sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Entrevista com Bernard Vernier; novembro 2009



Por : Tâmara de Oliveira

Bernard Vernier é etnólogo e sociólogo, professor-pesquisador da Université Lyon II e está no Brasil entre novembro e dezembro de 2009 para uma série de conferências em três universidades : Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Seus principais trabalhos são : La prohibition de l'inceste et la dénégation des rapports sociaux. Critique de Françoise Héritier. Paris : Harmattan, 2009; Le visage et le nom. Contribution à l'étude des systèmes de parenté, Paris : PUF, 1999 ; La genèse sociale des sentiments: aînés et cadets dans l'île grecque de Karpathos, Paris : Editions de l'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, C.N.R.S 1991. Ele concedeu-me gentilmente uma entrevista que cedo, também gentilmente, aos leitores do Cazzo.

TO : Suas pesquisas são estudos monográficos comparativos sobre diferentes sociedades vilarejas, objetivando porém a construção de hipóteses de largo alcance – incluíndo sua análise estatística da sociedade francesa contemporânea, sobre a qual o senhor afirma que a percepção das semelhanças entre crianças e parentes, longe de ser determinada apenas pelas características objetivas das crianças, é inconscientemente também estruturada por certos princípios (ao mesmo tempo cognitivos, afetivos e práticos) relacionados ao sistema de parentesco. O senhor sustenta essa abordagem em nome da interdependência epistemo-metodológica entre a sociologia e a antropologia. Poderia nos explicar como o senhor pensa essa interdependência ?

BV : Pierre Bourdieu denunciou frequentemente o caráter artificial da separação entre a antropologia e a sociologia. Ele demonstrou isso amplamente pelo exemplo de seu próprio trabalho. Foi a partir de seus estudos kabyles (admirados pelos antropólogos) que ele forjou a teoria do habitus e da ação humana que está no centro de sua sociologia. Seu trabalho sobre o celibato no Béarn (região onde ele nasceu) foi saudado como uma obra-prima de análise sócio-antropológica, utilizando ao mesmo tempo métodos estatísticos e observação participante – considerados, à época, como métodos de duas disciplinas diferentes. Sabe-se que a História, desde o movimento dos Anais, tem sido fortemente marcada pela antropologia. Sobre Bourdieu, pode-se com certeza dizer que ele é o mais antropólogo dos sociólogos. Poderíamos das inúmeros exemplos disso. Darei dois : sua análise das funções das grandes escolas e de suas classes preparatórias, tomando emprestado muito da análise dos ritos de iniciação feita por Van Gennep ; igualmente, sua preocupação em levar em conta a gênese social das categorias cognitivas. Esquece-se muito isso, mas Bourdieu foi muito influenciado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Aliás, ele reivindica para si mesmo um estruturalismo genético que, diferentemente de Lévi-Strauss, analisa a gênese social das estruturas (inclusive das estruturas mentais, como as categorias do julgamento professoral, etc.) Aluno de Bourdieu, eu interiorizei sem esforço essa complementaridade fecunda entre duas abordagens. Eu inclusive fiz o esforço de sociologizar a bela análise do sentido da honra de seus estudos kabyles, mostrando que eles mantinham-se sob uma certa relação culturalista e que o sentido da honra pode variar segundo características sociológicas. Na ilha graga de Kárpathos o sentido da honra não é o mesmo, segundo se é primogênito ou caçula, camponês rico ou pobre. Falando rapidamente, a separação entre a sociologia e a antropologia constitui um obstáculo real para o progresso das ciências sociais. O sociólogo não pode encontrar melhor meio para escapar da cegueira à qual tende a condená-lo a imersão na sociedade que ele estuda que o de operar um desvio pela análise de uma das sociedades que interessam aos etnólogos. Quanto a estes, não há melhor meio para dar às suas descobertas seu verdadeiro alcance e para se curar da ilusão nociva segundo a qual eles estudam sociedades e práticas radicalmente diferentes que o de reinvestir, as questões e as problemáticas que eles elaboraram durante o estudo de uma dessas sociedades ditas exóticas, sobre sua sociedade de origem.

TO : O senhor sustenta que seu estudo sobre a gênese social da percepção das semelhanças entre crianças e parentes é um prolongamento do trabalho durkheimiano de Bourdieu, sobre as relações entre as estruturas sociais e as estruturas mentais. Como o senhor descreveria as relações teóricas e metodológicas entre Durkheim e Bourdieu ?

BV : Eu não posso responder realmente a essa questão de história das ciências – que merece uma reflexão muito aprofundada em poucas frases. Parece-me que Bourdieu tinha a mesma confiança contagiosa que Durkheim na possibilidade da sociologia explicar o mundo – aí compreendendo o mundo mental e afetivo. Durkheim dizia mais ou menos o seguinte : não é a existência anterior dos sentimentos familiares que explica a família, é a família (sua estrutura) que explica os sentimentos familiares. Seria necessário examinar as relações entre a noção de habitus e a extrema importância dada por Durkheim à socialização. Como o Durkheim de O Suicídio, Bourdieu esforça-se em utilizar as estatísticas de maneira demonstrativa – e não somente ilustrativa. Mauss, o sobrinho de Durkheim, quando analisa o dom nas sociedades primitivas, parece-me ter anunciado a superação, desejada por Bourdieu, entre subjetivismo e objetivismo. Sua análise faz-se ao mesmo tempo em termos de estrutura (ele extrai a noção de troca) e de práticas (existem de fato dons e contra-dons que precisam ser explicados pelos interesses em jogo). Mas vocês sabem que Bourdieu se reclamava também de outros mestres (Marx, Weber, etc.)

TO : Em seu último livro (VERNIER, B. La prohibition de l'inceste. Critique de Françoise Héritier. Paris : l'Harmattan. 2009), apresentando a herdeira de Lévi-Strauss na França como aquela que reproduz, sobre o incesto, o mesmo erro universalista/substancialista que seu mestre cometeu sobre a teoria dos matrimônios, o senhor afirma que há uma razão metodológica e uma epistemológica que explicam esse erro. Poderia nos explicar isso ?

BV : Quando eu falo dos erros metodológicos e epistemológicos de Françoise Héritier, eu quero dizer o seguinte : essa antropóloga afirma muitas vezes, em seu livro As Duas Irmãs e Sua Mãe que é preciso « escutar o que as pessoas dizem ». É um excelente princípio metodológico (mas também epistemológico). Ora, cada vez que as pessoas ou os textos explicam as razões políticas (no sentido largo), econômicas ou simbólicas das proibições com uma aliada, Héritier as invalida ou as declara secundárias. A Bíblia diz explicitamente em O Levítico « Não tomarás a irmã de sua mulher para fazer dela uma rival ». Françoise Héritier evacua o que põe problema à sua teoria, traduzindo rival por co-esposa e dá como razão da proibição o contato entre idênticos (duas irmãs), lá onde a Bíblia fala explicitamente de uma proibição pela rivalidade gerada entre duas irmãs. O caso das Danaídes (tragédia grega), do qual eu falei, é exemplar : Héritier pula uma frase que não cola com sua teoria. No caso dos Hititas, ela utiliza um verseto, o 191, interpretando-o mal (mulher livre tornando-se mulher não casada), embora o texto seja claro : trata-se de uma mulher livre em oposição a uma mulher escrava. E ela não leva em consideração os versetos seguintes que contradizem sua teoria. Seu erro epistemológico maior é, com certeza, o de dissolver a antropologia social na antropologia do simbólico. Na importância sem medidas que ela confere ao simbólico, pode-se ler a expressão de uma espécie de etnocentrismo profissional, ligado ao professorado de alto nível. Sua colocação entre parênteses das relações sociais repete de maneira caricatural a posição estruturalista da autonomização dos objetos de estudo (a língüa de Saussure, a troca das mulheres de Lévi-Strauss, etc.). Ela pretende ultrapassar Lévi-Strauss, conservando-o. Entretanto, afirmando que a razão da proibição do incesto de primeiro tipo (com consanguíneos) deve ser buscada no incesto de segundo tipo (pois o que é proibido no primeiro tipo seria também um contato entre idênticos), ela toma por totalmente secundária a noção de função social que Lévi-Strauss tinha dado, seguindo Santo Agostinho, à proibição do incesto e que ele utilizou (apesar de seu desprezo às explicações funcionalistas), inclusive em suas construções mais abstratas, como a de seu átomo de parentesco ou do equilíbrio lógico (duas relações positivas e duas negativas), tendo por função o equilíbrio da estrutura social. O que eu lhe reprovo [a Héritier], em sua análise dos textos, é de ter negligenciado os dois imperativos categóricos da análise : a regra do co-texto (não se seleciona a parte do texto que nos é cômoda) e a do contexto (deve-se referir os textos à sociedade e às relações sociais que os produziram e que lhes dão sentido).

TO : O senhor faz uma relação entre a recepção positiva extraordinária da tese « unidemensional e autonomizada » de Héritier sobre o incesto e, a visibilidade contemporânea da homossexualidade. Poderia nos explicar essa relação ?

BV : A questão das relações homossexuais é uma das grandes questões sociais do momento. Ela encontra sua expressão na rua, com a Gay Pride. Adotar o ponto de vista dos dominados (as classes populares com Marx há muito tempo, as mulheres e os homossexuais mais recentemente), fez a sociologia progredir e esses temas estão, digamos assim, no « ar dos tempos ». Então não é completamente impossível que exista um pouco de fascinação pela questão homossexual na insistência dessa antropóloga em descobrir relações homossexuais escondidas (por exemplo, entre Édipo e seu pai), lá onde o senso comum via apenas relações heterossexuais (a relação sexual de Édipo com sua mãe).

TO : Para cientistas sociais brasileiros, sua argumentação sobre a posição acadêmica de Françoise Héritier pode surpreender, sugerindo que o estruturalismo lévi-straussiano ainda é hegemônico no campo etnológico francês. O Senhor acredita que se trata realmente de uma verdadeira hegemonia (epistemológica e metodológica) ou trata-se apenas de hegemonia « das redes », quer dizer, de uma herança dos territórios acadêmicos graças a relações estratégicas entre antigos estruturalistas e jovens pesquisadores – no fundo indiferentes às implicações teóricas do estruturalismo?

BV : Em grande parte, vocês têm razão. Ainda existe uma boa quantidade de pesquisadores estruturalistas. Mas a dominação do estruturalismo, declarada morta em Maio de 68, ainda existia institucionalmente de fato na França, até recentemente. Foi Françoise Héritier, discípula de Lévi-Strauss, quem lhe sucedeu como professor de antropologia no Collège de France. Lévi-Strauss elaborou sua teoria das diversas formas de troca de mulheres apoiando-se sobre a análise do que se chama as estruturas elementares do parentesco, onde existem cônjuges prescritos (sabe-se de antemão quem deve-se casar com tal tipo de parente ou membro de tal classe matrimonial). O livro O Exercício do Parentesco, aquele que tornou Françoise Héritier célebre, esforça-se em demonstrar que, como tinha suspeitado Lévi-Strauss, os sistemas de parentesco semi-complexos (que funcionam como o nosso, sob proibições e não sob obrigações, mas onde as proibições recaem sobre numerosos grupos de parentes), conhecem as mesmas formas de trocas que os sistemas elementares. Isso ampliava consideravelmente o campo de aplicação da teoria lévi-straussiana, porque os sistemas onde os cônjuges são realmente prescritos (e não preferenciais ) são raros. Dessa forma, o cargo do Collège de France foi ocupado até muito recentemente por uma estruturalista. Parece-me que isso tinha uma certa influência sobre o recrutamento dos pesquisadores do Laboratório de antropologia social – que era o mais importante da França. Isso também exercia efeitos sobre o recrutamento dos professores da EHESS, onde as relações de força eram entretanto mais complicadas devido a importância dos historiadores, mas o candidato antropólogo era aconselhado a fazer uma visita ao professor do Collège de France para se assegurar de seu apoio. Isso também exercia influência sobre o conteúdo da principal revista francesa de antropologia, L’Homme. Darei apenas meu próprio exemplo : essa revista recusou publicar o artigo crítico que eu enviei para explicar que a teoria de Françoise Héritier dava uma importância considerável à relação homossexual, sem se perguntar em nenhum momento se as sociedades consideravam essa relação como uma relação entre idênticos. Trata-se de detalhes significativos. Também quando eu publiquei meu livro sobre Kárpathos, La genèse sociale des sentiments en 1991, eu quis mencionar na apresentação que meu trabalho criticava o estruturalismo lévi-straussiano. O livro não foi censurado de maneira alguma, mas pediram-me encarecidamente para retirar essa menção « indelicada ». Mas isso refere-se à história das ciências sociais e o que eu digo é apenas uma impressão pessoal.
TO : O senhor seria um bourdieusiano “pur et dur”?

BV : Pierre Bourdieu foi um dos grandes sociólogos de seu tempo. Para mim, ele está um pouco para a sociologia como Proust está para a literatura. Um encontro raro entre uma grande sensibilidade e uma potente vontade científica. Mas não se deve jamais continuar prisioneiro de seus mestres. Para um discípulo, a crítica se faz principalmente de duas maneiras. Pela leitura intensiva da obra, permitindo reparar as contradições lógicas ; pelo trabalho de campo que às vezes traz um desmentido à teoria. Às vezes é o próprio trabalho de campo que, contradizendo certos aspectos da teoria, permite notar as contradições lógicas – foi o que aconteceu comigo com a noção de estratégia. Eu utilizei bastante essa noção em meu trabalho sobre Kárpathos. Mas eu vi claramente que os karpathiotas desenvolviam estratégias conscientes – enquanto Bourdieu falava mais frequentemente em estratégias inconscientes.

TO : Muito obrigada por ter estado conosco na Universidade Federal de Sergipe e por esta entrevista para os colaboradores do Cazzo. Esperamos seu retorno para falar mais especificamente da sociologia de Pierre Bourdieu.

8 comentários:

Le Cazzo disse...

E Tâmara Oliveira mais uma vez contribui com o Cazzo, dessa vez nos apresentando, é melhor singularizar a ignorância, me apresentando o trabalho de Bernard Vernier. Muito obrigado mesmo, Tâmara. Jonatas.

Anônimo disse...

Pois é, Jonatas. E vocês nem precisam aumentar meu sala'rio. Sem brincadeira, as conferências de Bernard Vernier sobre suas pesquisas e critica à Françoise Héritier foram um presentão para quem as assistiu: verdadeiras aulas de integração entre teoria e metodologia, sociologia e antropologia. Sem falar em sua simpa'tica disponibilidade para conversar sobre experiências e sensibilidades das ciências sociais e das culturas. Espero realmente que a UFS consiga trazê-lo novamente em 2010. Abraços, Tâmara.

Cynthia disse...

Maravilha, Tâmara, muito obrigada pela entrevista! Especialmente adequada neste momento, em que diversas pessoas têm defendido essa separação absurda entre sociologia e antropologia.

Beijos

Anônimo disse...

Não ha' de que Cyntia, é realmente bom pra mim colaborar com o Cazzo. Acabei de receber um e-mail de Bernard Vernier (a quem eu tinha enviado a pa'gina do Cazzo com a entrevista)e parece que vocês conseguiram mais um admirador: ele disse que o blog lhe pareceu muito interessante, com um esforço na apresentação tornando-o muito agrada'vel e, agradeceu a entrevista também. Abraços, Tâmara

Marcelo de Oliveira disse...

Fantástica a entrevista,
Parabéns Tâmara, parabéns a vocês do blog. Marcelo de Oliveira

Anônimo disse...

Obrigada, Marcelo. As conferências de Vernier mostraram-me imediatamente que uma entrevista com ele teria um resultado bem adequado à orientação do Cazzo. Aproveito para dizer que também gostei muito de suas questões sobre o texto de Fernando. Espero que vocês ainda estejam dialogando a respeito. Um abraço, Tâmara

Marcelo de Oliveira disse...

Olá Tâmara, fico feliz que tenha apreciado os questionamentos. Se, por acaso, quiser dar uma olhada no panorama geral do diálogo você poderá encontrá-lo nos comentários, sobre o texto da incivilidade, do Blog do Fernando; gostaria de postá-los aqui, afinal foi onde tudo começou, mas ainda não foi possível. Caso não tenha o endereço, ou mesmo para facilitar, o link é: http://fmlima.blogspot.com. Abraços Marcelo de Oliveira.

Anônimo disse...

Obrigada,Marcelo.Assim que puder eu visito o blog de Fernando pra conhecer o diálogo.Do meu ponto de vista,tinha outra coisa que me fazia refletir no texto sobre as incivilidades:a consideração dos brasileiros como totalidade homogênea. Como já trabalhei com o jeitinho brasileiro empiricamente,vi o quanto a análise desses fenômenos ou a utilização dessas noções teóricas devem passar pelas formas e representações da classificação social. Em velha terminologia sociológica: pensar nas implicações da estratificação social .Abraço,Tâmara