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quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A concepção de individualidade em Georg Simmel

"Crepúsculo", obra de George Grosz, 1922

Por Ana Rodrigues - Doutoranda no PPGS/UFPE

É possível afirmar que o surgimento da sociologia é concomitante ao nascimento do indivíduo da modernidade, que se caracteriza por uma transformação fundamental na relação entre indivíduo e sociedade e por um maior espaço conferido àquele nas relações sociais. Assim, muito embora a consolidação da sociologia como disciplina autônoma tenha sido marcada por um esforço em desvendar as determinações sociais na explicação da vida social, sempre houve um interesse, por parte de seus melhores teóricos, pela análise das dimensões individuais (Martucelli, 2007b).
A análise do indivíduo nunca esteve completamente ausente da sociologia clássica. Mesmo Durkheim, que é considerado um autor holista, reconheceu que as sociedades modernas outorgam um espaço mais amplo ao indivíduo, chegando a afirmar que este havia se convertido na religião da modernidade. Em 1898, Durkheim publicou um texto – “O individualismo e os intelectuais” – em que em que apresenta duas concepções de individualismo: uma negativa, que rende homenagem ao indivíduo particular (egoísmo), e uma positiva, que considera cada indivíduo como representante da humanidade e da razão e rende homenagem à pessoa humana. O autor defende essa segunda concepção, denominada como “individualismo abstrato” por Martucelli e Singly (2012, p. 16).
Mas é sobretudo Simmel que destaca a crescente liberação do indivíduo das antigas dependências históricas nas sociedades modernas, buscando desenvolver uma teoria sociológica do individualismo de maneira menos maniqueísta que seu contemporâneo, Durkheim. Em O indivíduo e a liberdade, Simmel identifica dois tipos de individualismo desenvolvidos na cultura europeia a partir do século XVIII, fundamentados em duas concepções distintas de liberdade. De acordo com Martucelli e Singly (2012, p. 20), o interesse da obra de Simmel é que, diferentemente de Durkheim, ele não estabelece nenhuma hierarquia entre esses dois individualismos e desloca os termos do problema, tentando compreender de que maneira essas duas concepções opostas se articulam.
A primeira noção de individualismo desenvolve-se a partir do século XVIII e tem na liberdade a sua motivação mais íntima. Segundo Simmel (2005, p. 108), a liberdade se torna a bandeira universal por meio da qual o indivíduo protege seus mais variados desconfortos e tenta se autoafirmar perante a sociedade. O ideal da liberdade individual defende a liberação do indivíduo das instituições religiosas, políticas e econômicas que constrangem os potenciais da personalidade de maneira não-natural. É necessário, portanto, libertá-lo de todas essas influências e das desigualdades artificialmente produzidas para que o indivíduo possa desenvolver todos os valores internos e externos de sua personalidade.
Essa concepção de individualismo tinha como fundamento a igualdade universal, seja esta fundada na natureza, seja na razão ou na humanidade. O centro do interesse dessa época é o homem abstrato, que constitui a essência de qualquer pessoa particular, ao contrário do homem historicamente situado, singularizado e diferenciado pelos seus pertencimentos sociais. Com isso, Simmel (2005, p. 109) aponta um contexto de pertencimento prévio e mútuo entre direito, liberdade e igualdade, uma vez que o homem genérico, que representa o núcleo essencial do homem individualizado, aparece em cada indivíduo particular sempre que este seja libertado das forças sociais e desvios históricos que violentam sua essência mais profunda. Para Martucelli e Singly (2012, p. 19), a concepção de individualismo como independência individual, apresentada por Simmel, corresponde ao “individualismo abstrato” de Durkheim.
Simmel (2005, p. 111) também destaca que “esse conceito de individualidade implica, em sentido prático, o laissez faire, laissez aller”, uma vez que se em todos os homens é possível encontrar o homem abstrato como sua essência e se pressupõe o seu desenvolvimento perfeito, então as relações humanas não necessitariam de intervenções reguladoras especiais. No entanto, o autor afirma que não se conseguiu eliminar totalmente as sombras da liberdade nos indivíduos, uma vez que a igualdade manifestava-se de maneira muito imperfeita na realidade.  Ademais, a própria suposição de que após a conquista da liberdade, seguiriam-se novas iniquidades e opressões impulsionou o acréscimo da exigência da fraternidade ao de liberdade e de igualdade, pois “apenas a renúncia eticamente voluntária que esse conceito expressa pode evitar que a liberdade fosse acompanhada do oposto da igualdade” (Simmel, 2005, p. 111).
De acordo com Simmel (2005, p.111), se a consciência geral daquela época sobre a essência da individualidade escondeu essa contradição entre igualdade e liberdade, ela aparece novamente no século XIX. Nesse momento, surge uma segunda concepção de individualismo que se contrapõe à síntese do século XVIII e sua fundamentação da igualdade pela liberdade e vice-versa. Nessa concepção, há uma ênfase na desigualdade e a liberdade permanece como o denominador comum também com o correlato oposto. Contudo, é importante destacar que se, por um lado, o autor aponta a contraposição entre as duas concepções de individualismo, por outro, ele busca apreender sua articulação, mostrando que o individualismo do século XIX pressupõe a concepção do século XVIII, fundamentada na igualdade. Nas suas palavras, “tão logo o eu, no sentimento da igualdade e universalidade, sentiu-se forte o bastante, passou a procurar a desigualdade, mas apenas aquela que surgia como uma lei interna” (Simmel, 2005, p. 112).
Simmel (2005, p. 112) afirma ainda que após a libertação dos indivíduos de suas antigas dependências históricas, o movimento segue adiante e estes indivíduos tornados autônomos buscam agora distinguir-se entre si. Nesta segunda concepção, o importante não é o indivíduo como tal, mas sim o que este tem de único e distinto. Desse modo, intensifica-se a procura moderna pela diferenciação, a busca do indivíduo por si mesmo, por um ponto de solidez e ausência de dúvidas, que se torna tanto mais necessária quanto maior a complexidade da vida. E essa busca não pode ser encontrada em instâncias externas à própria alma. Para o autor, as relações com os outros são apenas estações no caminho em busca de si mesmo. Tais relações são importantes seja porque o indivíduo se sente igual aos outros e sozinho com suas próprias forças, precisando do apoio desse tipo de consciência, seja porque os outros são importantes na comparação e visão da própria singularidade e individualidade do próprio mundo.
Essa concepção de individualismo encontrou seu filósofo em Schleiermacher, para quem não apenas a igualdade, mas a diferenciação é uma obrigação ética. Simmel (2005, p. 113) denomina esse individualismo de qualitativo em oposição ao individualismo numérico do século XVIII e afirma que o romantismo alemão foi o primeiro canal por meio do qual essa concepção permeou a consciência do século XIX.
Segundo Simmel (2005, p. 114), a primeira concepção de individualismo é o produto do liberalismo racional da Inglaterra e da França, enquanto a segunda é uma criação do espírito germânico. Embora em constante tensão, o autor afirma que essas duas grandes forças da cultura moderna procuram um equilíbrio nas mais diversas esferas. No entanto, até o século XIX, os dois tipos de individualismo só foram unidos na constituição de princípios econômicos. Nesta esfera, a concepção da liberdade e da igualdade fundamenta a livre concorrência, enquanto a personalidade diferenciada é o fundamento da divisão do trabalho. Simmel (2005, p. 115) adverte que as consequências “da concorrência sem peias e da especialização da divisão do trabalho para a cultura interna não se deixam apresentar exatamente como o maior benefício dessa cultura”.
A análise de Simmel do individualismo não se restringe ao esboço da emergência de diferentes ideias filosóficas e suas respectivas raízes culturais, dado que ele também busca apreender as mudanças sociais que possibilitaram seu surgimento. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel mostra de que maneira o desenvolvimento de uma economia monetária possibilitou uma margem crescente de liberdade individual e, consequentemente, um maior domínio da consciência pelo indivíduo.
De acordo com Simmel (1977, p. 348), o desenvolvimento de uma economia monetária conduziu a uma maior objetividade das relações sociais. Na medida em que o dinheiro se torna o mecanismo universal de troca, ele permite determinar a igualdade exata dos valores de troca, devido às suas propriedades de divisibilidade e aproveitabilidade ilimitada. Como ele pode ser somado e dividido de maneira ilimitada, ele permite a adoção de um critério quantitativo na apreensão dos produtos, reduzindo toda qualidade e individualidade à questão: “quanto?”. Portanto, nos mais diversos fenômenos, dentro da economia monetária, os objetos tornam-se cada vez mais indiferentes em sua singularidade e individualidade, carentes de essência e intercambiáveis (Simmel, 1977, p. 361).
O princípio da objetividade adotado pela economia monetária também conduziu a uma transformação da forma real que tomam as relações de dependência, possibilitando o desenvolvimento da liberdade individual. Simmel (1977, p. 338) explica que, enquanto nas formações sociais anteriores, a vinculação e o direito do senhor abrangiam não apenas o produto do trabalho como também a personalidade do trabalhador, a economia do dinheiro conduz a uma separação completa da personalidade como tal frente às relações de dever. A adoção do princípio da objetividade frente ao da personalidade conduz a uma transição em que o limite do tempo de trabalho começa a ser determinado e, em seguida, não se exige mais um tempo e uma força de trabalho determinados, mas um produto determinado do trabalho. Desse modo, não há uma subordinação a outra personalidade subjetiva. O dinheiro despersonaliza as relações.
Do mesmo modo, no sistema de trabalho assalariado, o trabalhador adquire certa independência frente ao empresário isolado, devido à frequência com que a economia monetária muda o empresário e pela possibilidade múltipla de eleger ou substituir a este que a forma do salário garante ao trabalhador, concedendo-lhe uma liberdade completamente nova, dentro de suas ataduras. Contudo, Simmel (1977, p. 359) destaca que a liberdade do trabalhador é também a liberdade do empresário, que não existia nas formas de trabalho mais vinculadas. Em sentido social, a liberdade, como a ausência de liberdade, constitui uma relação entre seres humanos.
Simmel (1977, p. 352) adverte que a economia monetária não possibilitou apenas uma liberação do indivíduo, mas também uma configuração especial das relações de dependência mútua que, ao mesmo tempo, deixa margem para um máximo de liberdade. Isso porque essa economia estabelece uma série de vinculações, inexistentes nas formações econômicas anteriores. A dependência de outras pessoas alcançou esferas completamente novas, devido à crescente divisão moderna do trabalho e a especialização das faculdades humanas que a acompanha, além do aparecimento de técnicas mais complexas e de um número maior de intervenções para atender mesmo às necessidades mais elementares. Mas o outro lado do processo de divisão do trabalho é justamente que, à medida que o sujeito se torna dependente de um número crescente de prestação de serviços, ele se torna independente das personalidades que se encontram por trás destes, porque só permite a ação de uma parte das mesmas, “excluindo por completo as outras cuja conjunção é precisamente o que dá lugar à personalidade” (Simmel, 1977, p. 354).
Desse modo, a economia monetária facilita a separação do elemento pessoal das relações entre os seres humanos através de sua essência objetiva. Se o homem se torna, por um lado, mais dependente de uma grande quantidade de provedores, ele é muito mais independente da pessoa isolada e concreta que lhe presta um serviço e que pode ser substituída com facilidade e frequência. Em consequência disso, o indivíduo recebe como recompensa “a indiferença em relação com as pessoas e a liberdade de intercâmbio com elas” (Simmel, 1977, p. 356).
Para Simmel (1977, p. 357), esta é a situação mais favorável para produzir a independência interior e o ser-para-si individual. É só a partir do exercício desta liberdade, que é possível desenvolver a individualidade, de ampliar o núcleo do eu por meio da vontade e sentimento individuais. O autor destaca que tal individualidade não pode ser percebida como uma ausência de relações, mas, precisamente, como uma relação muito determinada com os demais. Uma relação que pressupõe, como toda relação, elementos de aproximação e elementos de distanciamento. Segundo ele, a configuração mais favorável de ambos os elementos para explicar a independência tanto em sua qualidade de fato objetivo como de consciência subjetiva parece se manifestar quando se dão relações extensas com outros homens, dos quais foram distanciados todos os elementos que são de natureza individual. Nas suas palavras,
“a causa e o efeito destas dependências objetivas, nas quais o sujeito como tal é livre, residem na trocabilidade das pessoas; na troca voluntária dos sujeitos ocasionada através da estrutura da relação se revela aquela indiferença do elemento subjetivo, que leva o sentimento da liberdade” (Simmel, 1977, p. 358).

A personalidade surge, assim, como a contraposição subjetiva das circunstâncias de dependências objetivas e de indiferença impostas pela economia do dinheiro que conduz a um largo processo de diferenciação social, do qual resulta a acentuação da importância do eu, por um lado, e da coisa, por outro. Simmel (1977, p. 361) afirma que o surgimento da personalidade é ao mesmo tempo o processo de surgimento da liberdade, uma vez que tudo o que chamamos de personalidade – a unidade de elementos psíquicos, sua concentração em um só ponto, a insubstituibilidade de sua essência – implica também a independência e exclusão de todo o exterior e o desenvolvimento de acordo com as leis da própria essência – a que se chama liberdade.
Segundo Simmel (1977, p. 362), em ambos os conceitos se manifesta um ponto último e profundo da essência do indivíduo que enfrenta a todo objetivo, exterior e sensorial, que se origina tanto fora como dentro da sua própria natureza. Tanto o conceito de liberdade quanto o de personalidade constituem uma “expressão do fato de que aqui surgiu a contrapartida do ser natural, contínuo e objetivamente determinado, contrapartida cuja originalidade não somente reside na aspiração a uma posição especial frente a ele, senão também na busca de uma conciliação com ele mesmo”.
Além da economia do dinheiro, o crescimento dos círculos sociais, que acompanha o seu desenvolvimento, é percebido por Simmel como uma importante transformação para o aumento da liberdade e da individualidade. O autor tenta compreender de que maneira a personalidade se acomoda nos ajustamentos às transformações sociais advindas com a vida na metrópole, lugar em que essa economia se desenvolve. Simmel (1973, p. 12) busca apreender as condições psicológicas criadas pela vida na metrópole, tendo em vista que a mente humana procede a partir de discriminações entre a impressão de um dado momento e o que o precedeu, e a metrópole extrai uma quantidade de consciência maior que a vida rural. O autor afirma que a base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste na intensificação de estímulos nervosos, resultantes da alteração brusca e ininterrupta de estímulos interiores e exteriores.
Diante do ritmo de vida e da rápida convergência de imagens em mudança na metrópole, o indivíduo metropolitano desenvolve uma consciência elevada e uma predominância da inteligência. Segundo Simmel (1973, p. 13), a reação aos fenômenos metropolitanos é transferida a um órgão menos sensível e bastante afastado da zona mais profunda da personalidade, enquanto a intelectualidade assume a preservação da vida subjetiva contra o poder avassalador da vida metropolitana.
Ademais, as relações emocionais íntimas entre pessoas fundadas em sua individualidade, comuns nos pequenos círculos, dão lugar a relações racionais e anônimas, em que se trabalha com o homem como um número, um ser que é em si mesmo indiferente. Simmel (1973, p. 14) afirma que essa atitude “prosaicista” está tão inter-relacionada com a economia do dinheiro que não se sabe se foi a mentalidade intelectualística que primeiro criou essa economia, ou se esta última determinou a primeira.
O autor também destaca que o caráter objetivo da economia do dinheiro – com suas características de exatidão, calculabilidade, etc. – são introduzidos à força pela complexidade e extensão da existência metropolitana, de modo que ele não está apenas intimamente ligado a essa economia, mas também conduz a uma objetivação crescente de conteúdos existenciais. Desse modo, esse caráter permeia o conteúdo da vida e favorece a exclusão daqueles impulsos irracionais e instintivos, que tentam determinar o modo de vida de dentro, ao invés de receber a forma de vida geral de fora. Na Filosofia do Dinheiro, Simmel (1977, p. 347) destaca que é justamente essa capacidade de observação objetiva, de prescindir do eu, que separa os homens, no puramente psicológico, das ordens animais inferiores. E é isso o que impulsiona o processo histórico ao seu resultado possivelmente mais nobre e à formação de valores em que os interesses de uma parte não exclui o outro, senão abre caminho a ele.
Simmel (1973, p. 15) afirma que não há fenômeno psíquico que tenha sido tão incondicionalmente reservado à metrópole quanto a atitude blasé, que expressa a relação entre uma estrutura da mais alta impessoalidade e, em contraposição, uma subjetividade altamente pessoal. Em princípio, essa atitude resulta dos estímulos contrastantes que são continuamente impostos aos nervos. Mas o autor acrescenta que essa fonte fisiológica da atitude blasé é acrescida de outra que flui da economia do dinheiro e corresponde ao embotamento do poder de discriminar toda qualidade dos objetos, de modo que nenhum objeto merece preferência sobre outro. Para o autor, “esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada” (Simmel, 1973, p. 16).
Simmel (1973, p. 17) explica que na atitude blasé, os nervos encontram na recusa a reagir aos incessantes estímulos a última possibilidade de acomodar-se ao conteúdo e à forma de vida metropolitana. Assim, a autopreservação da personalidade é alcançada ao preço da desvalorização de todo mundo objetivo; uma desvalorização que no final arrasta a personalidade da própria pessoa para uma sensação de igual inutilidade. Além disso, sua autopreservação em face da cidade exige dele um comportamento de natureza social negativa, como a reserva. Essa reserva assume a forma de um fenômeno mais geral da metrópole, conferindo ao indivíduo uma quantidade e qualidade de liberdade pessoal que não tem analogia sob outras condições.
Esse aumento da liberdade está relacionado ao crescimento dos círculos sociais. Segundo Simmel (1973, p. 19), os pequenos círculos permitem apenas relações restritas com os outros grupos e não podem permitir a liberdade individual e o desenvolvimento interior e exterior próprios, uma vez que guardam as realizações, a conduta de vida e a perspectiva do indivíduo. Mas à medida que o grupo cresce, a unidade interna do grupo se afrouxa, bem como a demarcação original contra os outros grupos, possibilitando relações e conexões mútuas. Assim, o indivíduo ganha liberdade de movimento, ao mesmo tempo em que adquire uma individualidade específica, decorrente da divisão do trabalho tornada necessária com o crescimento do grupo.
O caráter extensivo da metrópole para além de suas fronteiras físicas e a independência individual contribuem para que o aspecto quantitativo da vida seja transformado em traços qualitativos de caráter. Simmel (1973, p. 21) afirma que “o homem não termina com os limites do seu corpo ou a área que compreende sua atividade imediata. O âmbito da pessoa é antes constituído pela soma de efeitos que emana dela temporal e espacialmente”. Deste modo, a liberdade que acompanha este processo não deve ser entendida apenas no sentido negativo, como liberdade de mobilidade. O ponto essencial é que a particularidade e incomparabilidade que todo ser humano possui sejam expressas de alguma forma na elaboração de um modo de vida. A liberdade no sentido de o indivíduo estar seguindo as leis de sua própria natureza só se torna óbvio para ele e para os outros se as expressões dessa natureza diferirem das expressões de outras. A pessoa se volta para diferenças qualitativas, buscando atrair de alguma forma a atenção do círculo social, explorando sua sensibilidade e diferenças. Do mesmo modo, a crescente divisão do trabalho na cidade moderna compele o indivíduo a se especializar em uma função na qual não possa ser prontamente substituído por outros. Esse processo conduz a uma diferenciação crescente (Simmel, 1973, p. 22).
Portanto, a individualidade para Simmel decorre de condições externas, como o pertencimento a diversos círculos sociais separados entre si e, ao mesmo tempo, do trabalho interior, íntimo. Apesar da grande contribuição teórica de Simmel para pensar o crescente processo de individualização na modernidade, ele foi praticamente esquecido depois da Primeira Guerra Mundial e maioria dos sociólogos abandonou a ênfase dos clássicos na importância das formações psíquicas particulares dos indivíduos na explicação da vida social.
Contudo, Martucelli e Singly (2012, p. 23) destacam que a concepção de individualidade desenvolvida por Simmel se torna central quase um século depois para uma corrente sociológica denominada de “Sociologia do Indivíduo”, que defende a necessidade de uma nova abordagem teórica à escala individual, haja vista a intensificação do processo de individualização na sociedade moderna, a partir da segunda metade do século XX – o que muitos teóricos chamam de segunda modernidade. Esses teóricos afirmam que, diante desse processo, o indivíduo não pode ser mais definido apenas pelos vínculos herdados e pelas determinações sociais. Faz-se necessário prestar mais atenção no trabalho que o indivíduo realiza sobre si mesmo. Simmel torna-se um dos principais precursores dessa corrente pela sua ênfase, por um lado, na crescente divisão interna dos indivíduos e a independência entre as diversas partes de seu ser e, por outro lado, na existência de um conflito interior entre essas partes (Martucelli e Singly, 2012, p. 34).

Referências bibliográficas

MARTUCELLI, Danilo (2007a). Cambio de rumbo: la sociedade a escala del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
____________. (2007b) Lecciones de Sociología del Individuo. Santiago.
MARTUCELLI, Danilo & SINGLY, François de (2012). Las Sociologías del Individuo. Santiago: LOM Ediciones.
SIMMEL, Georg. (1977). Filosofia Del Dinero. Madrid: Instituto de Estudios Politicos.
_____________(2005). “O Indivíduo e a Liberdade”. In: J. Souza e B. Oelze (Orgs.) Simmel e a Modernidade. Brasilia: Ed. UnB.
____________ (1973). “A metrópole e a vida mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.) O fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
___________ (1950). “The Stranger”. In: WOLF, Kurt H. The sociology of Georg Simmel. New York, Knickerbocker Printing Corp.



sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Sofrimento e Silêncio: alguns apontamentos sobre sofrimento psíquico e consumo de psicofármacos (PARTE 3)

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 Jonatas Ferreira

Poderíamos afirmar que a analgesia e apatia que marcam a contemporaneidade são plenamente compatíveis com uma cultura do consumo, dos gozos superficiais, da agitação constante da vida e da extenuação dos recursos do planeta (Ferreira e Silva, 2011). No Segundo Excurso da Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer discorrem acerca do modo como a cultura moderna impõe uma distância emocional que inviabiliza aquilo que poderíamos chamar, com Benjamin, de experiência. Ali, analisando o significado moral da obra de Sade no mundo moderno, eles afirmam: “‘A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude’, diz Kant, distinguindo essa ‘apatia moral’ (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude” (Adorno e Horkheimer, 1985, p. 93). E, no entanto, vivemos uma realidade de excitação constante, em que uma infinidade de apelos sensíveis nos solicitam diuturnamente e aos quais só podemos atender se não nos comprometermos verdadeiramente com coisa alguma. Num certo sentido, esse contexto cultural está diretamente ligada àquilo que Sennett chama de “corrosão do caráter” e outros chamarão muito simplesmente de niilismo. Acredito que hoje experimentamos o recrudescimento de um traço fundamental dos processos de modernização, marcados que estão pela apatia e analgesia.

Todas essas evidências devem ser colocadas no contexto de uma discussão mais ampla que diz respeito ao sentido do sofrimento nas sociedades modernas e de uma reflexão acerca de como, ou em que medida, o tratamento com substâncias psicoativas interferem neste processo de significação. O uso de antidepressivos e ansiolíticos nos coloca sempre diante da perspectiva de um adiamento indefinido de tal processo na exata medida que podemos contornar os sintomas físicos da ansiedade, da depressão, do pânico e de muitas outras afecções. Ora, se a ideia de uma terapêutica para essas e outras formas de sofrimento é tão antiga no ocidente quanto a própria formalização da prática, de uma techné médica, como pode atestar a leitura de várias das obras que constituem o corpus hipocraticum (Conti, 2007), a forma como damos sentido ao sofrimento sempre teve um papel fundamental na cultura ocidental. Weber, por exemplo, entende que o problema do sentido do mal no mundo, ou seja, da existência do sofrimento e da morte, é o núcleo sobre o qual as grandes religiões mundiais gravitam. Em outras palavras, as grandes formações culturais que a história da humanidade conhece estariam inextricavelmente relacionadas a processos de significação do mal, do sofrimento humano. Do ponto de vista de sua sociologia, portanto, uma constatação como essa evidentemente tem uma importância considerável. Cassirer, outro exemplo relevante, dedica um belo capítulo de seu A Filosofia do Iluminismo (1951) a traçar uma linha de continuidade entre a forma como a tradição judaico-cristã lida com o sofrimento e a sua tradução em discurso e prática científicos, iluministas. Ali ele constata que a maneira como a psicologia do século XVIII lida com a questão do sofrimento é informada pela questão da teodiceia e por discussões religiosas mais específicas que remontam à Idade Média. Mais contemporaneamente, se tomarmos a fenomenologia de Jan Patocka (1996) como ilustração derradeira deste ponto, poderíamos mesmo argumentar que aquilo que fundamentalmente caracteriza a cultura ocidental é o fato de atribuirmos ou buscarmos significado para as experiências que implicam em padecimento moral, existencial – no mais vivemos confortavelmente na atitude natural dos fatos que, por não constituírem um problema, não demandam a busca de significação ampla.

A forma como damos sentido ao sofrimento, ou, dito de um modo mais religioso, à presença do mal no mundo, é evidentemente histórica. Partimos aqui do pressuposto de que a mudança desse significado ocorra sobre linhas mestras cujo entendimento deve ser buscado. Porém, exemplifiquemos um pouco a variabilidade desse conceito. Para isso, é necessário especificar a ideia ampla de sofrimento numa noção muito mais precisa e relevante para o argumento deste ensaio: a melancolia. A centralidade de tal noção na estruturação de uma narrativa da subjetividade, ou seja, em uma narrativa que confere significado ao sofrimento moderno como contraponto à possibilidade de liberdade individual, é uma das hipóteses básicas deste ensaio. Digamos com todas as letras: se é inquestionável que a modernidade é marcada por uma metafísica da subjetividade que se legitima por um discurso racionalizador, não é menos verdade que essa razão sobre a qual o sujeito se constitui como entidade moral, epistemológica e técnica, precisa ser experienciada existencialmente. É esta a conclusão a qual Weber chega, para citarmos apenas um exemplo, quando fala da ansiedade que caracteriza a ética calvinista, sua insegurança com relação à salvação, como um dos fatores que o levam a abraçar a tarefa e o chamado de racionalização mundana. A tese weberiana, como veremos, está longe de ser original. Ora, parece-nos que é exatamente uma discursividade melancólica como núcleo simbólico, existencial da subjetividade que parece entrar em crise na contemporaneidade com a possibilidade técnica de adiamento indefinido dos sintomas do sofrimento. Não parece fortuito que essa crise coincida com uma percepção cada vez mais hegemônica da realidade contemporânea como algo estruturalmente irracional.  

Ilustremos, por enquanto, as diversas acepções que a melancolia ganhou ao longo de alguns séculos na Europa para nos concentrarmos, em seguida, no seu sentido moderno.

A palavra 'melancolia' deriva do grego, mais especificamente das palavras melaina e chole, cuja tradução seria "bile negra". Derivada do corpus hipocraticum, a teoria dos humores, em cujo contexto a melancolia é explicada, é uma teoria do equilíbrio entre o ser humano e o cosmos. Há um sentido ontológico nas noções de proporção e equilíbrio na antiguidade clássica que é traduzido quer sob a forma de ideal estético, moral, político ou como dietética e terapêutica. Por isso mesmo, os elementos básicos que ditam nossa saúde ou nossas enfermidades, os traços de nossa personalidade ou estrutura física, regulam também as estações do ano, as fases da vida. E isso por um motivo simples, o ser humano é parte da natureza - ou, mais propriamente, da physis. Deste modo, o sangue é associado tanto à primavera, quanto ao calor e a umidade, ou à infância dos seres humanos; a bile amarela é associada ao verão, ao calor seco e à vida adulta; a bile negra ao outono, ao frio seco, ao outono e ao ocaso de nossa vida; a fleuma à velhice, ao inverno, à velhice e à umidade fria (Conti, 2007, p. 16). Para a medicina grega, a melancolia é entendida como desequilíbrio nos humores em que prevaleceria a força da bile negra - quer esse desequilíbrio ou predomínio seja um traço de personalidade, uma afecção passageira ou uma doença - em cujo caso, o retorno a um estado de equilíbrio demanda a intervenção médica, uma dieta, medidas profiláticas. A influência da teoria dos humores prolonga-se dos gregos até a Idade Moderna.

Tomado geralmente como acedia, como incapacidade do espírito em decidir, a visão prevalecente que a Idade Média oferece da melancolia é que ela é um pecado: tratava-se de um monstro que lança confusão, preguiça, imobilidade, observa Evagrius Ponticus, “o solitário” (Ferguson, 2005, p. 7). O humanismo de Marsilio Ficino, por seu turno, no século XV, retorna à visão positiva que Platão tinha deste sentimento. “Aqueles sob a influência de Saturno tendem para a melancolia, e, de acordo com Ficino, isto não é sempre um infortúnio. Revivendo as visões de Platão, Ficino percebe a melancolia como um dom intelectual, que por seu turno estimula dois outros frenesis divinos, a poesia e a filosofia” (Ibid., p. 9)1. No século XVI, Teresa de Ávila parece entender a melancolia como espaço tanto de manifestação do divino quanto do diabólico no ser humano. Para ela, seria necessário certa sutileza de espírito para diferenciar o sofrimento melancólico da angústia provocada por Deus quando este “incendeia o espírito” (Radden, 2000, p. 108). Esta fineza de espírito é precisamente a capacidade de entender se somos tomados por um sofrimento da alma ou da imaginação, ou seja, uma dor presidida por Deus ou pelo demônio.

Aquilo que chamaríamos de sensibilidade barroca em Teresa de Ávila é um passo decisivo para a estruturação de uma ideia moderna de melancolia. Alguns elementos poderiam sustentar essa afirmação: i. ela diferencia de modo pragmático aquilo que hoje denominaríamos comportamentos neuróticos mais brandos daqueles que poderíamos chamar de casos psicóticos mais graves. No tratamento destes últimos, recomenda a tolerância; no tratamento daqueles primeiros, o uso da autoridade. ii. A aceitação dessa autoridade é um elemento na cura na própria trajetória religiosa desta extraordinária freira espanhola. O foco das considerações de Teresa de Ávila tem um caráter já fortemente psicológico, se o comparamos com a teoria dos humores. O que chama atenção no seu Livro da Vida, por exemplo, é o fato de suas dúvidas, indecisões e sofrimentos não poderem ser alividados pela voz da tradição, mas apenas por uma experiência única e mística com a autoridade Divina. Isso que chamamos de sensibilidade barroca virá a preparar uma virada moderna que nos diz respeito mais de perto: diante do sofrimento, da incerteza, a única promessa de resolução se encontra na graça de Deus. Como melancólica Teresa raciocina: sou fundamentalmente má. E disso conclui: todo bem (me) é fundamentalmente Alheio, ou seja, proveniente de Deus. Esta é a possibilidade de significação do mal, do sofrimento no mundo. Se a resolução é aqui transcendente, o problema coloca já a subjetividade como questão cultural central. A acedia, a tristitia, portanto, não lhe são estranhas, mas um lugar de onde ela só pode sair a partir da intervenção, da autoridade maior da Divindade:

E direi o que se passa comigo para que, no caso de ser conforme à fé, possa ser de algum proveito ao senhor. E, se não, tirará o senhor minha alma do engano, para que não ganhe o demônio onde me parece que eu estou ganhando. […] Pois bem sabe meu Senhor que não pretendo outra coisa com isso a nnão ser que ele seja louvado e engrandecido um pouquinho por ver que, em uma fossa tão suja e malcheirosa, fez um jardim de tão suaves flores (Teresa de Ávila, 2010, p. 1o3).

Quando lemos Teresa de Ávila e comparamos com tudo o que Benjamin falou acerca do conceito de acedia e da importância do drama barroco alemão como indicadores de um processo de modernização cultural na Europa, impossível não perceber a estatura intelectual desse pensador alemão. A indecisão paralisante de Segismundo, de A vida é Sonho, ou de Hamlet, aguardam, como em Teresa de Ávila uma decisão, um corte transcendente. E essa caracteriza a solução barroca, absolutista, para a questão política, cultural e existencial que a modernidade implica. A partir do começo do século XIX, o Romantismo levou adiante o namoro platônico entre melancolia e sensibilidade artística, além de associá-las ambas ao próprio frenesi da vida moderna. Apenas mais recentemente, isto é, com a elaboração de um sistema de classificação de doenças mentais por Emil Kraepelin, ela passou a ser considerada doença, com um conjunto de sintomas delimitados, identificáveis: despersonalização, impressão de que o mundo se tornou estranho, que o próprio corpo é sentido como algo apartado do indivíduo etc (Radden, 2000, p. 261). Em Kraepelin encontramos a base da psiquiatria estadunidense que hoje prevalece como terapêutica no mundo e a tentativa de proceder a uma classificação mais precisa das doenças mentais, o que conduziu a uma definição mais precisa de um conceito demasiado amplo, como era o de melancolia.

Acredito que o sofrimento, em particular a melancolia, na cultura moderna é um lugar privilegiado para observar as implicações existenciais, mas também políticas e sociais, que decorrem do que podemos alternativamente chamar de empobrecimento da experiência ou de radicalização do niilismo. Tal relação não é fortuita. Ora, na psicanálise a melancolia e a morte apresentam uma ligação estreita, oferecendo a meu ver perspectivas teóricas auspiciosas de aprofundamento de uma tradição que podemos reportar a Kant – sem aqui alimentar obviamente intenção de empreender qualquer forma de genealogia. Refiro-me aqui muito especificamente ao Luto e Melancolia, porém, é claro que o tema pode ser também trabalhado através de textos como O Mal-Estar na Civilização. Em oposição ao sentimento de luto, em que a perda de um 'objeto' amado não compromete a integridade da individualidade, a melancolia é aqui considerada uma patologia que consiste na dificuldade de realização do trabalho de aceitação desta perda, dificuldade que se manifesta como sentimento de auto-depreciação, rebaixamento de si. Que o mundo perca suas cores e sabores é, para Freud, uma decorrência natural de nossa experiência do desaparecimento de algo especialmente valorizado, amado, quer esse algo seja um ideal, um emprego, ou um ente querido. Preocupante para ele é que o trabalho do luto seja postergado indefinidamente, que outros 'objetos' não venham a substituir em um devido tempo de sofrimento aquele que é centro de nosso investimento emocional.

El em duelo hallamos que inhibición y falta de interés se esclarecían totalmente por ele trabajo del duelo qua absorbía al yo. En la melancolía la pérdida desconocida tendrá por consecuencia un trabajo interior semejante y será responsable de la inhibición que le es característica. Sólo que la inhibición melancólica nos impressiona como algo enigmático porque no acertamos a ver lo que absorbe tan enterramente al enfermo. El melancólico nos muestra todavía algo que falta em el duelo: una extraordinaria rebaja e su sentimento yoico [Ichgefül], un enorme empobrecimiento del yo. En el duelo, el mundo se há hecho pobre y vacío; em la melancolía, eso le ocurre al yo mismo. El enfermo nos describe a su yo como indigno, estéril y moralmente despreciable” (FREUD, 1917, p. 2)

Sob a auto-depreciação melancólica, existe em relação ao objeto de investimento emocional um impulso agressivo que não encontrou, por alguma razão, possibilidade de ser suficientemente elaborado. Toda emoção intensa guarda em si contra-correntes que o tornam fundamentalmente ambíguo e, para Freud, é importante que essa ambiguidade seja reconhecida. O melancólico, todavia, é aquele que não teve a oportunidade de elaborar a agressividade que implicitamente sustenta com relação a um objeto decisivo de sua afeição. Essa agressividade retornaria ao eu num impulso de auto-destruição, de perda de significado que poderia, em última instância resultar em uma ação suicida. A agressividade não elaborada com respeito ao objeto de afeto retornaria na forma de tal impulso.

Sólo este sadismo nos revela el enigma de la inclinación al suicídio por la cual la melancolía se vuelve tan interesante y... peligrosa. Hemos individualizado como el estado primordial del que parte la vida pulsional un amor tan enorme del yo por sí mismo, y en la angustia que sobreviene a consecuencia de una amenaza a la vida vemos liverarse un monto tan gingantesco de libido narcisista, que no entendemos que ese yo pueda avenirse a su autodestrucción. […] Ahora el análisis de la melancolía nos enseña que el yo sólo puede darse muerte si em virtud del retroceso de la investidura de objeto puede tratarse a sí mismo como objeto, si le es permitido dirigir contra sí mismo esa hostilidad que recae sobre un objeto y subroga la reacción originaria del yo hacia objetos del mundo exterior” (Ibid, p. 4)

Neste ponto, não necessitamos responder da perspectiva psicanalítica à pergunta que propõe Freud, nomeadamente: como um investimento libidinal de enormes proporções pode se transformar em melancolia e, no limite, em impulso de auto-destruição? Basta que afirmemos claramente que a hipótese que oferecemos é precisamente o de que a própria constituição da narrativa tipicamente moderna da subjetividade, em torno da qual a psicanálise gira, é recorrentemente associada ao sentimento melancólico. Se entendemos o sujeito moderno como uma questão existencial, e não meramente ética ou epistemológica, diríamos que mais que primordialmente uma experiência da ordem da razão, o espelho sobre o qual a cultura moderna retorna sempre a subjetividade é a melancolia. É desta perspectiva que ela se torna significativa, ou seja, quando esse sentimento nos retorna o sujeito como questão, mas também como possibilidade de resposta.

Uma conclusão semelhante Kant encontra ao discorrer sobre o sentimento do sublime, na Crítica do Juízo. O sublime é originalmente um sentimento doloroso em que nos confrontamos com nossa insignificância diante da evidência de um mundo quase absoluto em sua infinitude. Sentir-se aniquilado é o primeiro e doloroso momento do sentimento do sublime, e, no entanto, é através dele que descobrimos nossa capacidade para transcender nossa condição finita, é através desse desconforto que encontramos a evidência estética de nossa disposição para a razão2. Já em Kant, portanto, podemos compreender um elemento fundamental daquilo que Freud considera ambíguo na melancolia, ou seja, entendemos como o prazer pode estar associado ao sofrimento que o sentimento do sublime desperta: esta dor nos retorna a evidência estética do sujeito racional. Esta dor, este momento em que a língua trava, que o dizível é colocado em questão, é a própria experiência estética da centralidade do sujeito na vida moderna.

Não é fortuito que o Romantismo alemão, ao qual não podemos deixar de associar o pensamento freudiano, e cujo débito para com a Crítica do Juízo é mais que conhecido, estrutura subjetiva e melancolia encontram-se de modo tão evidente conectados. A contrapartida da constituição de uma cultura de sujeitos, diante dos quais os objetos são concebidos como infinitamente controláveis pela razão, é precisamente, de acordo com a sensibilidade romântica, o estabelecimento de um hiato intransponível entre esses dois  mundos. O prazer do melancólico é o de, ao lamber suas próprias feridas, encontrar a possibilidade de estruturação de sua subjetividade como núcleo de estabilidade existencial mínima. E essa privatização da vida social, esse silêncio e inapetência que caracterizam o melancólico, são aspectos fundamentais da vida moderna. Por tudo isso, parece-nos sensata a argumentação que nos oferece Havey Ferguson (2005, p. 26):

A filosofia moderna, particularmente em Descartes, Kant e Hegel, pressupôs a melancolia da vida moderna como condição permanente, e incorporou isso em suas reflexẽos, e assim fazendo domesticou o gênio subversivo que aderia a todo caso de 'pesar sem causa' […]. A melanconlia moderna, enlutada, pesada e tonta como a infinitude, também está carregada com a lucidez metafísica da depressão.

Discorrendo sobre a importância da filosofia de Kierkegaard na elaboração dessa relação estreita que existe entre modernidade e melancolia, Ferguson (Ibid, p. 4) observa ainda:

Melancolia, para ele, era mais do que um humor, ou mesmo uma peculiaridade de um temperamento específico; era, antes, uma forma particular de existir como ser humanano. E, mais que isso, era um modo de existir que ele passou a ver como mais apropriado às condições da vida moderna. Havia, na visão de Kierkegaard, algo de uma verdade única no auto-retiramento melancólico.

Em, O Conceito de Angústia, o próprio Kierkegaard (2010, p. 45) nos propõe o seguinte:
O conceito de angústia3 não é tratado quase nunca pela Psicologia, e, portanto, tenho de chamar a atenção sua total diferença ao medo e outros conceitos semelhantes que se referem a algo determinado, enquanto que a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade. Por isso não se encontrará angústia no animal, justamente porque este em sua naturalidade não está determinado pelo espírito.

Se Simmel nos diz que, diante da dinâmica caótica da vida moderna, o indivíduo precisa constituir um núcleo duro de subjetividade que lhe permita não ser digerido pela aceleração das grandes cidades, afirmamos aqui, numa linha de raciocínio afim, que a melancolia é o próprio investimento propiciador dessa narrativa moderna que é a da subjetividade. Neste contexto cultural, significar o sofrimento melancólico é um ato de enorme sentido existencial, pois esse ato garante a própria reflectividade narcísica sem a qual uma sociedade dos sujeitos parece incompreensível.

Entre o moderno sujeito melancólico e o indivíduo depressivo que encontramos na contemporaneidade, devidamente estabilizado por antidepressivos e ansiolíticos, porém, há uma diferença que deve ser observada. Ora, é precisamente o investimento no sofrimento melancólico e na sua significação que parece ser negado nesse segundo caso. Há aqui, no entanto, uma contradição básica no fato de que esse processo de significação seja entendido como algo, em Simmel ou na psicanálise, como algo privado. E é precisamente este traço cultural que traz em si, para além das possibilidades bioquímicas que se abrem diante de nós, a perspectiva de emudecimento sobre a qual temos falado. Mas se temos na melancolia moderna, núcleo de constituição de uma narrativa da subjetividade, uma condição necessária ao silenciamento do sofrimento, ela não é certamente condição suficiente. A própria possibilidade de constituição de uma narrativa é aqui um obstáculo – o que nos levará certamente mais para perto de uma discussão sobre a questão da linguagem, da fala neste contexto.

Antes de seguir adiante neste raciocínio, gostaria de propor algo como um excurso acerca de duas matrizes culturais decisivas na significação do sofrimento no ocidente. Isso nos permitirá uma visão mais clara, não apenas daquilo que parece ser colocado em questão no contexto daquilo que aqui chamamos de medicalização do sofrimento, mas entender que tipo de elaboração o mundo moderno, e em especial a constituição de um discurso da subjetividade, produz acerca de seu significado. Esse passo parece importante quando temos em mente precisamente o que parece ser o esvaziamento da tarefa de significação e esgarçamento de um contexto cultural marcado por aquilo que Foucault chama de 'analítica da finitude' no célebre capítulo de As Palavras e as Coisas.
1Para Ficino, a bile negra compele o sábio sempre para o centro de si, tal como a Terra que constitui o centro do universo. “And being analogous to the world's center, it forces the investigation to the center of individual subjetcts, and it carries one to the contemplation of whatever is highest, since, indeed, it is most congrunent with Saturn, the highest of planets. Contempation itself, in its turn, by a continual recollection and compression, as it were, brings on a nature similar to black bile” (in Radden, 2000, p. 90). A bile negra, como sabemos, é desde Platão o humor que determina a melancolia.
2 Na 'Analítica do Sublime', por exemplo, lemos: “Bold, overhanging, and, as it were, threatening rocks, thunderclouds piled up the vault of heaven, borne along with flashes and peals, volcanoes in all their violence of destruction, hurricanes leaving desolation in their track, the boundless ocean rising with rebellious force, the high waterfall of some mighty river, and the like, make our power of resistance of trifling moment in comparison with their might. But, provided our own position is secure, their aspect is all the more attractive for its fearfulness; and we readily call these objects sublime, because they raise the forces of the soul above the height of vulgar commonplace, and discover within us a power of resistance of quite another kind, which gives us courage to be able to measure ourselves against the seeming mnipotence of nature” (Kant, 2007, p. 91)
3O conceito de angústia é, neste texto, diretamente associado ao de melancolia.

quinta-feira, 15 de março de 2012

A razão dos alemães

Niklas Luhmann

Por Edilene Leal - doutoranda da UFS


O problema

A relação entre racionalidade e modernidade sempre manteve um status privilegiado entre os principais intérpretes da sociedade moderna, particularmente entre os alemães. De Weber a Habermas, a razão oferece (e assim deve ser) os substratos fundamentais para a configuração de todo aparato social. Luhmann, entretanto, inaugura uma teoria radicalmente diferenciada dessa relação na medida em que faz desaparecer os seres humanos e sua racionalidade do lado da observação (forma) no qual se encontram os sistemas científicos, ou seja, nos sistemas societários; o outro lado permanece, sob essa perspectiva, totalmente inacessível ao cientista social. Por isso, afirma que: “Cruzar a fronteira até o outro lado da forma se considera ‘cinismo’” (luhmann, 2007:132). Se comparado a outros pensadores como Weber, Adorno e Hokheimer, Habermas teria esse cinismo ainda mais agravado uma vez que, em pleno “fins do século XX, [pretendeu sustentar] a tese de que a teoria da sociedade e a teoria da racionalidade se condicionam mutuamente” (Idem, p.133). A tese aqui em tela é aquela segundo a qual a modernidade é produto evolutivo da supressão da racionalidade e da moral tradicionais de estrutura conteudística e hierárquica, e em seu lugar emergiu uma ética racional fundada em procedimentos despojados de valoração e de interesses. Porém, é exatamente nesse ponto (a teoria da modernidade e da racionalidade) a partir do qual Luhmann e Habermas mais se afastam que eles mais se aproximam, pois também Luhmann reclama uma estrutura procedimental para manter a diferença entre os sistemas e seu entorno (terreno das lutas culturais e dos conflitos políticos). Isto é, ambos acreditam e efetivamente desejam, apesar das premissas teóricas antagônicas, a configuração de uma super-sociedade mundial, de base amoral e pós-convencional, dando as coordenadas para o resto do mundo.

Racionalidade e Modernidade

No âmbito da sociologia, as teorias sobre a modernidade em geral partem da premissa weberiana de que sua característica predominante é o paradoxo entre a racionalidade de meios/fins e a racionalidade de valores. O primeiro tipo de racionalidade seria responsável pela condução das ordens sociais (Estado, ciência, burocracia, etc.) as quais se tornaram plenamente desenvolvidas nos tempos modernos, mas, à custa da perda de significado dos valores políticos, culturais e éticos cuja atuação limitar-se-ia à esfera da subjetividade. Em vista dessa situação, os autores – Weber, Adorno, Horkheimer – concluíram pelo domínio inexorável da racionalidade instrumental contra o qual não existiriam possibilidades efetivas de saída. Habermas, no entanto, recusa essa compreensão e pretende recompor o quadro da racionalidade valorativa moderna sob as bases de uma ação comunicativa que se mantém apartada da racionalidade dos sistemas sociais. Nesse caso, leva ao extremo a bifurcação da racionalidade que ele mesmo critica em Weber, uma vez que acredita que o principal problema da modernidade atual seria a expansão da racionalidade técnica sobre a racionalidade comunicativa, fenômeno que ele denomina colonização do mundo da vida. Assim Habermas defenderia uma “pureza” da razão que já havia sido perdida pelas análises de Weber, a partir da qual seria possível recuperar o quadro dos valores modernos ocidentais tornando-os efetivamente válidos paras todos os cantos do mundo. Habermas, portanto, apresenta claramente um projeto normativo para as sociedades modernas fundado nos valores ocidentais, segundo ele, valores duramente conquistados. O que ele faz com a racionalidade sistêmica? Acredita que é possível cuidar para mantê-la apartada do andamento produtivo dos consensos comunicativos.

Esses autores - Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas -, caracterizam-se por uma singular perspicácia analítica que o fizeram registrar, repetidamente, que a racionalidade moderna produz discursos falsos ou enganadores os quais resultaram em metanarrativas, em projetos totalitários, em defesa de verdades absolutas. Entretanto, em todos eles percebemos a formulação, de maneira sub-reptícia ou mesmo claramente, de análises que recaem nesses discursos normativos. Pois, quando Weber concluiu que o processo de racionalização tornou-se dominante e refratário a mudanças no seu curso de expansão técnica ou quando Adorno e Hokheimer afirmam que vivemos sob a égide de um mundo administrado ou ainda quando Habermas afirma a existência da separação entre a lógica comunicativa e a sistemática, apontando para um o resguardo universal de consensos racionais; de forma semelhante, excedem seus próprios domínios epistemológicos e nos deixam tomar suas preferências analíticas como resultados desinteressados. A principal motivação para isso é o descompasso entre a análise da sociedade tal como é e determinado ideal de como deveria ser a sociedade.

A crítica desconstrutivista e seus limites

Em tempos mais atuais, o processo crítico se esgarça em torno dessas recaídas nas metafísicas da totalidade e da absolutização valorativa. Destacamos a desconstrução derridariana da racionalidade moderna, constituída por uma indiscutível consistência crítica. Porém, se a desconstrução como método cumpre, em primeira instância, a função a que se propõe, isto é, evidenciar o aspecto eminentemente construído dos conceitos, em segunda instância, cria outras dificuldades porque esbarra em problemas muito semelhantes, embora através de um percurso oposto, àquelas produzidas pela vertente de pensamento que se decide por um mundo em que a racionalidade técnica define os parâmetros da vida contemporânea. Pois, um mundo governado, prioritariamente, pela técnica é um mundo governado por ninguém, cujas referências valorativas comuns perdem, em grande medida, seu sentido, para o qual a “condução da vida”, como já admoestava Weber, cabe a cada um em sua intimidade. Ora, este também pode ser e, inevitavelmente seria, um mundo plenamente desconstruído de suas metafísicas e de seus encargos político-valorativos, desprovido de qualquer fundamentação racional para orientação de condutas. Quando se opera com a desconstrução, a pura contingência acaba atingindo o lugar antes reservado à racionalidade pela modernidade, de forma que o mesmo vazio ético vislumbrado por Hannah Arendt na autodefesa de Eichmann – segundo a qual era apenas um burocrata exercendo sua função, portanto, incapaz de ser responsabilizado por seus atos – comparece no “paraíso” da plena relativização teórica e prática do mundo.

Dessa maneira, substituir a racionalidade pela desconstrução, relativização, construção ou qualquer outra denominação semelhante significou, por um lado, a evidência das visões unilaterais do mundo, mas, por outro lado, também significou o impedimento de que as múltiplas visões concorrentes fossem criticadas. Essa é, provavelmente, uma das razões para falarmos, ainda hoje, sobre o avanço indomável da racionalidade técnica à custa de um menor desempenho da racionalidade valorativa, como se a sociedade pudesse constituir-se independentemente de fatores culturais gerais, da partilha de um núcleo duro de valores, de relações intersubjetivas. A afirmação de que a técnica é a característica preponderante nas sociedades atuais não vem acompanhada das perguntas de quem (grupos ou indivíduos) ou o que (instituições) conduzem o domínio da técnica. Nesse sentido, Luhmann é o autor que leva às últimas consequências essa visão desencarnada da racionalidade técnica, pois lembra aos autores que desenvolveram essa dicotomia entre racionalidade técnica e valorativa, de Weber a Habermas, que o uso cada vez mais efetivo e ampliado da “forma” técnica nas sociedades diferenciadas nada tem a ver com o caráter racional dessas sociedades. Pois, é apenas uma instalação e, enquanto tal encontra-se fora da forma racionalidade que mobiliza outros parâmetros distintivos. Ou seja, a técnica é apenas meio, são os homens, sendo racionais ou irracionais, orientando-se ou não por valores, que dão sentido (fim) à instalação técnica.

Luhmann e a perspectiva da diferença
Ao que parece, a teoria dos sistemas de Luhmann também retoma o dualismo (racionalidade valorativa/racionalidade instrumental) de Max Weber, Adorno, Horkheimer e Habermas, uma vez que parte da relação entre sistema que corresponderia à racionalidade instrumental e o entorno do sistema, o qual corresponderia à racionalidade referente a valores. Luhmann, todavia, faz mais do que manter essa diferença: vale-se da teoria da diferença entre sistema/entorno para neutralizar o entorno, isto é, com suas opiniões múltiplas, seus sentimentos, seus desejos, com sua autonomia individual, com a escolha de seus candidatos, etc. Se, aparentemente, podemos ficar tranquilos com o fato de que a racionalidade sistêmica não poderá dominar o entorno, não se pode deixar de considerar o esvaziamento de noções e práticas fundamentais das sociedades atuais: a prática do amor erótico é mera internalização de códigos pelos amantes, a qual promove o florescer do sentimento do amor. Tanto é assim que, segundo Luhmann, as mulheres não devem ler textos literários, porque de alguma maneira se imunizariamm das técnicas de sedução de seus amantes. Na esfera do subsistema político, a legitimidade transmuta-se em “operador sistêmico”, com a função de impedir que as contingências ou mudanças oriundas do entorno invadam seu sistema. Dessa forma, a legitimidade ocorre como mera “ilusão” funcionalmente necessária para o sistema político, já que se geram expectativas de comportamentos diferenciados cujo processo de decisão já antecipou esses comportamentos na legitimidade pelo procedimento.

A racionalidade sistêmica em Luhmann consiste no fato de que as sociedades, historicamente, criaram códigos, que, por sua vez, são cada vez mais necessários nas sociedades diferenciadas, como meio de organizar, minimamente, as relações sociais e suspender o estado permanente de conflito entre possibilidades variadas. Se os esforços na contenção do domínio do conflito são, nesse sentido, incomensuráveis e inesgotáveis, sempre pode haver a possibilidade de que o turbilhão valorativo constitutivo do entorno, no qual existem os seres humanos, possa irromper e controlar os subsistemas. Isto é, o receio de Luhmann é contrário ao receio de Habermas: enquanto este receava que os sistemas societários invadissem o mundo da vida, aquele temia que valores específicos pudessem invadir um subsistema ou subsistemas e impor a eles seus próprios interesses, minando o acordo, estruturalmente conquistado, de impermeabilidade dos subsistemas e dos seus códigos: diferenciados e fechados em si mesmos.

Ora, se todo “equipamento” da “engenharia social” de Luhmann é despojado de valoração – racionalidade, técnica, comunicação, códigos –, tanto do ponto de vista metateórico como pragmático, numa situação de invasão dos subsistemas pelo mundo ambiente, então quaisquer valores grupais ou individuais podem preencher o vazio valorativo dos subsistemas. Ainda mais: dado que tudo é sociedade e que esta estrutura-se, autopoieticamente, qualquer desestruturação em um subsistema corre o risco de afetar todo o resto.

Sendo assim, é preciso perguntar se tal situação é possível: a existência de sociedades “perfeitamente” despojadas de valoração de qualquer espécie, sem que interesses individuais ou de grupos conduzam suas ações, nas quais os processos políticos/culturais atuem mediante técnicas e procedimentos, cuja principal preocupação interna seja a manutenção de sua diferença caracterizadora? Para Luhmann, essa seria a descrição das sociedades modernas atuais. E de qualquer maneira, essa seria uma situação também “ideal”, ou seja, existe em Luhmann uma consideração positiva à medida que o ponto de partida de suas investigações como observador de segunda ordem é o ponto de partida da racionalidade sistêmica. Mas é bom lembrar que esses sistemas societários caracterizam um dos lados da diferença entre sistema/entorno, ou seja, o mundo dos valores concorrentes, das disputas políticas, das diferenças culturais caracteriza o outro lado da diferença e que, primordialmente, esses sistemas se autoconstituem num processo permanente de absorção e rejeição (acoplamento/desacoplamento) de elementos (reivindicações, disputas, exigências, etc.) oriundos da sociedade.

Dessa maneira, se considerarmos que Luhmann acertou na sua “descrição” dessa “Sociedade Mundial” atual – já que supôs ser positiva a confluência de sociedades em uma unidade sistêmica mundial –, o prognóstico de Weber, Adorno, Horkheimer atualizou-se em grande parte, excetuando a hipótese em comum (nos três últimos), segundo a qual a racionalidade técnica não se efetivaria em um total vazio valorativo, ao contrário, seria conduzida por uma encarniçada luta pelo poder e pela dominação dos recursos econômicos e culturais. Poderíamos supor que Luhmann se aproximaria mais de Habermas, ainda que por meio de estratégias teóricas diferentes, uma vez que ambos “anseiam” pelo desaparecimento de interesses, valores, sentimentos, como condutores das ações intersubjetivas.

Por fim, acreditamos que essa hipótese – recorrentemente criticada, reclamada ou negada pelos autores da modernidade e da pós-modernidade –, a mais acertada para pensar as sociedades hodiernas. Pois, se de fato vivemos sob o domínio da racionalidade técnica, este domínio atualiza-se por meio de lutas culturais, disputas de valores, divergências ou consensos políticos. Ora, esses modos de atualização, de qualquer maneira, não decorrem da essência da racionalidade valorativa? Não estaríamos, também, nos movendo no domínio dos valores políticos, sociais, culturais e estéticos, à medida que ampliamos o alcance e a rede de relações do projeto civilizatório em curso? Por fim, acreditamos que, se determinados valores – antes considerados fundamentais e universais pelo pensamento moderno – perderam grande parte de sua força nos tempos atuais, não significa dizer que vivemos sob o vazio valorativo da racionalidade da técnica. Se, porventura, permanecem as lutas cotidianas, os dissensos, as diferenças é porque valores concorrentes disputam, entre si, sua vez de tornarem-se consenso e de espalharem-se pelo mundo humano.

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