Erliane Miranda e Jonatas Ferreira
Em um sentido amplo, a psicofarmacologia é quase tão antiga quanto a humanidade. 3.000 anos antes de Cristo, os sumérios já plantavam papoulas das quais extraiam um suco apropriadamente chamado de “sortudo” ou “feliz”, “uma indicação de que eles conheciam bem a ação do ópio, sua capacidade de despertar um humor luminoso, eufórico” (Spiegel, 2003, p. 28)1. No primeiro século da era cristã, Galeno analisou, em seu Corpus Hippocraticum, suas propriedades analgésicas e soporíferas, recomendando moderação no seu uso. Todos já lemos acerca das experiências psíquicas que artistas como Baudelaire, Nerval, Thomas de Quincey, entre tantos outros, tiveram com essa mesma substância, ou com sua versão atenuada, isto é, com o láudano. Esse tipo de consideração poderia ser estendida para considerarmos o consumo do haxixe, ayahuasca e tantas outras substâncias psicoativas em várias culturas e períodos históricos. A associação entre farmacologia e psiquiatria, no entanto, é algo bem mais recente, o que parece óbvio, posto que a moderna psiquiatria não chega a ter dois séculos de existência. Desde seus primórdios, já no século XIX, essa ciência dispunha de sua lista de medicamentos a serem administrados a pacientes mentais: ópio, evidentemente, beladona, mandrágora eram as principais drogas administradas (p. 34). O desenvolvimento de uma farmacologia, ou seja, do estudo químico-farmacêutico sistemático, preocupado em vincular o uso do medicamento às grandes transformações da medicina do século XIX, ocorreu com a instituição de práticas médicas que passaram a corresponder a uma medicina hospitalar e ao desenvolvimento da anatomoclínica, seguido do estabelecimento da medicina laboratorial, através do “desenvolvimento dos programas ligados à patologia celular, fisiopatologia e etiologia, que procuravam apoiar a medicina nas ciências físico-químicas e biológicas modernas” (Dias, 2003, p. 41-46). De qualquer modo, a psiquiatria do século XX parece ter se acautelado contra o risco de dependência que o uso de narcóticos e hipnóticos implicava.
“Apart from the slow progress in psychiatric pharmacotherapy, it is striking that although Griesinger, Kraepelin and Blauer cited a large number of sedatives and hypnotics their recommendation included no stimulant medicament of any kind. Whereas several preparations were available that could be used to sedate raging, anxious, restless or sleeping-disturbed patients, the psychiatric of the time [1916-1949] were virtually powerless in face of depressive or stuporous states, if one discounts the not generally accepted use of opium” (Spiegel, 2003, p. 36).
Já a psicofarmacologia moderna que se fundamenta, em grande medida, na “história da neurotransmissão química” (Stahl, 2000, p. 1) e se destina ao conhecimento das reações farmacológicas, bioquímicas e moleculares de drogas que têm a capacidade de agir sobre processos cerebrais, é recente. Ela tem pouco mais de meio século (Guimarães apud Guimarães; Graeff, 1999, p. 1)2 e mantém um forte diálogo com a psiquiatria. De forma mais ou menos encadeada, é possível pontilhar esta ligação:
* Em 1940, sob a alegação de que a classificação da Nomenclatura Padronizada de Doenças da Associação Médica Americana não atendia as expectativas de problemas mentais emergentes, a Administração de Veteranos e a Marinha desenvolvem seus próprios sistemas classificatórios de doenças a fim de contemplar “os distúrbios agudos, psicossomáticos e transtornos de personalidade” que acometiam seus combatentes;
*Em 1948, é publicado o CID-6 (Classificação Internacional de Doenças, 6º edição), primeiro CID a incluir transtornos mentais, mas que ainda desconsidera “síndromes cerebrais crônicas, bem como vários transtornos mentais e situações reativas de interesse dos clínicos americanos”;
*Na década de 1950 descobre-se que o Ácido Lisérgico (LSD). Mais precisamente, o uso das propriedades dessa substância associada à mescalina auxiliam a prática da oniro-análise (PSICMED)3 e se reconhece e legitima, cientificamente, que a clorpromazina atua na melhora de “pacientes esquizofrênicos” (Graeff; Guimarães, 1999: Prefácio).
*Em 1952, como resposta a incompletude do CID-6, a “Associação Médico-Psicológica Americana (depois chamada Associação Psiquiátrica Americana)” publica outra classificação para uso dos EUA. Tratava-se da primeira versão do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM-I), com base na compreensão da “doença mental como uma reação a problemas da vida e situações difíceis encontradas pelos indivíduos”. Essa definição cobre agora um espectro amplo de sofrimentos mentais e é um passo decisivo na patologização desse sofrimento;
*Em 1968 é lançado o DSM-II, uma tentativa de compatibilizar o discurso psicanalítico e psiquiátrico. Abandonando a perspectiva da biopsicossociabilidade, acata uma influência ainda maior da psicanálise à medida que passa a considerar que “as diferentes formas de perturbações mentais” correspondem “a diferentes níveis de desorganização psicológica do indivíduo”;
*Na década de 1970, o programa federal que reembolsava integralmente as seguradoras filiadas pelos tratamentos psiquiátricos, alega que não há clareza suficiente nas “terminologias que concerne aos diagnósticos mentais, modelos de tratamentos, e tipos de facilidades em prover cuidados” e considera os investimentos neste segmento da saúde um “poço sem fundo”;
*Entre as décadas de 1970 e 1980, instala-se uma crise da psiquiatria norte-americana sob a expectativa do crescimento dos estudos da psicanálise. Defende-se o surgimento de uma “nova psiquiatria clínica”, caracterizada por uma psicobiologia renovada, em que concepções biológicas, psicanalíticas e da psiquiatria social, testadas empiricamente”” iriam se coadunar;
*Em 1987 é lançado o Prozac®, primeira droga a base de Fluoxetina lançada nos Estados Unidos que passa a ocupar o topo do ranking nas vendas dos produtos do laboratório Eli Lilly, e se torna a fonte de mais de 30% do seu faturamento4;
*Em 1980 é lançado o DSM-III, constituído de cinco “eixos” que, com “critérios diagnósticos explícitos e objetivos para cada categoria” de transtorno mental, aborda desde os transtornos de personalidade até as “escalas de avaliação para a gravidade dos estressores sociais e avaliação global do funcionamento”. E esse é um segundo e importante momento de patologização do sofrimento;
*Em 1994 é lançado o DSM-IV, que rompe definitivamente, com “as descrições psicanalíticas”, e o National Institute of Menthal Health (NIMH) alcança a cifra de US$ 600 milhões para investir em pesquisas;
Este processo de adequação da psiquiatria às metodologias médica e científica vigentes, reconhece-se o tempo de uma “remedicalização da psiquiatria” que ilustra o pressuposto central da idéia que “o cérebro é o órgão da mente” (Aguiar, 2003, 20-45)5. E é neste aspecto que a psiquiatria dialoga em harmonia com a psicofarmacologia. Vários autores que militam em favor do uso racional de todo e qualquer medicamento alopático, incluindo os psicofarmacológicos, reconhecem que através deste processo também se implantou o controle tanto da qualidade como da segurança do uso terapêutico de medicamentos em todo o mundo (Barros, 2009; Aguiar; 2004). Isto pode ser reconhecido na legalização de órgãos competentes para acompanhar todo o processo, da sintetização à venda, passando pela propaganda, dos medicamentos. No caso do Brasil, esse papel é desempenhado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desde 1999.
Atualmente, entretanto, é possível afirmar que os psicofármacos passaram a ser compreendidos como medicamentos capazes de atuar sobre o sofrimento humano diretamente em sua estrutura biológica e que esta perspectiva inaugurou uma forma de autoprodução “técnica” que corresponde, em certa medida, àquilo que se chama de “biossociabilidade” (Rabinow apud Martins, A.L.B., 2005). Uma terapêutica pensada largamente à revelia dos processos de tratamento simbólicos, como a psicanálise. Para muitos (Fukuyama, Habermas, por exemplo), a descoberta de medicamentos que permitiriam “aliviar o sofrimento humano” não deve culminar na busca pela solução química de nossos problemas existenciais, nem no ato de delegar a uma droga de última geração a responsabilidade de lidar com nossas frustrações e dores dotidianas (Ehrenberg, 1995: 125-127). Isto ilustra uma preocupação das maiores preocupações atuais com a adoção da terapêutica psicofarmacológica, a saber, o uso irracional destes medicamentos (Barros, 2009), que despreza a percepção “que existe uma ecologia do corpo, que merece ser preservada e poupada da poluição e intervenções farmacológicas desnecessárias” (Aquino, 2008).
Um maior poder da indústria farmacêutica frente aos médicos e instituições de regulação e controle sobre a circulação de medicamentos, sua própria capacidade de definir o que é objeto de intervenção através de medicamentos em função daquilo que podem ofertar, a própria transformação do paciente psiquiátrico ou psicanalítico em um consumidor, dá força às preocupações de Ehrenberg, Barros e Aquino. Mesmo quando alguns entendem que uma maior autonomia dos pacientes com relação à competência médica não significa necessariamente um mal (Nikolas Rose), antes poderia indicar a ampliação dos espaços de cidadania, é evidente que há lugar para supormos que uma modificação radical está ocorrendo no que diz respeito ao que se convencionou pensar como terapêutica psicológica. Essa mudança, em uma medida significativa, já estava implícita no momento em que o psicofármaco passou a constituir parte da terapêutica de pacientes tradicionalmente tratados através da psicanálise, ou seja, pacientes em estado de sofrimento psíquico, mas em quem não se pode identificar uma patologia psiquiátrica.
Em todo caso, hoje é mais difícil operar a partir de uma separação clara entre o que poderíamos chamar de dimensões simbólica e química do sofrimento psíquico, entre as necessidades de libertação pela rememoração de um neurótico, digamos, e as necessidades químicas de um paciente psicótico. Uma crise de ansiedade pode e comumente é rapidamente medicada. O problema se coloca quando a dimensão simbólica deste sofrimento não consegue encontrar espaços adequados de realização diante de entraves culturais amplos que colocam a “medicalização da vida” como saída prioritária para nossos problemas existenciais. Dedicaremos o próximo tópico a isso que chamamos de crise da psicanálise, mas que, evidentemente, diz respeito, como veremos, a uma crise cultural bem mais ampla. Em seguida, buscaremos confrontar essas primeiras suposições com uma pesquisa empírica realizada entre 2008 e 2009 junto a consumidores de psicofármacos.
A crise da psicanálise como crise cultural ampla: a possibilidade da verdade trágica
Contemporaneamente se tem falado de uma crise da psicanálise e da psiquiatria enquanto forma de lidar com o sofrimento psíquico e, de modo mais amplo, como forma de conhecimento das sociedades modernas e da possibilidade de exercer sobre elas algum tipo de cuidado civilizador. Fala-se muito na morte do pai, na triste constatação de que o consumo, o prazer imediato são hoje formas privilegiadas para mitigar a precariedade de nossos engajamentos, nosso niilismo, nosso “tédio profundo”, como diria Heidegger, ou a pobreza de nossas experiências, como afirmava Benjamin nas primeiras décadas do século passado. Benjamin, em seu famoso texto, fala de uma miséria que resulta da proliferação de vivências rasas, consumidas com a mesma inconsequência com a qual nos movimentaríamos numa loja de departamentos: astrologia, ioga, vegetarianismo, quiromancia etc. etc., tudo está à disposição dos olhos e do estômago civilizados. Tudo está fadado à mesma aniquilação vertiginosa. A crise da psicanálise, ao nosso ver, diz não apenas da perda de prestígio de uma forma de conhecimento consagrada, confrontada a todo momento com a perspectiva de alívio imediato, com a disponibilidade de antidepressivos, ansiolíticos etc., mas uma crise mais profunda que diz respeito à importância da verdade trágica em nossa cultura. E é nessa direção, isto é, refletindo acerca do peso do trágico na cultura ocidental, que deveremos olhar caso desejemos compreender o significado de práticas contemporâneas de lidar com o sofrimento. Porém, se essa reflexão mais teórica é o nosso ponto de partida, nossa bússola, ela não é o seu fim. Trata-se, afinal, de analisar o consumo de psicofármacos como forma de cuidado de si. Entender aquela transformação mais ampla e radical não significa saber de antemão o que o campo nos trará, mas estabelecer grandes sobre as quais a verdade da investigação empírica pode ser revelada em sua especificidade.
Mas o que é a verdade trágica e de que modo ela estrutura o projeto psicanalítico?
Podemos inicialmente dizer que a tragédia é a verdade da filosofia ocidental e, portanto, da forma como ela vem influenciando diversos campos de conhecimento, entre eles, a psicanálise. A tragédia é o lugar de um pensar que incomoda, lugar em que o mito que organiza a polis é posto sob uma luz na qual fica exposta sua ambiguidade fundamental. Sob essa luz, percebemos que o mito é um nó que amarra verdades tensas e contraditórias. Perceber isso, todavia, é agir de modo a afrouxar seu poder organizador, é colocá-lo em perspectiva. A tragédia, que surge na Grécia democrática, traz em si a possibilidade de perturbação dos valores fundamentais que estruturam a cidade, a ordem pública, exatamente por colocá-los numa certa epoché. Sua forma dramática e sua retórica testemunham, segundo Vernant e Vidal-Nequet (2005), um emaranhado de problemas jurídicos e políticos em meio aos quais o herói trágico revolve, dando-nos a perceber, de vários modos, os princípios arcônticos que organizam a vida civilizada6. Talvez por isso mesmo, Sólon tenha reagido com indignação ao assistir a esse tipo de espetáculo pela primeira vez. Que Agamenon, Édipo, Orestes, Antígona possam ser vistos numa perspectiva ambígua que opõe, por exemplo, a verdade humana e a verdade divina, ethos e daimon, deveres cívicos e deveres de sangue, parece-lhe insuportável. E aqui temos uma primeira constatação acerca da verdade trágica: ela perturba por tornar visíveis as tensões, as violências sobre as quais a pólis se organiza jurídica e politicamente. Para usarmos Derrida, diríamos que a tragédia deixa ver os princípios arcônticos sobre os quais a vida civilizada se estrutura.
Em segundo lugar, deveríamos dizer que a ação trágica, a ação do herói trágico, não é propriamente algo da esfera da vontade. Vernant e Vidal-Naquet (2005) observam que o grego clássico sequer dispunha de um verbo específico para dizer o que corresponderia ao nosso verbo “querer”. O herói, no entanto, possibilita-nos “uma interrogação ansiosa da relação do agente com seus atos: Em que medida o homem é realmente a fonte de suas ações? (p. 23)”. Os planos divinos e humanos se contrapõem, essa é a conclusão a que chegamos ao ver em cena Édipo, por exemplo. Mas se o querer, a vontade, não define a ação do herói trágico, podemos dizer que ele é aquele que decide, ou em que algo é decidido, quando essa decisão é impossível. O herói trágico decide o indecidível. Antígona é presa a suas obrigações de sangue e, ao mesmo tempo, a seus deveres para com a cidade de Tebas, a suas obrigações para com divindades ctônicas e, ao mesmo tempo, para com divindades olímpicas. Ali, na impossibilidade da decisão, algo é decidido. E essa decisão não resolve a tensão sobre a qual saltou: a ambiguidade, a tensão trágicas continuam pulsando mesmo quando tudo já foi decidido. Deste ponto de vista, não há verdadeira catarse na tragédia, pois o rastro da violência continua operando no espectador mesmo findada a ação dramática.
Schelling constata alguma coisa muito parecida com isso em Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo. Porém, aqui a catarse é uma possibilidade ligada à liberdade do herói diante de forças fatais que o subjugam.
“A tragédia grega honrava a liberdade humana ao fazer seu herói lutar contra o poder superior do destino: para não ultrapassar os limites da arte, tinha de fazê-lo sucumbir, mas, também para reparar essa humilhação da liberdade humana iposta pela arte, tinha de fazê-lo expiar – mesmo que através do crime perpetrado pelo destino... Foi grande pensamento suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, a fim de, pela perda da própria liberdade, provar junstamente essa liberdade e perecer com uma declaração de vontade livre” (Schelling apud Szondi, 2004, p. 29).
A verdade trágica diz respeito de algo há muito esquecido, sepultado, e que retorna. O trágico, nesse sentido, é sempre o retorno de Dionisos, a sua ressurreição. Édipo constata a verdade do Oráculo de Delfos; Agamenon redescobre a hybris, a desmedida incopatível com sua condição de mortal, que o acompanha desde que sacrificou a lebre prenha de Diana, redescobre a própria ambição e vaidade desmedidas através da armadilha que lhe propõe Clitemnestra. Assim, Heidegger propõe que precisamos redescobrir uma dimensão da verdade obscurecida pela metafísica, e particularmente pela modernidade. Uma verdade que é um desesquecimento, uma aletheia. Ora, e essa dimensão trágica da verdade também não é fundamental na psicanálise? Sua própria técnica não se estrutura sempre sobre o retorno de Dionisos? Isso é bastante evidente no próprio fato de a exegese psicanalítica investir sobre algo como uma memória do esquecimento, sobre o reprimido que deve vir à consciência. E esse retorno teria a possibilidade de libertar. O estranho, o estrangeiro retorna na psicanálise como aquilo que há de mais íntimo. A verdade trágica se estrutura como remomoração de algo que nos é fundamental mas que, por perturbador, esquecemos.
Finalmente, podemos dizer que a verdade trágica é um aprendizado pela dor. Posto que o saber humano está separado do saber divino, todo aprendizado implica necessariamente um padecer em que se afirmam valores fundamentais de convívio: a sabedoria, a moderação, a justiça. Tal é o sentido das linhas de Agamben (2008, p. 27): “É esta a diferença que o coro da Oréstia de Ésquilo sublinha, caracterizando – contra a hýbris de Agamenon – o saber humano como páthei máthos, um aprender somente através de e após um sofrimento, que exclui toda possibilidade de prever, ou seja, de conhecer com certeza alguma coisa”. Por isso também, a verdade trágica nos conduz a um sentimento de desamparo, de derrelição. Em Agamenon, Ésquilo expõe, de uma forma belíssima, o que caracterizaria para o homem grego a relação entre prudência e experiência. Aos mortais, Zeus abre um só caminho para a experiência, para a prudência, para o saber: a dor.
Él, que abrió a los mortales
la senda del saber;
Él, que en ley convertiera
"Por el dolor a la sabiduría".
En vez de sueño rezuma dentro del pecho
un dolor que recuerda el mal antiguo.
Así, aun sin querer, le llega al hombre
la prudencia. Favor violento de los dioses
que en su augusto trono se sientan,
junto al timón!
A verdade trágica constituiu no ocidente um espaço crítico para colocar em perspectiva o poder, para colocar em epoché nossos compromissos irrefletidos da vida cotidiana, nosso automatismo, nossa compulsão, nossa hýbris. Ela se estrutura, como vimos, sobre algumas idéias chaves. Primeiro, o trágico é a possibilidade de pensar o mito, perceber as tensões que o estruturam, afrouxá-las, apropriá-las da perspectiva de nossa humanidade. Segundo, no trágico algo se decide mesmo na impossibilidade de decisão. O que diferencia Orestes e Hamlet não é o problema básico sobre o qual se debruçam: honrar a memória de um pai assassinado, vingar-se de seu assassino e da própria mãe sobre quem a cumplicidade paira como uma dúvida ou como uma certeza. Tampouco a incerteza de quais os compromissos que devem guiá-los. No Coéforos, de Ésquilo, Orestes chega a vacilar diante dos apelos da mãe, diante da possibilidade de cometer um crime que o tornará para sempre impuro. “Oh Pílades, que hacer? Ella es mi madre!” Oscila entre seus compromissos com seu pai, com Apolo, por um lado, e com sua mãe, por outro. Hamlet também vacila no que toca aos seus compromissos. Será o fantasma de seu pai na verdade um demônio? Mas Orestes age quando há tudo ainda por perder; Hamlet age quando já nenhuma ação faz sentido. Na Origem do Drama Barroco Alemão, Benjamin fala do traço deste tipo de personagem, a acedia, a incapacidade de decidir, o discurso interminável onde a ação é requerida. Diante do indecidível, o herói do drama barroco acumula dúvidas e palavras e recusa o gesto trágico. Para Benjamin, essa é uma marca moderna, a incapacidade da violência da decisão trágica. Mas, como tal violência pode ser sequer concebida quando não há valores em tensão, quando o niilismo da cultura ocidental parece nossa realidade inquestionável? A terceira idéia-chave, nós a colocamos assim: “A verdade trágica se estrutura como rememoração de algo que nos é fundamental mas que esquecemos”. E diante disso perguntaríamos: o que é mesmo fundamental diante da pobreza de nossa vida cotidiana, diante da impossibilidade de experiência? E aqui recorremos mais uma vez a Benjamin. Diante de um mundo que se apresenta como desprovido de significados últimos, diante do “tédio profundo” da aceleração tecnológica, do niilismo da contemporaneidade, a vivência do estranho, do não familiar, já não nos retorna algo fundamental. Dionisos ficou retido em alguma operação de combate ao terror num país oriental. Mas há ainda um motivo para essa impossibilidade.
Para falar sobre ela, deveremos retomar nossa quarta idéia-chave. A verdade trágica implica em um aprendizado pela dor, onde o reconhecemos nossa mortalidade, nossa finitude. E a partir desse reconhecimento poderemos constituir a experiência de significados fundamentais. Mas, como nos ensina Horkheimer e Adorno no Segundo Excurso da Dialética do Esclarecimento, a cultura moderna se estrutura a partir de uma distância emocional, uma apatia, de uma analgesia intelectual que inviabilizam tal tipo de aprendizado. No “Excurso II” da Dialética do Esclarecimento, dedicada a Sade, Adorno e Horkheimer constatam a esse respeito: “ ‘A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude’, diz Kant, distinguindo essa ‘apatia moral’ (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 93). E citando diretamente Sade eles consideram: “Minha alma é dura, e estou longe de achar a sensibilidade preferível à feliz apatia de que desfruto” (p. 94). E para que sofrer se temos analgésico? Para que entristecer se os antidepressivos estão disponíveis?
Se aqui não estamos fazendo uma defesa explícita de verdade trágica, acreditamos que ela venha orientando a possibilidade de crítica na cultura ocidental. Nossa pergunta então é: o que acontece quando os pressupostos dessa cultura são radicalmente transformados. O surgimento de uma cultura da medicalização da vida parece-nos apenas uma evidência da escala dessas mudanças: nossa impossibilidade de decidir, nossa acedia, nossa incapacidade de encontrar um sentido fundamental para nossas ações, nossa recusa de enfrentar o sofrimento quando esses valores, sentidos não estão disponíveis. Esse tipo de constatação, no entanto, peca ao propor um tipo de orientação teórica por atacado, no que pese ela ajudar a entender dados bastante concretos do trabalho empírico que orientou a elaboração desse texto.
O Consumo de psicofármacos
O tópico que se segue sintetiza a análise de material empírico coletado entre os anos de 2008 e 2009. Nesse período, foram realizadas dezoito entrevistas semi-estruturadas com uma rede de informantes consumidores de ansiolíticos e antidepressivos. Esta rede foi formada numa estratégia de bola-de-neve e, embora não pretenda ser representativa da população de consumidores desse tipo de medicamentos na Região Metropolitana do Recife, onde o estudo se realizou, acreditamos que ela nos fornece informações importantes acerca da forma como os indivíduos consomem este tipo de medicamentos e do tipo de reflexividade implícita neste consumo. Estas informações contribuíram para a percepção de como o psicofármaco intervém na construção e manutenção de uma espécie de “muleta química” para a segurança básica contemporânea dos sujeitos acometidos de mal-estares pcisoafetivos. Nesse sentido, as entrevistas confirmaram a hipótese mais ampla que orientou o presente trabalho e que formulamos no tópico anterior. Porém, mais que isso, elas mostraram reflexividades de curto alcance que viabilizam essa terapêutica.
Comecemos afirmando que os indivíduos desta rede não se reconheceram como doentes, mas antes como pessoas desestabilizadas emocionalmente. Mesmo assim em suas falas foi constante a definição dos males que eles próprios dizem afligi-los como “depressão”, “transtorno”, “ansiedade”. A perspectiva de que esses sintomas possam ser encarados como parte de uma patologia é algo que os entrevistados recusam terminantemente – o que eventualmente pode indicar uma ansiedade quanto a essa possibilidade. A análise desse sofrimento dá lugar ao uso de metáforas singelas. Uma deficiência na produção de endorfina era formulada como se o medicamento viesse a preencher um “baldinho” que não se encontra cheio, como esperado, e precisa ser “preenchido”. Chama a atenção nesse tipo de imagem, evidentemente, que a solução de um problema psicoafetivo implica algo muito semelhante à compra de produtos no mercado para abastecer, digamos, uma dispensa. Contudo, e não raro, os mesmos sujeitos consideraram a necessidade de se trabalhar também num âmbito simbólico, dando a entender que o medicamento deve ser entendido como “parte” de uma terapêutica mais ampla. Ficou claro, entretanto, que o consumo de psicofármaco tem algumas funções fundamentais para os entrevistados: evitar o sofrimento psíquico proveniente da ansiedade e da depressão relativos a rotinas de trabalho percebidas como extenuantes7, à insegurança de viver numa grande cidade, a uma tristeza sem foco definido que só pode ser compreendida como dificuldade de encontrar sentido na existência. Verificamos que o que lhes interessava, de fato, era cessar seu mal-estar subjetivo - muitas vezes traduzido fisicamente, sudorese, palpitação, sono descontrolado, apatia - de maneira rápida. Rapidez é o primeiro elemento da reflexividade subjacente a tais processos terapêuticos que gostaríamos de destacar.
“A minha psiquiatra queria que eu fizesse terapia com ela, mas eu a acho meio doida. Eu fiz terapia um tempo e enjoei. Acho que os remédios são mais rápidos” (Caio).
Dentre as justificativas para a eleição pragmática do psicofármaco como dispositivo do cuidado consigo, encontram-se argumentos como a do preço de uma sessão de análise (atualmente na média de R$ 80,00 à R$ 350,00) quando comparada ao custo do uso de ansiolíticos e antidrepressivos. Tomemos um exemplo. Atualmente no mercado brasileiro há uma variação de preço de antidepressivos de R$ 3,47 – caixa de Rivotril® 0,5 mg com 20 comprimidos, até o extremo de R$ 162,00 – caixa de Paxil® de 20mg com 28 comprimidos. Mesmo que esse medicamento seja prescrito em combinação com um ansiolítico, o custo financeiro do bem-estar proporcionado por medicamentos é percebido como um melhor negócio que o investimento lento pressuposto, por exemplo, na terapia pela fala. Claro que aqui estaríamos diante de um falso problema. Ora, a psicofarmacologia não prescinde da terapêutica convencional, psicanalítica ou psiquiátrica. Mas é exatamente a ponderação com relação aos custos aqui envolvidos, e o “falso” problema colocado, que nos permitem perceber o quanto é sedutora a perspectiva de automedicação, ou da medicação prescrita por um não especialista. Evidentemente, um investimento terapêutico que vá além do consumo de medicamentos é oneroso sob uma outra perspectiva: ele significa suportar um sofrimento do qual o psicofármaco aparentemente nos poupa. E sob esses dois aspectos percebemos o custo como um segundo elemento de reflexividade.
Para os sujeitos-consumidores da rede investigada, em grande medida, tanto o comportamento de sofreguidão decorrente do estado ansioso como a apatia característica do estado depressivo, por exemplo, apesar de íntimos e impartilháveis, seriam perceptíveis e facilmente identificados. Por isso mesmo, esses estados precisam ser suprimido em tempo real a fim de que não lhes sejam imputados estigmas como o da loucura e o da improdutividade. A dor, o sofrimento subjetivo, muitas vezes foi relatada como vivência que se dá em meio a um conjunto de sensações confusas, difíceis de ser verbalizadas. Essa experiência é acompanhada de sentimentos de culpa, impotência e, sobretudo, vergonha. Notou-se, ainda e claramente, que a vergonha de estar acometido com tais sensações concorre com a própria solução encontrada que é a de tomar a medicação psicofarmacológica para remediá-las. Os entrevistados manifestaram forte receio de assumir publicamente o tratamento com psicofármacos, e isso tanto no âmbito público, como o do trabalho, como em círculos mais fechados, como o de amigos e familiares. O medicamento, nesse caso, é uma forma de manter controle sobre sua imagem diante do grupo, além de poder indicar a impermiabilidade para lidar com o sofrimento desses indivíduos.
No que concerne às relações de maior intimidade, como da prática sexual, foram relatadas a elaboração de performances e estratégias para lidar com efeitos colaterais indesejados dos psicofármacos, como a perda da libido. Mais de uma entrevistada revelou disfarçar essa queda no interesse sexual, temendo que esta pudesse ser confundida com uma diminuição de interesse ou afeto pelo parceiro. Quanto aos homens, alguns deles revelaram planejar o ato sexual de modo a parar de tomar o medicamento dois dias antes da data pretendida. Aliás, neste aspecto, uma das constatações mais emblemáticas do campo foi a de que estes sujeitos-consumidores operam uma economia na qual, atribuem de forma individual “pesos” a diferentes elementos da vida. O que pode ser classificado como essencial para uns, é dispensável para outros. Esta economia surge, ganha importância e é operada no campo exclusivo da subjetividade e tem uma finalidade pragmática: equalizar a tensão entre usufruir do bem-estar e da segurança tanto físico como psicoafetivo proporcionados pelo consumo do psicofármaco e manter a certo grau, ainda que baixo, de autonomia sobre seu corpo.
A partir de um “reconhecimento de si” que ocorre através da consciência prática, parte do monitoramento reflexivo que estes sujeitos exercem sobre si mesmos resulta na possibilidade de alguma autonomia. Estes sujeitos-consumidores calculam riscos, como a possível dependência química e/ou psicológica de um determinado medicamento, de modo a garantir certo grau de autonomia sobre o medicamento que consomem. Um exemplo disto foi citado acima: os indivíduos elaboram uma espécie de cronograma onde jogam com suas necessidades e desejos cotidianos, como as de ter relação sexual ou consumir bebida alcoólica, e testam a adaptação das dosagens recomendadas ou prescritas do medicamento, até encontrar o “timing” que corresponda ao equacionamento de suas demandas.
Veio ainda à tona nessas entrevistas a atribuição do psicofármaco como um auxiliar na lida contra a impotência, a insegurança e o medo que se experiência na vida pública. Foi mesmo identificada a expectativa de o psicofármaco poder atuar também como um dispositivo profilático, por exemplo, frente a eventuais situações de violência urbana nas quais a sua vida pode ser posta em risco pela mera falta de um “controle” emocional, uma de nossas informantes revelou que se prepara para sair de casa, “abastecida” por seu ansiolítico. Ora, isso não parece ser um caso isolado diante das informações que obtemos na grande mídia reportando o uso de psicofármacos para melhorar a performance no trabalho. Esse é, por exemplo, o segredo da popularidade da Ritalina nos EUA.
Asssim, da leitura deste campo, contudo, nada nos autoriza a deixar de reconhecer que a prática de uma reflexividade na adesão à terapia medicamentosa está de um todo ausente. Embora o consumo de psicofármacos contenha elementos que remetem a um cuidado consigo, especialmente no que diz respeito à inquietação que produz a reflexividade, constatamos que algo se perdeu no processo de modernização. O cuidado consigo circunscrito à terapia medicamentosa que dispensa a aprendizagem pelo erro e pela dor para a construção de uma subjetividade calcada na reflexão e na possibilidade da transformação de si, ilustra uma reflexividade contingente e localizada que impõe limites à reflexão e, portanto, ao autogoverno dos sujeitos da rede investigada.
[Por revisar e concluir...]
2 comentários:
Muito bom o texto. Vocês poderiam indicar alguma bibliografia para um aluno de graduação interessado? Obrigado!
Em meu nome e em nome de Erliane, obrigado, Anônimo. E tão logo Erliane chegue do Seminário onde ela deve apresentar esse trabalho, juntaremos nossas referências bibliográficas e disponibilizaremos no Cazzo. Seria uma versão revisada desse texto. Abraço, Jonatas
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