Jonatas Ferreira
O Paciente Jó (Gerard Seghers, 1650)
Semana passada, durante
um curso coordenado por mim, no XIX Congresso do Círculo Brasileiro
de Psicanálise, falava algo sobre “Sofrimento e Uso de Psicofármacos”,
a psicanalista Maria Helena Barros me propôs uma reflexão crucial
para o aprofundamento da exposição que, no momento, eu realizava
sobre o sentido cultural do sofrimento em nossa sociedade. A
explanação que eu levava a termo demandava várias etapas de
argumentação, desde a constatação de um sentido biopolítico no
processo contemporâneo de "medicalização da vida", à percepção de
uma tendência a aceleração dos corpos, da passagem de uma medicina
curativa para uma medicina potencializadora, até, finalmente, uma
discussão de duas vertentes culturais fundamentais na elaboração
do sofrimento, nomeadamente, uma vertente trágica e outra
judaico-cristã.
Para entender a
indagação de Maria Helena, eu resumiria o que estava falando da
maneira que se segue. O sofrimento na tradição judaico-cristã
encontra um sentido paradigmático nas fábulas de Abraão e Jó. Na
primeira delas, encontramos a consolidação religiosa de um poder
patriarcal, um poder de dar a morte, de estabelecer um vínculo
silencioso, como lembra Derrida, capaz de estruturar a comunidade, mas que está necessariamente
acima dela. O sacrifício de Isaac é este momento terrível da
história do ocidente que encapsularia tudo o que Carl Schmitt diria
muitos séculos depois sobre o poder soberano: a legalidade que ele impõe à sociedade estrutura-se necessariamente fora destes limites. O ato político por excelência se produz em um vazio linguístico, em silêncio: "Eu escuto", diz simplesmente Abraão diante do comando terrível de seu Deus. Essa fábula fala-nos, assim, da fundação de um vínculo comunitário feito necessariamente
sobre o sacrifício, sobre o poder paterno de dar a morte, sobre essa estrutura
"archaica" que só encontrará paralelo no sacrifício do Cristo - fato, como sabemos, decisivo na
estruturação da comunidade cristã. O sofrimento, o sacrifício, o silêncio
de Abraão, então, são estruturadores da comunidade de Israel. A
questão teodicéica, ou seja, aquela que indaga acerca do sentido do
mal é respondida de forma categórica: o sofrimento é condição
fundamental para a existência de uma comunidade entre Deus e seu
povo.
De um certo modo, esses
elementos são preservados na fábula de Jó. Porém, a teodicéica
ali se transforma mais propriamente em antropodicéia – creio que é
Peter Berger quem fala isso. Jó não aceita simplesmente o seu
sofrimento como dogma que funda sua relação com o sagrado, antes,
para ele, o sagrado necessita validar-se num sentido íntimo que o
fiel necessita encontrar para o seu sofrimento. Jó não abre a parada
nem diante de Deus, mas demanda-lhe esclarecimento. Por que padeço
sendo justo, indaga ele? De que sou culpado? E isso me parece bastante novo na história do ocidente. Minha hipótese de trabalho: sem
esse sentido íntimo, sem essa responsabilidade sobre os próprios
atos, sem um sentido de proporção entre estes e seus resultados, não
há conexão verdadeira com o divino para Jó. E Deus parece
respeitar essa busca por sentido como algo fundamental. É em nome da integridade moral pressuposta nessa busca que Ele irá salvar a comunidade que comandava a Jó o arrependimento de uma culpa que ele não reconhecia. Sem esse
sentido de intimidade, de responsabilidade, e também, obviamente, de
culpa, não há judaismo-cristão, não há isso que modernamente
chamamos de subjetividade, não há psicanálise, nem nada que possa
verdadeiramente ser colocado como uma investigação sobre o
sentido do sofrimento na contemporaneidade. Sem isso tudo, Cynthia Hamlin não estaria indo fazer o pós-doutoramento dela com Margareth Archer, na Suiça - aliás, parabéns! É preciso, nesse
ponto, não esquecer que a busca de um sentido para o sofrimento
resulta, em tal tradição, na procura pela redenção, pela cura para todos
os males, por um momento de plenitude em que a existência, como
âmbito algo inextricavelmente ligado à possibilidade do
padecimento, seria colocada entre parênteses. E Jó tem algo
bastante semelhante a esse estado de graça aqui na terra mesmo: com a
multiplicação de seus rebanhos perdidos, sua saúde revigorada, o
número de seus escravos, filhos, riquezas aumentados.
A outra parte da
argumentação, dizia respeito à tragédia e à sua importância na
filosofia, na cultura do ocidente. Ao contrário de um momento de
conciliação entre o divino e o mortal, entre o absoluto e o finito,
o sentido trágico da vida é a ferida aberta, é a impossibilidade
de uma síntese final, da realização de um projeto divino no mundo
ou coisa que o valha. Talvez o Max Weber da ideia de “consequências
não pretendidas da ação”, em larga medida, tenha captado esse
sentido trágico da existência. Quando se fala de uma reverberação nietzscheana em Weber, nada me ocorre de mais específico que essa ideia. De fato, quanto mais o herói grego procura um
sentido, uma proporção entre suas ações e as consequências que delas advém, quanto mais ele busca um
controle absoluto sobre as coisas, mais ele é presa de um jogo
divino, de Dionisos. Não é exatamente isso, por exemplo, o tema central de As
Bacantes? Enlouquecido de razão, Penteu será dilacerado pelas
ménades e, dentre elas, por sua própria mãe. Não é também isso o que ocorre com Édipo, quando este, procura fugir de seu destino, de
cometer parricídio e incesto? Quanto mais ele corre de sua sina mais ele se precipita em direção a ela. A tragédia grega, em seu pessimismo,
ensina uma certa modéstia com relação ao mundo no qual vivemos,
e compele-nos a procurar um sentido imanente para a vida, porque não há nada fora dela que lhe confira significado.
O que é curioso acerca
da estrutura trágica, é o fato de o herói, ou heroína trágica - não devemos esquecer de Hécuba ou Antígona,
não se deixar abater mesmo diante de um destino que o(a) marca muito
antes de ele, ou ela, ter nascido. Pois embora seja em um sentido
muito amplo apenas o portador de uma chaga antiga, Orestes entende
que o seu dilema, sua tragédia, precisa ser respondida como se ele
fosse plenamente responsável pelas consequências de seus atos. Enquanto isso, nosso Orestes, Hamlet, cheio de sentido íntimo e de acedia, fica naquele nhém-nhém-nhém interminável - não me entendam mal, adoro Shakespeare.
Porém, se analisarmos de perto, o destino de Orestes apenas ecoa, reverbera um mal
que está no "seu sangue" – e que pode ser reportado não apenas à
chaga de uma mãe que assassina o marido, ou um pai que sacrifica sua
própria filha para poder entrar em Tróia, mas a seu bisavô, Tântalo, que mata e cozinha o seu
filho para oferecê-lo como holocausto aos deuses. Orestes tem diante de si o eco de
sacrifícios impuros, pelos quais não é rigorosamente responsável, mas age como se tudo estivesse sendo resolvido
no momento em que ele toma em suas mãos o assassinato de sua própria mãe. Vernant
observa que o herói trágico experimenta algo próximo do sentimento
de responsabiliade, mas que, na ausência de um sentido de
intimidade, de interioridade, essa experiência não se concretiza em sua plenitude.
Hegel diz algo muito parecido quando fala da necessidade de uma
síntese entre a arte grega e a arte romântica. E eu concordo com os dois, que não sou besta nem nada.
O depoimento trágico
acerca do sofrimento nos diz respeito, obviamente. Afinal nosso é
este mundo cada vez mais em descontrole, cada vez mais comandado por
forças quase míticas – e é claro que estou submetendo essa
percepção à crítica. Algumas saídas politicas contemporâneas, ao
fugir da redenção cristã, como é o caso da ideia de “democracia
radical”, por exemplo, namoram com a abertura trágica. Por outro
lado, toda uma política fundada sobre a administração da vida
biológica do ser humano, suas promessas de felicidade química,
remetem-nos à enorme influência que a tradição judaico-cristã
tem sobre nós, a essa esperança de sermos curados da vida. A psicanálise, diga-se, é fruto deste casamento de
culturas: o que seria de Freud sem a tentativa romântica de juntar
tragédia e redenção? Édipo na tradição psicanalista é alguém
que experiencia a culpa de um modo que seria, por exemplo,
incompatível com o que dissemos até agora sobre o trágico. Afinal,
que culpa tem ele de ser vítima das tramas divinas, quando ele fez
todo esforço humanamente possível para evitar tudo aquilo que acabou
fazendo? E Jocasta era uma mulher muito interessante e o marido dela era um chato que merecia morrer - obviamente uma tirada irônica é "muitas vezes apenas um charuto".
Maria Helena me
pergunta, neste momento, por que Édipo, então, arranca os próprios olhos? A
interpretação psicanalítica é um tanto circular, devo dizer: Édipo se
reconhece finalmente edipiano, radicalmente culpado pelo seu desejo. Mas essa interpretação não seria
corroborada pela própria cena final do Édipo Rei? Afinal o cabra
arranca os próprios olhos, e, como nos ensina Bataille – talvez
Freud antes dele, não sei – entre olho e pênis há uma relação
íntima.
“Filhas de minhas entranhas, onde estáis? Aproximai-vos,
aproximai-vos dessas minhas mãos, irmã das vossas, aquelas que
cuidaram de que os antes brilhantes olhos de vosso pai e semeador
pudessem ser contemplados assim, sem vista, já que eu, filhas de
minhas entranhas, por não fazer comprovações nem investigações
resultei ser vosso progenitor por meio do campo em que eu mesmo fui
semeado"
Vocês devem lembrar desses versos maravilhosos.
O
que acompanhará Édipo para Colono, para fora de Tebas, no entanto, não é a culpa, mas a vergonha. Maria Rita Kehl, citando Klibansky, fala sobre isso em O tempo e o cão. Há entre
essas duas ideias a mesma distância que existe entre o que evocamos acima quando falamos sobre a diferença entre antropodicéia e teodicéia, entre responsabildiade e destino.
Édipo se tornará impuro, e passará adiante sua impureza, certamente. Em consequência, seus
filhos se matarão, sua filha será “emparedada” viva por prestar honras
fúnebres a um deles, ao traidor de Tebas. A partir de uma lógica semelhante podemos entender que Ajax, envergonhado por sua
loucura, suicide-se. Ele, no entanto, é apenas vítima dos deuses. O exemplo que sua fábula nos proporciona não diz respeito à sua boa ou má
consciência, sua culpa, mas à aceitação da vida como espaço onde
controle e descontrole, o mais nobre e o mais vil, por vezes se
sucedem. Assim nos ensinam as tragédias de
Édipo, de Hécuba ou de Ajáx. Não há culpa propriamente dita quando o sentido final da ação está nas mãos do Destino.
Portanto,
eu responderia a Maria Helena que a culpa de Édipo é uma leitura judaico-cristã
que Freud faz do mito – e essa é, aliás, a sua importância
cultural: ajudar a elaborar o mito fundamental da psicanálise.