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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Peter Berger: esboço de uma biografia intelectual


Dando uma olhada no blog, hoje me dei conta que faz quase dois anos que não posto nada por aqui. Com medo que Artur e Jonatas me substituam por Tâmara ou por Gabriel, que andam muito mais assíduos e produtivos, decidi dar o ar da graça e postar a introdução a um texto que escrevi recentemente para um volume sobre teoria social que deve ser publicado em breve. Como o texto é muito grande e ainda inédito, segue a parte biográfica, que talvez possa interessar algum leitor desavisado. A verdade é que eu gostei de pesquisar sobre o rapaz...

Cynthia Hamlin

Peter Ludwig Berger é conhecido pelo desenvolvimento de uma abordagem fenomenológica à sociologia do conhecimento e sua aplicação a temas como religião, família, modernidade, desenvolvimento e até humor e riso. Seus livros de introdução à sociologia, como o já clássico Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística, têm ajudado a formar diversas gerações de sociólogos no mundo inteiro. No final da década de 1990, numa enquete promovida pela Associação Internacional de Sociologia para eleger as mais influentes obras sociológicas escritas no século XX, seu A Construção Social da Realidade, em coautoria com Thomas Luckmann, ficou em quinto lugar, atrás de Max Weber (que aparece com duas obras), Charles Wright Mills e Robert Merton, e à frente de Pierre Bourdieu, Norbert Elias e Jürgen Habermas (International Sociological Association, 2015). Seus trabalhos em sociologia da religião também têm atraído atenção considerável, tanto em sua defesa inicial da teoria da secularização quanto na refutação (parcial) desta ideia em favor da de dessecularização (cf. Berger, 2000; Mariz, 2000; Hervieu-Léger, 2001).

Berger nasceu em Viena, Áustria, em 17 de março de 1929, onde permaneceu até 1946. Seus anos vienenses foram marcados por uma visão de mundo conservadora, fruto de uma rígida educação luterana e de uma imaginação política inspirada por histórias da glória da Casa Real de Habsburgo, uma dinastia que durou mais de 600 anos (Dorrien, 2001). Berger descreve a Viena do início do século XX, nos anos finais do Império austro-húngaro, como “palco de uma estimulante tensão entre uma sociedade urbana que se moderniza e um ancien régime esclerosado” e de uma incrível explosão de criatividade cultural e intelectual (Berger, 2011b). Um dos símbolos dessa tensão é a praça Michaelerplatz, “onde as entradas monumentais do Palácio Imperial confrontam a Casa Loo, uma incorporação local da escola Bauhaus de arquitetura moderna” (Ibid.). Artistas e intelectuais do período incluem nomes como Gustav Klimt, Arnold Schoenberg, Richard Strauss, Robert Musil, Sigmund Freud, Ludwig Wittgenstein e Ernst Mach.

No plano político, a tensão se manifestava em inúmeros conflitos entre as diversas nacionalidades que compunham o Império, finalmente desembocando no assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, em 1914, e na Primeira Guerra Mundial. Como resultado desses conflitos, Viena tornou-se o centro de uma enorme burocracia imperial, cujos esforços para restringir as pressões nacionalistas dos grupos étnicos minoritários, particularmente da região dos Balcãs, criou um clima de autoritarismo político e a existência de um parlamento em que os diversos partidos tinham pouca ou nenhuma voz ou experiência democrática. Inseridos em uma atmosfera política decrépita, muitos vienenses simplesmente se omitiram da vida política. Sigmund Freud, por exemplo, não se registrou como eleitor até a idade de 52 anos, representando não só desespero e apatia típicos, mas também uma reação à racionalização e burocratização política e econômica em curso desde meados do século XIX. Não foi por acaso o mergulho no mundo psíquico, interior, subjetivo, que caracterizou a obra de Freud, a música de Mahler e Schoenberg, a pintura de Klimt, ecoando até na fenomenologia de Alfred Schütz (Barber, 2004).

Outros vienenses, como o pai de Berger, que havia sido oficial de reserva no exército austro-húngaro, passaram o resto de suas vidas nutrindo uma grande nostalgia pela monarquia, considerada por ele “uma âncora de estabilidade na Europa” e cujo fim foi uma catástrofe que levou a diversas tiranias, inclusive a uma guerra “ainda pior do que a que tinha levado à sua dissolução” (Berger, 2011b). Embora não tenha vivido este período, a visão de Berger parece ter sido tão influenciada pelas histórias de seu pai que, recentemente, numa espécie de obituário para Otto von Habsburg - filho mais velho do último imperador da monarquia austro-húngara - afirmou que “se os Habsburgos ainda reinassem nos anos de 1940, ‘Auschwitz’ não teria ocorrido” (Ibid.).

A sensação de fragmentação e caos transmitida por sua família foi reforçada durante o período de anexação da Áustria à Alemanha pelo regime nazista (1938-1945) e da Segunda Guerra. Grandes ondas migratórias tiveram início nos anos de 1930 e foram retomadas após o fim da Guerra, quando muitos austríacos de origem judaica e opositores ao regime emigraram para os Estados Unidos. Os Berger permaneceram em Viena durante todo o período da anexação, mas se mudaram para Nova York em 1946. Então com dezessete anos, membro de uma religião minoritária em seu país de origem, muito pobre e com sua sensibilidade afetada pelos horrores da Guerra, Berger (1990: 264) sentiu que os Estados Unidos lhe proporcionaram uma “profunda experiência de normalidade”. Parte dessa experiência derivou de seu encontro com a Igreja Luterana Unificada, ligada ao protestantismo histórico, mas “inteiramente identificada com a cultura americana, sensível, tolerante e muito distante do extremismo kierkegaardiano que, até então, definia o cristianismo” para ele (Ibid.).

Ainda em 1946, Berger matriculou-se no Wagner College, obtendo o título de Bacharel em Artes três anos mais tarde. Seu intuito era tornar-se ministro da Igreja Luterana. Ciente de que sua atuação como pastor exigia um conhecimento sobre os Estados Unidos que ele, como estrangeiro, não possuía, decidiu adiar sua formação teológica e cursar um mestrado em sociologia. Optou pela New School for Social Research, conhecida à época como a “Universidade em Exílio” devido ao número de estrangeiros de origem europeia, sobretudo de língua alemã, que compunha os seus quadros. Assim como ocorreu em outras Universidades estadunidenses, o influxo de intelectuais da Europa fascista entre os anos de 1930 e 1945 ajudou na construção de uma sociologia filosoficamente sofisticada e menos provinciana em seus interesses (Steinmetz, 2007). Apesar disso, a New School nunca alcançou o prestígio que Universidades como Chicago tiveram até os anos de 1930, ou Harvard e Colúmbia, no pós-Guerra (Wallerstein, 2007; Gross, 2007). Seu status relativamente marginal na sociologia permaneceu até o final da década de 1960, com o fim da hegemonia mundial do estrutural-funcionalismo de Parsons e do positivismo instrumental de Paul Lazarsfeld e a ascensão de abordagens de cunho mais interpretativo - como foi o caso das diversas vertentes do interacionismo simbólico e da sociologia fenomenológica desenvolvida por Alfred Schütz e pelo próprio Berger (Hamlin, 2011).

Foi por razões econômicas que Berger optou pela New School: tratava-se de uma das poucas Universidades de sua região que oferecia aulas no período noturno, possibilitando que financiasse seus estudos com trabalhos que variaram de office boy nos escritórios da Igreja Metodista, a recepcionista em uma clínica de doenças venéreas e secretário em uma revista da Sociedade Bíblica Americana (Berger, 1990; 2009; 2011a).

Sua dissertação de mestrado, concluída em 1950, consistiu em um estudo empírico, baseado em observação participante, sobre uma comunidade pentecostal de portorriquenhos radicados em Nova York. Em seguida, matriculou-se no Seminário Teológico Luterano da Filadélfia para dar prosseguimento aos seus planos de se tornar ministro. Permaneceu lá por um ano e, embora a abordagem histórico-crítica ao estudo das escrituras e da teologia tenha lhe parecido interessante, chocava-se com a formação religiosa que recebeu em seu país de origem (Dorrien, 2001). Anos mais tarde, escrevendo sobre este período, Berger (1990) afirma que, ao refletir e legitimar os valores da classe média americana, a concepção de cristianismo defendida pelas igrejas do protestantismo histórico nos EUA estava profundamente em desacordo com sua crença de que a fé cristã não deveria refletir este mundo, mas um mundo transcendente, o mundo de Deus. Mais do que isso, já intuía que o ajuste cognitivo do cristianismo à visão de mundo da modernidade efetuado pelos teólogos liberais teria como consequência o desmantelamento progressivo da tradição cristã (Berger, 1997b). Assim, por mais que admirasse e concordasse com os principais valores da cultura americana, acreditava que a fé cristã não poderia ser reduzida aos valores de uma cultura particular, pois isso contradiz o próprio espírito das Escrituras. Convencido de que não poderia pregar essa ideia, abandonou seus planos de seguir uma carreira religiosa, mas não se afastou da religião, nem no plano pessoal, nem no profissional. Suas preocupações com temas como a incerteza, a fragmentação e a desordem constituem o elo entre suas reflexões sociológicas, por um lado, e teológicas, por outro (Woodhead, 2001).

Este elo, no entanto, só foi plenamente construído após seu retorno à New School, desta vez para um curso de doutorado. Sua tese, defendida em 1954, recebeu o título de “O Movimento Baha’i: uma contribuição à sociologia da religião”. Diferentemente de sua dissertação, a tese baseava-se em uma perspectiva histórica e basicamente consistiu na aplicação da noção weberiana de “rotinização do carisma” para compreender como a fé baha’i passou de um movimento messiânico no Irã do século XIX a uma comunidade religiosa nos EUA do século XX (Berger, 2011a).

Berger naturalizou-se estadunidense em 1952 e, logo após concluir seu doutorado, serviu ao exército americano por dois anos. Lecionou em diversas Universidades dos EUA, incluindo a New School for Social Research, a Rutgers University e a Universidade de Boston, de onde se aposentou em 1999. Escreveu diversos artigos e livros, dois dos quais romances. Atualmente, Berger é pesquisador sênior, aposentado, mas ainda atuante, do Instituto de Cultura, Religião e Questões Mundiais (CURA), do qual foi diretor até 2009. Além de suas contribuições acadêmicas, propriamente ditas, semanalmente escreve artigos de opinião em seu blog, o Religião & Outras Curiosidades (http://blogs.the-american-interest.com/byline/berger/).

***

Para compreendermos o percurso intelectual de Berger, faz-se necessário uma pequena incursão em seus anos de formação. Seus anos de estudo na New School foram profundamente marcados pela influência de três de seus professores: Albert Salomon, Alfred Schütz e Carl Mayer. Com o primeiro, frequentou cursos sobre as origens iluministas da sociologia e sobre a escola francesa de sociologia, representada, sobretudo, pela figura de Durkheim. Alguns temas durkheimianos aparecem claramente na obra de Berger: a ideia de objetividade dos fenômenos sociais, a necessidade do consenso moral para a manutenção da ordem social, as relações contratuais como marcas da solidariedade orgânica que caracterizam a modernidade, a religião como representação ou simbolização da sociedade, a concepção de anomia como privação de laços sociais, dentre outros. Contudo, uma disciplina ministrada por Salomon em seu primeiro semestre na New School, “Balzac como sociólogo”, foi o que marcou definitivamente sua concepção de sociologia.

O objetivo da disciplina era introduzir categorias sociológicas como classe, poder, religião, controle social, mobilidade, crime, marginalidade, por meio da literatura (Berger, 2011a: 12). Não surpreendentemente, sua aventura balzaquiana rendeu mais conhecimento sobre a sociedade francesa do século XIX do que sobre os Estados Unidos do século XX, mas o mergulho no universo dos personagens de Balzac - nunca inteiramente bons ou maus, mas moralmente ambíguos e precários em sua humanidade – foi decisivo para Berger. Tanto Marx quanto Engels já haviam atentado para a capacidade de Balzac em captar as contradições e conflitos da sociedade francesa e O Capital está repleto de referências ao romancista (Sayre e Löwy, 2013; Wheen, 2007). Berger, no entanto, incorpora à própria sociologia aqueles aspectos do comportamento humano tão bem retratados por Balzac em relação ao cotidiano e ao trivial, assim como o interesse por nossas motivações, das mais torpes às mais elevadas (Berger, 2001a). Isso se deveu, em parte, à influência de Alfred Schütz que, de um ponto de vista teórico, teve um impacto muito mais duradouro no trabalho maduro de Berger.

Schütz ensinava duas disciplinas distintas na New School: sociologia do conhecimento e metodologia das ciências. As aulas de sociologia do conhecimento destinavam-se, sobretudo, à apresentação e crítica do trabalho de outros autores. Já os cursos de metodologia consistiam numa espécie de laboratório no qual Schütz desenvolveu seu arcabouço teórico - uma síntese da fenomenologia de Edmund Husserl e da sociologia interpretativa de Max Weber, temperada por certos elementos da tradição pragmatista (sobretudo William James e George Herbert Mead). Em sua autobiografia intelectual, Berger (2011a: 22) relembra que foi em uma dessas aulas que ouviu a frase que, anos depois, viria a marcar sua (e de Luckmann) própria perspectiva: “a sociologia do conhecimento ... deverá lidar com tudo o que passar por conhecimento na vida cotidiana”, isto é, tudo aquilo que confere significado ao mundo e às nossas ações. Também enfatiza que o principal conceito que aprendeu de Schütz foi o de “realidades múltiplas”, que diz respeito a tudo aquilo que conta como realidade para os seres humanos e que orientará suas análises sobre fenômenos como a religião e o humor.

De acordo com Schütz, a principal dimensão da realidade é a chamada “realidade suprema”, que se refere ao que os fenomenólogos, a partir de Husserl, chamam de “mundo da vida”. Trata-se de um “mundo intersubjetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e interpretado por outros, nossos predecessores, como um mundo organizado” (Schütz, 1979: 72). Essas experiências e interpretações anteriores nos são passadas por meio do processo de socialização e formam um “estoque de conhecimento à mão” que usamos como referência para interpretarmos nossas próprias experiências cotidianas. Neste sentido, o mundo da vida diz respeito a um setor daquilo que os seres humanos experienciam como realidade, aquele que abordamos a partir de uma atitude “natural” ou “ingênua” na medida em que não questionamos sua existência e propriedades, mas de forma naturalizada, como se fossem simplesmente dadas.

Para Schütz, entretanto, a realidade suprema não esgota o universo de nossas experiências do real. Existem enclaves ou ilhas dentro dela, as chamadas “províncias finitas de significado” que são experienciadas quando saímos temporariamente da realidade suprema da vida cotidiana. Essas províncias finitas de significado, ou “sub-universos”, na terminologia de William James, têm um número de características que as distinguem da realidade suprema: um estilo cognitivo específico, uma consistência nos limites de suas próprias fronteiras, um sentido exclusivo de realidade que difere não apenas da realidade suprema, mas também de outras províncias de significado das quais só se pode sair ou entrar por meio de um “salto”, isto é, da adoção de uma forma distinta de consciência ou intencionalidade, de um tipo específico de epoché ou suspensão da dúvida, de formas específicas de espontaneidade, de auto-experiência, de socialidade e de durée (ou experiência do tempo) (Berger, 1997a). Exemplos de províncias finitas de significado seriam o mundo dos sonhos, das experiências estéticas, das experiências religiosas, do discurso teórico e, no caso de Berger, também do humor.

A importância das ideias de Schütz, contudo, só será sentida por Berger muitos anos mais tarde quando, juntamente com Thomas Luckmann, ele desenvolve sua própria versão da sociologia do conhecimento. Em seu período de formação na New School, Carl Meyer, que dava aulas sobre sociologia da religião e sobre a obra de Max Weber, gerou uma impressão muito mais forte no jovem Berger, tendo, inclusive orientado sua tese de doutorado. De acordo com Berger (2011a: 23-25), a abordagem de Meyer à religião era inteiramente weberiana e girava em torno de conceitos como os de “seita”, “culto” e “carisma”, além de temas como “rotinização do carisma” e a “afinidade eletiva” entre determinados fenômenos religiosos e certas forças sociais. Um de seus cursos era inteiramente dedicado a A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Weber. Dado seu interesse em religião, não é surpreendente que Berger tenha prontamente se identificado com os elementos centrais da abordagem weberiana trabalhados nos cursos de Meyer: uma concepção de sociedade como constituída por ações significativas; a sociologia como uma ciência que se preocupa com a interpretação ou compreensão desses significados; uma teoria da formação de conceitos concebidos como tipos-ideais; a relação entre significados, motivos e ações; a institucionalização do Estado, da economia e das classes; a ideia de neutralidade axiológica.

Obviamente que os anos de formação de Berger não esgotam suas influências intelectuais, nem mesmo se considerarmos apenas sua sociologia do conhecimento, desenvolvida relativamente cedo em sua carreira. No entanto, é curioso que, ao se referir a esses anos e às influências que sofreu, omita um autor central à sua abordagem: Karl Marx. Como ele e Luckmann deixam claro em A Construção Social da Realidade, “a sociologia do conhecimento tem sua raiz na proposição de Marx que declara ser a consciência do homem determinada por seu ser social” (Berger e Luckmann, 1987: 17). De fato, Berger não apenas considera uma dimensão central da epistemologia marxista, a de que o conhecimento não está dissociado de seu contexto social, mas faz uso de uma série de intuições e conceitos derivados de Marx. Embora não mencione explicitamente, a dialética entre entre “o homem na sociedade” e a “sociedade no homem” descrita em seu Perspectivas Sociológicas (i.e., anteriormente ao desenvolvimento de sua sociologia do conhecimento) é claramente de inspiração marxista (e hegeliana). Também o são os conceitos de ideologia, exteriorização, objetivação, alienação e reificação.

Neste sentido, a omissão de Berger é significativa e possivelmente decorre da sua necessidade de se diferenciar da perspectiva crítica que informa o pensamento marxista. Diferentemente do que ocorre com a noção weberiana de objetividade, a noção marxiana não depende da distinção fato/valor. Resultado da aplicação do método dialético, a objetividade refere-se a um alto grau de adequação entre o conceito e a realidade objetiva ou, nos termos de Marx, entre o “concreto pensado” e o “concreto real” (cf. Hamlin, 2011: 11). A noção de crítica, por outro lado, pode ser entendida tanto no sentido kantiano, i.e., do estabelecimento das condições de possibilidade do conhecimento, quanto no sentido de uma perspectiva crítica da sociedade e das ciências que implica uma prática transformadora. Este último sentido de crítica só faz sentido na medida em que não se adere à distinção entre fato e valor: pode-se concluir, por exemplo, que a sociedade capitalista é desigual (julgamento de fato); se é desigual, é injusta (julgamento de valor); se é injusta, deve ser mudada (práxis).

A rígida separação entre fato e valor que informa a noção weberiana de objetividade é um traço fundamental da obra de Berger que, como “weberiano ortodoxo”, considera que “julgamentos morais não devem ser usados em discursos científicos sociais” (Berger, 2006: xviii). A questão que se coloca é em que medida ele consegue sustentar essa posição, seja em seu “ateísmo metodológico”, quando afirma, por exemplo, que “a teologia da libertação é empiricamente falsa” (Berger apud Dorrien, 2001: 26); em suas análises do capitalismo, quando afirma que “a modernização capitalista é empiricamente superior às suas alternativas do mundo real” (Ibid.); quando descreve seu The War over the Family (A Guerra Sobre a Família, em coautoria com Brigitte Berger) como “uma defesa da família burguesa” (Berger, 2011c); em sua “recusa polida” (Berger, 2001b) de se utilizar de uma linguagem neutra em termos de gênero, ou de incorporar uma perspectiva de gênero para questionar uma distinção entre público e privado que torna as mulheres invisíveis na análise sociológica (Heelas e Woodhead, 2001: 71).

Em relação às suas posições ideológicas, Berger se autodefine como “centro-direita”, de um ponto de vista político e, de um ponto de vista religioso, mais à esquerda (em que pese seus ataques mordazes à teologia da libertação). Durante algum tempo, identificou-se com o movimento neoconservador dos Estados Unidos, rompendo com ele em 1997 em função do “crescente extremismo de seus membros, particularmente em sua preocupação monomaníaca com a questão do aborto e da homossexualidade” (Berger, 2001b: 191). A posição de Berger sobre o aborto é particularmente instrutiva e deriva da tentativa de estabelecer uma espécie de “via média” entre os “muitos deuses da modernidade” contemporânea, caracterizada por um pluralismo exacerbado e cujos extremos variam do relativismo ao fundamentalismo, tanto em assuntos religiosos quanto em questões morais e políticas. Ao considerar inadequadas as denominações “pró-vida” e “pró-escolha” usadas por militantes nos EUA, sugere que a questão que realmente interessa é “quando, na trajetória de nove meses de uma gestação, uma pessoa humana emerge?” (Berger e Zijderveld, 2009: 299). Dado que nenhuma das duas denominações tem uma resposta convincente a esta questão, somos forçados a decidir numa situação de incerteza. Neste sentido, defende que a única alternativa moralmente sensata é seguir uma abordagem “conservadora” da ordem vigente e segundo a qual, “provavelmente”, o aborto deve ser “unicamente uma prerrogativa da mulher, pelo menos durante o primeiro trimestre, depois torna-lo progressivamente mais difícil e, por fim, ilegal, exceto sob circunstâncias extraordinárias” (Ibid: 301-302). Embora essa posição dificilmente possa ser caracterizada como “conservadora” em uma sociedade como a brasileira, o argumento de Berger deixa claro que sua sociologia não apenas não é “axiologicamente neutra”, mas que, ao revelar a fragilidade e precariedade da ordem social, tem uma importância fundamental tanto em sua manutenção quanto na redução da ansiedade que decorre de nossas incertezas.

Se o conservadorismo político de Berger tem colocado alguns limites para uma maior difusão de sua sociologia, especialmente entre aqueles que aderem a uma tradição crítica, ocasionalmente é possível usar Berger contra ele mesmo e, por meio de determinadas posturas teóricas, inferir certas posturas normativas como, por exemplo, a importância do uso de uma linguagem inclusiva em termos de gênero. Assim, em lugar de sucumbir aos seus argumentos relativos a supostos excessos do “politicamente correto” (Berger, 2011a), pode-se apelar para a sua própria sociologia e reafirmar, junto a diversas autoras feministas que se inspiraram em sua sociologia do conhecimento (cf. Smith, 1987; Collins, 1990), como o uso da linguagem afeta nossa percepção da realidade:

Toda sociedade tem sua forma específica de definir e perceber a realidade – seu mundo, seu universo, sua organização geral de símbolos. Isso já está dado na linguagem que forma a base simbólica da sociedade. Erigida sobre esta base, e por meio dela, encontra-se um sistema de tipificações preestabelecidas, por meio das quais as inumeráveis experiências da realidade são ordenadas (Berger e Kellner, 1964: 2-3).
Embora Berger enfatize que não chegou a desenvolver uma teoria geral da sociedade, sua sociologia do conhecimento representa sua grande contribuição à teoria sociológica e toda sua obra pode ser considerada uma aplicação dos principais pressupostos e conceitos desenvolvidos ali. Inspirados por Alfred Schütz, Berger e Luckmann (1987) estenderam a concepção tradicional de sociologia do conhecimento para além das discussões epistemológicas e ideológicas, desenvolvidas por autores como Max Scheler e Karl Mannheim, em direção ao conhecimento de senso comum da vida cotidiana, o tecido de significados que estrutura a vida social. Já não se trata de simplesmente estabelecer as conexões entre conhecimento (concebido como teorias ou como ideias sistematizadas) e contexto social, mas de compreender como aquilo que conta como realidade para nós (o senso comum) é socialmente construído. Mas isso será objeto de um outro texto.

Referências


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sábado, 2 de novembro de 2013

Sonho, psicose, morte: o senso da realidade e suas ameaças marginais


Gabriel Peters (IESP/UERJ)

O escudo nosso de cada dia contra a psicose nos dai hoje

Ao caracterizarem o mundo prático da vida cotidiana em que o indivíduo passa a parte mais substancial de seu tempo e coexiste com a maioria de seus semelhantes como a “realidade suprema” (Paramount Reality), os sociólogos de inspiração fenomenológica quiseram ressaltar que essa esfera de experiência constitui o referencial primeiro com base no qual o mesmo indivíduo distingue entre o que é mais e o que é menos real (Schutz, 1967: 231; Giddens, 2002: 45). A existência objetiva desse mundo partilhado com outros não é, na maior parte dos casos, reclamada conscientemente, mas simplesmente pressuposta como absolutamente evidente. Como viu Wittgenstein (1969: 18), não se trata de um mundo cuja existência sustentamos por termos sido convencidos de sua realidade, mas de um mundo cuja existência, tida como dada, nos fornece o parâmetro mesmo com base no qual decidimos entre o que é verdadeiro e o que é falso.  
A experiência da realidade suprema do mundo da vida cotidiana é pontilhada, entretanto, por incursões a domínios fronteiriços à vivência prática do universo social ordinário, isto é, a outras esferas vivenciais para as quais o sujeito emigra momentaneamente e que adquirem a atmosfera de realidade apenas enquanto dura a permanência do indivíduo nelas: uma trama romanesca na qual a leitora se perde, esquecendo quaisquer preocupações relativas ao mundo real do seu trabalho ou das suas relações familiares; um sonho intensamente vivenciado e apenas revelado como tal após o despertar (possivelmente com algum sinal de que o corpo do sonhador respondeu à experiência onírica como responderia a uma experiência real); um cálculo complexo que leva um matemático apaixonado pelo seu ofício a esquecer-se de si e do mundo. 
            Embora todas essas experiências marquem um escape momentâneo aos contornos da realidade suprema devido à entrada em outros mundos experienciais, as vivências nesses “subuniversos” (na expressão de William James) obviamente diferem entre si em uma série de aspectos. Há, por exemplo, um continuum de graus distintos de emigração em relação à realidade suprema da vida cotidiana que vai desde o escape total próprio ao sonho, passa pela imersão consciente no mundo fantasioso de uma peça teatral, até chegar às pequenas irrupções do cômico na experiência ordinária (como bem mostrou Cynthia Hamlin).            
Segundo Peter Berger (1972: 164-165; 2003: 35-36), o caráter de “escudo” ou “casulo” existencial protetor que a ordem social adquire para o animal humano pode ser mais agudamente vislumbrado nas situações de significativa perturbação da distinção entre a experiência na realidade suprema e as vivências alternativas em relação a essa realidade. Por exemplo, filósofos céticos de todas as eras já sublinharam que, no mais das vezes, não experimentamos nossos sonhos como tais, mas sim com o mesmo assentimento ingênuo que conferimos às nossas experiências na “verdadeira realidade”. É somente com o despertar que podemos retrospectivamente compreender o sonho recém-vivenciado como uma fantasia privada. A pergunta que os céticos extraem dessa transição, largamente explorada em filmes de ficção científica como A origem, é: se fomos capazes de adquirir consciência de que estávamos imersos em uma fantasia onírica apenas a posteriori, o que nos garante que não continuamos sonhando agora, nesse exato momento?
Há uma diferença crucial entre acalentar tais dúvidas céticas em um plano estritamente intelectual e vivê-las efetivamente na nossa experiência do mundo (Giddens, 2002: 41). Esta pode ser a diferença mesma que separa o filósofo cético do psicótico. Trazendo os instrumentos da inteligência fenomenológica para o âmbito de investigação das doenças mentais, mas sem romantizar indevidamente a condição esquizofrênica, o jovem Ronald Laing (1974) reconheceu que certas formas de esquizofrenia tinham uma espécie de componente filosófico vivido, com a “insegurança ontológica” de determinados pacientes derivando justamente do fato de que levavam visceralmente a sério, em sua existência cotidiana e trato com os outros, algumas dúvidas céticas que os filósofos se acostumaram a colocar tranquilamente em seus gabinetes: em que medida a existência dos objetos materiais e de outras pessoas depende da representação que faço deles em minha mente? Como posso estar seguro de conhecer os conteúdos das mentes de outros indivíduos? Que garantia tenho da existência do meu próprio corpo?
O enfraquecimento ou perda “cética” dos referenciais cognitivos que conferiam o mínimo indispensável de segurança e estabilidade psíquica ao caminho prático e experiencial do indivíduo pelo mundo engendram uma terrível sensação de que se está lançado em um palco de ameaças iminentes, porém difusas e incompreensíveis. Espero não soar como psicanalista de boteco se sublinhar que o pânico adulto advindo de uma extrema desorientação cognitiva em face de um cenário a que se está inescapavelmente exposto não é assim tão diferente, em seus contornos fenomenológicos, do medo da escuridão entre as crianças (ver mais abaixo).
            Com efeito, um achado estatístico frequente na literatura sobre a esquizofrenia aponta que é o estado ansioso de dúvida radical quanto à confiabilidade última das impressões que o sujeito têm de si, dos outros e do mundo (o “Trema” psicótico) que acaba empurrando o indivíduo na direção de projetos delirantes de conquista da certeza. Assim, por exemplo, as ilusões persecutórias que caracterizam um retrato paranoico que o indivíduo faz de sua posição no mundo social, apesar de todos os seus custos psíquicos, não deixa de ser uma espécie de resposta à incerteza cheia de pânico quanto aos pensamentos e sentimentos que correm nas mentes de outras pessoas:

80% das esquizofrenias começam com os sintomas negativos. Delírio e alucinação chamam mais a atenção. Já os sintomas negativos ocorrem mais no íntimo das pessoas e causam menos impacto nos outros. É o caso do indivíduo que, certo dia, não vai trabalhar, não avisa ninguém e passa o dia todo deitado, tomando café e fumando. (...) Geralmente, esses sintomas marcam o começo da doença, a fase chamada trema psicótico, marcada por tensão e ansiedade muito grande. A pessoa sente que algo está acontecendo, mas não sabe dizer o que é...Em determinado momento, porém, ele fala – “Estou sem forças, porque estão tramando algo contra mim e colocaram veneno na minha comida”.  Essa explicação delirante é suficiente para diminuir o nível de tensão e ansiedade. É como se a pessoa tivesse uma dor de causa desconhecida e, de repente, chegasse a um diagnóstico que, de algum modo, a tranquilizasse” (Gattaz/Varela, 2013)

            A contraparte da definição freudiana do sonho como “psicose normal”, dotada de “todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose” (Freud, 1975: 199), consiste, nesse sentido, em uma fenomenologia da psicose como intrusão das províncias privadas do sonho e da imaginação no próprio domínio experiencial público da vida cotidiana. Quanto mais coesas são as representações do real compartilhadas em tal ou qual cenário sócio-histórico, mais essa intrusão socialmente inapropriada de significados e representações privadas não será coletivamente percebida como experiência desviante guiada por uma “visão alternativa do mundo”, mas como simples perda de contato com a realidade em si – ou seja, psicose.

A criança a sós com a noite

O anseio existencial humano por experimentar seus ambientes de ação e experiência como confiáveis e seguros manifesta-se desde a mais tenra infância na relação com as figuras parentais. As interações com os agentes primários de socialização dão início ao cultivo de um “sistema de segurança básica” (Giddens, 2003: 66), um senso de que a realidade dos objetos, das pessoas e de si próprio está solidamente fundada. Combinando as investigações de Piaget acerca da descoberta infantil da “constância dos objetos” àquelas de Erikson sobre o florescimento da crença de que as ausências das figuras parentais são provisórias e não impedirão o seu retorno, James Morley (2003) mostrou que ambos são partes de um processo global e difuso, inseparavelmente cognitivo e emocional, de aquisição de confiança na facticidade e continuidade, organização e previsibilidade, inteligibilidade e acessibilidade do mundo.
Piaget investigou circunstanciadamente o estágio de desenvolvimento cognitivo em que a criança, lá por volta da compleição do primeiro semestre de vida, dá todos os indícios comportamentais de crer que os objetos materiais que a circundam continuam a existir quando retirados do seu campo de atenção. Complementarmente, Erikson e Winnicott postularam que um dos principais desafios na caminhada desenvolvimental do bebê é a aquisição da crença de que suas figuras parentais continuam a subsistir quando estão ausentes e, portanto, da expectativa afetivamente carregada de que elas retornarão à sua esfera de experiência (Giddens, 2002: 42). O laço cognitivo e emocional com a mãe e/ou o pai (como papéis sociais – não necessariamente os pais biológicos, não necessariamente um casal heterossexual etc.) é gradativamente tecido em experiências intensas e com instrumentos comunicativos pré-verbais como o sorriso e o choro.
            A maleabilidade cognitiva que possibilitará à criança o aprendizado de um imenso conjunto de possibilidades de orientação intelectual e prática nas suas relações com o mundo cobra seu preço existencial sob a forma de uma experiência (gradualmente mitigada, porém durável) de extremada desorientação, complementada por sua extraordinária vulnerabilidade física e emocional. É por isso que Peter Berger vê no gesto da mãe que consola e apazigua o choro aterrorizado de seu bebê uma espécie de cena originária dos esforços humanos de construção social e simbólica de ordem:

Uma criancinha acorda dentro da noite, talvez de um mau sonho, e se acha cercada pela escuridão, sozinha, assaltada por ameaças indescritíveis. Em tal momento, os contornos da realidade em que confiava estão obscurecidos ou invisíveis, e no terror do caos que começa, a criança grita por sua mãe. Dificilmente se exageraria em dizer que, neste momento, a mãe está sendo invocada como suma sacerdotisa da ordem protetora. É ela (e em muitos casos somente ela) que tem o poder de banir o caos e restaurar a forma benigna do mundo. E, é claro, qualquer boa mãe fará exatamente isto. Ela pegará a criança, a embalará no gesto atemporal da Magna Mater que se tornou nossa Madonna. Talvez ela acenda a luz que circundará o cenário com um brilho quente de luz tranqüilizadora. Ela falará e cantará para o filhinho e o conteúdo desta comunicação será invariavelmente o mesmo – “não fique com medo – tudo está em ordem – tudo está certo”. Se tudo correr bem, a criança se tranquilizará, readquirirá confiança na realidade e nesta confiança voltará a adormecer” (Berger, 1973: 76-77)
             
            Considerando o caráter difuso e global do terror da criança diante das ameaças que a realidade parece lhe impor, as quais são sentidas de modo ao mesmo tempo confuso e extraordinariamente intenso, Berger sustenta que a oferta de conforto, proteção e segurança que a mãe oferece em resposta ao seu choro angustiado é sentida pelo bebê de modo igualmente difuso e global: “‘Tudo está em ordem, tudo está certo’ – está é a fórmula básica da confiança da mãe e do pai. (...)A fórmula poderia...ser traduzida numa afirmação de alcance cósmico: - ‘Tenha confiança no ser’” (op.cit.: 78). Os retornos contínuos das figuras parentais protetoras instilam e reforçam essa confiança na ordem e inteligibilidade do real, bem como na disposição afetuosa dos principais personagens na existência social da criança, disposições sem as quais o desenrolar mesmo da formação da personalidade seria impedido ou severamente prejudicado.
            Mas Berger, como bom sociólogo doublé de teólogo, vai além: a concepção da realidade implicada no gesto protetor e carinhoso da mãe é válida? Segundo ele, tal concepção só não será ilusória ou mentirosa caso a existência natural revelada por nossa visão de mundo racional e científica não seja a única existência que existe (se me permitem a repetitividade heideggeriana da formulação). Caso contrário, a criança estará absolutamente certa em achar que a realidade irá destruí-la, não importa o quanto chore e esperneie:

Se a realidade for coextensiva à realidade ‘natural’ que nossa razão empírica pode apreender, então a experiência é uma ilusão e o papel que a corporifica é uma mentira. Pois então é perfeitamente claro que tudo não está em ordem, não está certo. O mundo no qual se diz para a criança confiar é o mesmo mundo no qual ela eventualmente morrerá. Se não houver outro mundo, então a verdade última sobre este mundo é que eventualmente ele matará a criança bem como sua mãe. Isto, seguramente, não diminuiria a presença real do amor e seu consolo muito real; daria mesmo a este amor uma qualidade de trágico heroísmo. Todavia, a verdade final não seria amor, mas terror, não luz, mas trevas. O pesadelo do caos, não a segurança transitória da ordem, seria a realidade final da situação humana. Pois, no fim, todos temos de nos achar nas trevas, sozinhos com a noite que nos tragará. A face do amor confiante, dobrando-se sobre nosso terror, será então nada mais que uma imagem da ilusão misericordiosa. Neste caso, a última palavra sobre a religião é a palavra de Freud. A religião é a fantasia infantil de que nossos pais governam o universo para nosso bem...” (Berger, 1973: 78-79).      

O argumento de Berger acerca do caráter ilusório ou “mentiroso” das crenças implicadas nos atos protetores de mães e pais diante dos terrores infantis obviamente não se identifica à denúncia moral, mas possui caráter metafísico. O autor, naturalmente, também não teve qualquer intenção de discutir “o direito dos ateus de serem pais” (idem), ainda que tenha julgado interessante sublinhar a existência de ateus que, em face de considerações similares, julgaram que ter filhos – ou “transmitir a uma criatura o legado da nossa miséria” (Machado de Assis) - seria imoral. Pais ateus poderiam replicar, de qualquer modo, que a concepção da realidade implicada no seu gesto carinhoso é menos abrangente do ponto de vista metafísico, pressupondo apenas um “Tudo está bem agora”, o qual permitirá que a criança avance na direção de uma fase adulta em que possa aceitar sua própria morte com uma dose maior de equanimidade de algum tipo: heroísmo trágico, resignação estóica, imortalidade vicária ou ocupação em tarefas que a distraiam do seu destino último.
Seja como for, o que é certo é que tanto o fervoroso fiel empenhado em garantir a salvação de sua alma pelo bom comportamento neste mundo quanto o escritor ateu devotado à produção de uma obra literária que influencie gerações futuras de leitores buscarão integrar suas mortes individualíssimas em um retrato mais abrangente de uma existência partilhada com outros. Cada um luta por fazer com que o sentido de sua morte não seja, pura e simplesmente, a morte do sentido. Dessa forma, eles justificam seus esforços e ocupações em termos socialmente inteligíveis e, ademais, podem antecipar a própria aniquilação física com o mínimo possível de terror. (Vale dizer, no entanto, que a expectativa de alcançar a imortalidade pela glória não é suficiente para alguns artistas ateus, a julgar pela cândida confissão de Woody Allen: “Não quero alcançar a imortalidade pela minha obra. Quero alcançá-la não morrendo”). 
     
Ocupar-se antes de morrer

 Como Pierre Bourdieu (Bourdieu, 2001; Peters, 2012) e Alfred Schutz (1967), Berger se faz herdeiro sociológico de uma tese anteriormente sustentada por filósofos como Pascal e Heidegger, qual seja, a ideia de que o mergulho nos “jogos” (Bourdieu) e na “tagarelice” (Heidegger) da vida social cotidiana nos desvia ou “diverte” (Pascal) da contemplação aberta e aterrorizada de nossa mortalidade:

Nada é mais insuportável ao homem do que ficar em absoluto repouso, sem paixões, sem negócios, sem divertimento, sem aplicação. Sente então sua inanidade, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. (...)...[a] infelicidade natural de nossa condição débil e mortal...[é] tão miserável que nada nos pode consolar quando refletimos a fundo sobre ela. (...)...os homens que sentem naturalmente a sua condição evitam acima de tudo o repouso e procuram por todos os meios os motivos de preocupação” (Pascal, 2003: 94-95; 97).  

Vê-se que Heidegger e Sartre não foram os primeiros a explorar certos estados de humor como fontes de insights sobre o “ser-no-mundo” humano. Depois de Pascal, tanto Schopenhauer quanto Nietzsche também emprestariam ao tédio uma espécie de dignidade filosófica ao concebê-lo como desagradável intuição da vacuidade de nossa condição. E o psicanalista Sándor Ferenczi se inscreveu nessa linhagem intelectual ao cunhar sua categoria diagnóstica de “neurose de domingo”, em referência ao dia da semana em que os sentimentos de vazio e depressão tornavam-se mais intensos entre os seus pacientes – e olha que ainda nem existia o Domingão do Faustão para exacerbar o problema.  
Mas nos centremos no que Pascal disse sobre a mortalidade. Todos os investimentos de tempo, energia, recursos e competências que caracterizam o movimento da vida social em seus mais diversos cenários ou “jogos” só fazem sentido contra o pano de fundo da transitoriedade da existência, da “pressão da finitude” (como disse Viktor Frankl). Schutz reconheceu esse ponto quando fez remontar os mais variados sistemas socioculturais de “relevância”, isto é, as questões e assuntos que propelem nossas práticas porque importam para nós, a uma intuição última que chamou de “ansiedade fundamental”, o senso simultaneamente perturbador e motivador de que nosso tempo no mundo é escasso, de que é melhor ocupar-se, pois o tic-tac da morte está tocando (Schutz, 1967: 228).
O pensamento filosófico ocidental sempre foi enamorado do ensinamento socrático-platônico de que a filosofia é um aprendizado preparatório para a morte, ensinamento eloquentemente apresentado no Fédon (2003). É sintomático que esta visão segundo a qual “filosofar é aprender a morrer” (Montaigne) tenha brotado da pena do mesmo autor que tanto insistiu na diferença entre o rigor da episteme filosófica e os preconceitos irrefletidos da opinião (doxa) corrente (Platão, 2003: 28). As estruturas que envolvem a existência social cotidiana parecem estar radicadas na premissa de que refletir sobre o morrer só valeria a pena se impedisse de morrer - o que, de certa forma, as reflexões que desembocam em crenças quanto à própria imortalidade buscam fazer ao seu modo, pois é o próprio Sócrates quem diz: “sem a convicção de que vou me encontrar primeiramente junto de outros deuses, sábios e bons, e depois de homens mortos que valem mais do que os daqui, eu cometeria um grande erro não me irritando com a morte” (op.cit.: 25). 
Ora, do ponto de vista da opinião corrente (que não deixa de ser filosoficamente sagaz à sua maneira), a obsessão com a própria morte, embora não impeça de morrer, pode muito bem “impedir” de viver – ao menos de viver tal como o concebe a doxa cotidiana, isto é, de ocupar-se com projetos, tarefas, trabalhos, obrigações, funções, missões e assim por diante. Ao criar uma ordem de atividade significativa que interpela os atores a dela participarem com os seus investimentos de tempo, energia e habilidades, o mundo social não apenas oferece a tais atores um senso de que sua existência é justificada (Bourdieu, 1988: 56-58) como neutraliza, pelo menos parcialmente, a consciência da aniquilação que inevitavelmente o espera.
As rotinas da vida societária fornecem um abrigo mundano aos agentes ao enraizá-los em um mundo de sentidos e respostas já estabelecidos, protegendo tais indivíduos do confronto direto e solitário com a Angst metafísica, em particular no que toca à sua condição inescapável (e inescapavelmente solitária) de “ser-para-a-morte” (Heidegger) ou “cadáver adiado” (Pessoa). Por vezes, é claro, a situação-limite entre as situações-limite irrompe sem aviso prévio na vida social cotidiana, revelando a falibilidade ou, mais ainda, a precariedade ontológica última de todas aquelas estruturas que o mundo social havia provido para garantir alguma segurança, tranquilidade e previsibilidade aos seus membros. Um acidente ou doença mata uma pessoa conhecida e, de repente, o sujeito é como que chacoalhado pela lembrança daquilo que supostamente já sabia em algum nível de (semi)consciência: o que aconteceu com o outro pode acontecer com ele a qualquer momento e vai certamente ocorrer a ele em algum momento. Se tudo correr bem, no entanto, após algum tempo de meditatio mortis depressiva ou aterrorizada, os assuntos da vida cotidiana lhe emprestarão a sanidade de volta: 

Suponhamos um homem que desperte de noite, de um desses pesadelos em que se perde todo senso de identidade e localização. (...) A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica...Durante alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro da lenta aproximação da morte e, com ela, do nada. E então estende a mão para pegar um cigarro e...‘volta à realidade’. A pessoa se lembra de seu nome, endereço e ocupação, bem como dos planos para o dia seguinte. Caminha pela casa, cheia de provas do passado e da presente identidade. Escuta os ruídos da cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus irritados protestos. Logo acha graça da tolice...e volta a dormir resolvido a sonhar com a próxima promoção (...) As paredes da sociedade são uma autêntica aldeia Potemkin levantada diante do abismo do ser; têm a função de proteger-nos do terror, de organizar para nós um cosmo de significado dentro do qual nossa vida tenha sentido” (Berger, 1972:164-165).  

Peter Berger: apologia pro sociologia sua

            Poucas figuras na teoria social do século XX produziram reflexões sociológicas tão sensíveis a questões existenciais, tão tensionadas por preocupações últimas com o sentido da vida e da morte, quanto Peter Berger. Isto é tanto mais impressionante considerando-se que não se trata de um existencialista mórbido (embora suas citações sugiram que sofre de terror noturno), mas de um dos prosadores mais leves e espirituosos de nossa venerabilíssima disciplina. Por isso, quis fazer com que esse texto soasse também como uma “apologia pro sociologia sua”, para tomar de empréstimo a expressão de Gilberto Freyre (que, de modo honesto e nada atípico, utilizou-a em referência à sociologia de Gilberto Freyre [1968: 23]).
           De qualquer modo, paro por aqui, pois toda essa conversa sobre a morte começou a ficar deprimente, e acho que a novela começa daqui a pouco. Pascal tinha toda a razão.       
    
Referências

Berger, Peter. Perspectivas sociológicas. Petrópolis, Vozes, 1972.
________Um rumor de anjos. Petrópolis, Vozes, 1973.
________O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Paulus, 2003.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, 1985.
Bourdieu, Pierre. Lições da aula. São Paulo, Ática, 1988.
________Meditações pascalianas. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001a.
Frankl, Viktor. Man’s search for meaning. Boston, Beacon Press, 1992.
Freud, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. XXIII (1937-1939): Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1975.
Freyre, Gilberto. Como e por que sou e não sociólogo. Brasília, Universidade de Brasília, 1968.
Gattaz,Wagner; Varella, Drauzio. “Esquizofrenia”.   http://drauziovarella.com.br/letras/e/esquizofrenia/
Giddens, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002.
________A constituição da sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 2003.
Laing, Ronald. The divided self: an existential study in sanity and madness. Harmondsworth, Penguin, 1974. 
Morley, James. “The texture of the real: Merleau-Ponty on imagination and psychopathology”. In: Philips, James; Morley, James (Org.). Imagination and its pathologies. Cambridge, MIT Press, 2003.
Pascal, Blaise. Pensamentos. São Paulo, Martin Claret, 2003.
Peters, Gabriel. (2012). “O social entre o céu e o inferno: a antropologia filosófica de Pierre Bourdieu”. Tempo Social, 24, 1, 229-261. Link: http://www.fflch.usp.br/sociologia/temposocial/site/images/stories/edicoes/v241/v24n1a12.pdf
Platão. Fédon: diálogo sobre a alma e a morte de Sócrates. São Paulo, Martin Claret, 2003. 
Schutz, Alfred. Collected papers I: the problem of social reality. The Hague, Martinus Nijhoff, 1967.
______Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro, Zahar Editora, 1979.

Wittgenstein, Ludwig. On certainty. Oxford, Basil Blackwell, 1969.