quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O que Zinedine Zidane e Gilberto Gil têm em comum (parte 2)



Tamara Oliveira

Eis então como tenho aproximado a França e o Brasil: não se deve excluir a hipótese segundo a qual esses países sofrem feridas históricas diferentes, mas igualmente ligadas a um componente fundamental das res-significações contemporâneas da tensão moderna entre cidadania abstrata e desigualdades concretas : a crítica multiculturalista dos princípios igualitários universalistas, entendidos como dissimulação da diversidade, da discriminação e da dominação de grupos e indivíduos minoritários ou marginalizados, pelas elites – em termos étnicos, de origem lingüística, cultural ou religiosa, em termos de cor ou raça, em termos de origem nacional, em termos de gênero ou de orientação sexual, etc. Se, como vimos, denuncia-se na França um “ideal republicano” de uma sociedade que entretanto resiste à integração de franceses com ascendência nas ex-colônias (R. Castel, 2007), no Brasil denuncia-se um « mito de democracia racial e de mestiçagem » que dissimula um racismo estrutural, ou seja, a desqualificação a priori de todos o que são percebidos/classificados como negros. Em suma, lá ou aqui, os atores sociais na vanguarda do debate sobre expressões identitárias fazem-no a partir das relações de força entre res-significações de sua ferida universalista particular (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008).

E eis aí o que há de comum entre o jogador Zinedine Zidane e o cantor-compositor Gilberto Gil: o Brasil continua prisioneiro de seu passado, de sua condição de colônia ou Estado-nação escravista, assassino e estuprador de negros(as) e indígenas; a França continua amarrada à sua história de império colonial, de Estado-nação que resiste não só à integração de sua população originária das ex-colônias, como aos fluxos migratórios de um mundo globalizado. No Brasil, a articulação entre luta contra discriminação « racial » e demanda por identidade « étnico-racial » nutre um debate crescente e potencialmente violento na esfera pública brasileira. Por um lado ela parece nutrir o velho racismo contra os classificados como negros, como se pôde ver com pichações nos muros da UFRGS contra as cotas “raciais”, parecendo inspiradas diretamente de movimentos neo-nazistas. Ou como se pode ver atualmente no Youtube, com a histeria de classe e racista de uma jovem médica de Sergipe contra um funcionário de companhia aérea pobre e negro, porque este comunicou àquela “moça fina” que ela tinha chegado atrasada demais para embarcar. Mas, por outro lado, a articulação acima colocada pode exprimir violência simbólica também contra os classificados como brancos, como se pode analisar no discurso abaixo:

Os problemas que afetam os negros e negras são produzidos através da ação daqueles que são, ou julgam que são brancos e que adotam práticas discriminatórias. Mesmo a existência de práticas de discriminação de afrodescendentes contra pessoas de seu mesmo grupo, deve ser pensada como produto de uma sociedade pautada pelos valores culturais, morais e estéticos portados por pessoas de pele clara e de ascendência européia - (Marcelo Paixão, 2004, p.7).

Cito esse trecho da tese 11 do Manifesto anti-racista de Marcelo Paixão (2004/2006) para apresentar minha análise de alguns de seus conteúdos significativos (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008): brancos, pessoas de pele clara e ascendência européia aparecem aí como componentes intercambiáveis de um processo de ancoragem e objetivação de representações sociais (Moscovici, 2004), ou seja, como classificação e definição de pessoas que, independentemente de suas práticas concretas e valores sociais e políticos, são inseridas estereotipadamente num mesmo grupo e julgadas responsáveis naturais por práticas e valores racistas – responsáveis inclusive por possíveis práticas racistas de indivíduos classificados e definidos estereotipadamente no grupo oposto, os afro-descendentes, vítimas dessas práticas. Essas expressões de violência simbólica (que pode se tornar física) pôde perturbar até quem pesquisa as articulações desigualdades sociais/relações “raciais” há décadas e é favorável às políticas de affirmative action, como o antropólogo Lívio Sansone. Na introdução de um dos seus trabalhos mais recentes (Sansone, 2004), este autor não só declara que a globalização produz novas formas de racismo, como também “confessa”  estar cada vez mais cético quanto a qualquer possibilidade libertária ou emancipatória articulada intrinsecamente à identidade “étnica” ou “racial”.

De fato, tenho argumentado em outros trabalhos (Oliveira, 2009; Oliveira, 2008) que devemos sempre nos perguntar se “raça” é um conceito socialmente aberto ao diálogo e fomentador de práticas igualitárias, como sustentam adeptos da nebulosa multiculturalista, ou se se trata de uma noção indeterminada, com certeza socialmente construída e, por isso, indispensável analiticamente como já disse Lévi Strauss(1977), mas carregada de potencialidades de separação, de nutrição de ressentimentos e de incompreensão recíproca, tornando-a potência de destruição de solidariedades. Solidariedades aliás, articuladas historicamente à noção universalista do homem em abstrato, através da qual se constrói a legitimidade social para a luta pela dignidade dos seres humanos concretos – negros, brancos, vermelhos, marrons ou listrados de verde e amarelo. Lutando contra as desigualdades e discriminações sociais de todos os tipos, é necessário reconhecer a ferida racista histórica, originária do escravismo e que atravessa o ideal de “democracia racial” à brasileira. Mas também é necessário refletir sobre os problemas de uma reivindicação identitária fundada numa noção essencialista cujo passado é tão pesado e destrutivo. Reivindicação que nem sempre dissimula sua vontade, politicamente organizada mas não majoritária, de impor normativamente uma classificação dicotômica de “raças” (negros e brancos) a quem não se reconhece nelas.

Na França, assiste-se a um processo assustador, capitaneado por quem comanda o Estado, de definição normativa da identidade nacional em termos étnico-religiosos, com um acréscimo sociologicamente significativo à divisa republicana francesa: aos célébres “liberdade, igualdade e fraternidade”, os formuladores e sustentadores do tal debate sobre a identidade nacional têm acrescentado “laicidade”, termo dirigido claramente contra muçulmanos. Articulado institucionalmente a uma política de controle repressivo da imigração e a uma rede discursiva que estigmatiza principalmente os muçulmanos mas que pode ser adaptada contra quaisquer franceses com ascendência nas antigas colônias francesas, esse processo não alimenta apenas o velho racismo dos “blancs-républicains-catholiques”. Ele está intimamente associado também a uma reação identitária dos estigmatizados (minoritários, mas organizados e tendendo a uma representação essencialista da “négritude” e/ou do “islam”), cujo potencial real ou imaginário de violência é constantemente manipulado pelo governo e certas mídias - fabricando assim nos espíritos, como diz Michel Agier, um“estrangeiro” objeto de políticas públicas xenófobas.

Considero que a validade da reinvindicação por direitos sociais depende da validade da pretensão universalista dos direitos do homem (Oliveira, 2009; Oliveria, 2008). Explicando melhor: o processo sócio-histórico da especificação dos direitos tem como pressuposto o reconhecimento ideal de que as especificidades de grupos ou indivíduos não devem anular a comum dignidade de todos os homens. Por outro lado, nem sempre uma reivindicação identitária reconhece a dignidade de grupos ou indivíduos definidos como “o outro” ; aliás, o passado e o presente não deixam de nos jogar isso na cara, como as ditas “identidades” podem ser limitadoras da nossa experiência social e, no pior dos casos, assassinas (Maalouf: 1998). Com efeito, afirmo que todas as formas de identidade social não cessam de se construir, se destruir e se reconstruir na dinâmica social, ou seja, tratam-se de processos de “identificação” e não de entidades identitárias (Souza: 1999). Sendo assim, é sempre à pretensão universalista dos direitos que precisamos recorrer a cada vez que reivindicamos dignidade às nacionalidades, cores, religiões, etnias, gêneros e orientações sexuais, etc.

Concluo com uma lembrança que reune a França e o Brasil a um problema comum da humanidade globalizada. Já coloquei que há, nas dinâmicas que aqui discuto, uma identificação entre reivindicações identitárias e lutas contra desigualdades sócio-econômicas. Neste sentido, considero que para sair de uma lógica da separação e do ressentimento, é necessário perceber que as distinções identitárias “étnico-religiosas” ou “étnico-raciais” costumam desviar a atenção de afinidades sócio-econômicas entre indivíduos ou grupos etnicamente distinguidos. Afinidades que reúnem todo o arco-íris dos seres humanos que vivem do trabalho, na mesma dependência a um capitalismo hiper-acelerado e socialmente “descomplexado”. Neste sentido, em pesquisa exploratória sobre representações sociais que realizei junto a estudantes secundaristas franceses em 2008, revelou-se um indicador significativo de segregação sócio-econômica na experiência social dos jovens entrevistados (possuindo variáveis sócio-econômicas das mais diversas) : descrevendo seu universo afetivo, a grande maioria afirma possuir amigos próximos cuja ascendência nacional, religião ou « cor-raça » é diferente da sua ; inversamente, a grande maioria também declara não possuir amigos próximos tendo condições sócio-econômicas distantes das suas. Ou seja, enquanto se estimulam distinções essencialistas entre “etnias”, “raças” ou “religiões”, indivíduos com condições sócio-econômicas afins se aproximam espaço-sociologicamente, independentemente de suas diversas identificações multiculturais. Não é por acaso que numerosas pesquisas empíricas têm confirmado que desigualdades sócio-econômicas têm segregado mais os indivíduos em grupos distintos sem relações de sociabilidade do que há trinta anos atrás...

Bibliografia

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