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sábado, 5 de março de 2011

A controvérsia do Rei Momo e a paródia moderna dos corpos


Por Liana Lewis
Departamento de Ciências Sociais da UFPE

No período pré carnavalesco a Prefeitura da Cidade do Recife, em uma atitude inédita, modificou os critérios do concurso de Rei Momo e o resultado foi, para surpresa dos carnavalescos de plantão, e mesmo dos avessos a esta festa popular, um Rei Momo “sarado”. A Prefeitura tem sido acusada pela mídia de lipofobia e de findar, por decreto, uma tradição centenária das mais populares.

Nós poderíamos afirmar que a valorização da magreza e consequente desvalorização das pessoas gordas é resultado de um processo mais amplo de individualização do ser humano que vem ocorrendo desde o final da idade média. Naquela época, era valorizado, nos termos de Mikhail Bakhtin, um corpo aberto, poroso e relacional com o mundo e outros corpos. A nova ordem industrial precisava, para otimizar sua produção, de uma reestruturação do espaço de trabalho, bem como de corpos disciplinados e individualizados que se conformassem à arquitetura e jornada de trabalho das fábricas.

Obviamente que aqui não interessa mais um corpo lúdico e indisciplinado. O corpo começa a ser vigiado, punido e disciplinado através das instituições nascentes como prisões, escolas e asilos. Além de professores e moralistas, a figura do médico começa a ganhar destaque e, se antes a medicina operava como minimizadora da dor frente aos vários males, começa a ganhar o status de prolongador da vida. O corpo passa a ser escrutinizado cada vez mais detalhadamente pelo poder médico.

Ao longo da última década, além do desejo de perpetuação do corpo, temos assistido a uma circulação em escala global de imagens de corpos vendidos como modelos desejáveis. Começamos a testemunhar uma mercantilização sem precedentes de produtos de beleza, produtos da linha diet/light, próteses de silicone, empresas estéticas que prometem dentes e corpos perfeitos e programas de computador cada vez mais sofisticados cuja missão é erradicar marcas, saliências, manchas. Além de um corpo magro, apenas um corpo liso e isento das marcas do tempo, do próprio processo histórico do indivíduo, deve ser considerado.

É interessante observar que, no início da crise mundial, quando o futuro imediato do Brasil era bastante incerto, a indústria da beleza não apenas não foi afetada, como continuou crescendo a contento. Vale ainda ressaltar que não é qualquer corpo que está submetido aos rigores desta indústria, é o corpo feminino que historicamente é visto como coisa, como um objeto a ser manipulado, imaginado e transformado.

Ser gordo acaba se tornando um ato pecaminosos para algumas instituições e poderes como o médico, os meios de comunicação de massa, a indústria de cosméticos, parte da indústria alimentícia e, especialmente, para as mulheres de classe média, alvos privilegiados do controle de uma estética da modernidade. Estas mulheres, em especial, estão submetidas a técnicas cada vez mais minuciosas de escrutinamento de seus corpos como, por exemplo, balanças digitais que não apenas fornecem o peso como medida, mas a porcentagem de gordura, de músculo, etc.

Já o padrão estético da classe popular tem como ideal formas mais arredondadas, mais volumosas. É um corpo que foge à rígida disciplina que conforma os corpos das mulheres de classe média. Quando observamos os anúncios televisivos, revistas de fofoca e de saúde ou estética, são estes os corpos representados, e é sobretudo às mulheres que eles comunicam.

Quanto à decisão da Prefeitura, a figura do Rei Momo é proveniente da tradição popular, do corpo lúdico da idade média e vem sendo apropriada pelo poder público a partir de um gerenciamento, uma governança do carnaval. Acredito que a questão da obesidade, uma questão de saúde pública, teria muito mais a ver com um controle público de uma indústria alimentícia perversa que massifica exponencialmente alimentos pobres em valor nutritivo, barateando sua circulação. Já ficou provado, por exemplo, que o açúcar e a gordura trans, o tipo mais maléfico, leva à dependência. Por outro lado, somos um dos países mais ricos em possibilidade de produção de frutas, verduras e legumes e a produção destes alimentos vêm sendo cada vez mais solapada pelo agronegócio, que atende à demanda da exportação e utiliza produtos químicos os mais nocivos à saúde.

Em contraposição à governança do carnaval, foi produzido um concurso popular do Rei Momo, cujo vencedor foi o professor universitário Everson Melchiades Araújo Silva de 34 anos que pesa 116 Kg. A governança do poder público, além de ter se constituído em um ato de violência simbólica em relação à cultura popular, deveria lançar seu controle sobre as poderosas indústrias que invadem os corpos dos indivíduos com alimentos perversamente beneficiados, estes sim, inimigos atrozes da saúde pública, bem como da indústria da estética, que transforma corpos de mulheres saudáveis em uma paródia do humano.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Consumo de Psicofármacos e Cuidado Consigo (Rasunho sem conclusão)



Erliane Miranda e Jonatas Ferreira

Em um sentido amplo, a psicofarmacologia é quase tão antiga quanto a humanidade. 3.000 anos antes de Cristo, os sumérios já plantavam papoulas das quais extraiam um suco apropriadamente chamado de “sortudo” ou “feliz”, “uma indicação de que eles conheciam bem a ação do ópio, sua capacidade de despertar um humor luminoso, eufórico” (Spiegel, 2003, p. 28)1. No primeiro século da era cristã, Galeno analisou, em seu Corpus Hippocraticum, suas propriedades analgésicas e soporíferas, recomendando moderação no seu uso. Todos já lemos acerca das experiências psíquicas que artistas como Baudelaire, Nerval, Thomas de Quincey, entre tantos outros, tiveram com essa mesma substância, ou com sua versão atenuada, isto é, com o láudano. Esse tipo de consideração poderia ser estendida para considerarmos o consumo do haxixe, ayahuasca e tantas outras substâncias psicoativas em várias culturas e períodos históricos. A associação entre farmacologia e psiquiatria, no entanto, é algo bem mais recente, o que parece óbvio, posto que a moderna psiquiatria não chega a ter dois séculos de existência. Desde seus primórdios, já no século XIX, essa ciência dispunha de sua lista de medicamentos a serem administrados a pacientes mentais: ópio, evidentemente, beladona, mandrágora eram as principais drogas administradas (p. 34). O desenvolvimento de uma farmacologia, ou seja, do estudo químico-farmacêutico sistemático, preocupado em vincular o uso do medicamento às grandes transformações da medicina do século XIX, ocorreu com a instituição de práticas médicas que passaram a corresponder a uma medicina hospitalar e ao desenvolvimento da anatomoclínica, seguido do estabelecimento da medicina laboratorial, através do “desenvolvimento dos programas ligados à patologia celular, fisiopatologia e etiologia, que procuravam apoiar a medicina nas ciências físico-químicas e biológicas modernas” (Dias, 2003, p. 41-46). De qualquer modo, a psiquiatria do século XX parece ter se acautelado contra o risco de dependência que o uso de narcóticos e hipnóticos implicava.