segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Nós, nossas medalhas e nosso futuro: livre associação em torno de Londres, CAPES e frescobol.




Por Eduardo Leal Cunha
Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Professor do
Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS,
autor de Indivíduo singular plural: a identidade em questão, 7Letras, 2009


Freud nos ensinou que ao ouvir uma interpretação o paciente não se encontra diante da solução imediata dos seus problemas e sim frente à necessidade, ou oportunidade, de trabalhar. É preciso associar livremente, recordar o passado, vislumbrar futuros, reconhecer desejos, ligar os pontos, produzir novos enunciados, colocar o psiquismo em movimento, encontrar novos modos de pensar e outras formas de ser. É preciso, enfim, elaborar (FREUD, [1914] 2010).

Foi mais ou menos isso o que me levou a fazer certa interpretação da nossa presença nas Olimpíadas de Londres, a qual me parece corrente e que, para mim, se materializou de modo mais claro no editorial da Folha de São Paulo deste último domingo, cujo título sugestivo é Brasil Olímpico, e que pretendeu, depois de apresentar um rápido balanço das nossas conquistas, listar uma série de providências recomendáveis para que o Brasil possa “galgar posições no ranking dos jogos”.

Nesse momento, vocês evidentemente têm o direito de se perguntar o que diabos um psicanalista e professor de psicologia tem a dizer sobre esporte e medalhas; e eu, por outro lado, poderia refutar com a necessária contribuição das ciências para o progresso do esporte e da nação.

Acontece que, na verdade, o caminho percorrido nas minhas curiosas associações foi outro: as inúmeras recomendações que temos ouvido recentemente em nossa gloriosa imprensa sobre como o Brasil pode galgar posições no ranking das universidades ou da educação em geral ou do número de patentes ou de artigos publicados em inglês ou de restaurantes classificados entre os melhores do mundo. E vamos parar por aqui antes que as tais associações livres me levem longe demais.

Estamos obcecados por rankings, classificações, números e é através deles que o maior jornal do país, organiza seu (ou nosso) pensamento em torno do que aconteceu em Londres. O que curiosamente me fez pensar em algumas coisas razoavelmente difíceis de medir, senão mesmo de objetivar.

Comecemos como os principais argumentos do texto da Folha: o primeiro deles é que avançamos no quadro de medalhas e batemos nosso próprio recorde, estabelecido em Atlanta há 16 anos, porém o fazemos de modo muito lento; o segundo, e que se torna o eixo central de argumentação é que o problema não está no dinheiro: investimos muito nessa última olimpíada e os resultados, portanto, foram insatisfatórios, ou seja, em termos de custo-benefício, Londres não foi um bom negócio.

Antes mesmo de nos aprofundarmos no diagnóstico para tal fracasso do empreendedorismo olímpico nacional e que, aliás, não trará nada de novo além da velhíssima tese da ineficiência do governo e dos seus agentes (tese certamente verossímil, embora insuficiente para explicar todos os infortúnios verde-amarelos), parece impossível evitar uma pergunta preliminar e um tanto incômoda, daquelas que a intervenção do psicanalista deve nos obrigar a fazer: que tipo de benefício esperamos do investimento em esporte?

Porque me parece esquisito acreditar que o governo deve investir dois bilhões de reais em quatro anos (ao que parece, foi esse o investimento do Brasil nas últimas olimpíadas) prioritariamente para ganhar mais medalhas. Imagino que tal investimento deva produzir, isto sim, uma ampliação do número de jovens envolvidos com esportes, o aumento do número de opões educativas e de lazer para as camadas mais pobres da população, a melhor integração das pessoas em suas comunidades com a ampliação de redes comunitárias e sociais formadas em torno de práticas esportivas, o desenvolvimento de habilidades sociais e competências atléticas entre um percentual maior da população, a difusão de valores e ideais vinculados culturalmente ao esporte, como a superação de limites e obstáculos ou a cooperação mútua. Ou seja, muito simplesmente a consolidação das diversas práticas esportivas como opção de formação, inserção social e lazer para uma parcela significativa da população, em função do que, com o tempo, certamente teremos brasileiros campeões e, salvo inevitáveis acidentes de percurso, mais medalhas.

Dito de outro modo, o pódio olímpico deveria ser consequência e não o único ou principal objetivo da política oficial em relação ao esporte. Além disso, o número de medalhas pode ser até um indicador do valor do dinheiro investido, mas não é o único e talvez não seja nem mesmo o mais importante.

Infelizmente, no entanto, parece que a única coisa que importa é o numero de medalhas. O que é muito parecido com o que acontece em certos setores da educação no Brasil, em especial na pós-graduação: definimos metas, estabelecemos a mensuração como critério fundamental e, de olhos nos números, perdemos de vista o que realmente interessa. Um exemplo: nós das áreas de ciências humanas e sociais estamos nos últimos anos sendo delicadamente constrangidos a publicar em inglês. Em nossos currículos individuais e na avaliação dos nossos programas, publicar em inglês é fundamental, pois seremos mais lidos e nossos artigos atingirão um maior fator de impacto, ou seja, seremos mais citados. Será mesmo? Será que em todas as áreas do conhecimento o essencial da nossa contribuição precisa ou deve ser feita em inglês? Não haverá problemas e setores específicos em que é preciso conversar prioritariamente com nossos colegas de outras regiões do país ou da América Latina? Será mais bem investido o dinheiro gasto em uma tradução para o inglês ou para o espanhol? Ou ainda, melhor investir agora na publicação de revistas brasileiras em língua inglesa ou na disponibilização pela internet, com acesso aberto, das milhares de dissertações e teses produzidas anualmente no país e que morrem de inanição nas prateleiras dos programas de pós? Perguntar, ao menos, não custa nada.

Este, contudo, não me parece sequer o problema fundamental. A meu ver, ele aparece, por exemplo, na própria nomenclatura do setor da Capes que define a nota dos nossos programas e a partir daí hierarquiza nossos pesquisadores e estudantes: diretoria de avaliação. Por que não diretoria de qualidade ou de qualificação? Colocamos a avaliação e a classificação em primeiro lugar e a partir de dados quantificáveis, como o número de artigos publicados em periódicos, definimos posições, construímos nossos rankings e distribuímos medalhas, muitas vezes na forma de verbas para pesquisa e bolsas de estudo. Mas para onde vão especificidades regionais ou fatores como inserção social e contribuição para a formação docente. Ao que parece, o importante é medir e obter números e, assim, em nome da objetividade priorizamos o que pode ser medido e deixamos de lado todo o resto. Ou seja, o que importa é apenas a classificação, nosso lugar na fila.

O mesmo, ouso pensar, acontece no caso das medalhas que ganhamos, ou deixamos de ganhar. O que fica claro se continuarmos seguindo os argumentos dos editorialistas da folha, especialmente quando nos colocam diante de outros países e dos seus resultados.

Comparando nosso desempenho com “países com população menor que a do Brasil”, aprendemos então que erramos ao privilegiar esportes coletivos ao invés dos individuais, pois “dos 258 atletas nacionais, 38% disputaram apenas sete medalhas – no futebol, vôlei, basquete e handebol”. Devemos então priorizar o individualismo e deixar em segundo plano esses esportes improdutivos, nos quais é preciso um consistente trabalho conjunto de cooperação e assistência mútua para conquistar uma vitória. Certamente, ao menos segundo a lógica que guia o argumento da Folha, nosso país só teria a ganhar com isso.

Da mesma forma – e eu aqui deixo de lado o editorial de domingo da folha e passeio, no mesmo jornal, pelas matérias pós-olímpicas da segunda-feira –, devemos nos mirar nos exemplos vitoriosos dos verdadeiros campeões olímpicos, como China e Estados Unidos.

De novo, sou atormentado por algumas perguntas: alguém ainda acredita que o sucesso chinês e sua invejável disciplina olímpica não têm absolutamente nada a ver como o regime totalitário em vigor no gigante asiático ou muito simplesmente com a falta de liberdade e oportunidades que marca a grande maioria da população, e que o prêmio Nobel Amartya Sen (2000) descreveria de modo simples e provocativo como baixo desenvolvimento econômico, a despeito dos impressionantes números da economia chinesa?

Ou queremos para nós exatamente o mesmo ambiente cultural que produz os talentos atléticos dos nossos irmãos americanos do norte, no qual é quase inconcebível que os ricos paguem mais impostos e que a assistência em saúde deva se estender a toda a população, inclusive aqueles que não podem pagar? Isso se não quisermos continuar no mundo paradisíaco dos números e, em mais uma associação livre, registrar que os Estados Unidos, como lembrou recentemente um personagem do seriado The Newsroom – criado por Aaron Sorkin e exibido no Brasil pela HBO – não são apenas campeões nas olimpíadas, são também o país como maior percentual de jovens encarcerados em presídios, os quais, aliás, livres da ineficiência estatal, são excelente negócio.

Enfim, eu também, como torcedor, quero mais medalhas e quase morri de tristeza vendo a final do vôlei masculino. No entanto, acredito que o quadro de medalhas, como qualquer classificação, deve refletir alguma outra coisa além dele mesmo. Afinal, os rankings e as hierarquias existem para nos dizer quem são os melhores, mas isso nos obriga a pensar o que é ser o melhor ou o que e, sobretudo, de que modo, queremos ou precisamos, enquanto nação, melhorar.

Definitivamente, não posso crer que o número de medalhas seja mais importante do que o modo como elas são conquistadas ou produzidas. Se é que para nós, dito povo brasileiro, a medalha de ouro é mesmo o objetivo maior a ser alcançado. Pois, como nos diz José Miguel Wisnik, o brasileiro, dentro ou fora dos campos, talvez seja movido mais por um desejo de felicidade do que pela vontade de potência (WISNIK, 2008). Ou como Santos-Dumont, esteja mais preocupado em voar do que em registrar a patente. Será mesmo isso tão ruim assim?

Não estará aí um elemento central em nossa capacidade criativa e mesmo produtiva? Sem de modo algum ir de encontro ao mais puro espírito esportivo, o qual, segundo o sábio tupiniquim Millôr Fernandes, nunca foi tão bem representado quanto pelo nosso frescobol: único esporte sem vitórias ou derrotas, vencidos ou vencedores, no qual o importante realmente é apenas competir.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund “Recordar, repetir e elaborar” (1914) in Freud, S. Obras completas vol. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

4 comentários:

Anônimo disse...

Excelente o texto do Eduardo! Precisamos mais de "associações livres" desse tipo.
Abraços de Ernani Chaves

Tâmara disse...

Eduardo,
Como sou sua fã, nem acho nada a acrescentar. Suas associações são uma pérola, cutucando com leveza e alegria séria certas obsessões destrutivas, ao mesmo tempo em que revelam as possibilidades de elaboração que a ciência sempre tem - apesar de sua submissão atual às classificações quantitativas e lucrativas.
Apenas trago mais dois fatos que você pode agrupar em suas associações livres:
a) uma entrevista (também em nossa gloriosa Folha) com um executivo da maior empresa de classificação das universidades. Perguntado porque Havard perdeu lugares na última classificação, ele respondeu tranquilamente que o problema de Havard é que ela é muito forte em Ciências Humans, logo, perde potência porque as revistas internacionais de maior impacto são das ciências duras.
b) o choro de uma chinesinha da ginástica artística quando ganhou uma medalha de prata: não era choro de emoção, parecia que acabara de receber a notícia da morte da mãe! Pudera! Parece que o governo chinês só parabeniza quem recebe medalha de ouro. Acho que os outros deverão passar por estágio de reeducação...Aquela menininha nunca terá o sorriso feliz da menininha da bela foto escolhida por Cynthia para ilustrar seu texto: o sorriso feliz, inteligente e aberto à vida de quem aprende e se diverte com amigos, companheiros de geração.
Seu texto me deixou feliz. Obrigada e beijo.

Acácia disse...

Parabéns pelas reflexões que nos chamam para a realidade antes que sejamos arrastados pelo vozerio da mídia! A analogia com a pós-graduação caiu muito bem, já que hoje a questão do produtivismo foi discutida em aula com os nossos doutorandos com base nas leituras de textos do Seminário Horizontes!

Samuel disse...

Prezado Eduardo.
Gostei muito do seu artigo, penso que essa leitura tem a capacidade de “abrir” nossas mentes que em muitos momentos ficam viciadas em informações recebidas da mídia. Sou treinador desportivo e por muitos anos fiz parte do mundo acadêmico, o segundo, larguei por essa cobrança descabida, eu produzia artigos importantes para professores brasileiro, porém, eram publicados em revistas internacionais. A meu ver nosso desempenho olímpico só é mais um de tantos maus desempenhos e a única diferença esta na visibilidade. Precisamos melhorar várias camadas da sociedade, da infância até a velhice, precisamos desenvolver políticas públicas favoráveis em relação a saúde, educação, segurança e a partir disso poderemos um dia pensar em sucesso olímpico, sucesso econômico, sucesso educacional, temos potencial e esse é bem pouco explorado. Não acho que podemos abrir mão da importância de uma olimpíada, do seu legado intangível e que competir é sim necessário, na hora certa.