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segunda-feira, 26 de março de 2012

Claude Lévi-Strauss



                                               Fernando da Mota Lima
Claude Lévi-Strauss é reconhecido como o pai da antropologia moderna até em orelhas de livro. Para os brasileiros importaria, pelo menos, saber que o Brasil desempenhou um papel fundamental na formação desse homem que revolucionou a antropologia. Aliás, ele afirma categoricamente que a ciência antropológica, assim como as ciências humanas em geral, de ciência tem apenas o nome. Isso já de início sugere que esse homem extremamente reservado, no fim da vida conservador e até nostálgico, além de sombrio na sua apreciação anti-humanista do mundo, não era de meias palavras. Outros dos seus juízos controvertidos referem-se ao racismo, ao multiculturalismo, à arte contemporânea, ao suposto caráter revolucionário do 1968 francês, cujos efeitos alastraram-se por grande parte do mundo, e outras questões polêmicas. Mais abaixo considerarei devidamente sua relação com o Brasil, que neste parágrafo me limito a indicar em termos sumário.
Claude Lévi-Strauss: O poeta no laboratório, objeto desta resenha, é uma biografia ricamente documentada e informativa, além de escrita com clareza e precisão exemplares. Alerto o leitor ocasional das biografias que tenho resenhado neste blog para o fato de que, se me repito nesse tipo de elogio, a culpa, melhor diria mérito, é atribuível aos excelentes biógrafos que tenho resenhado: Ron Rosenbaum, Stephen Greenblatt e agora Patrick Wilcken. Pois um mérito que em todos identifico e tenho ressaltado é a clareza da exposição, mesmo quando o biografado, é o caso de Lévi-Strauss, é autor de obra teoricamente complexa e portanto pouco acessível ao leitor privado de formação especializada.

Mas o próprio Wilcken apropriadamente nos informa, numa das sessões do “Epílogo” (ver “Leituras Adicionais”, pp. 367-370), que Lévi-Strauss muito facilitou o acesso do leitor à sua obra através de entrevistas, documentários e transmissões radiofônicas muito esclarecedoras, dada sua facilidade expressiva. Efetivamente, quem acaso tenha lido De perto e de longe, série de conversas gravadas entre Lévi-Strauss e Didier Eribon, pode confirmar esta qualidade também salientada por Wilcken. Este livro, também traduzido no Brasil, desdobra-se tendo como objeto a vida e a obra de Lévi-Strauss. Precisando ainda os créditos e méritos do biógrafo, acrescentaria que é também um estudioso do Brasil, fato que sem dúvida concorreu para acentuar o valor e exatidão das páginas que consagra ao papel crucial que o Brasil desempenhou na biografia e na obra de Lévi-Strauss. A maior evidência consiste no fato de ele ser autor de um livro inteiramente consagrado ao Brasil: Império à deriva: A corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821, também publicado pela Editora Objetiva.

Expondo o plano geral da obra, Wilcken divide-a em duas partes: a primeira, relativa à formação e treinamento de campo do biografado, tem o Brasil como referência seminal, prolonga-se no exílio vivido por Lévi-Strauss nos Estados Unidos, quando o avanço do nazismo o força a deixar a França, e se completa com a publicação de Tristes Trópicos, em 1955. A propósito, tentou inicialmente exilar-se no Brasil. É portanto um fato lamentável saber que a embaixada brasileira lhe negou o visto solicitado. Esse episódio, que Wilcken relata, foi antes registrado pelo próprio Lévi-Strauss no livro resultante de suas conversas com Didier Eribon. A segunda parte imprime relevo à elaboração e difusão das ideias do antropólogo que alcança converter-se em objeto de reverência, notadamente na França e no Brasil. Além do impacto que teve a partir da publicação do já citado Tristes Trópicos, o estruturalismo inspirado pela obra de Lévi-Strauss tornou-se uma autêntica moda acadêmica beneficiada pela crise profunda que se abateu sobre o marxismo e o existencialismo identificado com a figura legendária de Jean-Paul Sartre. A partir dessa crise, Sartre é suplantado por Lévi-Strauss no Olimpo intelectual francês, também por teóricos como Roland Barthes e Michel Foucault. Muitos dos que se diziam seguidores de Lévi-Strauss foram desmentidos pelo próprio, que com frequência queixou-se de ser incompreendido. A julgar por algumas de suas declarações tardias e pessimistas, a escola de pensamento que fundou não teve prolongamentos. Melhor dizendo, não teve seguidores que reconhecesse como fiéis ao espírito das suas ideias.

Esclarecendo um pouco o subtítulo da obra – “O poeta no laboratório” -, ele traduz uma frustração confessa do próprio Lévi-Strauss. Artista manqué, ou artista fracassado, seu sonho era ser pintor ou músico. Também sonhou ser escritor literário, e aqui chegou a tentativas efetivas, todavia malogradas. Queria ser dramaturgo ou poeta. A fotografia, que muitas vezes praticou como parte do seu ofício de etnólogo, também trai o seu gosto pela arte e seus méritos como fotógrafo foram reconhecidos, embora no fim da vida tenha depreciado o próprio alcance estético da fotografia. Além disso, denotando ainda suas inclinações e influências artísticas, na juventude demonstrou vivo interesse pelo surrealismo e outras correntes artísticas. Sua amizade com André Breton, fruto de um encontro acidental no navio que os transportou para o exílio nos Estados Unidos, também concorreu para reforçar seus vínculos com a arte. Como observa Patrick Wilcken,

“Ambos eram estetas intelectuais sérios, ambos sóbrios e um tanto formais na maneira de abordar o mundo, porém tomados pela paixão modernista da época pelo primitivo e pelo subconsciente. Sem livros, os dois passaram o resto da viagem conversando no tombadilho, mostrando um ao outro longas notas densamente teóricas, trocando ideias sobre a arte, o surrealismo, o juízo estético” (p. 127).
Lévi-Strauss chegou ao Brasil em 1935 acompanhado por sua primeira mulher, Dina Dreyfus. Vieram com a segunda corrente da missão francesa encarregada de formar a primeira geração de estudantes da Universidade de São Paulo. Derrotado pelo poder central em 1932, na guerra conhecida como a Revolução Constitucionalista, São Paulo se mobiliza tomado por seu espírito pioneiro para lançar as bases da universidade que se tornou a mais importante do Brasil e de toda a América Latina. A missão francesa, convocada pelo psicólogo Georges Dumas, em acordo com a elite paulista, chegou ao estado a partir de 1934 com a função de estabelecer nos trópicos – ou tristes trópicos, se queremos evocar a obra de Lévi-Strauss inspirada por essa experiência – as bases de uma autêntica universidade moderna, já que o Brasil era praticamente desprovido de tradição universitária. 
A hegemonia da cultura francesa era à época tão indisputada que os cursos eram ministrados em francês. Foi nessas circunstâncias que em São Paulo floresceram as carreiras acadêmicas de grandes nomes da cultura francesa como Lévi-Strauss, Fernand Braudel (este já mais velho e adiantado, com obra em curso quando chegou a São Paulo), Roger Bastide e outros que, não obstante menos famosos, exerceram papel decisivo na formação da primeira geração de professores nativos da USP. Bastaria acrescentar que os dois intelectuais uspianos mais renomados, Antonio Candido e Florestan Fernandes, pertenceram a esta geração, além de outros igualmente importantes como Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho e Lourival Gomes Machado.

Além de atuarem como mestres dessa geração, os franceses prontamente se associaram à elite intelectual paulista, sobretudo aos modernistas já então empenhados em funções institucionais das quais resultou o triunfo do modernismo, que na década precedente irrompera como um movimento de vanguarda tomando de assalto a cultura estabelecida. O mais destacável, como é sabido, era Mário de Andrade. Desempenhando a função de diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Mário realizou um trabalho de política cultura sem precedente, ousaria afirmar que também ainda sem sucessor à altura da obra extraordinária que comandou assistido por intelectuais qualificados e devotados como Sérgio Milliet, Paulo Duarte, Rubens Borba de Moraes, Oneyda Alvarenga, Luís Saia e vários outros.

Mário de Andrade aliou-se antes a Dina do que a Lévi-Strauss. Mulher de notável talento e capacidade de trabalho, ela ministrou, a convite de Mário, o primeiro curso de etnografia na cidade de São Paulo. Além disso, exerceu papel chave na Sociedade de Etnografia e Folclore, criada por Mário de Andrade através do Departamento de Cultura. Wilcken nos revela que essa amizade e trabalho colaborativo provocaram ciúmes em Lévi-Strauss. Já depois de separar-se de Dina, queixou-se este das cartas carinhosas que Mário escrevia para ela. Quem conhece a correspondência de Mário, caso singular na história da literatura brasileira, pode bem imaginar o tom não raro demasiado afetuoso das suas cartas, notadamente quando destinadas a mulheres. As que escreveu para Stella, primeira mulher de Ascenso Ferreira, são sentimentalmente tão derramadas, ou desmedidas, que bem poderiam dar margem a leituras dúbias.

Cedendo à tentação de uma outra digressão que não figura no livro de Patrick Wilcken, talvez o leitor demasiado etnocêntrico ou estreitamente crítico da nossa formação colonizada erradamente conclua que a missão francesa foi apenas um outro capítulo na história da nossa subserviência à cultura francesa. Na verdade, as relações entre culturas são muito mais complexas. Esse episódio, o do papel formador dos franceses na história da USP, ilustra extraordinariamente essa questão. Como o demonstram depoimentos de alguns dos mais renomados rebentos da universidade e dessa experiência formadora, os franceses foram decisivos para despertar-lhes dimensões do Brasil que eles por si sós seriam incapazes de enxergar. Isso foi possível porque os franceses vieram também para aprender sobre o Brasil, transportavam com seu olhar de estrangeiro potencialidades perceptivas e desejos de descoberta adormecidos na percepção familiar do brasileiro. Em suma, renova-se aqui o costumeiro jogo dialético entre o familiar e o estranho, parte da formação de qualquer antropólogo, raiz metodológica de todo saber antropológico e por extensão humanístico. Os franceses nos ensinaram porque também queriam aprender. Assim, estabeleceu-se essa via de mão dupla tão fecunda na interação entre culturas. Ganharam eles e ganhamos nós. Quem perde é o etnocentrismo e variantes provincianas como o nacionalismo e o regionalismo. Sempre que estes ganham, perdemos nós na nossa capacidade de ampliar nossa compreensão do mundo, de apreender o mundo em viva e fecunda interação com a alteridade das culturas.

Quando Lévi-Strauss chegou ao Brasil, São Paulo tinha cerca de um milhão de habitantes. Sua febre expansiva, da qual a grande leva imigratória que acolheu era uma das manifestações mais extraordinárias, fascinou Lévi-Strauss, que aqui aportou com pré-concepções e expectativas largamente infundadas. Num curto intervalo do espaço urbano da macota cidade, como diria Macunaíma, acotovelavam-se tempos sociais e extremos culturais que iam dos resquícios coloniais ao espírito do capitalismo observável em Chicago, do rural mais rústico ao urbano mais requintado. Variando os termos de acordo com o jargão sociológico, o pré-moderno e o moderno se justapunham de forma complexa na medida em que tanto envolviam processos integradores quanto conflituosos. Como seus colegas formadores da universidade recém fundada, Lévi-Strauss documentou e estudou com seus alunos esse processo de profundas mudanças culturais e urbanas fixando-o empiricamente em monografias sobre a formação e desenvolvimento de bairros da cidade.
Depois disso embrenhou-se nas paisagens do interior explorando regiões do Mato Grosso onde efetivamente realizou seu grande trabalho de campo como antropólogo. Essa experiência embasa um dos seus livros fundamentais, o já citado Tristes Trópicos. Em 1985, passados muitos anos, revisitou São Paulo como membro da comitiva oficial do então presidente François Mitterrand. Melhor dar a palavra ao biógrafo:
“Quando estava em São Paulo, Lévi-Strauss conseguiu escapar um dia de manhã, pegou um táxi e foi até a avenida Paulista, procurando sua velha casa na Cincinato Braga. A cidade que ele tinha conhecido e amado na juventude, com suas ladeiras e casas de arquitetura colonial, tinha praticamente desaparecido. (...) Lévi-Strauss acabou ficando preso num congestionamento e foi obrigado a voltar.” (p. 319).
Como é notável, minha resenha enfatiza os vínculos de Lévi-Strauss com São Paulo e o início de sua vida e carreira associadas a esse tempo. Evidentemente, a biografia se espraia por outros tempos e lugares, circunstâncias e experiências: seu exílio nos Estados Unidos, ligeiramente anotado acima, seu retorno à França, seu encontro e sua amizade com Roman Jakobson, a elaboração da obra que firmou sua reputação como intelectual e muita coisa que me vejo forçado a omitir no meu roteiro demasiado seletivo. Sua amizade com Jakobson merece um registro mínimo, pois foi decisiva para a orientação da sua obra e a elaboração teórica do estruturalismo, como ele próprio reconhecia. Linguista e poliglota de extraordinária erudição e formação teórica, Jakobson o introduziu nos meandros da linguística estrutural. Através dele, Lévi-Strauss descobriu, entre outras coisas, o Curso de linguística geral, de Ferdinand de Saussure. 
No parágrafo inicial desta resenha, aludindo ao tom polêmico de certas declarações de Lévi-Strauss, mencionei de passagem o racismo, o multiculturalismo, a arte contemporânea e o 1968 francês, que muitos interpretam ainda como um ano revolucionário, senão mesmo uma década revolucionária. No Brasil, assim como em muitas outras extensões periféricas da cultura europeia, seu impacto foi inegável. O que é discutível é a sua natureza. Seria de fato revolucionária? O ponto de vista de Lévi-Strauss é francamente contrário. Esta frase diz tudo: “Achei o maio de 1968 repugnante” (p. 301). Segundo Greimas, Lévi-Strauss teria declarado durante uma conversa entre eles: “Acabou. Todos os projetos científicos vão retroceder vinte anos” (idem, ibidem).

Acerca do racismo ele também incorreu em declarações públicas no mínimo embaraçosas para a Unesco, que o convidou para proferir a conferência inaugural do Ano Internacional do Combate ao Racismo. Segundo Wilcken, suas declarações polêmicas puseram René Maheu, diretor-geral da Unesco, em pânico. No essencial, o que argumentava era que a política antirracista, tal como proposta pela Unesco, tenderia a alimentar um processo de decadência cultural, já que ameaçaria anular a força do individualismo que move os processos de renovação estética e os valores espirituais necessários à dignidade e valorização da vida. Também não poupou o multiculturalismo, que hoje, pelo menos no Brasil, foi reduzido a clichê da democracia cultural e palavrório vazio da publicidade oficial. O multiculturalismo que vivenciou durante seu exílio em Nova York passou a ser visto na velhice como uma ameaça à sua cultura.  

Na velhice, como frisa seu biógrafo, seu pessimismo se acentuou, assim como sua adesão a uma visão conservadora, portanto oposta ao socialismo militante da sua juventude. As evidências mais fortes do seu pessimismo manifestam-se na sua preocupação relativa à explosão demográfica, à devastação da natureza provocada pela expansão da civilização técnica e as tendências dominantes na arte contemporânea, incompatíveis com seus ideais estéticos. A esse propósito, Patrick Wilcken cita passagens bem impressivas de um artigo que escreveu para a revista Time:
“Não acredito em Deus, mas tampouco acredito no homem. O humanismo fracassou. Não impediu as ações monstruosas de nossa geração. Ele tem se prestado a desculpar e justificar todas as espécies de horrores. Ele entendeu mal o homem. Tentou separá-lo de todas as outras manifestações da natureza”(p. 310).
A esse diagnóstico sombrio, mas talvez irretocável no essencial, não poderia deixar de acrescentar a longa e devastadora experiência do colonialismo imposto pela Europa a países como o Brasil, o fascismo e acima de tudo o nazismo cujos horrores excederam as mais tenebrosas figurações da imaginação humana.

E por aí foi ele de mal a pior para quem acredita ou precisa acreditar em visões de mundo consoladoras ou francamente otimistas. Quando morreu, já centenário, Lévi-Strauss deixou palavras ainda mais negativas para legar àqueles que o celebraram e ainda o celebram. Mas encurto o enredo, que de resto não recomendo ao leitor impressionável, sobretudo se incorrer na insensatez de ler este desfecho da resenha na hora de dormir. “O mundo começou sem o homem e terminará sem ele”, é outra frase sombria que escreveu e nada de animador promete à posteridade.   

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Entrevista com Bernard Vernier; novembro 2009



Por : Tâmara de Oliveira

Bernard Vernier é etnólogo e sociólogo, professor-pesquisador da Université Lyon II e está no Brasil entre novembro e dezembro de 2009 para uma série de conferências em três universidades : Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Seus principais trabalhos são : La prohibition de l'inceste et la dénégation des rapports sociaux. Critique de Françoise Héritier. Paris : Harmattan, 2009; Le visage et le nom. Contribution à l'étude des systèmes de parenté, Paris : PUF, 1999 ; La genèse sociale des sentiments: aînés et cadets dans l'île grecque de Karpathos, Paris : Editions de l'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, C.N.R.S 1991. Ele concedeu-me gentilmente uma entrevista que cedo, também gentilmente, aos leitores do Cazzo.

TO : Suas pesquisas são estudos monográficos comparativos sobre diferentes sociedades vilarejas, objetivando porém a construção de hipóteses de largo alcance – incluíndo sua análise estatística da sociedade francesa contemporânea, sobre a qual o senhor afirma que a percepção das semelhanças entre crianças e parentes, longe de ser determinada apenas pelas características objetivas das crianças, é inconscientemente também estruturada por certos princípios (ao mesmo tempo cognitivos, afetivos e práticos) relacionados ao sistema de parentesco. O senhor sustenta essa abordagem em nome da interdependência epistemo-metodológica entre a sociologia e a antropologia. Poderia nos explicar como o senhor pensa essa interdependência ?

BV : Pierre Bourdieu denunciou frequentemente o caráter artificial da separação entre a antropologia e a sociologia. Ele demonstrou isso amplamente pelo exemplo de seu próprio trabalho. Foi a partir de seus estudos kabyles (admirados pelos antropólogos) que ele forjou a teoria do habitus e da ação humana que está no centro de sua sociologia. Seu trabalho sobre o celibato no Béarn (região onde ele nasceu) foi saudado como uma obra-prima de análise sócio-antropológica, utilizando ao mesmo tempo métodos estatísticos e observação participante – considerados, à época, como métodos de duas disciplinas diferentes. Sabe-se que a História, desde o movimento dos Anais, tem sido fortemente marcada pela antropologia. Sobre Bourdieu, pode-se com certeza dizer que ele é o mais antropólogo dos sociólogos. Poderíamos das inúmeros exemplos disso. Darei dois : sua análise das funções das grandes escolas e de suas classes preparatórias, tomando emprestado muito da análise dos ritos de iniciação feita por Van Gennep ; igualmente, sua preocupação em levar em conta a gênese social das categorias cognitivas. Esquece-se muito isso, mas Bourdieu foi muito influenciado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Aliás, ele reivindica para si mesmo um estruturalismo genético que, diferentemente de Lévi-Strauss, analisa a gênese social das estruturas (inclusive das estruturas mentais, como as categorias do julgamento professoral, etc.) Aluno de Bourdieu, eu interiorizei sem esforço essa complementaridade fecunda entre duas abordagens. Eu inclusive fiz o esforço de sociologizar a bela análise do sentido da honra de seus estudos kabyles, mostrando que eles mantinham-se sob uma certa relação culturalista e que o sentido da honra pode variar segundo características sociológicas. Na ilha graga de Kárpathos o sentido da honra não é o mesmo, segundo se é primogênito ou caçula, camponês rico ou pobre. Falando rapidamente, a separação entre a sociologia e a antropologia constitui um obstáculo real para o progresso das ciências sociais. O sociólogo não pode encontrar melhor meio para escapar da cegueira à qual tende a condená-lo a imersão na sociedade que ele estuda que o de operar um desvio pela análise de uma das sociedades que interessam aos etnólogos. Quanto a estes, não há melhor meio para dar às suas descobertas seu verdadeiro alcance e para se curar da ilusão nociva segundo a qual eles estudam sociedades e práticas radicalmente diferentes que o de reinvestir, as questões e as problemáticas que eles elaboraram durante o estudo de uma dessas sociedades ditas exóticas, sobre sua sociedade de origem.

TO : O senhor sustenta que seu estudo sobre a gênese social da percepção das semelhanças entre crianças e parentes é um prolongamento do trabalho durkheimiano de Bourdieu, sobre as relações entre as estruturas sociais e as estruturas mentais. Como o senhor descreveria as relações teóricas e metodológicas entre Durkheim e Bourdieu ?

BV : Eu não posso responder realmente a essa questão de história das ciências – que merece uma reflexão muito aprofundada em poucas frases. Parece-me que Bourdieu tinha a mesma confiança contagiosa que Durkheim na possibilidade da sociologia explicar o mundo – aí compreendendo o mundo mental e afetivo. Durkheim dizia mais ou menos o seguinte : não é a existência anterior dos sentimentos familiares que explica a família, é a família (sua estrutura) que explica os sentimentos familiares. Seria necessário examinar as relações entre a noção de habitus e a extrema importância dada por Durkheim à socialização. Como o Durkheim de O Suicídio, Bourdieu esforça-se em utilizar as estatísticas de maneira demonstrativa – e não somente ilustrativa. Mauss, o sobrinho de Durkheim, quando analisa o dom nas sociedades primitivas, parece-me ter anunciado a superação, desejada por Bourdieu, entre subjetivismo e objetivismo. Sua análise faz-se ao mesmo tempo em termos de estrutura (ele extrai a noção de troca) e de práticas (existem de fato dons e contra-dons que precisam ser explicados pelos interesses em jogo). Mas vocês sabem que Bourdieu se reclamava também de outros mestres (Marx, Weber, etc.)

TO : Em seu último livro (VERNIER, B. La prohibition de l'inceste. Critique de Françoise Héritier. Paris : l'Harmattan. 2009), apresentando a herdeira de Lévi-Strauss na França como aquela que reproduz, sobre o incesto, o mesmo erro universalista/substancialista que seu mestre cometeu sobre a teoria dos matrimônios, o senhor afirma que há uma razão metodológica e uma epistemológica que explicam esse erro. Poderia nos explicar isso ?

BV : Quando eu falo dos erros metodológicos e epistemológicos de Françoise Héritier, eu quero dizer o seguinte : essa antropóloga afirma muitas vezes, em seu livro As Duas Irmãs e Sua Mãe que é preciso « escutar o que as pessoas dizem ». É um excelente princípio metodológico (mas também epistemológico). Ora, cada vez que as pessoas ou os textos explicam as razões políticas (no sentido largo), econômicas ou simbólicas das proibições com uma aliada, Héritier as invalida ou as declara secundárias. A Bíblia diz explicitamente em O Levítico « Não tomarás a irmã de sua mulher para fazer dela uma rival ». Françoise Héritier evacua o que põe problema à sua teoria, traduzindo rival por co-esposa e dá como razão da proibição o contato entre idênticos (duas irmãs), lá onde a Bíblia fala explicitamente de uma proibição pela rivalidade gerada entre duas irmãs. O caso das Danaídes (tragédia grega), do qual eu falei, é exemplar : Héritier pula uma frase que não cola com sua teoria. No caso dos Hititas, ela utiliza um verseto, o 191, interpretando-o mal (mulher livre tornando-se mulher não casada), embora o texto seja claro : trata-se de uma mulher livre em oposição a uma mulher escrava. E ela não leva em consideração os versetos seguintes que contradizem sua teoria. Seu erro epistemológico maior é, com certeza, o de dissolver a antropologia social na antropologia do simbólico. Na importância sem medidas que ela confere ao simbólico, pode-se ler a expressão de uma espécie de etnocentrismo profissional, ligado ao professorado de alto nível. Sua colocação entre parênteses das relações sociais repete de maneira caricatural a posição estruturalista da autonomização dos objetos de estudo (a língüa de Saussure, a troca das mulheres de Lévi-Strauss, etc.). Ela pretende ultrapassar Lévi-Strauss, conservando-o. Entretanto, afirmando que a razão da proibição do incesto de primeiro tipo (com consanguíneos) deve ser buscada no incesto de segundo tipo (pois o que é proibido no primeiro tipo seria também um contato entre idênticos), ela toma por totalmente secundária a noção de função social que Lévi-Strauss tinha dado, seguindo Santo Agostinho, à proibição do incesto e que ele utilizou (apesar de seu desprezo às explicações funcionalistas), inclusive em suas construções mais abstratas, como a de seu átomo de parentesco ou do equilíbrio lógico (duas relações positivas e duas negativas), tendo por função o equilíbrio da estrutura social. O que eu lhe reprovo [a Héritier], em sua análise dos textos, é de ter negligenciado os dois imperativos categóricos da análise : a regra do co-texto (não se seleciona a parte do texto que nos é cômoda) e a do contexto (deve-se referir os textos à sociedade e às relações sociais que os produziram e que lhes dão sentido).

TO : O senhor faz uma relação entre a recepção positiva extraordinária da tese « unidemensional e autonomizada » de Héritier sobre o incesto e, a visibilidade contemporânea da homossexualidade. Poderia nos explicar essa relação ?

BV : A questão das relações homossexuais é uma das grandes questões sociais do momento. Ela encontra sua expressão na rua, com a Gay Pride. Adotar o ponto de vista dos dominados (as classes populares com Marx há muito tempo, as mulheres e os homossexuais mais recentemente), fez a sociologia progredir e esses temas estão, digamos assim, no « ar dos tempos ». Então não é completamente impossível que exista um pouco de fascinação pela questão homossexual na insistência dessa antropóloga em descobrir relações homossexuais escondidas (por exemplo, entre Édipo e seu pai), lá onde o senso comum via apenas relações heterossexuais (a relação sexual de Édipo com sua mãe).

TO : Para cientistas sociais brasileiros, sua argumentação sobre a posição acadêmica de Françoise Héritier pode surpreender, sugerindo que o estruturalismo lévi-straussiano ainda é hegemônico no campo etnológico francês. O Senhor acredita que se trata realmente de uma verdadeira hegemonia (epistemológica e metodológica) ou trata-se apenas de hegemonia « das redes », quer dizer, de uma herança dos territórios acadêmicos graças a relações estratégicas entre antigos estruturalistas e jovens pesquisadores – no fundo indiferentes às implicações teóricas do estruturalismo?

BV : Em grande parte, vocês têm razão. Ainda existe uma boa quantidade de pesquisadores estruturalistas. Mas a dominação do estruturalismo, declarada morta em Maio de 68, ainda existia institucionalmente de fato na França, até recentemente. Foi Françoise Héritier, discípula de Lévi-Strauss, quem lhe sucedeu como professor de antropologia no Collège de France. Lévi-Strauss elaborou sua teoria das diversas formas de troca de mulheres apoiando-se sobre a análise do que se chama as estruturas elementares do parentesco, onde existem cônjuges prescritos (sabe-se de antemão quem deve-se casar com tal tipo de parente ou membro de tal classe matrimonial). O livro O Exercício do Parentesco, aquele que tornou Françoise Héritier célebre, esforça-se em demonstrar que, como tinha suspeitado Lévi-Strauss, os sistemas de parentesco semi-complexos (que funcionam como o nosso, sob proibições e não sob obrigações, mas onde as proibições recaem sobre numerosos grupos de parentes), conhecem as mesmas formas de trocas que os sistemas elementares. Isso ampliava consideravelmente o campo de aplicação da teoria lévi-straussiana, porque os sistemas onde os cônjuges são realmente prescritos (e não preferenciais ) são raros. Dessa forma, o cargo do Collège de France foi ocupado até muito recentemente por uma estruturalista. Parece-me que isso tinha uma certa influência sobre o recrutamento dos pesquisadores do Laboratório de antropologia social – que era o mais importante da França. Isso também exercia efeitos sobre o recrutamento dos professores da EHESS, onde as relações de força eram entretanto mais complicadas devido a importância dos historiadores, mas o candidato antropólogo era aconselhado a fazer uma visita ao professor do Collège de France para se assegurar de seu apoio. Isso também exercia influência sobre o conteúdo da principal revista francesa de antropologia, L’Homme. Darei apenas meu próprio exemplo : essa revista recusou publicar o artigo crítico que eu enviei para explicar que a teoria de Françoise Héritier dava uma importância considerável à relação homossexual, sem se perguntar em nenhum momento se as sociedades consideravam essa relação como uma relação entre idênticos. Trata-se de detalhes significativos. Também quando eu publiquei meu livro sobre Kárpathos, La genèse sociale des sentiments en 1991, eu quis mencionar na apresentação que meu trabalho criticava o estruturalismo lévi-straussiano. O livro não foi censurado de maneira alguma, mas pediram-me encarecidamente para retirar essa menção « indelicada ». Mas isso refere-se à história das ciências sociais e o que eu digo é apenas uma impressão pessoal.
TO : O senhor seria um bourdieusiano “pur et dur”?

BV : Pierre Bourdieu foi um dos grandes sociólogos de seu tempo. Para mim, ele está um pouco para a sociologia como Proust está para a literatura. Um encontro raro entre uma grande sensibilidade e uma potente vontade científica. Mas não se deve jamais continuar prisioneiro de seus mestres. Para um discípulo, a crítica se faz principalmente de duas maneiras. Pela leitura intensiva da obra, permitindo reparar as contradições lógicas ; pelo trabalho de campo que às vezes traz um desmentido à teoria. Às vezes é o próprio trabalho de campo que, contradizendo certos aspectos da teoria, permite notar as contradições lógicas – foi o que aconteceu comigo com a noção de estratégia. Eu utilizei bastante essa noção em meu trabalho sobre Kárpathos. Mas eu vi claramente que os karpathiotas desenvolviam estratégias conscientes – enquanto Bourdieu falava mais frequentemente em estratégias inconscientes.

TO : Muito obrigada por ter estado conosco na Universidade Federal de Sergipe e por esta entrevista para os colaboradores do Cazzo. Esperamos seu retorno para falar mais especificamente da sociologia de Pierre Bourdieu.