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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Estranho, Inquietante, Esquisito


















Jonatas Ferreira
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Aprendi a ler sob a atenção bondosa de Dona Zuleide, de olhos azuis celeste, e é uma pena não me recordar de seus vários sobrenomes - embora não o saiba de fato, estou certo que uma pessoa tão importante quanto ela, deve tê-los em maior quantidade que a Princesa Isabel. Minha alfabetização ocorreu há muitas décadas, no modestíssimo Grupo Escolar João XXIII – que ainda existe, vi-o recentemente! Numa manhã ensolarada, ao descobrir que eu já tateava de alguma forma o mundo das palavras escritas, Dona Zuleide levou-me até a secretaria do “Grupo”, como chamávamos nossa escola, e apresentou-me à sua Diretora. “Ele já sabe ler”, disse com enorme sorriso. Tendo isso ocorrido por volta dos meus seis anos, não era qualquer forma de precocidade que a impressionara, mas a simples entrada de um aluno no mundo das letras que merecia celebração. Sua alegria, e o discreto ceticismo da Diretora, deram-me a certeza de que fizera alguma coisa importante. Provei minha competência recém adquirida lendo trechos de algum volume prosaico, algo como uma lista telefônica, não lembro ao certo, e talvez tenha recebido felicitações. Certo mesmo é ter contado o tempo todo com a alegria boa e comovida de minha professora.

Esse evento proporcionou-me, todavia, também a oportunidade de experimentar uma frustração considerável. Supervalorizei o alcance do que havia realizado. Julguei que o mero fato de saber ler palavras, iria me abrir de imediato os significados das palavras que formam o idioma português. Caso eu pudesse ler no papel a palavra “prosódia”, que ouvira na rua em certa ocasião, de pronto o seu sentido se abriria como mágica para mim. Dona Zuleide ponderou que a leitura leitura me abriria portas para conhecer tais significados, mas que o simples fato de poder ler a palavra “vastidão”, ou o nome “Alcebíades”, em si, nada esclarecia sobre os horizontes amplos do mundo, ou sobre a vida do famoso general ateniense, aliás, espartano, digo, persa. Ora, de que serve essa tal leitura, se as palavras que eu já sabia, continuo sabendo, e o que eu ainda não sabia, continuo ignorando – perguntei-me ? Creio que essa foi minha primeira experiência filosófica de estranhamento, ou seja, de autoprodução que retorna como algo que não nos pertence, que não nos diz respeito. Sabia ler, mas essa habilidade não me poupava das duras tarefas do aprendizado, antes pressupunha uma carga de novas tarefas com as quais me envolvo até hoje. Pra que aquilo, então? Pra que isso, hoje, portanto?

É precisamente a autoprodução como característica essencial ao processo de humanização, mas que pode sempre retornar como estranheza, como algo impróprio, que constitui um tema recorrente das investigações do jovem Marx. Creio que a tradução dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos que a Boitempo lançou em 2004 oferecem ao leitor uma distinção conceitual importante para nós que nos envolvemos durante tanto tempo com a ideia marxiana de alienação - hoje traduzida como “estranhamento”. Há ali claramente definida uma diferença importante entre exteriorização e estranhamento, entre Entäusserung e Entfremdung, que nunca percebi nas traduções anteriores – e, como não sou cuidadoso, há aqui simplesmente a possibilidade de ter eu negligenciado isso que já era sabido por todos. É importante perceber como Marx se debruça sobre um conceito claramente romântico, como o é Entfremdung (estranhamento ou alienação, dependendo da tradução), para dali retirar conclusões muito particulares. Desde Fichte, uma discussão sobre a essência do ser humano esteve relacionada ao ato de exteriorização de si, à produção de objetos, instrumentos, mediante os quais o ser humano se torna outro, ou seja, exterioriza-se (entäussert sich) e, assim, tanto materializa quanto amplia suas possibilidades no mundo. Em outras palavras, se é bem verdade que a escrita deste texto é uma possibilidade minha, ela me é externa e, num certo sentido, não se confunde comigo. A essência do ser humano, para Fichte, é esse agir. O sujeito nega-se nos objetos, na objetividade, que produz e, no entanto, esse ato é sua quintessência. Hegel fala sobre essa exteriorização, esse autoproduzir-se do ser humano, nos escritos de Jena – no Sistema da Vida Ética, por exemplo. Ali já fica claro que esse processo é fundamentalmente técnico, ele requer trabalho, instrumentos, e que, enquanto tal, confere ao ser humano uma condição intermediada. O ser humano humaniza-se quando coloca entre desejo e fruição, entre a vontade de comer uma fruta e o ato de comê-la, um intermediário: o trabalho e os meios técnicos que o tornam possível. E isso implica que esse 'autoproduzir-se' é, ao mesmo tempo, exteriorização e estranhamento (alienação). A alienação humana é, aliás, um motivo religioso e Hegel tinha plena consciência disso. O homem que, com o “suor de seu rosto ganha o seu pão”, é aquele mesmo que conheceu a Queda, o estranhamento de sua própria essência como consequência do pecado original.

Marx compara constantemente o homem e o animal em vários de seus textos de juventude, inclusive, e muito particularmente, nos Manuscritos – essa oposição é, aliás, muito importante para entendermos uma dimensão importante da dialética hegeliana, como argumenta Agamben em O Aberto, e seu sentido religioso. Em sua 'inocência', o animal nada interpõe entre si próprio e sua necessidade, ele é um com ela e, por esse motivo, vive de certo modo na plenitude de sua essência. Mas precisamente por esse motivo jamais poderá se tornar um ser universal – cujo destino seria o controle do mundo físico. Com o ser humano, por outro lado, algo distinto ocorre: ele é essencialmente um autoproduzir-se. E, a partir daqui, Marx se diferencia de Hegel. Se a exteriorização de si é fundamental à própria condição humana, a alienação (estranhamento) que dali decorre não é necessária, mas uma 'contingência' histórica. O sentimento de não se reconhecer naquilo que se faz diz respeito, deste modo, a condições sociais específicas do processo de exteriorização humana, nomeadamente, à existência de um regime de propriadade privada e, de modo muito mais radical, à existência do modo burguês de exploração do trabalho. Na página 81 de minha tradução dos Manuscritos, leio a esse respeito:

quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio”.


Nos Grundrisse, ao tentar explicar o processo implícito na compra e venda da mercadoria trabalho - curioso processo no qual o comprador não compra um valor de uso, mas um valor que será transformado em capital -, Marx recorre mais uma vez ao conceito de estranhamento para perceber este processo da perspectiva do trabalhador. Na edição inglesa desta obra, coleção Peguin Classics, lemos a seguinte passagem, que roubo do excelente Prefácio de Martin Nicolau, e traduzo livremente:

É claro portanto que o trabalhador não pode ficar rico nessa troca, posto que, em troca por sua capacidade de trabalho, concebida como uma magnitude fixa, disponível, ele submete seu poder criativo, como Esaú vendeu sua liberdade por uma sopa de batatas. Pelo contrário, ele necessariamente empobrece a si mesmo, como veremos adiante, porque o poder criativo de seu trabalho se estabelece como poder do capital, como um poder alheio que o confronta... Assim, todo o progresso da civilização, ou, em outras palavras, cada aumento nos poderes da produção social, … nos poderes produtivos do próprio trabalho – tais como resultam da ciência, invenções, divisão e combinação do trabalho, meios de comunicação aperfeiçoados, criação do mundo do mercado, maquinas etc. - enriquece não o trabalhador, mas, antes, o capital; aumenta apenas o poder criativo do capital. Posto que o capital é a antítese do trabalhador, isso apenas aumenta o poder objetivo que paira sobre o trabalho” (Marx, op.cit., pp. 307-8)
O retorno da exteriorização, da produção humana como algo estranho, alheio, como algo inquietante é um tema recorrente do romantismo alemão, assim como o é a busca de alguma estratégia de superação desta fragmentação no seio da subjetividade moderna. A imaginação artística em Friedrich Schlegel e Novalis foi concebida, por exemplo, como um remédio para esse mal – Hegel pensará no progresso da Razão e Marx na vitória do proletariado. No âmbito do romantismo como um todo, diga-se, há de se destacar uma vertente literária fantástica que depõe de forma interessantíssima sobre a alienação, sobre o estranhamento - Marx também fala de cadeiras que, a partir de um modo fetichista de ver o mundo, saem trotando com suas quatro pernas. Para a imaginação romântica, frequentemente, é o próprio corpo humano que, desmembrado pela lógica científica, pela dinâmica da vida urbana, retorna como algo alheio. Ocorre-me, por exemplo, um delicioso conto de Gogól: O Nariz. Nesta pequena obra-prima, o assessor de colegiatura Kovalióv, vê com desespero suas pretensões de ascensão social objetivarem-se fisicamente quando perde seu nariz, e, que achado, teima em ganhar vida autônoma, em seguir carreira solo. Aqui não se trata apenas de reconhecer como seu algo ao mesmo tempo íntimo e público, um nariz, mas de convencer essa parte rebelada de seus compromissos com a coerência do todo, do cidadão Kovalióv. O embaraço com o qual Kovalióv se dirige ao seu próprio nariz, que ele encontra em uma igreja de Moscou é antológico.
Como explicar?!”, pensou Kovalióv, e, recobrando o ânimo, recomeçou. “Bem, é claro que eu...aliás, eu sou major. O senhor há de convir que é incoveniente que ande sem nariz. Qualquer vendedora de laranjas descascadas na cponte Voskresênski pode ficar ali sentada sem nariz, mas um rosto que aspira ao cargo de governador, sem dúvida alguma... imagine o senhor mesmo... não sei, excelentíssimo senhor... (então o major Kovalióv encolheu os ombros)... me desculpe... mas se considerar isto de acordo com as regras do dever e da honra... o senhor mesmo poderá compreender...”

A semana passada, meu computador, que julgo ser algo como o nariz de Kovalióv, também se rebelou ao ser invadido por um vírus. Senti-me igualmente desamparado.

O que dizer da “mão encantada”, de que nos fala Nerval, cuja vontade própria termina por levar ao cadafalso Eustache Bouteroue?! Aqui, temos a curiosa situação em que, não apenas uma parte do corpo ganha autonomia em relação ao indivíduo: ela sobrevive à execução do desafortunado Bouteroue. Poderíamos ainda mencionar as inúmeras sombras que se desgarram de seus corpos na literatura do século XIX, entre as quais Italo Calvino seleciona em sua coletânea de literatura fantástica do século XIX um conto de Hans Christian Andersen de 1847? No começo do século XX, um pequeno e curioso filme foi produzido a partir desse mesmo tipo de questão, A Mão Ladra, que lincamos abaixo.


Se em Marx há um depoimento acerca do sentido social do estranhamento, da inquietação (Unheimlichkeit) que marcam a vida moderna, Freud, no começo do século XX, ao se debruçar sobre um conhecido conto de Hoffmann, O Homem de Areia, apresenta uma dimensão mais psicológica e mesmo trágica desse fenômeno. Acho que as duas leituras se complementam, embora possa ver tensões claras entre as duas. Acerca de Freud e seu célebre texto é preciso esclarecer: a questão “estética” com a qual Freud se debruça em O Inquietante (Das Unheimliche), de 1918, coloca-se nessa longa história de reflexão sobre a alienação, sobre o estranhamento, na qual figuram os românticos, Hegel, Marx. É a vida moderna que apresenta aquilo que nos diz respeito mais intimamente como algo estranho e vice-versa – Simmel, por exemplo, falará da estranha intimidade que a compartilha dos serviços de transporte urbano implica. Concentrando-se na sensação de inquietude, em seu sentido estético (tenho em mente aqui a origem etimológica dessa palavra, ou seja, aesthesis: sentir), Freud vai contemplar aquilo que parece escapar às articulações racionais sobre a alienação, às articulações discursivas. Sua intenção é iluminista: recuperar parte desse conteúdo que recusa a simbolização para um terreno simbólico.

Para Freud, o sentimento de inquietude diz respeito a uma série de ambiguidades: entre o que é próximo e o que é mais distante, entre o doméstico, o particular e público, por exemplo. A questão sempre é que aquilo que se nos apresenta como distante, toque-nos tão intimamente, diga-nos respeito de modo tão essencial. Mediante uma exegese de O Homem de Areia, de Ernst Theodor Amadeus Hoffmann, ícone do romantismo alemão, Freud pretende ter acesso a essas e ambiguidades e, através delas, compreender melhor o que há de inquitante em sensações de “déjà vu”, extraordinárias coincidências núméricas, seres inanimados que nos parecem mecânicos e vice-versa, situações familiares que nos parecem estranhas etc. No conto de Hoffmann esses elementos aparecem em profusão: uma boneca mecânica por quem Natanael, personagem central da narrativa, apaixona-se, julgando-a humana, o retorno de um personagem demoníaco sob diversos disfarses, dando a sensação de que o real de alguma forma estagnou etc. A estratégia hermenêutica de Freud não surpreende os seus leitores: desencavar as ambivalências dos sentimentos do personagem central para com sua amada e seu pai e verificar, na impossibilidade de ele aceitar tais ambivalências, colocando seus sentimentos em perspectiva, o motivo para o surto psicótico ao qual ele sucumbe.

Num sentido bem restrito, poderíamos dizer que a leitura de Freud de um processo de estranhamento retorna ao sentido que Hegel confere a esse processo: ontologicamente fundamental, impossível de ser transcendido pelo ser humano como tal. O estranho é decorrente de um retorno dos indivíduos a uma fase de sua estruturação psíquica em que projetavam o mundo como extensões de seus desejos. Se o amadurecimento psíquico nos faz sair do narcisismo primário de nossa existência, ele continua pulsando dentro de nós, aguardando um momento propício para eclodir. Natanael não precisaria ter o destino que teve se alguns eventos propícios o tivessem poupado, ou resgatado. No entanto, sob as condições da vida moderna, os indivíduos estão sempre confrontados com uma realidade cujo sentido lhes escapa precisamente quando procuram dominá-la de forma categórica. Neste sentido, a dimensão psicológica que Freud elabora acerca do estranhamento humano não contradiz o pensamento marxiano, antes abre possibilidades analíticas para as quais Marx não poderia estar atento.

Mas pode ser que tudo isso que vi como forma de elaboração de uma questão moderna central, seja apenas projeção de meu narcisismo primário. É possível que não haja qualquer relação entre Marx, Freud, Hegel, Hoffmann, Gogól e minha professora. Neste caso, todavia, voltaria a sensação de estranheza, de inquietação. Seria possível superá-la estudando um pouco mais?

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Um meditabundo risonho sobre cousas metafísicas: nota sobre humorismo, pessimismo e a fortuna crítica de Machado de Assis



Por Gabriel Peters  (IESP-UERJ)


“Demócrito e Heráclito eram dois filósofos. O primeiro, achando que a condição humana é vã e ridícula, apresentava-se sempre em público a rir e motejar. Heráclito, tomado de piedade por essa mesma humanidade, andava perfeitamente triste e de lágrimas nos olhos” (Montaigne, 1987: 333). 


Eis o contraponto entre leveza cômica e seriedade melancólica diante de um mesmo diagnóstico quanto à absurda condição de cada ser humano, jogado em um universo indiferente ao seu destino e que terminará por exterminá-lo. Para aplicar à relação do humano com sua situação cósmica o par de categorias sociológicas celebrizado por Norbert Elias, podemos dizer que a diferença entre as sensibilidades cômica e trágica está fundada sobre posturas existenciais de “alienação” e “envolvimento”. Assim como pode se descobrir “lançado” (Heidegger), sem qualquer chance de escolha prévia, em um mundo que irá matá-lo, sem que seu pavor a respeito disso possa fazer qualquer coisa para evitar esse destino último, o ser humano tem a singular capacidade de se desengajar, ao menos parcialmente, do palco dessa tragédia e do papel que ele próprio desempenha nela para poder rir de sua desimportância. Sob esse ângulo, comédia e tragédia aparecem não tanto como categorias distintas de eventos, mas como pontos de vista ou atitudes espirituais distintas em face de uma mesma realidade. Como viu Henri Bergson, um sujeito que desse “à simpatia a mais irrestrita expressão” sentiria “uma coloração grave” incidir “sobre todas as coisas”, ao passo que a substituição de uma atitude empática pela postura de um espectador indiferente ao destino dos personagens observados, como que submetido a “uma anestesia momentânea do coração”, fará com que ele veja, de repente, “muitos dramas transformarem-se em comédia” (Bergson, 2007: 4).

A forma mais comum da contraposição entre “envolvimento trágico” e “alienação cômica” não é autodirigida, mas ditada pela simples diferença de condições entre atores interessados apenas no seu próprio umbigo. Como disse Mel Brooks: “Tragédia é quando EU corto meu dedo. Comédia é quando VOCÊ cai num esgoto a céu aberto e morre”. Nessas circunstâncias, a insensibilidade do coração anestesiado pode até mesmo descambar para o regozijo aberto diante das desventuras e aflições de outros, designado pelo que os alemães chamam de Schadenfreude.

O riso sádico que expressa prazer diante da dor alheia não esgota, no entanto, o conjunto das instrumentalizações possíveis do sofrimento pela comicidade. Com efeito, o foco do presente texto recai sobre perspectivas que mobilizam um diagnóstico existencial da absurdidade da situação humana no universo em favor de um humor autodirigido e dotado de um papel emocionalmente anestésico. O último advérbio indica que a auto-anestesia aqui referida não consistiria em um sacrifício da lucidez intelectual, mas, ao contrário, em uma intensificação dessa última pela via da “alienação” existencial cômica, com vistas à neutralização dos afetos de horror e tristeza que adviriam de uma visão completamente “envolvida” naquela condição absurda.

O procedimento de tomar a si próprio como objeto de comicidade, de assumir que o homo ridens é, ele próprio, homo risibilis, poderia assim adquirir a dignidade de um “exercício espiritual” análogo ao que os estoicos (admitidamente, uma turma bastante séria) chamavam a “visão do alto”. Tal exercício convida o indivíduo perturbado por aflições, tais como arrependimentos quanto ao passado ou ansiedade quanto ao futuro, a sair imaginativamente de si próprio, lançando-se ao alto - bem no meio da via láctea, segundo o sonho de Cipião narrado por Cícero em Da República - para, de lá, observar a pequenez dos assuntos humanos. Desde aquele ponto de vista, as intrigas, guerras, rituais, disputas materiais, jogos de prestígio e todas as demais atividades nas quais os seres humanos despendem tanto tempo e energia adquirem, subitamente, um sabor ridículo. Para alguém cujas aflições derivam da atribuição de uma magna importância a tais atividades, o exercício é emocionalmente libertador, revelando o que até então pareciam dramas da maior significação como cosmicamente insignificantes e, portanto, indignos de uma dor de cabeça.

Freud explica

Vários dos maiores pensadores da condição humana mostraram-se aptos a conceber e a vivenciar a tragicidade e a comicidade do bípede implume simultaneamente, explorando a delicada tensão entre as duas atitudes sem absolutizar qualquer delas em detrimento da outra (quanto à caracterização “bípede implume”, aliás, o cínico Diógenes já havia sublinhado há tempos que ela vale para o ser humano assim como para um frango depenado). Freud, por exemplo, reservava a noção de humor, em contraponto aos seus conceitos particulares de “chiste” e do “cômico”, para designar precisamente esta espécie de ironia alquímico-afetiva em que circunstâncias que normalmente evocariam afetos negativos como temor, tristeza ou ressentimento são vistas sob uma perspectiva que as torna risíveis:
Alguns minutos antes da execução do prisioneiro condenado, o carrasco oferece a ele um último cigarro, ao que o prisioneiro responde:

- Não, obrigado, estou tentando parar.
O pai da psicanálise sublinhou que o tipo de libertação adquirida através do humor possuía um halo de “grandeza e elevação” ausente nas satisfações agressivas ou eróticas presentes nos “chistes” e que derivaria da...
...afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego. O ego se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de ocasiões para obter prazer (Freud, 1974: 190).

Como um recurso psíquico que os indivíduos mobilizam para lidar com condições existenciais de tensão e desconforto sem serem assoberbados por esses sentimentos, o humor poderia ser elencado entre os mecanismos de defesa da psique, “a extensa série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a neurose e culmina com a loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase” (op.cit: 191). Freud atribui ao humor, entretanto, a dignidade especial de neutralizar afetos angustiantes e perturbadores, bem como afirmar o princípio do prazer contra as frustrações exigidas pela realidade, de uma forma que não ultrapassa “os limites da saúde mental” (idem).

O médico vienense se debruçou sobre uma modalidade de comicidade praticada por vários de seus predecessores, de Demócrito a Machado de Assis (falo dele em um minuto). No entanto, Freud estava bem aparelhado para trazer algo de novo à análise desse fenômeno, a saber, a analogia entre a postura do humorista que ri da angústia insensata e a posição de uma figura paterna que “sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes” a uma criança. Tal como os pais consolam risonhamente a criança em seu berreiro desesperado diante de aflições que consideram minúsculas (e.g. um pirulito não comprado), o humor é lido por Freud como um fenômeno em que o superego, afinal a instância psíquica que interiorizou o papel das figuras paternas, intervém para confortar um ego ansioso e aflito afirmando que o mundo que este julga ser tão perigoso “não passa de um jogo de crianças” (Freud, 1974: 194). Para a turma interessada em psicanalices (lacanagens etc.), o textículo de Freud sobre o humor, de 1928 (escrito, portanto, mais de vinte anos após seu trabalho sobre Os chistes e sua relação com o inconsciente [1905]), possui um interesse mais geral por nuançar a caracterização do superego, o qual aparecia, na maior parte dos seus escritos, como um senhor duro e punitivo a vigiar implacavelmente os movimentos do ego.

Galhofa e melancolia

Em poucos documentos de cultura a junção tensa entre humorismo e pessimismo foi tão persistentemente patenteada quanto na fase pós-romântica do nosso Machado de Assis, inaugurada com a famosíssima mistura entre “a pena da galhofa” e “a tinta da melancolia” nas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1971 [1880]). Em magníficas páginas que dedicou à “prosa impressionista” de Machado de Assis na sua Breve História da Literatura Brasileira (1977: 150), José Guilherme Merquior mostrou como a intensidade desse ambíguo entrelaçamento entre a ironia humorística e o pessimismo metafísico foi obscurecida nas interpretações do opus machadianum avançadas tanto por seus coetâneos (e.g. José Veríssimo) quanto pela geração posterior de leitores banhados no entusiasmo modernista. Os primeiros teriam respeitosamente trivializado a aspereza e o poder corrosivo do pessimismo cosmológico de Machado ao tomá-lo como uma espécie de ornamento intelectual de superfície, colocado a serviço do desiderato mais importante que era a elegância escrupulosa da sua escrita. A correção dessa perspectiva ficaria a cargo de críticos literários da geração seguinte, embebidos do “ânimo eufórico, futurista, do modernismo de combate” (Merquior, 1977: 186) que contrastava desconfortavelmente com a ironia amarga legada pelo consagrado prosador – Mário de Andrade não disfarçava sua antipatia, e Manuel Bandeira chamou-o de “monstro”. Foi precisamente essa estranheza ou mesmo choque entre os ânimos literários de um e dos outros que proveio a intérpretes como Augusto Meyer (1958), por exemplo, a sensibilidade necessária para intuir a autenticidade, a profundidade e o alcance do sentimento trágico da vida na obra de Machado.

Se tal redescoberta representou, por um lado, um ganho interpretativo frente às leituras anteriores que ignoravam o fato de que suas “rabugens de pessimismo” eram algo mais do que um exercício desapegado de estilo, esses críticos, por seu turno, teriam forçado demais a mão ao fazer do humor machadiano uma fachada epidérmica que mal escondia, na expressão de Afrânio Coutinho, um “ódio radical da vida e dos homens” (Coutinho, 1959: 95), ódio cujas raízes poderiam ser supostamente explicadas pelo recurso aos traços mais vultosos da sua biografia, como suas “moléstias” físicas e psicológicas (e.g. epilepsia) ou um alegado “ressentimento” remontável às origens sociais humildes do neto de escravos.

Ora, nem tanto à comédia, nem tanto à tragédia. Ou, melhor ainda, um generoso bocado a ambas. Segundo Merquior (1977: 186), além de reivindicar a primazia de especulações psicobiográficas sobre o terreno empírico mais seguro da obra literária, aquele tipo de leitura dissolvia o balanço dialético entre humorismo e pessimismo na prosa machadiana ao menosprezar como seu uso livre da ironia cômica modulava a intuição existencial da tragédia, pintando-a sob o aspecto do grotesco. Em passagem com sabor tipicamente hegeliano, o crítico literário brasileiro assevera que a galhofa fantasista[i] de Machado não “nega”, mas conserva e “supera” o que o próprio escritor havia chamado, no prólogo à quarta edição do seu livro, de “um sentimento amargo e áspero” (Assis, 1971: 512) – orientação espiritual em que ele admitidamente destoava dos modelos inspiradores de sua prosa viajante e digressiva (Lawrence Sterne, Xavier de Maistre, Almeida Garret). Se o humorismo machadiano possui um efeito de contrabalanço em relação à sua visão trágica da vida, a caracterização desse equilíbrio em termos de uma “transcendência” (Aufhebung) hegeliana deixa entrever, ao mesmo tempo, que o “momento” pessimista de fato precede o recurso ao humor, o qual pode muito bem representar, aqui, um estratagema para a diluição ou neutralização do pathos grave da tragédia. Embora seja temerário projetar essas coisas (digo, “cousas”) na dinâmica psíquica do próprio Machado, postulando que ele defendeu-se do próprio pessimismo fazendo uso escudado da ironia, o fato é que esse próprio percurso está dramatizado na que é, talvez, a passagem mais filosófica de toda a sua obra: o delírio de Brás Cubas.

Um hipopótamo leva Brás à “origem dos séculos”, onde o narrador encontra o imenso vulto feminino da Natureza ou Pandora, cuja gigantesca face mostrava-se sepulcralmente indiferente. Lembrando ao pobre mortal que “a voluptuosidade do nada” o esperava inapelavelmente, e permanecendo impassível diante de sua súplica por mais alguns anos, ela o leva subsequentemente para o alto de uma montanha onde ele pode vislumbrar a trajetória do mundo e do humano:
“Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. (...) Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que se passava diante de mim, - flagelos e delícias, - desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Ai vinha a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, - nada menos que a quimera da felicidade, - ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão” (1971: 522-523).

Finalmente:

...ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, - de um riso descompassado e idiota.

- Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, - talvez monótona – mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me (idem).

Primeiro, o berro angustiado; depois, um estalo risonho que anuncia uma mudança de gestalt, imbuída do sentimento de que, vista do alto qua espetáculo, toda aquela calamidade parece cômica. A passagem de protagonista envolvido a espectador indiferente do destino humano representa alegoricamente a transmutação filosófica do trágico em absurdo, uma espécie de forma-chave que engloba uma série de variações. Poder-se-ia mencionar, por exemplo, a passagem do metafísico ao prosaico, um tipo de humor em que Woody Allen se tornou especialista:

E se tudo for uma ilusão e nada existir? Nesse caso, não há dúvida de que paguei demais por aquele carpete novo.

Não apenas Deus não existe, como tente encontrar um encanador num fim de semana.

Fui reprovado no exame de Metafísica. O professor me acusou de estar olhando para a alma do rapaz sentado ao meu lado.

Espinafrando Afrânio

Voltemos a Machado – ou melhor, aos seus intérpretes, sem temores de cair no deplorável gênero de crítica literária da crítica literária. O título da presente seção tem uma razão de ser (além, é claro, da tentativa de impressionar Arnaldo Antunes): a transmutação machadiana do trágico em grotesco foi bem notada por Sérgio Buarque (1944) em um pequeno ensaio que fustigava a interpretação hiperpascaliana que Afrânio Coutinho (1959) oferecera da filosofia corporificada na obra do Bruxo do Cosme Velho. Malgrado reconhecesse en passant que a influência do agoniado pensador francês sobre Machado, de resto assinalada pelo próprio em uma famosa carta a Joaquim Nabuco, era certamente temperada por outras paixões de escriba, como o Eclesiastes, Montaigne e Schopenhauer, Coutinho forçou tanto a mão nos paralelismos com Pascal que mesmo as demais referências machadianas por ele citadas terminaram exageradamente amoldadas a essa influência-mestra.

Com efeito, um leitor que desconhecesse a obra de Machado de Assis, ao ler as considerações de Coutinho acerca de sua “formação filosófica” e “atitude espiritual” (1959: 59-96), dificilmente sairia dali com a impressão de que os textos do escritor carioca, sem deixarem de ser de densa problematização filosófica (psicológica, sociológica etc.), podem ser extraordinariamente divertidos – e sabemos nós o que Pascal pensava da diversão. Sobre o nexo Pascal-Machado de Assis, afirma Sérgio Buarque de Holanda:
Um estudo dos dois autores pode levar a descobrir sob semelhanças superficiais e epidérmicas a diferença profunda, vital, que na realidade os separa. Para por em relevo essa diferença seria o bastante, talvez, assinalar que Machado não era uma natureza religiosa (1944: 48).
Fazendo justiça a Afrânio Coutinho, devemos lembrar que o grande crítico literário escreveu um parágrafo em que reconheceu, de passagem, a radicalidade da distinção e colocou rapidamente em questionamento sua própria tese fundamental quanto à influência maciça de Pascal sobre Machado:
É o caso de se perguntar mesmo, se houve essa influência tão grande de Pascal sobre ele, por que teria permanecido insensível ao estupendo elan religioso que se desprende das Pensées...? (...) De feito, a inspiração cristã, a intenção apologética, o sentimento religioso das Pensées, não o tocaram, o que é realmente espantoso (1959: 93).
O espanto de Coutinho deixa transparecer indiretamente, além (talvez) das suas próprias inclinações espirituais, a dimensão excessiva a que ele levou a aproximação entre os dois autores. A quase-absolutização da influência de Pascal sobre a Weltanschauung machadiana tem seu paralelo na tese insistentemente martelada de que o escritor carioca teria um profundo “ódio à vida”, expressão que sacrifica precisamente o modo como o seu recurso ao humor irônico, de caráter radical e não simplesmente epidérmico, transformava intimamente as feições de seu pessimismo. Como diz o pai de Chico em seu comentário ao livro de Coutinho:
Em cinco páginas (162 a 167) aparecem seis vezes repetidas as palavras sinistras: ‘ódio à vida’. Ainda aqui há pelo menos uma simplificação excessiva e traidora, que o exame da obra de Machado não autoriza a endossar. No simples ódio há uma ausência de complexidade e de nuances, uma limpidez, que dificilmente poderia explicar qualquer reação de Machado diante da vida (1945: 49).
Se a atitude espiritual que salta das páginas do Machado pós-romântico não chega a estar embebida da mesma leveza e serenidade que dão sabor aos Ensaios de Montaigne, de quem Machado (como o próprio Pascal) era frequentador assíduo, Miguel Reale tem razão em dizer que ele “compartilhou do sorriso compreensivo e profundamente humano com que o analista dos Essais envolveu os homens e as coisas” (1982: 10) – à maneira das figuras paternas do superego que recorrem ao humor para mitigar as angústias infantis do ego. A leitora interessada em perseguir mais a fundo a investigação sobre as fontes filosóficas da literatura de Machado de Assis fará bem em ler o volume A filosofia na obra de Machado de Assis (1982), em que Reale oferece, além de uma primorosa introdução, uma antologia de passagens machadianas para os meditabundos sobre cousas metafísicas.

Conclusão

Esta breve visita à obra de Machado, guiada pelas mãos bem informadas de finos intérpretes literários brasileiros (é triste pensar que todos eles são menos lidos do que Harold Bloom), não teve a pretensão de oferecer qualquer coisa nova em termos da exegese de temas filosóficos no seu trabalho, mas simplesmente aproveitá-la como uma fonte riquíssima de ensinamentos sobre as atitudes cômica, trágica e tragicômica diante do absurdo da vida. Sua aproximação com o Demócrito descrito na epígrafe de Montaigne[ii] talvez sirva ao menos para colocar na pauta desse texto o valor do humor como terapia da alma para aqueles impregnados de perplexidade face à sua (nossa) condição. Se “filosofar é aprender a morrer”, como disse Platão[iii] no Fédon pela boca de Sócrates, pode-se concluir, deixando implícita a segunda premissa do argumento, que filosofar também envolve aprender a rir, sobretudo de si próprio.

Notas

[i] Com efeito, o conceito que Merquior julga mais adequado para classificar o gênero literário a que pertence Memórias Póstumas de Brás Cubas é o do “cômico-fantástico”, estilo de literatura previamente esposado por uma galeria ilustre de autores, situados em um arco que vai desde o satirista Luciano de Samosata no século II até Leopardi no século de novecentos, cuja influência decisiva sobre Machado foi recuperada por Otto Maria Carpeaux (1999:477-480). Além da combinação entre seriedade e gracejo, manifesta sobretudo no trato humorístico das questões mais graves da existência humana (o sentido da vida, a relação com a morte etc.), a literatura cômico-fantástica também apresenta pelo menos outros dois caracteres mais distintivos: a) a suspensão de qualquer neutralidade ou distância moral do narrador em relação aos personagens por ele retratados, suspensão que, em Machado, toma a forma sobretudo do desvelo das motivações mesquinhas que invariavelmente subjazem aos atos mais nobres ou, pelo menos, inocentes dos seres humanos; b) a oscilação livre entre o veraz e o onírico ou fantasmático, com a presença desse último se casando a uma predileção por experiências psicológicas aberrantes, como o famoso delírio de Brás Cubas (Merquior, 1977: 167).

[ii] A exiguidade do espaço impede qualquer esforço de fornecimento das mediações e contextualizações necessárias em termos de história das ideias. Embora o próprio Machado jamais tenha mencionado o filósofo risonho de Abdera, o escritor brasileiro provavelmente banhou-se de motivos do materialismo democrítico através de sua profunda intimidade literária com o enciclopedista francês Diderot, de quem Machado gostava que se enroscava (Gianetti, 2010: 93).

[iii] Platão, por um acaso, era um tantinho crítico em relação à filosofia de Demócrito, a julgar pelo relato histórico de que ele teria expressado o intuito de mandar queimar todas as obras do atomista que pudesse reunir, intenção da qual acabou sendo dissuadido por dois interlocutores que o convenceram da inutilidade do gesto incendiário (Brunschwig, 2001: 259; ver também o já citado Gianetti).


Referências

Bergson, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
Brunschwig, Jacques. Demócrito. In: Huisman, Denis (Org.). Dicionário de filósofos. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
Carpeaux, Otto Maria. Ensaios reunidos. Vol.1. Rio de Janeiro, Topbooks/UniverCidade, 1999.
Coutinho, Afrânio. A filosofia de Machado de Assis e outros ensaios. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1959.
Gianetti, Eduardo. A ilusão da alma: biografia de uma ideia fixa. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
Holanda, Sérgio Buarque de. Cobra de vidro. São Paulo, Martins, 1944.
Merquior, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
Meyer, Augusto. Machado de Assis: 1935-1958. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1958.
Montaigne, Michel Eyquem de. Ensaios. Vol.1. Brasília, UnB, 1987.
Reale, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis & Antologia filosófica de Machado de Assis. 1982.



segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Nós, nossas medalhas e nosso futuro: livre associação em torno de Londres, CAPES e frescobol.




Por Eduardo Leal Cunha
Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Professor do
Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS,
autor de Indivíduo singular plural: a identidade em questão, 7Letras, 2009


Freud nos ensinou que ao ouvir uma interpretação o paciente não se encontra diante da solução imediata dos seus problemas e sim frente à necessidade, ou oportunidade, de trabalhar. É preciso associar livremente, recordar o passado, vislumbrar futuros, reconhecer desejos, ligar os pontos, produzir novos enunciados, colocar o psiquismo em movimento, encontrar novos modos de pensar e outras formas de ser. É preciso, enfim, elaborar (FREUD, [1914] 2010).

Foi mais ou menos isso o que me levou a fazer certa interpretação da nossa presença nas Olimpíadas de Londres, a qual me parece corrente e que, para mim, se materializou de modo mais claro no editorial da Folha de São Paulo deste último domingo, cujo título sugestivo é Brasil Olímpico, e que pretendeu, depois de apresentar um rápido balanço das nossas conquistas, listar uma série de providências recomendáveis para que o Brasil possa “galgar posições no ranking dos jogos”.

Nesse momento, vocês evidentemente têm o direito de se perguntar o que diabos um psicanalista e professor de psicologia tem a dizer sobre esporte e medalhas; e eu, por outro lado, poderia refutar com a necessária contribuição das ciências para o progresso do esporte e da nação.

Acontece que, na verdade, o caminho percorrido nas minhas curiosas associações foi outro: as inúmeras recomendações que temos ouvido recentemente em nossa gloriosa imprensa sobre como o Brasil pode galgar posições no ranking das universidades ou da educação em geral ou do número de patentes ou de artigos publicados em inglês ou de restaurantes classificados entre os melhores do mundo. E vamos parar por aqui antes que as tais associações livres me levem longe demais.

Estamos obcecados por rankings, classificações, números e é através deles que o maior jornal do país, organiza seu (ou nosso) pensamento em torno do que aconteceu em Londres. O que curiosamente me fez pensar em algumas coisas razoavelmente difíceis de medir, senão mesmo de objetivar.

Comecemos como os principais argumentos do texto da Folha: o primeiro deles é que avançamos no quadro de medalhas e batemos nosso próprio recorde, estabelecido em Atlanta há 16 anos, porém o fazemos de modo muito lento; o segundo, e que se torna o eixo central de argumentação é que o problema não está no dinheiro: investimos muito nessa última olimpíada e os resultados, portanto, foram insatisfatórios, ou seja, em termos de custo-benefício, Londres não foi um bom negócio.

Antes mesmo de nos aprofundarmos no diagnóstico para tal fracasso do empreendedorismo olímpico nacional e que, aliás, não trará nada de novo além da velhíssima tese da ineficiência do governo e dos seus agentes (tese certamente verossímil, embora insuficiente para explicar todos os infortúnios verde-amarelos), parece impossível evitar uma pergunta preliminar e um tanto incômoda, daquelas que a intervenção do psicanalista deve nos obrigar a fazer: que tipo de benefício esperamos do investimento em esporte?

Porque me parece esquisito acreditar que o governo deve investir dois bilhões de reais em quatro anos (ao que parece, foi esse o investimento do Brasil nas últimas olimpíadas) prioritariamente para ganhar mais medalhas. Imagino que tal investimento deva produzir, isto sim, uma ampliação do número de jovens envolvidos com esportes, o aumento do número de opões educativas e de lazer para as camadas mais pobres da população, a melhor integração das pessoas em suas comunidades com a ampliação de redes comunitárias e sociais formadas em torno de práticas esportivas, o desenvolvimento de habilidades sociais e competências atléticas entre um percentual maior da população, a difusão de valores e ideais vinculados culturalmente ao esporte, como a superação de limites e obstáculos ou a cooperação mútua. Ou seja, muito simplesmente a consolidação das diversas práticas esportivas como opção de formação, inserção social e lazer para uma parcela significativa da população, em função do que, com o tempo, certamente teremos brasileiros campeões e, salvo inevitáveis acidentes de percurso, mais medalhas.

Dito de outro modo, o pódio olímpico deveria ser consequência e não o único ou principal objetivo da política oficial em relação ao esporte. Além disso, o número de medalhas pode ser até um indicador do valor do dinheiro investido, mas não é o único e talvez não seja nem mesmo o mais importante.

Infelizmente, no entanto, parece que a única coisa que importa é o numero de medalhas. O que é muito parecido com o que acontece em certos setores da educação no Brasil, em especial na pós-graduação: definimos metas, estabelecemos a mensuração como critério fundamental e, de olhos nos números, perdemos de vista o que realmente interessa. Um exemplo: nós das áreas de ciências humanas e sociais estamos nos últimos anos sendo delicadamente constrangidos a publicar em inglês. Em nossos currículos individuais e na avaliação dos nossos programas, publicar em inglês é fundamental, pois seremos mais lidos e nossos artigos atingirão um maior fator de impacto, ou seja, seremos mais citados. Será mesmo? Será que em todas as áreas do conhecimento o essencial da nossa contribuição precisa ou deve ser feita em inglês? Não haverá problemas e setores específicos em que é preciso conversar prioritariamente com nossos colegas de outras regiões do país ou da América Latina? Será mais bem investido o dinheiro gasto em uma tradução para o inglês ou para o espanhol? Ou ainda, melhor investir agora na publicação de revistas brasileiras em língua inglesa ou na disponibilização pela internet, com acesso aberto, das milhares de dissertações e teses produzidas anualmente no país e que morrem de inanição nas prateleiras dos programas de pós? Perguntar, ao menos, não custa nada.

Este, contudo, não me parece sequer o problema fundamental. A meu ver, ele aparece, por exemplo, na própria nomenclatura do setor da Capes que define a nota dos nossos programas e a partir daí hierarquiza nossos pesquisadores e estudantes: diretoria de avaliação. Por que não diretoria de qualidade ou de qualificação? Colocamos a avaliação e a classificação em primeiro lugar e a partir de dados quantificáveis, como o número de artigos publicados em periódicos, definimos posições, construímos nossos rankings e distribuímos medalhas, muitas vezes na forma de verbas para pesquisa e bolsas de estudo. Mas para onde vão especificidades regionais ou fatores como inserção social e contribuição para a formação docente. Ao que parece, o importante é medir e obter números e, assim, em nome da objetividade priorizamos o que pode ser medido e deixamos de lado todo o resto. Ou seja, o que importa é apenas a classificação, nosso lugar na fila.

O mesmo, ouso pensar, acontece no caso das medalhas que ganhamos, ou deixamos de ganhar. O que fica claro se continuarmos seguindo os argumentos dos editorialistas da folha, especialmente quando nos colocam diante de outros países e dos seus resultados.

Comparando nosso desempenho com “países com população menor que a do Brasil”, aprendemos então que erramos ao privilegiar esportes coletivos ao invés dos individuais, pois “dos 258 atletas nacionais, 38% disputaram apenas sete medalhas – no futebol, vôlei, basquete e handebol”. Devemos então priorizar o individualismo e deixar em segundo plano esses esportes improdutivos, nos quais é preciso um consistente trabalho conjunto de cooperação e assistência mútua para conquistar uma vitória. Certamente, ao menos segundo a lógica que guia o argumento da Folha, nosso país só teria a ganhar com isso.

Da mesma forma – e eu aqui deixo de lado o editorial de domingo da folha e passeio, no mesmo jornal, pelas matérias pós-olímpicas da segunda-feira –, devemos nos mirar nos exemplos vitoriosos dos verdadeiros campeões olímpicos, como China e Estados Unidos.

De novo, sou atormentado por algumas perguntas: alguém ainda acredita que o sucesso chinês e sua invejável disciplina olímpica não têm absolutamente nada a ver como o regime totalitário em vigor no gigante asiático ou muito simplesmente com a falta de liberdade e oportunidades que marca a grande maioria da população, e que o prêmio Nobel Amartya Sen (2000) descreveria de modo simples e provocativo como baixo desenvolvimento econômico, a despeito dos impressionantes números da economia chinesa?

Ou queremos para nós exatamente o mesmo ambiente cultural que produz os talentos atléticos dos nossos irmãos americanos do norte, no qual é quase inconcebível que os ricos paguem mais impostos e que a assistência em saúde deva se estender a toda a população, inclusive aqueles que não podem pagar? Isso se não quisermos continuar no mundo paradisíaco dos números e, em mais uma associação livre, registrar que os Estados Unidos, como lembrou recentemente um personagem do seriado The Newsroom – criado por Aaron Sorkin e exibido no Brasil pela HBO – não são apenas campeões nas olimpíadas, são também o país como maior percentual de jovens encarcerados em presídios, os quais, aliás, livres da ineficiência estatal, são excelente negócio.

Enfim, eu também, como torcedor, quero mais medalhas e quase morri de tristeza vendo a final do vôlei masculino. No entanto, acredito que o quadro de medalhas, como qualquer classificação, deve refletir alguma outra coisa além dele mesmo. Afinal, os rankings e as hierarquias existem para nos dizer quem são os melhores, mas isso nos obriga a pensar o que é ser o melhor ou o que e, sobretudo, de que modo, queremos ou precisamos, enquanto nação, melhorar.

Definitivamente, não posso crer que o número de medalhas seja mais importante do que o modo como elas são conquistadas ou produzidas. Se é que para nós, dito povo brasileiro, a medalha de ouro é mesmo o objetivo maior a ser alcançado. Pois, como nos diz José Miguel Wisnik, o brasileiro, dentro ou fora dos campos, talvez seja movido mais por um desejo de felicidade do que pela vontade de potência (WISNIK, 2008). Ou como Santos-Dumont, esteja mais preocupado em voar do que em registrar a patente. Será mesmo isso tão ruim assim?

Não estará aí um elemento central em nossa capacidade criativa e mesmo produtiva? Sem de modo algum ir de encontro ao mais puro espírito esportivo, o qual, segundo o sábio tupiniquim Millôr Fernandes, nunca foi tão bem representado quanto pelo nosso frescobol: único esporte sem vitórias ou derrotas, vencidos ou vencedores, no qual o importante realmente é apenas competir.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund “Recordar, repetir e elaborar” (1914) in Freud, S. Obras completas vol. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

domingo, 2 de maio de 2010

O Romantismo e Ciências Sociais 12: Estranho, Esquisito, Canhestro (v. 2.1)



Jonatas Ferreira

Conclui o último post com a seguinte afirmação:
“A língua é nossa questão, estamos sempre retornando à sua infância. É precisamente a possibilidade de dizer “eu” que nos capacita a operar uma separação entre língua e discurso, entre o que está dado e o modo como podemos nos envolver com o que está dado. E isso é apenas uma outra forma de afirmar nossa pobreza, precariedade ontológica; porém agora tudo isso é tomado como base do pensar o mundo de maneira radical. Como em Marx, a nossa nudez é a base para se ter esperanças em uma experiência radicalmente trágica da vida”.

Falávamos ali de um tipo de vida em que os objetos, as vivências perdem seu sentido e a possibilidade de se converterem em experiência. Gostaria de dar prosseguimento àquelas considerações discutindo um tipo particular de vivência, aquilo que Freud chama de estranheza, um sentimento de horror, de inquietude, em que o familiar nos aparece como o mais remoto e o mais distante se nos apresenta como o mais íntimo. Aquilo que chamei de experiência radicalmente trágica da vida ganha cores particulares a partir da reflexão freudiana. Gostaria de seguir essa trilha, portanto.


sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Pudor e vergonha: o que se revela e se esconde


:
Antonio Ricardo Rodrigues da Silva

Lucian Freud é considerado um dos mais importantes pintores ingleses da atualidade, talvez o mais importante da segunda metade do século XX. Nascido em Berlim em 1922, filho de Ernest Freud e Lucie e neto do pai da psicanálise Sigmund Freud, Lucian se consagrou com uma pintura muito particular, onde a figuração do humano, notadamente na exposição de seus corpos, quase sempre nus, demonstra sua agucidade em mostrar coisas e situações quase sempre de um âmbito privado, que se preferiria não se notar ou ver. A crueza de suas figuras que apresentam o retrato físico e existencial das pessoas em poses paradoxalmente não posadas saltam aos nossos olhos.

Diferentemente de um outro pintor britânico – Francis Bacon, cujo mal estar advém da extrema distorção da figura humana que pode ser reduzida a um pequeno conjunto de músculos, aparentando-se a uma exposição de carnes num açougue, o mal estar e também a perplexidade de haver ali beleza, aparece na pintura de Freud, a partir de um estranho desconhecimento, que passamos a reconhecer como muito familiar, na medida em que reconhecemos ali, a expressão de nossa vulnerabilidade, seja no corpo das jovens, onde a posição não é ortodoxa e a proporção é alterada, seja nas dos gordos e velhos, estes últimos anunciando a decaída física e conseqüentemente a perspectiva da morte. Uma pintura que parece a princípio sem pudor, pois além de mostrar nossa nudez sem retoques, com seus limites, escancara nossa fragilidade. Uma pintura que possibilita uma identificação aparentemente mínima, sutil, mas olhando mais de perto, avassaladora. O despudor de Lucian talvez seja o de nos mostrar o que já sabemos, mas insistimos em deixar no limbo quanto mais tempo for possível, até que graças a habilidade de um artista, sejamos confrontados com a novidade que já é nossa velha conhecida.

O pudor e a vergonha estão relacionados a um mal estar, gerado pelo que pode ferir a decência, a honestidade ou a modéstia. Este sentimento está quase sempre ligado (mas não só) a atos e coisas que se relacionam com a sexualidade, na articulação entre o que deve e pode se mostrar e o que se deve esconder.

Em 1905, o avô de Lucian, Sigmund Freud publicou os “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” texto fundamental para se compreender como a psicanálise entendia a sexualidade humana. Este livro colocou Freud novamente no olho do furacão moral vienense, não só porque o tema era o sexo, mas, sobretudo pela abordagem que fazia desse impulso. Todos sabemos que no século XIX muito se falou e se escreveu sobre o tema, com o estabelecimento das ciências sexuais. Os livros de Havelock Ellis (1859-1939) e, sobretudo o de Krafft-Ebing (1840-1902) (Psychopatia sexualis) eram verdadeiros best sellers. A especificidade da abordagem freudiana – já explicitada no texto fundador de 1900 - “A interpretação dos sonhos” dizia respeito ao fato de que a fronteira entre o normal e o patológico tinha sido definitivamente esfumaçada. As noções do sonho como uma “psicose noturna e realização alucinatória do desejo” falavam desse transitar, reforçados ainda mais pelo fato de que muito cedo Freud recusou a noção de degenerescência – cara à psiquiatria do seu tempo e que tentava explicar os ditos desvios da conduta sexual a partir de uma disposição degenerativa herdada.

Com os “Três ensaios” a sexualidade dos humanos se afasta notadamente da dos animais. A noção de instinto – fundamental para a biologia e para a psiquiatria, e até então referência importante para a explicação do sexo entre os humanos, é interrogada pela psicanálise. Esboça-se o conceito de pulsão, sendo a partir deste que não só a sexualidade, mas a própria constituição do humano passa a ser pensada. A pulsão é um conceito limite entre o somático e o psíquico. Ancorada no corpo (sua fonte) tem como objetivo descarregar a tensão e para isto precisa de um objeto, meio para atingir sua finalidade. Esses objetos podem ser desde uma parte do corpo (próprio ou de outro) até uma pessoa inteira. Freud vai reconhecer então uma sexualidade na infância e considerá-la a matriz da organização psíquica, rompendo com a noção de que esta estaria ausente e só aparecia nos casos de crianças degeneradas. O mito da infância inocente é derrubado, passando a criança a ser entendida como um pequeno ser em desenvolvimento dotado de uma disposição perversa polimorfa, isto é, capaz de experimentar imenso prazer em atividades as mais diversas, desde o sugar do seio materno, o excretar e reter, até o ser tocado, tocar, olhar e exibir-se ao outro. Essa disposição ampla deve, no entanto ir se organizando em torno da genitalidade e aqui aparece um componente de certa forma normativo, na medida em que, caso isto não se estabeleça, organizar-se-iam as perversões, entendidas neste contexto como as práticas perversas polimorfas dos adultos com um fim em si, não levando a união dos genitais no coito. Para que a genitalidade seja alcançada as disposições perversas polimorfas próprias e fundantes da matriz devem tomar outros destinos. A sublimação e o recalque seriam dois destinos possíveis.

E é sobre o recalque dessas disposições que Freud se deterá ao falar dos “diques anímicos contra os excessos sexuais”. Subjaz aqui uma noção da sexualidade como do âmbito de um excesso que necessita ser domado, controlado, desviado, limitado para que a organização psíquica se realize. Haveria então tanto do ponto de vista da própria criança como da expectativa social que esses componentes pudessem ser controlados e Freud dirá que o asco, os ideais estéticos e morais e a vergonha (pudor) seriam esses condicionantes. Vergonha e pudor seriam peças centrais nessa organização. Interessante é pensar que por trás desses sentimentos, haveria uma forte disposição constitutiva e ao mesmo tempo intempestiva e que seria da resolução dessa conflitiva que teríamos as especificidades de cada pessoa e de seu lugar no mundo. O pudor e a vergonha provocam o recalque necessário para uma certa organização psíquica que desembocará num franco desenvolvimento rumo a uma certa autonomia necessária à vida de uma pessoa, que é capaz de reconhecer-se e implicar-se no percurso e destino de sua vida humana, demasiada humana. No entanto, se as operações recalcantes forem excessivas, levarão junto consigo a espontaneidade, a criatividade e a empatia, peças importantes na vida pessoal e social, tendo como uma das suas conseqüências, a inibição. A importância de se focar o pudor é que ele trás a possibilidade de se acessar sua outra face – o despudor e a partir desse contato se integrar uma dimensão preciosa da experiência humana. A pintura de Lucian nos dá uma dessas senhas.