domingo, 12 de agosto de 2012

A pluralização do campo religioso no Brasil e em Pernambuco segundo o Censo 2010




Gustavo Gilson Oliveira - Professor do Departamento de Fundamentos Sócio Filosóficos da Educação, UFPE.

Os dados sobre religião do Censo 2010 do IBGE (divulgados no final de junho e já discutidos anteriormente no Que Cazzo pelos professores Péricles Andrade e Jonatas Menezes) chamaram a atenção de diversos setores sociais por indicar que a proporção de católicos no Brasil continua decaindo vertiginosamente (de 73,57% em 2000 para 64,63% em 2010) ao mesmo tempo em que se ampliam em diferentes compassos o número de evangélicos (de 15,41% para 22,16%), de “sem religião” (de 7,35% para 8,04%) e de espíritas (de 1,33% para 2,02%). Apesar do interesse despertado pelo visível processo de transformação no cenário religioso nacional, porém, poucas das análises esboçadas têm enfocado os aspectos regionais e locais dessas mudanças. Poucas, igualmente, têm buscado discutir mais qualitativamente sobre os sentidos e as possíveis implicações desse processo para a realidade social, cultural e política no país e especialmente nas diferentes regiões e estados.

Uma leitura inicial dos dados do Censo 2010 sobre religião em Pernambuco indica não somente que o estado tem vivenciado o mesmo movimento de pluralização do campo religioso observado no cenário nacional, mas, parece revelar também que esse processo tem ocorrido de forma mais intensa em Pernambuco (juntamente com a Bahia) que nos demais estados do nordeste. Indica ainda que esse fenômeno ocorreu de forma mais brusca no estado a partir da década de 1990, que se desenvolveu de forma particularmente acentuada na Região Metropolitana do Recife e no litoral, embora também já seja expressivo nas regiões de Caruaru e Petrolina e, especialmente, que vem produzindo um cenário novo no qual um número significativo de munícipios pernambucanos (20) passa a apresentar uma proporção de menos de 50% de católicos, dois dos quais (Rio Formoso e Sirinhaém) já são de maioria religiosa evangélica em 2010.

O declínio da hegemonia católica e a pluralização do campo religioso

Para compreender melhor esse contexto de transformação é importante discutir, primeiramente, sobre até que ponto e em que sentido esse movimento pode realmente ser qualificado como um processo de pluralização do campo religioso, uma vez que ainda se percebe uma distribuição predominante da população do país e do estado entre católicos e evangélicos e, portanto, que os cristãos ainda concentram mais de 86% da população nos dois âmbitos. Apesar do crescimento consistente dos espíritas, da presença constante das religiões de matriz africana e do surgimento e desenvolvimento de outros grupos minoritários, a soma dos demais grupos religiosos (não católicos ou evangélicos) não ultrapassa atualmente os 5,1% no Brasil e os 3,3% em Pernambuco. Deve-se destacar, todavia, que a noção de pluralização não implica necessariamente em um crescimento significativo de todas as religiões nem na tendência a uma distribuição proporcionalmente aproximada da população entre as mesmas.

A configuração de um campo religioso plural (ou pluralista) é mais bem caracterizada, de fato, pelo lugar social relevante atribuído aos diversos grupos ou identidades religiosas e pelo reconhecimento cultural (não somente jurídico) da legitimidade dessa diversidade assim como dos diferentes grupos participantes do campo. A pluralização do campo religioso pode ser pensada, nessa perspectiva, como um processo de transição de uma situação de não percepção, reconhecimento e/ou legitimação da diversidade para um cenário de reconhecimento e problematização da presença de uma pluralidade de grupos e identidades religiosas em uma dada realidade social. Nesse sentido, o crescimento explosivo do número e da visibilidade pública dos evangélicos a partir das décadas de 1980 e 1990 tem se constituído no principal fator de pluralização do campo religioso brasileiro, a revelia das intenções ou objetivos desses atores, ao passo em que vem contribuindo fortemente para a ruptura e o declínio da hegemonia de uma religião civil católica nos contextos nacional e regional.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Identidades e movimentos entre católicos, evangélicos e sem religião

Há ainda outros aspectos que precisam ser considerados para aprofundar a compreensão desse processo de pluralização do campo religioso. Em primeiro lugar, deve-se destacar que a pluralização gera uma mudança nas dinâmicas do campo religioso que passam a influenciar inclusive as próprias religiões e igrejas tradicionais. O próprio catolicismo, por exemplo, vem sendo cada vez mais atravessado por diferentes movimentos (como a teologia da libertação, a renovação carismática e os novos movimentos eclesiais) que constituem diferentes grupos de identidade (ainda não destacados pelo Censo) com diferentes práticas, características e formas de inserção na realidade social. Os evangélicos, por sua vez, já se constituem enquanto uma categoria que aglutina um número indefinido de denominações e igrejas com dezenas de tendências teológicas, culturais, políticas e com complexas articulações entre si. Os movimentos pentecostais e neopentecostais forneceram o maior impulso para o crescimento e visibilidade pública do grupo, mas, as características desses movimentos já se disseminaram e diluíram parcialmente entre as igrejas e denominações e não se percebe nenhuma tendência significativa de centralização.

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), reconhecida pela agressividade midiática e por suas inovações polêmicas, curiosamente apresenta um quadro de pequeno decréscimo em sua participação nacional (de 1,24% em 2000 para 0,98% em 2010) e um pequeno crescimento em Pernambuco (de 0,61% para 0,7%). As Assembleias de Deus, que constituem a maior das igrejas pentecostais, é a única das grandes denominações a crescer expressivamente na última década (de 4,96% para 6,46% no Brasil, e de 7,23% para 9,12% em PE). Observe-se, todavia, que as Assembleias de Deus já se configuram como uma denominação bastante fragmentada em dezenas de ministérios e convenções com diversificados tamanhos e características, não se apresentam como uma igreja orgânica e unificada. Destacam-se, portanto, em 2010, as “outras evangélicas de origem pentecostal” (2,76% no Brasil e 1,71% em PE) e as “evangélicas não determinadas” (4,83% no Brasil e 3,52% em PE), mostrando que ainda há muito a ser pesquisado sobre esses movimentos. É digno de nota também o crescimento marcante dos luteranos em Pernambuco (de 0,01% para 0,07%) e no Recife (de 0,02% para 0,11%), na contramão do decréscimo em nível nacional (de 0,63% para 0,52%).

Outro dado a ser examinado com bastante cuidado diz respeito ao percentual dos sem religião. Ao contrário do que possa parecer, a categoria dos sem religião não representa diretamente o percentual de ateus e agnósticos na população. Neste Censo 2010 o IBGE distinguiu dentre os sem religião (8,04% no Brasil e 10,40% em PE) aqueles que se declaravam ateus (0,32% no Brasil e 0,12% em PE), agnósticos (0,07% no Brasil e 0,06% em PE) e simplesmente sem religião (7,65% no Brasil e 10,22% em PE) confirmando que, como alguns pesquisadores já haviam sugerido (Rodrigues, 2010; Novaes, 2004), a grande maioria das pessoas que se declaram sem religião apontam a sua não filiação ou não identificação (permanente ou temporária) com qualquer denominação ou instituição religiosa, não necessariamente sua ruptura com a religiosidade. Desse modo, a categoria dos sem religião parece constituir-se como mais um índice de pluralização e dinamização do campo religioso, não de seu esvaziamento.
Fonte: IBGE – Censo Demográfico

O crescimento da proporção dos sem religião, que vinha praticamente dobrando a cada década, desacelerou bastante entre 2000 e 2010 (de 7,35% para 8,04% no Brasil, e de 9,46% para 10,40% em PE). Mesmo assim, o índice atingiu um patamar importante e ainda apresentou um crescimento significativo no período. Deve-se ressaltar que Pernambuco e Bahia, mais uma vez, apresentam uma proporção de sem religião muito acima da média dos outros estados do nordeste. Também é interessante perceber que, embora o percentual dos sem religião em Pernambuco esteja bem acima da média nacional, o percentual de ateus e agnósticos fica abaixo dessa média. Esses dados parecem fortalecer a percepção de que vivenciamos ainda um pleno processo de redefinição do campo religioso nesses estados.

A expansão evangélica no litoral e a reconfiguração do campo religioso pernambucano

A discussão específica dos números sobre o campo religioso em Pernambuco é importante para demonstrar que esse processo de pluralização não ocorre de forma homogênea ou bem distribuída no país ou mesmo nos estados. O Atlas da Filiação Religiosa no Brasil (Jacob et al., 2003), ao analisar os dados sobre religião até o Censo 2000, indica que os três principais fatores relacionados à diversificação religiosa no território brasileiro a partir dos anos de 1980 são: a) a colonização por populações protestantes (em algumas regiões do Sul e Sudeste); b) a migração em massa (especialmente em certas regiões do Norte e Centro-oeste); c) A urbanização acelerada (sobretudo no litoral e nos principais centros econômicos). A pluralização do campo religioso em Pernambuco parece estar relacionada principalmente aos dois últimos fatores. Tanto a migração quanto a urbanização são fenômenos que provocam processos de “desenraizamento” ou “destradicionalização” de grandes contingentes de população, demandando a adaptação a novas situações e abrindo espaço para a articulação e propagação de novas alternativas religiosas. Esse espaço foi conquistado principalmente pelos grupos (neo)pentecostais no Brasil, mas, a pluralização religiosa também criou condições para a afirmação de identidades anteriormente negadas ou consideradas como apêndices sincréticos do catolicismo popular, como acontecia com as religiões afro-brasileiras, indígenas e, parcialmente, com o próprio espiritismo.

A origem do pentecostalismo em Pernambuco (entre 1916 e 1918) está relacionada às famílias dos migrantes nordestinos que entraram em contato com os fundadores e primeiros missionários das Assembléias de Deus no Pará. Até o final da década de 1980, entretanto, os católicos ainda representavam mais de 85% da população do estado. Na década de 1980 o percentual dos sem religião triplica em Pernambuco e, na década seguinte, a proporção de evangélicos dobra enquanto o contingente de católicos despenca dez pontos percentuais. A década de 1990 parece marcar, desse modo, o grande ponto de inflexão desse movimento de pluralização do campo religioso no estado. Entre 2000 e 2010 o percentual de católicos cai mais oito pontos (de 74,52% para 65,95), o de evangélicos continua a crescer de forma significativa (de 13,53% para 20,34%), e cresce também o percentual de espíritas (de 1% para 1,4%) e dos que se declaram adeptos do Candomblé (de 0,05% para 0,08%). No mesmo período cai a proporção dos que se declaram umbandistas (de 0,1% para 0,05%) o que pode estar relacionado ao persistente estigma contra a umbanda, em contraposição a uma tendência crescente de valorização cultural do Candomblé. Surge também, em 2010, um contingente de 0,03% da população que se declara como praticante de “tradições indígenas”, o que pode ser um indicativo da presença dos praticantes da Jurema Sagrada no estado. Pode ser notada, ainda, a presença diferenciada dos judeus, com percentual bem acima da média do Nordeste, tanto em Pernambuco (0,03%) quanto em Recife (0,05%).















Fonte: IBGE – Censo Demográfico

A pluralização religiosa não ocorre igualmente e na mesma intensidade em todas as regiões do estado. Ao mesmo tempo em que metade dos municípios do interior permanece com um índice de mais de 85% de católicos em 2010, principalmente nas regiões do Agreste e Sertão Pernambucano, a Mata Pernambucana apresenta atualmente um índice de 61,59% de católicos e a Região Metropolitana do Recife de apenas 50,29% de católicos. Ou seja, praticamente metade da população da Região Metropolitana, hoje, já não se declara católica. Os centros mais urbanizados do interior também apresentaram uma queda acentuada no percentual de católicos na última década, especialmente os municípios de Caruaru (de 77,17% para 66, 37%) e Petrolina (de 80,09% para 73,09%), enquanto a proporção de evangélicos praticamente dobrou nessas cidades no mesmo período. Há ainda outro fator que deve ser levado em conta nessa análise, entretanto, que é a relação entre religião, renda e ocupação territorial urbana. Um fenômeno curioso que se destaca, nesse contexto, é o surgimento de vários municípios na periferia ou no entorno da Região Metropolitana do Recife com proporções entre católicos e outras religiões ainda menores que os registrados na capital.

Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Em 2000, quatro municípios pernambucanos já apresentavam uma proporção de menos de 50% de católicos (Cabo de Santo Agostinho, 49,54%; Itapissuma, 45,92%; Rio Formoso, 45,84%; Sirinhaém, 43,95%). Em 2010, nada menos que dezenove municípios do litoral continental pernambucano (mais Fernando de Noronha) passaram a possuir menos de 50% de católicos (ver Tabela). Quatro desses municípios exibiram uma queda de cerca de vinte pontos no percentual de católicos na última década (Água Preta, de 64,07% para 41,11%; Ipojuca, de 61,95% para 41,04%; Moreno, de 64,39% para 44,98%; Tamandaré, de 61,19% para 40,43%). Fernando de Noronha, que por suas condições específicas exige um estudo especial, vivenciou uma queda de vinte e oito pontos percentuais (de 73,8% para 45,65%). A partir desse movimento, o Censo 2010 registrou pela primeira vez na história do estado (ao menos desde a expulsão dos holandeses) a existência de duas cidades pernambucanas com população majoritariamente evangélica ou protestante (Rio Formoso, com 35,86% de evangélicos e 34,14% de católicos; Sirinhaém, com 38,51% de evangélicos e 33,22% de católicos). O maior percentual de evangélicos, não obstante, continua a ser o de Abreu e Lima (40,47%).

População por religião em municípios com menos de 50% de católicos em Pernambuco (%)
Município
Católicos
Evangélicos
Espíritas
Umbanda e Candomblé
Outros grupos
Sem Religião
1. Abreu e Lima
41,31
40,47
1,25
0,21
1,76
14,99
2. Agua Preta
41,11
37,45
0,04
--
0,37
20,34
3. Araçoiaba
48,51
27,2
0,1
0,04
2,94
21,19
4. Barreiros
46,43
36,42
0,13
0,1
0,84
15,78
5. Cabo de Santo Agostinho
37,62
36,88
0,54
0,08
2,54
21,75
6. Camaragibe
49,74
31,22
1,29
0,11
2,51
14,93
7. Escada
47,66
29,87
0,34
0,07
1,09
20,89
8. Fernando de Noronha*
45,65
37,78
3,72
0,18
0,37
12,08
9. Igarassu
48,29
35,17
0,57
0,19
2,73
12,79
10. Ipojuca
41,04
35,46
0,28
--
1,32
21,88
11. Itapissuma
43,79
29,22
0,21
0,14
2,76
23,35
12. Jaboatão dos Guararapes
47,34
31,44
2,18
0,16
2,6
16,16
13. Moreno
44,98
36,24
0,43
0,04
1,69
16,56
14. Paulista
49,03
30,23
3,21
0,32
2,46
14,54
15. Ribeirão
45,81
35,02
0,68
0,02
1,17
17,3
16. Rio Formoso
34,14
35,86
0,05
0,12
0,8
29,01
17. São José de Coroa Grande
42,76
36,58
0,44
0,05
0,72
19,45
18. São Lourenço da Mata
49,82
30,42
1,53
0,33
1,44
16,4
19. Sirinhaém
33,22
38,51
0,18
--
2,95
25,14
20. Tamandaré
40,46
37,93
0,07
--
1,02
20,52
Fonte: IBGE – Censo Demográfico

Em parte, esse fenômeno no litoral continental pode ser explicado pelos processos agudos de urbanização e (re)fluxo migratório desencadeados, sobretudo, pelas obras da Refinaria Abreu e Lima e do Complexo Industrial de Suape. Outro aspecto que parece estar relacionado a esse movimento, porém, é que a maior parte do percentual de pentecostais se concentra nas camadas de menor renda da população, que tendem a ocupar as regiões e cidades periféricas em relação aos grandes centros urbanos (fenômenos semelhantes podem ser observados nos litorais da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro).

Cartograma: Municípios com menos de 50% de católicos em Pernambuco




Torna-se evidente que a transformação sociocultural representada pelo intenso processo de pluralização do campo religioso em diversas regiões de Pernambuco traz, inevitavelmente, implicações importantes para vida social, cultural e política do estado. A primeira e mais visível dessas implicações diz respeito às questões do reconhecimento, da (in)tolerância e da convivência não somente entre os diferentes grupos religiosos, mas, também entre instituições como o Estado, a mídia, a academia e essas “novas” identidades e grupos. Não é por acaso que se tornam cada vez mais frequentes episódios de conflitos entre grupos e personalidades religiosas e, ao mesmo tempo, de desentendimento, estigmatização ou mesmo perseguição contra grupos minoritários, em especial as religiões de matriz africana, inclusive por agentes públicos. Outra implicação que merece destaque está relacionada ao campo da educação. Embora a educação no Brasil tenha sido oficialmente secularizada a partir do processo de consolidação da República, é amplamente reconhecido que a maioria das estruturas curriculares, práticas pedagógicas e dinâmicas escolares vigentes no país foram desenvolvidas ainda em um contexto de hegemonia de uma cultura nacional católica. Nesse contexto, questões como a diversidade de identidades, discursos e práticas religiosas nas escolas, na mídia e na sociedade ainda não eram visível e seriamente reconhecidas como questões prementes para a vida social e para a formação dos sujeitos. Os dilemas despertados pela pluralização religiosa, todavia, não precisam ser tratados necessariamente ou simplesmente pela perspectiva da acomodação dos diferentes grupos em um sistema “multicultural” de diferenças. No qual cada grupo passe a ocupar um espaço social (físico ou simbólico) apartado, estático e pré-determinado como forma de evitar divergências e conflitos. A pluralização do campo religioso pode mesmo contribuir, se não for reduzida ao modelo de um mercado de disputa por fiéis ou de comercialização de bens simbólicos, para um aprofundamento das experiências de participação coletiva e de construção democrática em uma população que foi longamente alijada dessas experiências.

Referências bibliográficas

JACOB, Cesar et al. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Loyola, 2003. 
NOVAES, Regina. Os jovens sem religião: ventos secularizantes, “espírito de época” e novos sincretismos. Notas preliminares. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, p. 321-330, 2004. 
RODRIGUES, Denise. Juventude sem religião: uma crise do pertencimento institucional no Brasil. Teoria e Sociedade, v. 18, n. 1, p. 66-93, 2010.

2 comentários:

Joanildo Burity disse...

Muito boa análise, Gustavo. Ressalto particularmente as ideias de que (1) a pluralização é um processo assimétrico do ponto de vista de sua demografia e posicionalidade socio-econômico-cultural e de que (2) processos de deslocamento (desencadeados tanto pelas transformações socio-econômicas das últimas décadas quanto pelo próprio trânsito religioso) reconfiguram o espaço das religiões num sentido pluralizante. O que eu acrescentaria a isso, a título de reforço e glosa a sua análise, é que é preciso a partir dos números explorar as condições em que a pluralização tem cruzado o umbral da diversificação de formas de crença em direção a um pluralismo cognitivo e prático. Há anos tenho insistido na necessidade de marcar essa distinção, particularmente em razão das apostas (marcadas pelo desejo ou pela repulsa) que se fazem na existência ou não de "pluralismo religioso" no Brasil. Neste particular, concordo com você que é preciso insistir na realidade da pluralização ainda quando os percentuais de "cristianismo" são muito altos. Ela está abaixo da linha d'água, tanto nas atitudes quanto nas alianças/conflitos entre grupos cristãos, para-cristãos e não-cristãos. Segundo, eu sugeriria que precisamos explorar mais criticamente o desbordamento entre as identidades religiosas que os processos de deslocamento ensejam ou provocam. Desbordamento entendido num sentido de turvar linhas identitárias rígidas entre os grupos religiosos, em razão de uma diversidade de formas de encontros entre si, entre eles e o estado, entre eles e formas de identificação não- ou irreligiosa. Mas também no sentido de que a pluralização demográfica ou o pluralismo cognitivo e prático "abrem" as identidades religiosas para experimentarem com sua própria pluralidade interna (histórica e/ou atual), potencialmente aumentando sua diferenciação, mas acima de tudo na tentativa de reconstruir sua "coesão interna" e suas expectativas "hegemônicas" de crescimento e auto-proteção.
Grande abraço,
Joanildo

Anônimo disse...

Obrigado pelo comentário Joanildo!
Concordo totalmente com suas colocações. Na minha percepção, uma das grandes dificuldades das análises atuais do cenário religioso brasileiro é que elas permanecem excessivamente presas a categorias e modelos conceituais e teóricos que não são mais (se já foram) significativamente respeitados pelos movimentos que ocorrem no campo. Noções como “igreja”, “fiel”, “cultos” e mesmo “religião” (stricto senso), em suas acepções tradicionais, dão conta somente de uma parte muito pequena do que realmente ocorre no cenário religioso atual. Os estudos antropológicos conseguem indicar esses movimentos claramente em contextos específicos, mas, as análises sociais ainda não tem conseguido construir de forma satisfatória formulações teoréticas de maior alcance para lidar com essa (nova) realidade. É curioso, nesse sentido, como as análises dos dados censitários costumam ser apropriadas por muitos analistas para fazer afirmações generalistas sobre a condição religiosa atual da nação ou sobre os rumos da população sem se atentar sequer para os contextos e aspectos mais detalhados que o próprio Censo permite observar.
Saudades de nossas conversas “ao vivo”. Abração.
Gustavo