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terça-feira, 20 de novembro de 2012

Sofrimento e Silêncio: alguns apontamentos sobre sofrimento psíquico e consumo de psicofármacos (PARTE 4)




Jonatas Ferreira

Repitamos uma vez mais: sob condições modernas, o mergulho melancólico, o caráter narcisista de sua sintonia com o mundo, está associado de modo inextricável à elaboração da subjetividade. Esse mergulho já significa o silenciamento da dimensão social deste sofrimento em nome da constituição de um núcleo de “segurança ontológica” a partir do qual o indivíduo poderá sobreviver à “tragégia da vida moderna”, como diz Simmel, à ameaça de invasão da vida íntima pela aceleração, pelo excesso de estímulos da vida urbana. A saída psicanalítica se contrapõe a esse emudecimento de um modo curioso. Ora, se por um lado seu caráter confessional testemunha um desejo de se opor a tal silenciamento, na medida em que procura trabalhar uma significação para o sofrimento, por outro lado a psicanálise toma acriticamente a dinâmica melancólica e subjetivista que o torna possível entender esse sofrimento como algo privado. O sujeito, bem como o humano, diria Foucault, são categorias históricas que não devem ser tomadas como algo dado. Há no discurso psicanalítico, portanto, a esperança de transformar a dor em um sofrimento significativo, mas, ao mesmo tempo, esse trabalho de significação é subjetivado e o seu limite é a dor.

domingo, 10 de junho de 2012

A "Culpa" de Édipo

 Jonatas Ferreira

 















O Paciente Jó (Gerard Seghers, 1650)


Semana passada, durante um curso coordenado por mim, no XIX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, falava algo sobre “Sofrimento e Uso de Psicofármacos”, a psicanalista Maria Helena Barros me propôs uma reflexão crucial para o aprofundamento da exposição que, no momento, eu realizava sobre o sentido cultural do sofrimento em nossa sociedade. A explanação que eu levava a termo demandava várias etapas de argumentação, desde a constatação de um sentido biopolítico no processo contemporâneo de "medicalização da vida", à percepção de uma tendência a aceleração dos corpos, da passagem de uma medicina curativa para uma medicina potencializadora, até, finalmente, uma discussão de duas vertentes culturais fundamentais na elaboração do sofrimento, nomeadamente, uma vertente trágica e outra judaico-cristã.

Para entender a indagação de Maria Helena, eu resumiria o que estava falando da maneira que se segue. O sofrimento na tradição judaico-cristã encontra um sentido paradigmático nas fábulas de Abraão e Jó. Na primeira delas, encontramos a consolidação religiosa de um poder patriarcal, um poder de dar a morte, de estabelecer um vínculo silencioso, como lembra Derrida, capaz de estruturar a comunidade, mas que está necessariamente acima dela. O sacrifício de Isaac é este momento terrível da história do ocidente que encapsularia tudo o que Carl Schmitt diria muitos séculos depois sobre o poder soberano: a legalidade que ele impõe à sociedade estrutura-se necessariamente fora destes limites. O ato político por excelência se produz em um vazio linguístico, em silêncio: "Eu escuto", diz simplesmente Abraão diante do comando terrível de seu Deus. Essa fábula fala-nos, assim, da fundação de um vínculo comunitário feito necessariamente sobre o sacrifício, sobre o poder paterno de dar a morte, sobre essa estrutura "archaica" que só encontrará paralelo no sacrifício do Cristo - fato, como sabemos, decisivo na estruturação da comunidade cristã. O sofrimento, o sacrifício, o silêncio de Abraão, então, são estruturadores da comunidade de Israel. A questão teodicéica, ou seja, aquela que indaga acerca do sentido do mal é respondida de forma categórica: o sofrimento é condição fundamental para a existência de uma comunidade entre Deus e seu povo.

De um certo modo, esses elementos são preservados na fábula de Jó. Porém, a teodicéica ali se transforma mais propriamente em antropodicéia – creio que é Peter Berger quem fala isso. Jó não aceita simplesmente o seu sofrimento como dogma que funda sua relação com o sagrado, antes, para ele, o sagrado necessita validar-se num sentido íntimo que o fiel necessita encontrar para o seu sofrimento. Jó não abre a parada nem diante de Deus, mas demanda-lhe esclarecimento. Por que padeço sendo justo, indaga ele? De que sou culpado? E isso me parece bastante novo na história do ocidente. Minha hipótese de trabalho: sem esse sentido íntimo, sem essa responsabilidade sobre os próprios atos, sem um sentido de proporção entre estes e seus resultados, não há conexão verdadeira com o divino para Jó. E Deus parece respeitar essa busca por sentido como algo fundamental. É em nome da integridade moral pressuposta nessa busca que Ele irá salvar a comunidade que comandava a Jó o arrependimento de uma culpa que ele não reconhecia. Sem esse sentido de intimidade, de responsabilidade, e também, obviamente, de culpa, não há judaismo-cristão, não há isso que modernamente chamamos de subjetividade, não há psicanálise, nem nada que possa verdadeiramente ser colocado como uma investigação sobre o sentido do sofrimento na contemporaneidade. Sem isso tudo, Cynthia Hamlin não estaria indo fazer o pós-doutoramento dela com Margareth Archer, na Suiça - aliás, parabéns! É preciso, nesse ponto, não esquecer que a busca de um sentido para o sofrimento resulta, em tal tradição, na procura pela redenção, pela cura para todos os males, por um momento de plenitude em que a existência, como âmbito algo inextricavelmente ligado à possibilidade do padecimento, seria colocada entre parênteses. E Jó tem algo bastante semelhante a esse estado de graça aqui na terra mesmo: com a multiplicação de seus rebanhos perdidos, sua saúde revigorada, o número de seus escravos, filhos, riquezas aumentados.

A outra parte da argumentação, dizia respeito à tragédia e à sua importância na filosofia, na cultura do ocidente. Ao contrário de um momento de conciliação entre o divino e o mortal, entre o absoluto e o finito, o sentido trágico da vida é a ferida aberta, é a impossibilidade de uma síntese final, da realização de um projeto divino no mundo ou coisa que o valha. Talvez o Max Weber da ideia de “consequências não pretendidas da ação”, em larga medida, tenha captado esse sentido trágico da existência. Quando se fala de uma reverberação nietzscheana em Weber, nada me ocorre de mais específico que essa ideia. De fato, quanto mais o herói grego procura um sentido, uma proporção entre suas ações e as consequências que delas advém, quanto mais ele busca um controle absoluto sobre as coisas, mais ele é presa de um jogo divino, de Dionisos. Não é exatamente isso, por exemplo, o tema central de As Bacantes? Enlouquecido de razão, Penteu será dilacerado pelas ménades e, dentre elas, por sua própria mãe. Não é também isso o que ocorre com Édipo, quando este, procura fugir de seu destino, de cometer parricídio e incesto? Quanto mais ele corre de sua sina mais ele se precipita em direção a ela. A tragédia grega, em seu pessimismo, ensina uma certa modéstia com relação ao mundo no qual vivemos, e compele-nos a procurar um sentido imanente para a vida, porque não há nada fora dela que lhe confira significado.

O que é curioso acerca da estrutura trágica, é o fato de o herói, ou heroína trágica - não devemos esquecer de Hécuba ou Antígona, não se deixar abater mesmo diante de um destino que o(a) marca muito antes de ele, ou ela, ter nascido. Pois embora seja em um sentido muito amplo apenas o portador de uma chaga antiga, Orestes entende que o seu dilema, sua tragédia, precisa ser respondida como se ele fosse plenamente responsável pelas consequências de seus atos. Enquanto isso, nosso Orestes, Hamlet, cheio de sentido íntimo e de acedia, fica naquele nhém-nhém-nhém interminável - não me entendam mal, adoro Shakespeare. Porém, se analisarmos de perto, o destino de Orestes apenas ecoa, reverbera um mal que está no "seu sangue" – e que pode ser reportado não apenas à chaga de uma mãe que assassina o marido, ou um pai que sacrifica sua própria filha para poder entrar em Tróia, mas a seu bisavô, Tântalo, que mata e cozinha o seu filho para oferecê-lo como holocausto aos deuses. Orestes tem diante de si o eco de sacrifícios impuros, pelos quais não é rigorosamente responsável, mas age como se tudo estivesse sendo resolvido no momento em que ele toma em suas mãos o assassinato de sua própria mãe. Vernant observa que o herói trágico experimenta algo próximo do sentimento de responsabiliade, mas que, na ausência de um sentido de intimidade, de interioridade, essa experiência não se concretiza em sua plenitude. Hegel diz algo muito parecido quando fala da necessidade de uma síntese entre a arte grega e a arte romântica. E eu concordo com os dois, que não sou besta nem nada.

O depoimento trágico acerca do sofrimento nos diz respeito, obviamente. Afinal nosso é este mundo cada vez mais em descontrole, cada vez mais comandado por forças quase míticas – e é claro que estou submetendo essa percepção à crítica. Algumas saídas politicas contemporâneas, ao fugir da redenção cristã, como é o caso da ideia de “democracia radical”, por exemplo, namoram com a abertura trágica. Por outro lado, toda uma política fundada sobre a administração da vida biológica do ser humano, suas promessas de felicidade química, remetem-nos à enorme influência que a tradição judaico-cristã tem sobre nós, a essa esperança de sermos curados da vida. A psicanálise, diga-se, é fruto deste casamento de culturas: o que seria de Freud sem a tentativa romântica de juntar tragédia e redenção? Édipo na tradição psicanalista é alguém que experiencia a culpa de um modo que seria, por exemplo, incompatível com o que dissemos até agora sobre o trágico. Afinal, que culpa tem ele de ser vítima das tramas divinas, quando ele fez todo esforço humanamente possível para evitar tudo aquilo que acabou fazendo? E Jocasta era uma mulher muito interessante e o marido dela era um chato que merecia morrer - obviamente uma tirada irônica é "muitas vezes apenas um charuto".

Maria Helena me pergunta, neste momento, por que Édipo, então, arranca os próprios olhos? A interpretação psicanalítica é um tanto circular, devo dizer: Édipo se reconhece finalmente edipiano, radicalmente culpado pelo seu desejo. Mas essa interpretação não seria corroborada pela própria cena final do Édipo Rei? Afinal o cabra arranca os próprios olhos, e, como nos ensina Bataille – talvez Freud antes dele, não sei – entre olho e pênis há uma relação íntima.

“Filhas de minhas entranhas, onde estáis? Aproximai-vos, aproximai-vos dessas minhas mãos, irmã das vossas, aquelas que cuidaram de que os antes brilhantes olhos de vosso pai e semeador pudessem ser contemplados assim, sem vista, já que eu, filhas de minhas entranhas, por não fazer comprovações nem investigações resultei ser vosso progenitor por meio do campo em que eu mesmo fui semeado"

Vocês devem lembrar desses versos maravilhosos.

O que acompanhará Édipo para Colono, para fora de Tebas, no entanto, não é a culpa, mas a vergonha. Maria Rita Kehl, citando Klibansky, fala sobre isso em O tempo e o cão. Há entre essas duas ideias a mesma distância que existe entre o que evocamos acima quando falamos sobre a diferença entre antropodicéia e teodicéia, entre responsabildiade e destino. Édipo se tornará impuro, e passará adiante sua impureza, certamente. Em consequência, seus filhos se matarão, sua filha será “emparedada” viva por prestar honras fúnebres a um deles, ao traidor de Tebas. A partir de uma lógica semelhante podemos entender que Ajax, envergonhado por sua loucura, suicide-se. Ele, no entanto, é apenas vítima dos deuses. O exemplo que sua fábula nos proporciona não diz respeito à sua boa ou má consciência, sua culpa, mas à aceitação da vida como espaço onde controle e descontrole, o mais nobre e o mais vil, por vezes se sucedem. Assim nos ensinam as tragédias de Édipo, de Hécuba ou de Ajáx. Não há culpa propriamente dita quando o sentido final da ação está nas mãos do Destino.

Portanto, eu responderia a Maria Helena que a culpa de Édipo é uma leitura judaico-cristã que Freud faz do mito – e essa é, aliás, a sua importância cultural: ajudar a elaborar o mito fundamental da psicanálise.