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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

e-Aulas da USP



A Universidade de São Paulo lançou, recentemente, um portal que reúne uma série de aulas das disciplinas mais diversas.

Inspirados em serviços já em uso por Universidades de grande reconhecimento internacional como a Harvard, Yale, Columbia, MIT e Princeton, estamos colocando à disposição de todos um novo serviço da USP, o e-Aulas. Este novo serviço expressa o reconhecimento por parte da Universidade de que uma de suas funções é a disseminação do conhecimento, permitindo que professores disponibilizem suas vídeo aulas, e que alunos acessem vídeo aulas de diversas disciplinas da USP. Ele também é aberto ao público. A motivação para o desenvolvimento e implementação do e-Aulas USP foi devido ao grande benefício que se observa com o consumo de objetos de aprendizagem em formato de vídeo disponíveis na Web, que tem demonstrado ser um grande aliado do aluno, que pode acessar este conteúdo de onde estiver. Através deste novo recurso esperamos contribuir também para a melhoria do processo ensino/aprendizagem da Universidade de São Paulo. Este sistema foi idealizado pelo Professor Gil da Costa Marques, atual Superintendente de TI da USP (Superintendência de Tecnologia da Informação – USP). Sua implementação foi coordenada pela Profa. Regina Melo Silveira da Escola Politécnica – EPUSP, e a implantação esteve sob a responsabilidade da equipe técnica da STI – USP). A STI e a USP estão oferecendo este novo sistema, e ainda oferece suporte ao professor que desejar disponibilizar ou que desejar produzir e disponibilizar vídeo aulas no sistema e-Aulas USP.

Ainda em seu início, as Ciências Sociais contam apenas com um curso na área de Ciência Política. Ministrado pelo professor José Álvaro Moisés, o curso intitulado "Qualidade da Democracia, Instituições Democráticas e Cultura Política: A Relação entre Confiança Política e Accountability". O vídeo postado acima é o primeiro de uma série de 18 e, de acordo com informações contidas no portal:

Trata-se de um curso de leituras em torno dos conceitos de qualidade da democracia, instituições democráticas e cultura política. O foco central da discussão são as relações entre confiança política e accountability. O objeto empírico da discussão é, por um lado, o fenômeno contemporâneo de desconfiança dos cidadãos de instituições políticas e, por outro, o desempenho das instituições de representação, assim como os efeitos de ambos para o funcionamento do regime democrático. Por uma parte, serão examinados os conceitos de cultura cívica e cultura política, qualidade da democracia e confiança política em sua relação com as instituições democráticas, com base na literatura especializada recente; por outra, será discutida a significação da evidência empírica que, desde há algumas décadas, aponta para a perda sistemática ou para a formação incompleta de apoio político dos cidadãos às instituições democráticas - tanto em países de democracia consolidada, como nos que se democratizaram a partir de meados dos anos 70, a exemplo do Brasil. O desempenho do Congresso Nacional será examinado como um caso especial em sua associação com a desconfiança política. O esforço analítico se orientará em sentido comparativo, buscando apontar o significado teórico das diferentes experiências de relação entre a democratização e o modo de funcionamento das instituições.

 Desejamos sucesso na empreitada e aguardamos ansiosamente os cursos na área de Sociologia.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Nós, nossas medalhas e nosso futuro: livre associação em torno de Londres, CAPES e frescobol.




Por Eduardo Leal Cunha
Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Professor do
Núcleo de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Departamento de Psicologia da UFS,
autor de Indivíduo singular plural: a identidade em questão, 7Letras, 2009


Freud nos ensinou que ao ouvir uma interpretação o paciente não se encontra diante da solução imediata dos seus problemas e sim frente à necessidade, ou oportunidade, de trabalhar. É preciso associar livremente, recordar o passado, vislumbrar futuros, reconhecer desejos, ligar os pontos, produzir novos enunciados, colocar o psiquismo em movimento, encontrar novos modos de pensar e outras formas de ser. É preciso, enfim, elaborar (FREUD, [1914] 2010).

Foi mais ou menos isso o que me levou a fazer certa interpretação da nossa presença nas Olimpíadas de Londres, a qual me parece corrente e que, para mim, se materializou de modo mais claro no editorial da Folha de São Paulo deste último domingo, cujo título sugestivo é Brasil Olímpico, e que pretendeu, depois de apresentar um rápido balanço das nossas conquistas, listar uma série de providências recomendáveis para que o Brasil possa “galgar posições no ranking dos jogos”.

Nesse momento, vocês evidentemente têm o direito de se perguntar o que diabos um psicanalista e professor de psicologia tem a dizer sobre esporte e medalhas; e eu, por outro lado, poderia refutar com a necessária contribuição das ciências para o progresso do esporte e da nação.

Acontece que, na verdade, o caminho percorrido nas minhas curiosas associações foi outro: as inúmeras recomendações que temos ouvido recentemente em nossa gloriosa imprensa sobre como o Brasil pode galgar posições no ranking das universidades ou da educação em geral ou do número de patentes ou de artigos publicados em inglês ou de restaurantes classificados entre os melhores do mundo. E vamos parar por aqui antes que as tais associações livres me levem longe demais.

Estamos obcecados por rankings, classificações, números e é através deles que o maior jornal do país, organiza seu (ou nosso) pensamento em torno do que aconteceu em Londres. O que curiosamente me fez pensar em algumas coisas razoavelmente difíceis de medir, senão mesmo de objetivar.

Comecemos como os principais argumentos do texto da Folha: o primeiro deles é que avançamos no quadro de medalhas e batemos nosso próprio recorde, estabelecido em Atlanta há 16 anos, porém o fazemos de modo muito lento; o segundo, e que se torna o eixo central de argumentação é que o problema não está no dinheiro: investimos muito nessa última olimpíada e os resultados, portanto, foram insatisfatórios, ou seja, em termos de custo-benefício, Londres não foi um bom negócio.

Antes mesmo de nos aprofundarmos no diagnóstico para tal fracasso do empreendedorismo olímpico nacional e que, aliás, não trará nada de novo além da velhíssima tese da ineficiência do governo e dos seus agentes (tese certamente verossímil, embora insuficiente para explicar todos os infortúnios verde-amarelos), parece impossível evitar uma pergunta preliminar e um tanto incômoda, daquelas que a intervenção do psicanalista deve nos obrigar a fazer: que tipo de benefício esperamos do investimento em esporte?

Porque me parece esquisito acreditar que o governo deve investir dois bilhões de reais em quatro anos (ao que parece, foi esse o investimento do Brasil nas últimas olimpíadas) prioritariamente para ganhar mais medalhas. Imagino que tal investimento deva produzir, isto sim, uma ampliação do número de jovens envolvidos com esportes, o aumento do número de opões educativas e de lazer para as camadas mais pobres da população, a melhor integração das pessoas em suas comunidades com a ampliação de redes comunitárias e sociais formadas em torno de práticas esportivas, o desenvolvimento de habilidades sociais e competências atléticas entre um percentual maior da população, a difusão de valores e ideais vinculados culturalmente ao esporte, como a superação de limites e obstáculos ou a cooperação mútua. Ou seja, muito simplesmente a consolidação das diversas práticas esportivas como opção de formação, inserção social e lazer para uma parcela significativa da população, em função do que, com o tempo, certamente teremos brasileiros campeões e, salvo inevitáveis acidentes de percurso, mais medalhas.

Dito de outro modo, o pódio olímpico deveria ser consequência e não o único ou principal objetivo da política oficial em relação ao esporte. Além disso, o número de medalhas pode ser até um indicador do valor do dinheiro investido, mas não é o único e talvez não seja nem mesmo o mais importante.

Infelizmente, no entanto, parece que a única coisa que importa é o numero de medalhas. O que é muito parecido com o que acontece em certos setores da educação no Brasil, em especial na pós-graduação: definimos metas, estabelecemos a mensuração como critério fundamental e, de olhos nos números, perdemos de vista o que realmente interessa. Um exemplo: nós das áreas de ciências humanas e sociais estamos nos últimos anos sendo delicadamente constrangidos a publicar em inglês. Em nossos currículos individuais e na avaliação dos nossos programas, publicar em inglês é fundamental, pois seremos mais lidos e nossos artigos atingirão um maior fator de impacto, ou seja, seremos mais citados. Será mesmo? Será que em todas as áreas do conhecimento o essencial da nossa contribuição precisa ou deve ser feita em inglês? Não haverá problemas e setores específicos em que é preciso conversar prioritariamente com nossos colegas de outras regiões do país ou da América Latina? Será mais bem investido o dinheiro gasto em uma tradução para o inglês ou para o espanhol? Ou ainda, melhor investir agora na publicação de revistas brasileiras em língua inglesa ou na disponibilização pela internet, com acesso aberto, das milhares de dissertações e teses produzidas anualmente no país e que morrem de inanição nas prateleiras dos programas de pós? Perguntar, ao menos, não custa nada.

Este, contudo, não me parece sequer o problema fundamental. A meu ver, ele aparece, por exemplo, na própria nomenclatura do setor da Capes que define a nota dos nossos programas e a partir daí hierarquiza nossos pesquisadores e estudantes: diretoria de avaliação. Por que não diretoria de qualidade ou de qualificação? Colocamos a avaliação e a classificação em primeiro lugar e a partir de dados quantificáveis, como o número de artigos publicados em periódicos, definimos posições, construímos nossos rankings e distribuímos medalhas, muitas vezes na forma de verbas para pesquisa e bolsas de estudo. Mas para onde vão especificidades regionais ou fatores como inserção social e contribuição para a formação docente. Ao que parece, o importante é medir e obter números e, assim, em nome da objetividade priorizamos o que pode ser medido e deixamos de lado todo o resto. Ou seja, o que importa é apenas a classificação, nosso lugar na fila.

O mesmo, ouso pensar, acontece no caso das medalhas que ganhamos, ou deixamos de ganhar. O que fica claro se continuarmos seguindo os argumentos dos editorialistas da folha, especialmente quando nos colocam diante de outros países e dos seus resultados.

Comparando nosso desempenho com “países com população menor que a do Brasil”, aprendemos então que erramos ao privilegiar esportes coletivos ao invés dos individuais, pois “dos 258 atletas nacionais, 38% disputaram apenas sete medalhas – no futebol, vôlei, basquete e handebol”. Devemos então priorizar o individualismo e deixar em segundo plano esses esportes improdutivos, nos quais é preciso um consistente trabalho conjunto de cooperação e assistência mútua para conquistar uma vitória. Certamente, ao menos segundo a lógica que guia o argumento da Folha, nosso país só teria a ganhar com isso.

Da mesma forma – e eu aqui deixo de lado o editorial de domingo da folha e passeio, no mesmo jornal, pelas matérias pós-olímpicas da segunda-feira –, devemos nos mirar nos exemplos vitoriosos dos verdadeiros campeões olímpicos, como China e Estados Unidos.

De novo, sou atormentado por algumas perguntas: alguém ainda acredita que o sucesso chinês e sua invejável disciplina olímpica não têm absolutamente nada a ver como o regime totalitário em vigor no gigante asiático ou muito simplesmente com a falta de liberdade e oportunidades que marca a grande maioria da população, e que o prêmio Nobel Amartya Sen (2000) descreveria de modo simples e provocativo como baixo desenvolvimento econômico, a despeito dos impressionantes números da economia chinesa?

Ou queremos para nós exatamente o mesmo ambiente cultural que produz os talentos atléticos dos nossos irmãos americanos do norte, no qual é quase inconcebível que os ricos paguem mais impostos e que a assistência em saúde deva se estender a toda a população, inclusive aqueles que não podem pagar? Isso se não quisermos continuar no mundo paradisíaco dos números e, em mais uma associação livre, registrar que os Estados Unidos, como lembrou recentemente um personagem do seriado The Newsroom – criado por Aaron Sorkin e exibido no Brasil pela HBO – não são apenas campeões nas olimpíadas, são também o país como maior percentual de jovens encarcerados em presídios, os quais, aliás, livres da ineficiência estatal, são excelente negócio.

Enfim, eu também, como torcedor, quero mais medalhas e quase morri de tristeza vendo a final do vôlei masculino. No entanto, acredito que o quadro de medalhas, como qualquer classificação, deve refletir alguma outra coisa além dele mesmo. Afinal, os rankings e as hierarquias existem para nos dizer quem são os melhores, mas isso nos obriga a pensar o que é ser o melhor ou o que e, sobretudo, de que modo, queremos ou precisamos, enquanto nação, melhorar.

Definitivamente, não posso crer que o número de medalhas seja mais importante do que o modo como elas são conquistadas ou produzidas. Se é que para nós, dito povo brasileiro, a medalha de ouro é mesmo o objetivo maior a ser alcançado. Pois, como nos diz José Miguel Wisnik, o brasileiro, dentro ou fora dos campos, talvez seja movido mais por um desejo de felicidade do que pela vontade de potência (WISNIK, 2008). Ou como Santos-Dumont, esteja mais preocupado em voar do que em registrar a patente. Será mesmo isso tão ruim assim?

Não estará aí um elemento central em nossa capacidade criativa e mesmo produtiva? Sem de modo algum ir de encontro ao mais puro espírito esportivo, o qual, segundo o sábio tupiniquim Millôr Fernandes, nunca foi tão bem representado quanto pelo nosso frescobol: único esporte sem vitórias ou derrotas, vencidos ou vencedores, no qual o importante realmente é apenas competir.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund “Recordar, repetir e elaborar” (1914) in Freud, S. Obras completas vol. 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
WISNIK, José Miguel. Veneno Remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Assédio Sexual nas Universidades Brasileiras




Por Cynthia Hamlin

Nenhuma atividade humana ocorre em um vácuo social. O que pode parecer um truísmo – e um especialmente redundante depois que a última pá de cal foi lançada sobre a concepção positivista de objetividade - tende a ser esquecido quando a atividade em questão diz respeito à produção de conhecimento.

Universidades e demais instituições de ensino são formadas por pessoas de carne e osso que trazem para seu ambiente de trabalho crenças, valores e sistemas simbólicos de classificação e compreensão do mundo: preconceitos, no sentido Gadameriano do termo. Tais preconceitos afetam profundamente a forma como os objetos de pesquisa são construídos, assim como as relações humanas que estão na base do processo de construção do conhecimento. Neste sentido, também é fácil entender que as ações e interações que ocorrem nos laboratórios, corredores e salas de aulas tendem - exceto quando diretamente questionadas - a reproduzir a estrutura social mais ampla em que estão inseridas. No caso brasileiro, nunca é demais lembrar, essa estrutura  é marcada por enormes desigualdades de classe, de raça e de gênero.

Alguns mecanismos dessa reprodução são bem conhecidos. Especificamente no que diz respeito às relações de gênero, sabe-se, por exemplo, que a socialização a que meninos e meninas são submetidos pelos diversos agentes tem um impacto direto na formação dos chamados “guetos sexuais” na academia (cf. Rosemberg, 2000; Eccles, Jacobs e Harold, 1990; Hoschild e Machung, 1989). Também são bem conhecidos os impactos da divisão desigual e naturalizada do trabalho doméstico nas carreiras femininas; ou dos estereótipos de gênero no “efeito teto” que descreve a menor participação das mulheres nos cargos mais elevados da hierarquia universitária e de outras organizações (cf. Araújo e Scalon, 2006; Tannen, 1994; Nogueira, 2011; Boyd, 1997; Mahony, 1995).

Não me interessa detalhar seu funcionamento aqui, mas chamar atenção para um outro tipo de mecanismo reprodutor de desigualdade de gênero em instituições de ensino e em outras organizações que não tem recebido a atenção necessária entre nós: o assédio sexual.

O termo “assédio sexual” foi cunhado pela jurista e cientista política Catharine MacKinnon, na década de 1970. Seu livro “Assédio Sexual de Mulheres Trabalhadoras”, de 1978, baseou-se em uma série de casos de assédio contra estudantes e funcionárias de Universidades americanas. Lá, ela argumentava que, de acordo com o Código dos Direitos Civis de 1964, o assédio sexual deveria ser caracterizado como uma forma de discriminação sexual. Ao estabelecer uma teoria que relacionava diretamente comportamentos sexuais e discriminação sexual (ou de gênero), MacKinnon enfatizava que o assédio sexual ocorria como expressão do status desigual de homens e mulheres (Dinner, 2006).

O trabalho de MacKinnon serviu de base não apenas para o desenvolvimento das leis americanas sobre discriminação sexual, mas também para o estabelecimento de códigos e programas contra o assédio sexual em Universidades e outras organizações. Hoje em dia, qualquer universidade dos EUA, Canadá, Reino Unido, e (a partir dos anos 2000) França, distribui entre professores, alunos e funcionários uma espécie de manual que regulamenta o que constitui assédio sexual, estabelece comissões internas para julgar denúncias e informa o que fazer caso se suspeite ter sido vítima do assédio sexual.

Outras Universidades do mundo, como ocorre na Colômbia, Zâmbia, Austrália, África do Sul e Malásia, também têm atentado para o tema, seja por meio da produção de pesquisas, seja por meio da regulamentação de códigos de conduta, programas educativos etc. (Smit e Du Plessis, 2011;  Ismail et al. 2007; Menon et al. 2009; Moreno-Cubillos, 2007).

E no Brasil? Uma rápida pesquisa em inglês, francês, português e espanhol no portal de periódicos da Capes não gerou um trabalho sequer sobre assédio sexual nas Universidades e demais instituições de ensino no país. A invisibilidade das pesquisas, associada à ausência de qualquer política contra assédio sexual nas Universidades Brasileiras, gera a impressão de que “uma das formas mais comuns de discriminação sexual no mundo inteiro” (Menon et al. 2009) não ocorre entre nós. Isso é estranho, considerando que as mulheres, em particular as mulheres negras, aparecem na base do sistema de estratificação social no Brasil para a maioria dos indicadores de desenvolvimento humano.

E, no entanto, isso não procede. Como atesta um caso recente, no qual um professor da Universidade Federal de Pernambuco foi condenado em primeira instância pelo crime de assédio sexual, o problema também ocorre entre nós. E o caso é instrutivo, por uma série de razões. Em primeiro lugar, questões relativas a gênero não foram mencionadas na sentença. Segundo, deixa claro que, ao contrário do que ocorre em diversos lugares do mundo, o sistema de justiça é a única alternativa a que supostas vítimas de assédio podem recorrer. Isso, obviamente, tem seu preço. Vejamos.

De acordo com convenções internacionais das quais o Brasil é signatário (como a CEDAW ou a Convenção de Belém do Pará), a violência sexual ou de gênero deve ser combatida por meio de leis e políticas públicas integrais que de fato previnam, punam e erradiquem a violência contra mulheres, e que acolham de forma humanizada a quem sofreu a agressão.  De um ponto de vista jurídico, algumas iniciativas podem ser mencionadas, como a Lei Maria da Penha e a recente mudança no Código Penal, em 2009, da caracterização de assédio sexual como crime contra os costumes para crime contra a liberdade sexual. Mas enquanto a primeira baseia-se integralmente numa perspectiva de gênero, este ainda não é o caso em relação ao Código Penal. De fato, tratar o assédio sexual a partir de um viés de gênero permitiria, por exemplo, caracterizar como assédio formas de discriminação sexual nas quais o agressor ou agressora não é caracterizado em função de “sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” (Art. 216 A do Código Penal).

Um estudo australiano (citado em Smit e du Plessis, 2011) ajuda a ilustrar este ponto. Enquanto que no ensino superior a forma mais comum de assédio sexual ocorre entre professores e alunas, caracterizando uma desigualdade de poder facilmente enquadrada como superioridade hierárquica ou “ ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, no nível médio, a situação se inverte: a forma mais comum de assédio sexual é de alunos em relação a professoras. Isto aponta para uma questão de gênero segundo a qual a autoridade das professoras está claramente subordinada à sua autoridade como mulheres (o que tende a ser neutralizado ou minimizado no ensino superior). Prevalecem, neste caso, as relações de poder características da estrutura social mais ampla (patriarcal), o que, de um ponto de vista teórico e conceitual, está de acordo com a concepção relacional do gênero.

A escassez de políticas públicas integrais que constituam alternativas e/ou complementos ao sistema de Justiça também ficou evidente no caso em pauta. Enquanto grande parte das Universidades do mundo têm códigos internos de assédio sexual e mecanismos que ajudam a informar e coibir tais práticas, as Universidades brasileiras não têm nada neste sentido. De fato, ainda que tenha sido criada uma comissão interna para avaliar o caso, até o momento, a mesma não se pronunciou publicamente. Além disso, dado que não existe nada que regulamente a forma como esses casos devem ser tratados no âmbito da Universidade, não é claro que esta comissão possa ter alguma eficácia ou mesmo utilidade.

Assim como ocorreu em relação à criação de comissões de ética que regulamentam as pesquisas nas Universidades, talvez esteja na hora de pensarmos algo semelhante em relação ao assédio sexual.


Referências

Araújo, Clara; Scalon, Celi (2006). Gênero e a Distância entre a Intenção e o Gesto. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 21, n. 62, p. 45-68.
Boyd, Monica (1997) Feminizing Paid Work. Current Sociology, no. 45, p. 49-73.
Dinner, Deborah (2006) A Firebrand Flickers. Legal Affairs, Mar/abr. Disponível em: http://www.legalaffairs.org/issues/March-April-2006/review_Dinner_marapr06.msp
Rosemberg, Fúlvia (2000). Educação Infantil, Gênero e Raça. In: Antonio Sérgio Guimarães e Lynn Huntley (orgs), Tirando a Máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra.
Eccles, J.S.; Jacobs, J.E.; Harold, R. D. (1990) Gender Role Stereotypes, Expectancy Effects and Parents’ Socialization of Gender Differences. Journal of Social Issues, no. 46, p. 183-201.
Hoschild, Arlie R.; Machung, Anne (1989). The Second Shift: working parents and the revolution at home. Nova York: Viking.
Ismail, Mohd Nazari et al. (2007) Factors Influencing Sexual Harassment in the Malaysian Workplace. Asian Academy of Management Journal, Vol. 12, No. 2, Jul. p. 15–31 
Tannen, Deborah (1994). Talking from 9 to 5: How women’s and men’s conversational styles affect who gets heard, who gets credit, and what gets done at work. Nova York: William Morrow.
Mahony, Rhona (1995). Kidding Ourselves: breadwinning, babies and bargaining power. Nova York: Basic Books.
Menon, A et. Al (2009) University Students’ Perspective of Sexual Harassment:A Case Study of the University of Zambia. Medical Journal of Zambia, vol. 36 n. 2, p. 
Moreno-Cubillos, Carmen et al. (2007). Violencia Sexual contra las Estudiantes de la Universidad de Caldas (Colombia): Estudo de Corte Transversal. Revista Colombiana de Obstetricia y Ginecología, Vol 58, n. 2, p. 115-128.
Nogueira, Pablo (2011). A Ciência das Mulheres. Unespciência, março, p. 18-25. 
Smit, D; du Plessis, V (2011). Sexual Harassment in the Education Sector. Potchefstroom Electronic Law Journal, África do Sul,  vol 14, no 6, p. 173-217. Disponível em: http://www.ajol.info/index.php/pelj/article/view/73012


terça-feira, 1 de maio de 2012

Como sobreviver a uma tese de doutorado

Raewyn Connell, professora de sociologia da Universidade de Sidney, Austrália, mais conhecida no Brasil por seus estudos sobre masculinidades
Cynthia Hamlin

Passei o feriadão (que ainda não acabou!) dividida entre a correção de teses e dissertações e a edição de uma entrevista com Raewyn Connell que eu e Frédéric Vandenberghe fizemos no final do ano passado. Entre uma coisa e outra, encontrei um artigo da própria Connell intitulado "Como orientar um PhD".

Embora antigo (de 1985), o artigo continua atual. Acredito, entretanto, que ele pode ser mais útil aos próprios doutorandos (e, em certa medida, mestrandos), do que aos orientadores. O texto traz algumas ideias simples, mas que tendem a ser esquecidas no calor das crises ocasionais. Cito dois trechos, escolhidos relativamente ao acaso:

A tese não deve ser um trabalho sem falhas ou definitivo. Trata-se de um treinamento para a pesquisa. É uma obra-prima no antigo sentido das guildas, do trabalho cuidadoso que mostra que o aprendiz está agora qualificado para exercer um ofício. Teses de doutorado sempre têm um escopo limitado e sempre têm erros e julgamentos equivocados. [...] A questão não é produzir a pesquisa perfeita, mas produzir uma pesquisa que seja adequada, em qualidade e quantidade, para justificar o título de doutor. (p. 38)
Decidir sobre o problema da pesquisa pode levar uma quantidade de tempo surpreendente. Frequentemente, isso toma todo o primeiro ano do doutorado; algumas vezes, as redefinições ocorrem como próprio cerne do projeto. Pode ser muito desconcertante para aqueles estudantes que, depois de seis meses lendo em todas as direções, sentem como se não tivessem chegado a lugar algum e que estão desperdiçando seu tempo e o dinheiro público. (p. 39)
 
Trata-se de um verdadeiro "ansiolítico textual" que ajuda a manter os nervos sob controle naqueles momentos de crise acadêmica que todos aqueles que já passamos por um doutoramento conhecemos bem. Mas também deixa claro que a melhor prevenção para a ansiedade é o trabalho constante e regular.

Abaixo, a referência completa do artigo e o link para o site de onde ele pode ser baixado:

Connell, Raewyn. How to supervise a PhD. Vestes: Australian Universities Review, 1985, vol. 28 no. 2, 38-41.



sábado, 1 de outubro de 2011

Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE: Humano, Demasiado Humano



Por Cynthia Hamlin


No dia 29 de setembro de 2011, cerca de 100 estudantes da UFPE foram à reitoria protestar contra o que consideram a ausência de uma política institucional em relação à ocorrência de suicídios  no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE. Embora tenham sido colocadas grades nas varandas de todos os andares do prédio, foram registrados 3 casos no ano de 2011, o que atestaria a insuficiência das medidas adotadas.

 A iniciativa dos estudantes é importante e revela a necessidade de se pensar coletivamente a solução não apenas deste, mas de uma série de problemas relativos a segurança, espaços de convivência, funcionamento dos elevadores, más condições das salas de aula, para ficarmos apenas no âmbito do CFCH. Apesar disso, uma política de prevenção de suicídios eficaz pressupõe clareza acerca da relação entre os suicídios e os diversos problemas que atingem a comunidade do CFCH e da UFPE, como um todo. E é aí que as dificuldades começam.

O suicídio é um fenômeno complexo que pode envolver fatores de diversas ordens - biológica, psicológica, social e cultural - e deve ser entendido como um processo, mais do que como um simples ato. Isso significa dizer que, ainda que ocorra em um local e momento específicos, pode estar associado a processos de médio e longo prazo, como a depressão, o abuso de drogas, a doença mental. Esses processos não ocorrem em um vácuo social, estando associados a determinados contextos que podem atuar, ora como causa, ora como efeito, ora como reforçando-se mutuamente: o ambiente familiar, o tipo de relações entre os grupos de pertencimento e outros grupos, relações interpessoais etc. Por fim, ocorrem em um lugar específico que, além de representar ocasião ou contexto para o ato em si, pode estar associado  ao uso de métodos particulares que frequentemente carregam um conteúdo simbólico e comunicativo (Hamlin & Brym, 2006; Brym & Hamlin 2009).

Generalizações - especialmente as de base reducionista e construídas sobre um número insuficiente de casos que fundamentam argumentos do tipo: “estudantes de ciências humanas são mais propensos ao suicídio”, ou  “a ‘desumanização’ do campus e do CFCH tem contribuído para os suicídios observados” – frequentemente se baseiam em associações causais que não se sustentam, ou entre elementos que estão tão remotamente associados que não podem servir como guia para nenhuma política de prevenção séria.  Ao contrário, terminam gerando estigmas que, esses sim, podem atrair mais pessoas para escolherem o CFCH como local para dar cabo à própria vida na medida em que estabelecem uma associação simbólica entre o prédio e o suicídio. (Falo aqui de uma associação simbólica apenas na medida em que existe, na cidade do Recife, uma série de outros edifícios com características estruturais semelhantes ao CFCH. Isso não significa dizer que elementos simbólicos seriam os únicos, ou mesmo os mais importantes, na escolha de um local qualquer).

Dado que argumentos como os acima, apresentados com graus de sofisticação variável, tem sido os mais comuns, torna-se fundamental esclarecer alguns pontos.

Em primeiro lugar, o estigma que vem sendo associado aos estudantes de humanas e ao prédio do CFCH baseia-se no pressuposto de que os suicidas, em sua maioria, consistem em estudantes da UFPE, particularmente os de humanas. Isso não parece ter fundamento. Uma rápida observação dos registros, efetuados pela Direção do CFCH, relativos ao suicídios ocorridos desde 1997 sugere que poucos eram estudantes da UFPE. Digo “sugere” porque os dados a que tive acesso são insuficientes. (Havia lacunas no registro disponível, de forma que solicitei à Direção do Centro um registro mais completo, desde o ano de 1997 - quando a Universidade passou a efetuar o registro sistemático dos casos. Aguardemos, pois. E cobremos).

Em segundo lugar, e relacionado à questão anterior, impedir a cristalização do estigma implica a celeridade da instituição, por meio de sua Assessoria de Comunicação, em desmentir falsos boatos acerca do suicídio de estudantes. Isso é especialmente importante diante do poder das redes sociais contemporâneas na disseminação de boatos. Vejamos.

No dia 28 de setembro último, o Jornal do Commércio publicou uma matéria na qual pelo menos duas das informações fornecidas não procediam. Primeiro, afirma que ocorreram quatro suicídios no CFCH este ano (foram três - já não é ruim o suficiente?); segundo, afirma que o último caso ocorrido envolvia uma aluna da UFPE, mais especificamente, do Curso de Ciências Sociais. Até o momento em que escrevo, três dias após a divulgação da notícia pelo Jornal do Commércio, não vi a Universidade se manifestar publicamente a fim de desmenti-la.

Além de contribuir para o referido estigma, ao se omitir de ações como esta a Universidade está contribuindo para um outro fenômeno, que em sociologia se denomina de “pânico moral”. O pânico moral assume as seguintes características:

Uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas emerge e passa a ser definido como uma ameaça a valores e interesses sociais; sua natureza é apresentada de forma estilizada e estereotípica pelos meios de comunicação de massa; as barricadas morais são erigidas por editores, bispos, políticos e outras pessoas cujas opiniões são consideradas sensatas e moralmente corretas [right-thinking people]; peritos socialmente reconhecidos pronunciam seus diagnósticos e soluções; a condição depois desaparece, submerge ou deteriora-se e torna-se mais visível. [...]. Algumas vezes o pânico passa e é esquecido, exceto no folclore e na memória coletiva; outras vezes, tem repercussões mais sérias e duradouras e pode produzir mudanças legais e em políticas sociais, ou mesmo na forma como a sociedade se autoconcebe (Cohen, citado em Thompson, 1998: 7).

Assim como ocorre na maioria dos casos de pânico moral, a visibilidade da situação real e sua resolução são especialmente difíceis porque envolvem um tema considerado tabu. Se o filósofo francês Edgar Morin (1968)  já afirmava que, após a revolução sexual, a morte permaneceu como o último grande tabu do século XX, talvez caiba aqui uma hipérbole: a morte por suicídio é o tabu que não ousa dizer seu nome. Isso explica, em parte, o silêncio da Universidade em relação ao tema. Outra parte do silêncio poderia ser explicada por meio da referência a um fenômeno que ficou conhecido como “efeito Werther”.

O efeito Werther refere-se à onda de suicídios observada entre os jovens românticos, especialmente na Alemanha, após a publicação do romance de Goethe - Os Sofrimentos do Jovem Werther - que de certa forma glamourizava o suicídio ao caracterizá-lo como um ato de coragem. O fenômeno caracteriza, assim, o elemento de difusão ou contágio do suicídio a partir de sua menção ou divulgação – um fenômeno que tem servido como fundamento de uma espécie de código de ética entre jornalistas do mundo inteiro.

Embora tenha afirmado que “não há dúvida de que a ideia do suicídio se transmite por contágio”, Durkheim (2000: 138) teve o cuidado de definir o contágio em termos de imitação e delimitar em que sentido este último poderia ser legitimamente aplicado ao estudo do suicídio:

Há imitação quando um ato tem como antecedente imediato a representação de um ato semelhante, anteriormente realizado por outros, sem que entre essa representação e a execução se intercale nenhuma operação intelectual implícita ou explícita, sobre as características intrínsecas do ato reproduzido.

Isso significa que o suicídio por imitação tende a ocorrer na ausência de reflexão - o que aponta para a necessidade de fazer as pessoas expostas ao suicídio, como é o caso dos nossos alunos, refletirem sobre o assunto. E o silêncio certamente não é a forma mais apropriada de gerar uma reflexão informada.

Por outro lado, existem controvérsias consideráveis acerca do alcance dos processos imitativos na explicação das taxas de suicídio. O próprio Durkheim atribuía um alcance limitado ao suicídio por imitação, afirmando que “do fato de que o suicídio possa transmitir-se de indivíduo para indivíduo, não se segue a priori que [...] ela afete a taxa social de suicídios”(Ibid: 143). E utilizava como argumento a ideia de que, se o contágio tivesse uma influência marcante nas taxas de suicídio, dever-se-ia observar um fenômeno de concentração dessas taxas em determinados núcleos geográficos (por ex., o centro das cidades) e uma diminuição gradual dessas taxas à medida em que se afasta desses núcleos. Traduzindo para o nosso caso, ao longo de um período relativamente extenso, deveria ser possível observar um número relativamente elevado de suicídios entre estudantes, professores e funcionários da UFPE, em particular os diretamente expostos ao suicídio, em comparação com suicidas oriundos de outras áreas da cidade. Como vimos, este não parece ser o caso. Mas aguardemos mais informações antes de fazermos quaisquer afirmações categóricas neste sentido. (Abro aqui um parêntese para enfatizar fortemente que não estou usando este argumento para defender a ideia de que, se não altera as taxas de suicídio entre os membros da UFPE, a difusão não deve ser considerada em uma política interna de prevenção de suicídios. Um único caso é um caso em excesso. O que estou argumentando é que esse risco deve ser combatido por meio da reflexão informada, já que a exposição ao suicídio é um fato concreto, pelo menos no momento).

O argumento de Durkheim não foi consensualmente aceito e a controvérsia continuou. Nas décadas de 1970 e 1980, o sociólogo David Philips publicou uma série de artigos sobre o tema. O principal deles foi resumido por outro sociólogo, Ira Wasserman (1984: 427), da seguinte forma:

Empregando um método quasi-experimental para examinar a influência que as estórias de suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times entre 1947 e 1968 tiveram nos padrões de suicídio nos meses seguintes, Philips (1974) formulou um novo teste para a teoria da imitação. Contrariamente a Durkheim, encontrou um aumento significativo no número de suicídios no mês que se seguiu ao aparecimento dessas estórias no New York Times.

Ao submeter a hipótese da imitação a teste novamente, Wasserman (Ibid.) efetuou um estudo com base em uma série de modelos que o permitiram controlar fatores exógenos, como a influência dos ciclos de negócios e das crises econômicas nos resultados observados por Philips.  Concluiu que não havia correlação significativa entre a taxa nacional de suicídios e as estórias sobre suicídio que apareceram nas manchetes do New York Times no período 1947-1977. Por outro lado, ao aplicar seu modelo apenas às manchetes relacionadas a “celebridades”, observou uma correlação significativa entre as estórias contadas a partir de tais manchetes e um aumento nas taxas de suicídio no mês subsequente à sua publicação. Isso significa que a hipótese de Philips é mais limitada do que ele supunha, isto é, tende a ser corroborada nos casos de reportagens sobre o suicídio de celebridades.

A isto, a Organização Mundial de Saúde menciona outras conclusões importantes, retiradas de outras pesquisas: primeiro, que o impacto da cobertura jornalística na mídia impressa e televisiva tende a ser maior entre pessoas jovens; segundo, que não são as notícias per se que geram um aumento nas taxas observadas, mas a forma como os suicídios são noticiados para as populações vulneráveis (de maneira sensacionalista, com excesso de detalhes, oferecendo explicações simplistas ou sugerindo que o fenômeno é inexplicável, glamourizando o ato ou transformando a vítima em mártir, caracterizando o suicídio como única saída possível, omitindo a dor de familiares e amigos, dentre outros).

Assim, ao contrário da ideia simplista de que os suicídios não devem ser noticiados a fim de evitar sua difusão por contagio ou imitação, num documento de prevenção do suicídio direcionado a profissionais da mídia (World Health Organization, 2000: 6) enfatiza-se que “certos tipos de cobertura [jornalística] podem ajudar a prevenir a imitação do comportamento suicida”. O documento enfatiza ainda que “sempre existe a possibilidade de que a publicização do suicídio possa tornar a ideia de suicídio ‘normal’. A cobertura contínua e repetida do suicídio tende a induzir e a promover preocupações suicidas, particularmente entre adolescentes e adultos jovens.” (Ibid). Neste sentido, a conclusão geral é a de que  
reportar os suicídios de uma maneira apropriada, acurada e potencialmente útil pela mídia esclarecida pode prevenir a perda trágica de vidas pelo suicídio.  (Ibid.).
Dada a exposição a que temos sido submetidos ao suicídio na UFPE, o poder das novas mídias em difundir boatos que são reforçados pelas mídias tradicionais e a situação de pânico moral que isso ajuda a difundir, o silêncio da UFPE em torno do tema não contribui em nada para a resolução desta situação: ao contrário, tende a perpetuá-la e a gerar uma série de problemas associados à ansiedade, ao sentimento de insegurança e aos conflitos que decorrem deles.

Para o bem ou para o mal, o suicídio não pode mais ser tratado como um tabu entre nós, mas como algo “humano, demasiado humano”. Já está mais do que na hora de começarmos a falar sobre assunto de forma clara, informada e responsável. Façamos, cada um de nós, a nossa parte.

(a ser editado)

Referências

Brym, Robert J.; Hamlin, Cynthia Lins. (2009) “Suicide Bombers: Beyond Cultural Dopes and Rational Fools”. In: Cherkaoui, Mohamed; Hamilton, Peter. (Org.). Raymond Boudon: A Life in Sociology: Essays in Honour of Raymond Boudon. 1 ed. Oxford: The Bardwell Press, v. 2, p. 83-96.
Durkheim, Émile (2000). O Suicídio. São Paulo: Martins Fontes.
Hamlin, Cynthia Lins; Brym, Robert J. (2006) The Return of the Native: A Cultural and Socio-Psychological Critique of Durkheim's Suicide based on the Guarani-Kaiowá of South-Western Brazil. Sociological Theory, Estados Unidos, v. 24, n. 1, p. 42-57.
Morin, Edgar (1951) L’Homme et la mort. Paris: Éditions du Seuil.
Thompson, Kenneth (1998). Moral Panics. Londres e Nova York: Routledge.
Wasserman, Ira M. (1984). Imitation and Suicide: a reexamination of the Werther effect. American Sociological Review, V. 49, June, p. 427-436.
 World Health Organization (2000). Preventing Suicide: a resource for media professionals. Genebra: Mental and Behavioural Disorders, Department of Mental Health, WHO.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Projeto Cartão Universidade



Diana e Acteon (cerca de 1530-1540), pintura de Lucas Cranach. Furiosa por um mortal ousar contemplar sua nudez, Diana (Ártemis) transforma o caçador Acteon em cervo, que é então devorado por seus próprios cães.


Cynthia Hamlin

E por falar em mecenato, a UFPE está avaliando o estabelecimento de um convênio com o Banco Santander para a implantação do projeto “cartão universidade”. De acordo com a proposta redigida pelo banco, este se compromete à emissão de até 80.000 cartões de identificação de alunos e servidores em troca do acesso aos campi da UFPE três vezes ao ano para a realização de eventos de venda e promoção de produtos, do direito de divulgar sua marca nos cartões e nos eventos “de interesse comum” e da abertura de uma conta corrente, em nome da Universidade, no referido banco. O convênio garantiria ainda o acesso da UFPE ao Portal Universia e a montagem de um espaço digital para diminuir a exclusão digital, cujas instalações e características devem ser acordadas em documento específico para este fim.

Além das questões levantadas por Ricardo Antunes e Marcus Orione Correia em relação à introdução da iniciativa privada nas universidades públicas (post abaixo) e das implicações de uma instituição pública abrir uma conta corrente em um banco privado, uma outra questão vem à tona num pequeno detalhe do documento: a fim de garantir a implantação e utilização dos cartões, a UFPE deve garantir o acesso a dados pessoais de todos seus alunos e servidores (foto, nome, RG, CPF e endereço) e manter o banco informado de quaisquer alterações nesses dados. Ah! Por uma indiscrição muito menor Acteon foi transformado em cervo e devorado por seus cães de caça ao espiar Diana e suas ninfas no banho!

Diferente do que ocorria na Grécia Antiga, na Era Big Brother as pessoas parecem mais do que felizes com a submissão voluntária ao panóptico. Seja em troca dos proverbiais cinco minutos de fama, do sentimento de “segurança” ou de novas formas de diagnóstico e de terapia, temos desnudado nossos corpos, nossas almas, nossas contas bancárias e até nosso genoma. Expomos nossa vida privada em sites de relacionamentos; fornecemos nossas digitais para entrar em academias de ginástica; nas lojas, preenchemos cadastros com um grau de detalhamento de causar inveja nos responsáveis pela formulação dos questionários do Censo; nos aeroportos, aceitamos, aliviados, passar por scanners corporais que exibem os detalhes mais recônditos de nossos corpos. Que mal pode haver nisso? Afinal de contas, quem não deve não teme e pode até ser que o nosso objeto de desejo caia fulminado de amor quando vir nossa foto no Orkut.

Num mundo onde a informação é uma mercadoria como outra qualquer, não existe, na maioria dos países, regulamentação para a venda e o uso de dados pessoais por parte de empresas privadas para fins de crédito ou de marketing. Nunca poderemos ter certeza de que aquele cadastro que a vendedora jurou que era “bem rapidinho, só para nossos arquivos!” não irá parar nos bancos de dados daquele banco simpático e tão eficiente que já nos envia a cobrança junto com o cartão de crédito que nos deu de presente.

E isso é só a ponta do iceberg. À medida que a caixa de Pandora vai sendo aberta, as novas tecnologias de informação vão gerando um sem número de possibilidades. Atualmente, existe nos EUA um grande debate sobre o controle de informações coletadas por empresas responsáveis por mapeamentos genéticos de indivíduos que recorrem cada vez mais a esse tipo de serviço. Os bancos de dados dessas empresas contém informações preciosas sobre coisas como longevidade e a probabilidade do desenvolvimento de determinadas doenças e fariam a festa de companhias de seguros e de empregadores, pavimentando o caminho para uma série de práticas discriminatórias.

É difícil saber o que o banco pode ou pretende fazer com os nossos dados pessoais. Dado que os cartões serão utilizados para o acesso a empréstimos de livros nas bibliotecas, a determinadas áreas dos campi e “outras funções a serem definidas e implantadas pelos convenentes”, a questão de fundo é que, se aprovado, este convênio estará nos obrigando a fornecer nossos dados a fim de que possamos trabalhar e estudar. Em troca de que, mesmo?

Que o espírito de Diana desça sobre os membros do Conselho Universitário.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A pesquisa universitária avaliada….para o desprezo do conhecimento



Frédérique Barnier

(Frédérique Barnier é professor-pesquisador em sociologia na Université d'Orléans. Este artigo foi publicado em Le Monde, 23.11.2009 e traduzido, mediante permissão do autor, por Tâmara de Oliveira.)

Há alguns meses, na verdade desde os recentes debates sobre a reforma do estatuto dos professores-pesquisadores, um estranho vento sopra nos corredores das universidades, brandindo rumores e palavras surpreendentes para um não-iniciado, em torno de « laboratório classificado A, B ou, pior ainda, C, de revistas também classificadas A, B ou C…Os mesmos barulhos são encontrados nos debates em torno dos « pólos de excelência » da pesquisa nacional, tão necessários ao seu reestabelecimento nas classificações internacionais. O ministro, o governo e todos os adeptos de uma política de « excelência científica » podem então ficar satisfeitos. A essência do projeto de lei entrou decididamente nas cabeças de todos os professores-pesquisadores, mesmo naquelas consideradas mais duras – a dos professores-pesquisadores em ciências humanas.

Para a maioria deles, com efeito, a corrida começou : fora de publicação A (in english, please) e do colóquio (international, s’il vous plaît) não há salvação. Ironia ou paradoxo, o princípio de avaliação generalizada foi assim integrado por uma pesquisa universitária que frequentemente a criticou ferozmente e, exatamente no momento em que seus efeitos catastróficos são denunciados nas empresas. Com as classificações tipo Xangai, a pesquisa mede suas performances como uma equipe de futebol, sem comover ninguém.

Para além dos efeitos perversos já conhecidos : o reforço das desigualdades já gritantes (entre Paris e província, entre ciências « duras » e ciências humanas, entre grandes e pequenas faculdades, entre pequenos e grandes laboratórios…), a corrida iníqua às publicações, a cooptação reforçada, os efeitos de redes…, desenha-se igualmente a perspectiva de uma pesquisa « entre nós », pesquisa expressa e necessariamente brilhante, frequentemente mundana para ser de alta qualidade – mas por quanto tempo e sobretudo para fazer o que ? Desenham-se assim e sobretudo os contornos esclerosantes de uma pesquisa pré-formatada na forma, no fundo e na prática.

Na forma, primeiramente, fechando-se em torno das « boas revistas » (que infantilização, elas são designadas uma a uma, disciplina por disciplina, caso vocês não saibam reconhecê-las), contendo apenas artigos universitários calibrados, certificados e especialmente reconhecidos (para além de seu interesse e de sua qualidade frequentemente inegáveis) por sua escritura conveniente, sufocados por referências, necessariamente adubados por conselhos editoriais – que correm o risco de ficar sobrecarregados de trabalho logo, logo, enfim…os de conceito A. Se escrever, evidentemente, faz parte da pesquisa, publicar (no sentido da excelência, quer dizer « útil ») está prestes a se tornar um outro ofício…

No fundo, em seguida e sobretudo, porque uma pesquisa fecunda em ciências humanas deve melhorar o conhecimento do mundo e praticar a partilha cidadã desse conhecimento sobre temas que engajam e interessam necessariamente as pessoas em seu cotidiano (a escola, a periferia, a empresa, a violência…). O procedimento do conhecimento, como tão bem explicitou Bachelard, é o oposto dessa pesquisa de « excelência » : ela é lenta, laboriosa, difícil, cheia de acidentes de percurso. Às vezes ela deve contradizer, lutar contra idéias adquiridas, destrinchar novos campos e, em todos os casos, estar orientada para o mundo. Ela é sobretudo filha da humildade e tem muito pouco a ver com essa busca permanente de reconhecimento interno.

Na prática, enfim, que corre o risco de se tornar bastante restritiva sob esses critérios exclusivos. Escrever em tal revista (genial, mas fora da classificação) : não rentável (para minha carreira, meu HDR, meu cargo de professor…). Organizar um colóquio (oh, modesto, em minha universidade de província) : não rentável. Divulgar meus trabalhos diante de públicos cidadãos a quem eles interessam realmente (sindicalistas, pais de alunos, assalariados, associações) : não rentável…E o que dizer das atividades administrativas e de ensino…das quais se mede a indignidade (cúmulo da ironia ou da miséria) por sua ausência no sistema de avaliação !

Tudo isso já existia…vocês dirão. Sem dúvida, mas o clima atual oferece como recompensa, aos tenentes dessa falsa excelência científica e àqueles que aplicam cegamente seus princípios, a arma oficializada do desprezo – e quem sabe da ameaça.