próprio. O ato de procriação, portanto, pode estar ungido das bênçãos de Deus, em cujo caso, estamos falando de uma união com características específicas. Estamos falando de uma mulher confinada ao âmbito doméstico, recatada, aquela que certamente não será arremessada de um lado para o outro pelos ventos da luxúria, como acontece com os luxuriosos – mas sobretudo com as luxuriosas – no inferno pintado por Dante. “Que as mulheres se calem nas assembléias, pois não lhes é permitido tomar a palavra; que se mantenham na submissão como a própria lei o diz” (Coríntios 14: 34-5 apud Delumeau, 1999, p. 315).

O oposto da fertilidade do recato – aquele recato que confere ao toque da mulher virgem o poder de tornar fértil uma planta – também pode ocorrer. Quando isso não ocorre, o Diabo pode, com a permissão de Deus, interferir na procriação. Seu modo de agir é complicado, envolvendo o transporte de sêmen mediante a intermediação de Súcubos e Íncubos. Esse transporte conspurca a força formadora desse sêmen, mas é incapaz de o gerar. A feitiçaria é o trânsito de elementos a serviço de forças de corrupção, ou seja, forças que procuram retirar as coisas de seu lugar próprio. Esse deslocamento, em primeiro lugar, atinge o corpo da feiticeira, espaço de prazeres proibidos, veículo da força demoníaca, capaz de perder homens, mulheres, crianças, animais, colheitas.

Como seria possível aceitar a circulação de escravos negros em terras civilizadas? É preciso, portanto, que uma nova lógica se imponha.
[1] Martin Jay (1994), em Downcast Eyes, de uma perspectiva crítica, oferece uma excelente análise do ‘anti-ocularcentrismo’ que marca o pensamento francês do século XX.
[2] “À parte as variantes que dele apresentam as concepções coríntia, ática e laconiana, podemos, em primeira análise, distinguir duas características fundamentais da representação de Gorgó. Primeiro, a facialidade. Contrariamente às convenções figurativas que regem o espaço pictórico grego na época arcaica, a Górgona é sempre representada de face, sem qualquer exceção. [...] Em segundo lugar, a ‘monstruosidade’. Quaisquer que sejam as modalidades de distorção empregadas, a figura sistematicamente jogo com as interferências entre o humano e o bestial, associados e misturados de diversas maneiras” (VERNANT, 1988a, p. 39).

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(por editar)
Jonatas Ferreira

9 comentários:

Le Cazzo disse...

Tive uma dificuldade enorme com a formatação deste post. é possível que algum dos inúmeros problemas que apareceram eu não tenha conseguido resolver. Caso sim, é só dizer. Jonatas

Anônimo disse...

Jonfer,

As reflexões de Mary Douglas, em Pureza e Perigo, são um bom ponto de partida para se pensar a relação entre o corpo feminino e o grotesco e o monstruoso. A dicotomia ordem/pureza versus desordem/poluição como elemento estruturador de diversas sociedades. Na transposição desse sistema ao corpo feminino, signos de diferença como menstruação e parto passam a estruturar desigualdades. De acordo com essa dicotomia, fluidos corporais e pontos de entrada e saída do corpo são especialmente carregados de conteúdo simbólico. (O grotesco seria o fluido, o volume sem contorno, o receptáculo aberto, como coloca Irigaray?)

A imagem da medusa que você parece sugerir nos dois posts pode ser ainda pensada a partir de uma reflexão acerca do escândalo que a Olympia, de Manet, causou. O que havia de especial naquela representação da nudez? O retorno do olhar ao espectador. É este retorno do "gaze" que a retira de seu papel passivo, de mero objeto do olhar.

Mais tarde, coloco algumas questões preliminares relativas ao corpo grotesco, conforme pensado por autoras como Luce Irigaray. Dá para fazer umas conexões interessantes entre a idéia de grotesco como resistência e grotesco como comédia. Aliás, o exemplo da mulher que mostra a genitália para espantar os demônios (no post anterior) é discutido extensivamente na História do Riso e do Escárnio. Tem coisa prá burro aí...

Bj.

Le Cazzo disse...

Meta bronca colega. Você tem os originais. Tudo parece promissor. Falei um pouco sobre o grotesco e o diferenciei do monstruoso em um texto que escrevi com Jorge Ventura. Talvez possa ser útil também. Jonatas

Anônimo disse...

Vou tentar, vou tentar. Embora, como você sabe, sou praticamente cartesiana: meu negócio é mente e epistemologia. Corpo me parece uma discussão dificílima.

Essa semana, começo meu texto sobre a Vênus.

Beijo

Anônimo disse...

Sobre a gravura, adquirida por Stephen Jay Gould em uma loja de antigüidades de Johannesburgo:

"A gravura é um comentário satírico francês (publicado em Paris no ano de 1812) sobre a fascinação dos ingleses pela exibição de Saartjie. Intitula-se Le curieux en extase, ou les cordons de souliers (Os curiosos em êxtase, ou os cordões de sapato). Os espectadores concentram-se inteiramente sobre as características sexuais da Vênus hotentote. Um cavalheiro fardado observa a esteatopigia de trás e comenta: "Oh! godem quel rosbif". O segundo homem de uniforme e a senhora elegantemente trajada estão tentando dar uma espiada no tablier de Saartjie. (Este é o detalhe sutil que um observador não informado não perceberia. Saartjie exibia as nádegas mas, seguindo os costumes do seu povo, nunca descobria o tablier). O homem exclama "como é estranha a natureza", enquanto a mulher, com esperanças de obter uma vista melhor de baixo, inclina-se a pretexto de amarrar os cordões dos sapatos (daí o título). Enquanto isso, o cão nos lembra que, sob os nossos diversos trajes, somos todos o mesmo objeto biológico".

Gould, Stephen Jay (2004). O Sorriso do Flamingo. São Paulo: Martins Fontes.

Le Cazzo disse...

Obrigado, Cynthia. Sabe o que encontrei em casa? Uma edição inglesa de Monstros e outros Prodígios, de Ambroise Paré - uma referência fundamental em nosso ensaio. Levo amanhã para o PPGS. Beijo. Jonatas

Anônimo disse...

Greetings

It is my first time here. I just wanted to say hi!

Anônimo disse...

Elo, I am a freshman. suppose make an introduction.

see you around and Thanks (sorry if this is the wrong place to put this post)

Anônimo disse...

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