domingo, 10 de junho de 2012

A "Culpa" de Édipo

 Jonatas Ferreira

 















O Paciente Jó (Gerard Seghers, 1650)


Semana passada, durante um curso coordenado por mim, no XIX Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, falava algo sobre “Sofrimento e Uso de Psicofármacos”, a psicanalista Maria Helena Barros me propôs uma reflexão crucial para o aprofundamento da exposição que, no momento, eu realizava sobre o sentido cultural do sofrimento em nossa sociedade. A explanação que eu levava a termo demandava várias etapas de argumentação, desde a constatação de um sentido biopolítico no processo contemporâneo de "medicalização da vida", à percepção de uma tendência a aceleração dos corpos, da passagem de uma medicina curativa para uma medicina potencializadora, até, finalmente, uma discussão de duas vertentes culturais fundamentais na elaboração do sofrimento, nomeadamente, uma vertente trágica e outra judaico-cristã.

Para entender a indagação de Maria Helena, eu resumiria o que estava falando da maneira que se segue. O sofrimento na tradição judaico-cristã encontra um sentido paradigmático nas fábulas de Abraão e Jó. Na primeira delas, encontramos a consolidação religiosa de um poder patriarcal, um poder de dar a morte, de estabelecer um vínculo silencioso, como lembra Derrida, capaz de estruturar a comunidade, mas que está necessariamente acima dela. O sacrifício de Isaac é este momento terrível da história do ocidente que encapsularia tudo o que Carl Schmitt diria muitos séculos depois sobre o poder soberano: a legalidade que ele impõe à sociedade estrutura-se necessariamente fora destes limites. O ato político por excelência se produz em um vazio linguístico, em silêncio: "Eu escuto", diz simplesmente Abraão diante do comando terrível de seu Deus. Essa fábula fala-nos, assim, da fundação de um vínculo comunitário feito necessariamente sobre o sacrifício, sobre o poder paterno de dar a morte, sobre essa estrutura "archaica" que só encontrará paralelo no sacrifício do Cristo - fato, como sabemos, decisivo na estruturação da comunidade cristã. O sofrimento, o sacrifício, o silêncio de Abraão, então, são estruturadores da comunidade de Israel. A questão teodicéica, ou seja, aquela que indaga acerca do sentido do mal é respondida de forma categórica: o sofrimento é condição fundamental para a existência de uma comunidade entre Deus e seu povo.

De um certo modo, esses elementos são preservados na fábula de Jó. Porém, a teodicéica ali se transforma mais propriamente em antropodicéia – creio que é Peter Berger quem fala isso. Jó não aceita simplesmente o seu sofrimento como dogma que funda sua relação com o sagrado, antes, para ele, o sagrado necessita validar-se num sentido íntimo que o fiel necessita encontrar para o seu sofrimento. Jó não abre a parada nem diante de Deus, mas demanda-lhe esclarecimento. Por que padeço sendo justo, indaga ele? De que sou culpado? E isso me parece bastante novo na história do ocidente. Minha hipótese de trabalho: sem esse sentido íntimo, sem essa responsabilidade sobre os próprios atos, sem um sentido de proporção entre estes e seus resultados, não há conexão verdadeira com o divino para Jó. E Deus parece respeitar essa busca por sentido como algo fundamental. É em nome da integridade moral pressuposta nessa busca que Ele irá salvar a comunidade que comandava a Jó o arrependimento de uma culpa que ele não reconhecia. Sem esse sentido de intimidade, de responsabilidade, e também, obviamente, de culpa, não há judaismo-cristão, não há isso que modernamente chamamos de subjetividade, não há psicanálise, nem nada que possa verdadeiramente ser colocado como uma investigação sobre o sentido do sofrimento na contemporaneidade. Sem isso tudo, Cynthia Hamlin não estaria indo fazer o pós-doutoramento dela com Margareth Archer, na Suiça - aliás, parabéns! É preciso, nesse ponto, não esquecer que a busca de um sentido para o sofrimento resulta, em tal tradição, na procura pela redenção, pela cura para todos os males, por um momento de plenitude em que a existência, como âmbito algo inextricavelmente ligado à possibilidade do padecimento, seria colocada entre parênteses. E Jó tem algo bastante semelhante a esse estado de graça aqui na terra mesmo: com a multiplicação de seus rebanhos perdidos, sua saúde revigorada, o número de seus escravos, filhos, riquezas aumentados.

A outra parte da argumentação, dizia respeito à tragédia e à sua importância na filosofia, na cultura do ocidente. Ao contrário de um momento de conciliação entre o divino e o mortal, entre o absoluto e o finito, o sentido trágico da vida é a ferida aberta, é a impossibilidade de uma síntese final, da realização de um projeto divino no mundo ou coisa que o valha. Talvez o Max Weber da ideia de “consequências não pretendidas da ação”, em larga medida, tenha captado esse sentido trágico da existência. Quando se fala de uma reverberação nietzscheana em Weber, nada me ocorre de mais específico que essa ideia. De fato, quanto mais o herói grego procura um sentido, uma proporção entre suas ações e as consequências que delas advém, quanto mais ele busca um controle absoluto sobre as coisas, mais ele é presa de um jogo divino, de Dionisos. Não é exatamente isso, por exemplo, o tema central de As Bacantes? Enlouquecido de razão, Penteu será dilacerado pelas ménades e, dentre elas, por sua própria mãe. Não é também isso o que ocorre com Édipo, quando este, procura fugir de seu destino, de cometer parricídio e incesto? Quanto mais ele corre de sua sina mais ele se precipita em direção a ela. A tragédia grega, em seu pessimismo, ensina uma certa modéstia com relação ao mundo no qual vivemos, e compele-nos a procurar um sentido imanente para a vida, porque não há nada fora dela que lhe confira significado.

O que é curioso acerca da estrutura trágica, é o fato de o herói, ou heroína trágica - não devemos esquecer de Hécuba ou Antígona, não se deixar abater mesmo diante de um destino que o(a) marca muito antes de ele, ou ela, ter nascido. Pois embora seja em um sentido muito amplo apenas o portador de uma chaga antiga, Orestes entende que o seu dilema, sua tragédia, precisa ser respondida como se ele fosse plenamente responsável pelas consequências de seus atos. Enquanto isso, nosso Orestes, Hamlet, cheio de sentido íntimo e de acedia, fica naquele nhém-nhém-nhém interminável - não me entendam mal, adoro Shakespeare. Porém, se analisarmos de perto, o destino de Orestes apenas ecoa, reverbera um mal que está no "seu sangue" – e que pode ser reportado não apenas à chaga de uma mãe que assassina o marido, ou um pai que sacrifica sua própria filha para poder entrar em Tróia, mas a seu bisavô, Tântalo, que mata e cozinha o seu filho para oferecê-lo como holocausto aos deuses. Orestes tem diante de si o eco de sacrifícios impuros, pelos quais não é rigorosamente responsável, mas age como se tudo estivesse sendo resolvido no momento em que ele toma em suas mãos o assassinato de sua própria mãe. Vernant observa que o herói trágico experimenta algo próximo do sentimento de responsabiliade, mas que, na ausência de um sentido de intimidade, de interioridade, essa experiência não se concretiza em sua plenitude. Hegel diz algo muito parecido quando fala da necessidade de uma síntese entre a arte grega e a arte romântica. E eu concordo com os dois, que não sou besta nem nada.

O depoimento trágico acerca do sofrimento nos diz respeito, obviamente. Afinal nosso é este mundo cada vez mais em descontrole, cada vez mais comandado por forças quase míticas – e é claro que estou submetendo essa percepção à crítica. Algumas saídas politicas contemporâneas, ao fugir da redenção cristã, como é o caso da ideia de “democracia radical”, por exemplo, namoram com a abertura trágica. Por outro lado, toda uma política fundada sobre a administração da vida biológica do ser humano, suas promessas de felicidade química, remetem-nos à enorme influência que a tradição judaico-cristã tem sobre nós, a essa esperança de sermos curados da vida. A psicanálise, diga-se, é fruto deste casamento de culturas: o que seria de Freud sem a tentativa romântica de juntar tragédia e redenção? Édipo na tradição psicanalista é alguém que experiencia a culpa de um modo que seria, por exemplo, incompatível com o que dissemos até agora sobre o trágico. Afinal, que culpa tem ele de ser vítima das tramas divinas, quando ele fez todo esforço humanamente possível para evitar tudo aquilo que acabou fazendo? E Jocasta era uma mulher muito interessante e o marido dela era um chato que merecia morrer - obviamente uma tirada irônica é "muitas vezes apenas um charuto".

Maria Helena me pergunta, neste momento, por que Édipo, então, arranca os próprios olhos? A interpretação psicanalítica é um tanto circular, devo dizer: Édipo se reconhece finalmente edipiano, radicalmente culpado pelo seu desejo. Mas essa interpretação não seria corroborada pela própria cena final do Édipo Rei? Afinal o cabra arranca os próprios olhos, e, como nos ensina Bataille – talvez Freud antes dele, não sei – entre olho e pênis há uma relação íntima.

“Filhas de minhas entranhas, onde estáis? Aproximai-vos, aproximai-vos dessas minhas mãos, irmã das vossas, aquelas que cuidaram de que os antes brilhantes olhos de vosso pai e semeador pudessem ser contemplados assim, sem vista, já que eu, filhas de minhas entranhas, por não fazer comprovações nem investigações resultei ser vosso progenitor por meio do campo em que eu mesmo fui semeado"

Vocês devem lembrar desses versos maravilhosos.

O que acompanhará Édipo para Colono, para fora de Tebas, no entanto, não é a culpa, mas a vergonha. Maria Rita Kehl, citando Klibansky, fala sobre isso em O tempo e o cão. Há entre essas duas ideias a mesma distância que existe entre o que evocamos acima quando falamos sobre a diferença entre antropodicéia e teodicéia, entre responsabildiade e destino. Édipo se tornará impuro, e passará adiante sua impureza, certamente. Em consequência, seus filhos se matarão, sua filha será “emparedada” viva por prestar honras fúnebres a um deles, ao traidor de Tebas. A partir de uma lógica semelhante podemos entender que Ajax, envergonhado por sua loucura, suicide-se. Ele, no entanto, é apenas vítima dos deuses. O exemplo que sua fábula nos proporciona não diz respeito à sua boa ou má consciência, sua culpa, mas à aceitação da vida como espaço onde controle e descontrole, o mais nobre e o mais vil, por vezes se sucedem. Assim nos ensinam as tragédias de Édipo, de Hécuba ou de Ajáx. Não há culpa propriamente dita quando o sentido final da ação está nas mãos do Destino.

Portanto, eu responderia a Maria Helena que a culpa de Édipo é uma leitura judaico-cristã que Freud faz do mito – e essa é, aliás, a sua importância cultural: ajudar a elaborar o mito fundamental da psicanálise.

15 comentários:

Cynthia disse...

Muito bom, Jonatas! Meu avô, que gostava de implicar com Freud, dizia que ele era ou ignorante ou intelectualmente desonesto em sua analogia entre a tragédia grega e nossa pequena tragédia familiar: dado que Édipo não sabia que Jocasta era sua mãe e Laio, seu pai, não poderia haver culpa envolvida.

Sua análise, muito mais refinada, sugere uma espécie de síntese (mal-resolvida?) entre a tradição grega e a tradição judaico-cristã que, ao mesmo tempo em que enfatiza a dimensão da responsabilidade, da interioridade como autoconhecimento etc., revela uma noção de sujeito que "não é senhor em sua própria casa".

Desviando das noções de culpa e de vergonha e enfatizando a noção de conhecimento, será que a tragédia de Édipo não diz respeito justamente ao exagero com que tomou o princípio délfico do "conhece-te a ti mesmo"? Lembremos que a noção grega de "teoria" diz respeito a uma espécie de estado mental que pode (contingentemente) levar à comunhão com os deuses. O que Édipo recusa, após perguntar ao oráculo "quem sou eu?", é justamente esse estado "teórico" em favor de um (auto)conhecimento que, quando finalmente ocorre, leva à sua ruína.

Vixe. Parece que não temos saída. Só nos resta acreditar nas drogas.

Cynthia disse...

Olha que lindo, o Oedipus Rex de Stravinsky. Tem uma versão narrada pelo próprio Jean-Cocteau, que escreveu o libreto, mas não consegui encontrar.

http://www.youtube.com/watch?v=BcGT9CC_kO8

Le Cazzo disse...

Oi, Cynthia.

Édipo é o melhor argumento policial já escrito - se me for permitida a liberdade e anacronismo. Não sei se o drama de Édipo é em primeira instância "quem sou eu?". Na verdade ele já tem essa resposta: ele é aquele que, joguete do destino, haverá de ser amante da mãe e assassino do pai. Por isso ele foge de Corinto. Freud não estava tão longe da verdade, portanto. A pergunta de Édipo tem um impulso inicial político: quem em sua impureza contamina a cidade de Tebas? Sua resposta final: eu sou aquele a quem procuro. Do caralho, não é? Eu sou o animal sacrificial, o homo saccer, talvez dissesse Agamben.

Acho como você que o que se sacrifica em Édipo é a arrogância de querer tudo conhecer e controlar. É a desproporção de sentimento, de caráter, como erro trágico - Aristóteles de A Poética, acho que concordaria. Entendo que esse é também o seu ponto de vista.

Mas, no caminho de teu avô, vão umas críticas que Vernant faz à interpretação psicanalítica de Édipo. Particularmente, acho que a fusão que Freud faz entre o mito grego e a tradição judaico-cristã é sociologicamente bastante fecunda. Ele faz algo que já estava presente na tradição romântica como projeto. Podemos falar sobre isso, quando nos virmos. Beijo e obrigado pelo link. Jonatas

Josias de Paula Jr. disse...

Muito, muito bom professor! Teria algo a dizer sobre Jó, e tamném sobre Maria Rita Kehl. Mas, acho, convém guardar o debate para o "dia D".

Cynthia levantou uma questão que nunca me ocorreu. Assim, de queima-roupa, não teria uma resposta para ela. Mas fico com ela na cabeça.

Abraços,
Josias.

Danilo disse...

Jonatas,

muito bom o texto, principalmente a criatividade das passagens na articulação de mitologia com psicanálise na explicação de uma temática cotidiana da qual ninguém escapa, o sofrimento.

Agora nesse debate acho que vale lembrar também a psicanálise de Laca, seus ditos sobre a angustia. Acho que o sofrimento acaba sendo inevítável porque a partir do momento que aceitamos viver em uma sociedade, temos que aceitar(pelo menos somos pressionados pra isso) uma "ordem simbólica". Feito isso já se inicia uma "castração", uma pulsão de autoconservação a partir do principio de realidade sobre o principio de prazer.

Dai decorre a angustia o sofrimento. Quando Édipo arranca os olhos creio que tenha também uma dimensão de culpa porque ele contraría a vontade da ordem simbólica, contraria o senso comum.

Acho que a partir do momento que se constrói o senso comum, se constrói também potencialmente o sofrimento. Por isso o meu comentário lembrando também de Lacan, já que a partir da mimesis Aristotélica se constitu o sujeito a partir da formação do desejo do outro. Enquanto esse processo é orgástico para o grande outro(gozo), acaba sendo um sofrimento angustiante para o Sujeito.

Danilo

Le Cazzo disse...

Josilhas,

E eu que pensei ter respondido à questão de Cynthia... Aguardo com ansiedade sua apreciação de Jó.

Danilo,

Pouco sei de Lacan. Minha ignorância em teoria psicanalítica só é comparável à minha vontade de aprender. Tenho estudado. Acho que o próximo passo da discussão que propus seria qualificar um pouco esse sofrimento. Diferenciar depressão de melancolia de um ponto de vista psicanalítico e sociológico seria fundamental, por exemplo. Entender algumas variações do estado depressivo como a ansiedade seria outra coisa importante nessa direção. E claro que tudo isso tem a ver com a forma como perdemos constantemente, em nossa sociedade da contingência, nossos objetos. Ou como esse grande outro de que você nos fala (a máquina desejante que é o capitalismo) nos impele a procurar gozos irrealizáveis.

Os lacanianos, bem sei, falam de uma perda do limite da Lei etc. Curioso pensar, por outro lado, em um tipo de lei que impõe a contingência, a provisoriedade de todo vínculo...

Quanto a Édipo, firmo minha opinião. Ele é, em grande medida, animal sacrificial. Não há culpa nele, há vergonha. O Édipo que sente culpa é aquele que é responsável por seus atos, consciência e o impacto destes sobre o mundo. Ou seja, é um Édipo moderno, que já desenvolveu um sentido de subjetividade completamente distante do mito grego.

Abraços,

Jonatas

Anônimo disse...

Diante do oráculo, o que faltou a Édipo não foi, simplesmente, modéstia em aceitar a vida "como espaço onde controle e descontrole, o mais nobre e o mais vil, por vezes se sucedem"? Ao invés de decifrar o seu sentido, de tentar "fazer comprovações", "investigações", Édipo se evade... (Quer fundar um espaço de sentido totalmente imanente?). Trai o princípio délfico, na verdade. A comparação com a atitude de Sócrates diante do Oráculo de Delfos é inevitável. Daí a serenidade com que o filósofo enfrenta a morte, quando todos tentam convencê-lo a escapar dela.

Cynthia disse...

Simples e elegante, o argumento do anônimo. Perfeito! Só me pergunto o que poderia ser esse espaço de sentido totalmente imanente: a negação da contingência que caracteriza a "teoria" grega?

Anônimo disse...

Estava mais a pensar na alegação de que a tragédia grega nos ensina uma modéstia com relação ao mundo. Que sentido de modéstia em relação ao mundo levaria à compulsão de uma procura por um sentido para a vida, que não reconhece nada além dela mesma?

Anônimo disse...

Desculpando-me por não ter deixado claro o sentido de (totalmente) imanente, penso que qualquer dos três significados apontados em http://www.filoinfo.bem-vindo.net/filosofia/modules/lexico/entry.php?entryID=709, servem bem ao contexto:
“ 1) presença da finalidade da ação na ação ou do resultado de uma operação qualquer na operação; 2) limitação do uso de certos princípios à experiência possível e recusa em admitir conhecimentos autênticos que superem os limites de semelhante experiência; 3) resolução da realidade na consciência.”

Le Cazzo disse...

Breve, pois estou no meio de uma conferência. A experiência trágica não está limitada ao esforço do herói. É preciso escutar o coro e perceber o que a audiência aprende da "desproporção" dos atos de Édipo. Abraço. Jonatas

Cynthia disse...

Muito breve, Jonatas. Espero que elabore o argumento para nós quando terminar a conferência.

Anônimo disse...

Numa tentativa de extrair o que a "audiência" aprende com a experiência trágica, adianto a hipótese de que, mais que o conhecimento, importa a busca da verdade a qualquer preço e o seu caráter ético. Como defendido por Anchyses Jobim Lopes (http://www.cbp-rj.org.br/artcongress02.htm):
"Por existir uma origem unindo o sentido à verdade, o conhecimento deixa de existir apenas como um amontoado de informações, passa a ter coerência orgânica, a ter um propósito [...] em consonância com a natureza e caráter humanos (ethos, donde o ethos antropoi daimon do fragmento 119 de Heráclito, [Kahn, 1981] e que pode toscamente ser traduzido como o caráter é o destino do homem)."
Quanto à centralidade da figura do herói na tragédia em comento, chamo a atenção para o argumento de que Sófocles operou uma mudança intencional no esquema da história de Édipo trabalhado por outros poetas trágicos (ver http://ordepserra.files.wordpress.com/2009/01/breve-reflexao-sobre-a-tragedia-sofocleana-rei-edipo.pdf), concentrando no herói a força de sua narrativa.
Apelando à paciência dos prezados leitores com o que talvez seja um excesso de referências:
"Pode-se mesmo dizer que Sófocles inventou o mito de Édipo... na medida em que, manipulando imagens destacadas do flutuante corpo legendário, através de um recorte decisivo cingiu-as a um núcleo de irresistível gravitação, implicou o sentido de sua trama na figura do herói, tornada mais densa, concentrada no problema da sua existência. Deu então nova autonomia a sua história, referida ao jogo de uma identificação, possessa de uma identidade que a cristalizou — e escondeu de muitos olhos atentos a dança de suas variações. Assim o poeta individualizou este mito: fez dele um indivíduo trágico, solitário, monoúmenos, terrivelmente autocentrado, à imagem de seu protagonista — do sofocleano Édipo."
Com a palavra o coro e a audiência...

Le Cazzo disse...

Cynthia como moderadora é uma amiga da onça. Ela deixa entrar no debate uns caras (anônimos) enormes, musculosos, que vêm acompanhados de uma galera pesada, tudo lutador de vale tudo, caratê, gente sem coração que desce a lenha sem dó nem piedade neste que vos escreve. E eu não posso nem propor o próximo round na Iputinga, onde Pinto, Herculano, Seu Zeca do Pesão, Boca Mole, entre outros heróis, poderiam me valer e aliviar o lombo. Tenho que me virar sozinho, portanto.

E já que me foi concedida a palavra...

Anonimo(a),

Pra mim é o seguinte: você tem razão em dizer que a busca da verdade é um tema central no Édipo Rei. Você tem razão, se bem entendi o seu argumento, em dizer que em Édipo prevalece uma vontade excessiva, uma arrogância diante dessa busca que ameaça colocá-lo fora do de sua condição de mortal. Sua tragédia reside aí. Mas a verdade da tragédia não se estabelece apenas da perspectiva do herói trágico, e sim da tensão que este estabelece com um nomos que ele transgride – o coro é sempre portador desses valores éticos fundamentais. A verdade também não se estabelece como pacificação dos impulsos excessivos mediante a regras estabelecidas pela polis, mas através do reconhecimento da própria tensão que estabelece a condição humana: mortal e excessivo. Diga-se a esse respeito que a ideia de liberdade para o homem grego é sempre uma conquista sobre o impulso cego: aquele que é prisioneiro de uma paixão não é verdadeiramente livre. Todos lembramos do destino de Aquiles – prisioneiro de sua cólera desmedida (há uma palavra grega para falar do erro trágico da desproporção, do excesso, da desmedida). E a verdade para mim se estabelece, neste contexto, não pela supressão do excesso, ou por sua apologia, mas por deixar viva, pulsando a tensão que estabelece a pólis. Daí que seja possível pensar a tragédia grega como tribunal. Em suma, quando Aristóteles fala da necessidade de proporção, equilíbrio na tragédia, ele não está expondo apenas um princípio formal, mas também político e ético.

Por tudo o que disse, vocês haverão de entender quando falo que a tragédia se completa no espectador, no espetáculo vivo e não apenas no texto literário. Sobre a importância do coro: bem, apesar das reformas promovidas por Sófocles (e que Nietzsche acredita já ser o fim do trágico), é claro que o coro está muito presente no ER – para não falar que Tirésias funciona muitas vezes como corifeu. Mas antes que eu passe a algumas citações lembraria apenas a você a noção gadameriana de verdade como jogo (entre a regra e a ação livre). Aí vão as minhas citações:

“Puse que hombre, que hombre consigue mas cantidad de felicidad que tanta cuanta necesita para aparentarla y luego de aparentarla declinar? En verdad que cuanto pienso em ese tu destino, El tuyo, oh desgraciado Édipo, ninguna realidad de los mortales llamo dichosa”. [11190]

“Habitantes de Tebas, mi pátria, mirad, este es Édipo, quien resolvia los famosos enigmas y era El hombre mas preeminente, enviado a causa de sus êxitos. Quien de entre sus conciudadanos no vivia con la mirada fija em El? A que enorme oleaje de espantosas desgracias há venido a dar! DE modo que nadie considere feliz a quien todavia tiene que morir, sino que Le debe examinar com toda atención todos los dias de sua vida incluído El último em que vea La luz, hastas que franquee El limite de sua vida sin Haber sufrido nada doloroso” [1530]

Eu havia selecionado mais algumas citações. Chamo atenção, entretanto, para o fato de que as palavras finais da tragédia são precisamente as do coro transcritas acima.

Le Cazzo disse...

Ah, e obrigado pela contribuição e sugestões de leitura, anônimo@.

Cunthia,

O que eu tenho é Freud e os Historiadores. Valeu. Beijo.

Jonatas