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domingo, 3 de março de 2013
terça-feira, 15 de novembro de 2011
Compreensão antropológica e objetivação participante: mais um estudo de cazzo sobre a sociologia reflexiva de Bourdieu
O delicado equilíbrio entre a objetividade e o tornar-se nativo na compreensão da alteridade
Por Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ)
O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de padrões de conduta significativamente diferenciados daqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência histórico-descritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição mais ostensivamente epistêmica. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]).
O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia. Como Dumont, Bourdieu passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sociais dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo, transpondo-a da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988).
Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que a cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de experiência humana. A passagem pela antropologia também é relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos. A antropologia cultural impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374). Tal captação, continua o antropólogo polonês, estaria calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas seria dependente também de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo.
Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu para a criação de um mito: o “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão de toda espécie de insatisfações intensas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como demonstração acachapante da implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen [a compreensão] quando o einfühlen [a empatia] desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248; Peters, 2011: 324) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica, concebendo o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados.
A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada.
Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274).
Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”. A objetivação participante é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias de entendimento, bem como sobre os interesses que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria a ele controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir.
Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a ideia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:
Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do nativo. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada. Isto vale, em particular, para o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-no-mundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123) - por exemplo, as caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem na teoria da escolha racional ou no “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21).
Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação hermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante, capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação (social e epistêmica) do sujeito cognoscente com tal objeto não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico, no caso da investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método.
Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas das práticas sociais que são invisíveis à cognição consciente dos agentes, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito.
É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post.
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Bibliografia
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________Homo academicus. Stanford: Stanford University Press,1988.
________Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990a.
_______The logic of practice. Stanford: Stanford University Press, 1990b.
________Lições da aula. São Paulo, Ática, 2001.
_______Participant objectivation. Journal of the Royal Anthropological Institute, v.9, n.2, p.281-294, 2003b.
________A distinção: crítica social do julgamento do gosto. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007.
BOURDIEU, P; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (eds). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
DUMONT, Louis. (1997), Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp.
________(2000), Homo aequalis. São Paulo: Edusc.
GADAMER, H.G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997.
KURASAWA, F. The ethnological imagination: a cross cultural critique of modernity. University of Minnesota Press, 2004
LOEWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen. São Paulo: Cortez, 1994.
MALINOWSKI, B. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
________Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
PETERS,G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu.
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sábado, 20 de novembro de 2010
É errado comer a sua tia

O sociólogo canadense Fuyuki Kurasawa (2004) cunhou o termo “imaginação etnológica” a fim de propor uma inversão no olhar intercultural tradicional e “antropologizar” - no sentido de desfamiliarizar, desnaturalizar e contextualizar - os costumes, crenças e arranjos institucionais do Ocidente por meio da justaposição de uma série de "alteregos não-ocidentais". Embora fique aí a indicação do excelente livro de Kurasawa, eu quero mesmo é falar de outro livro, o Eating your Auntie is Wrong, the Stephen Arnott. Trata-se de uma brincadeira antropológica, uma espécie de imaginação etnológica (des)invertida, ou uma compilação daquilo que Arnott chama de “os costumes mais estranhos do mundo”. Abaixo, uma pequena amostra do avesso do avesso de Kurasawa, ou o politicamente incorreto dos estudos pós-coloniais. Entre parênteses, minhas reflexões sócio-antropológicas sobre as citações do livro do Arnott.
“Em algumas tribos aborígenes, fatias de carne eram retiradas de um cadáver pouco antes de seu enterro. Essas fatias eram entregues às pessoas enlutadas, para serem comidas. No entanto, algumas normas regulavam quem comia quem. Por exemplo, um homem podia comer o marido de sua irmã e a mulher de seu irmão, mas não seus próprios filhos. Uma criança não podia comer seu pai, enquanto que uma mãe podia comer seus filhos e vice-versa”. (E foi em resposta a essas práticas bárbaras que surgiu o complexo de Édipo).
“ Na América do Norte, os Algoquin e os Huron costumavam casar suas redes de pesca com jovens mulheres. Acreditava-se que as redes ficariam mais felizes com suas esposas e pegariam mais peixes”. (Caso a poligamia fosse proibida entre esses povos, fico imaginando as terríveis dúvidas que acometiam essas pobres moças: “um homem ou uma rede, um homem ou uma rede?”).
“Os gregos antigos acreditavam que uma mulher não poderia conceber se colocasse sobre o umbigo um tubo contendo o testículo de um gato”. (Infelizmente o livro não especifica o momento exato em que isso deve ser feito, de forma que talvez seja melhor tentar o método dos antigos egípcios: fezes de crocodilo. Sim, melhor depois, em consideração ao seu parceiro).
“As obrigações de alguns reis de tribos da África Ocidental eram tão perigosas e desagradáveis que os candidatos tinham que ser seqüestrados e forçados a assumir o trono”. (Parece incrivelmente familiar...)
“Os romanos antigos acreditavam que cortar o cabelo no mar traria má sorte. A crença sobreviveu na Marinha Real Britânica e os marinheiros só cortavam seus cabelos durante tempestades violentas, já que, pela lógica, o tempo não podia piorar”. (Um claro indício da “mentalidade primitiva” dos ingleses, que, obviamente, não conheciam as leis de Murphy).
“Na Índia, um espirro único era sinal de má sorte, mas espirros múltiplos eram considerados boa sorte. Outra pessoa espirrando à sua frente ou ao seu lado direito significava má sorte, enquanto um espirro vindo de trás ou da esquerda era bom. Se alguém espirrasse enquanto plantava sementes, aplicava um remédio ou começava a aprender alguma coisa, isso era sinal de sucesso. O espirro de um quadrúpede, de uma pessoa em frente a uma janela, de um homem com os cabelos despenteados ou de alguém carregando instrumentos de tortura era sempre sinal de má sorte”. (Por isso, a educação no hinduísmo antigo envolvia a aprendizagem de quatro princípios básicos: a vida virtuosa (dharma), o acúmulo de riqueza (artha), o prazer pelos sentidos (kama) e a ciência do espirro (tchim). Como esta se mostrou excessivamente complicada, foi depois substituída pelo princípio do desprendimento (moksha), de onde deriva a ideia de reincarnação).
Cynthia Hamlin
Referências (afinal de contas, isso é um blog acadêmico!)
Kurasawa, Fuyuki (2004). The Ethnological Imagination: a cross-cultural critique of modernity. Minneapolis e Londres, University of Minnesota Press.
Arnott, Stephen (2004). Eating your Auntie is Wrong: the world’s strangest customs. Londres, Ebury Press.
segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Universalismo, Particularismo e Relativismo: a Mutilação Genital Feminina nos Meios de Comunicação de Massa
The Guardian, 25 de julho de 2010.
Por Cynthia Hamlin
Creio que a primeira vez que tive contato com algumas das questões levantadas pelo relativismo cultural foi na adolescência. À mesa do jantar, após um plantão emocionalmente desgastante, minha mãe lamentava a morte de uma menina indígena que teve uma parada cardíaca durante uma sessão de hemodiálise. Assim que seu coração parou, minha mãe iniciou uma massagem cardíaca, enquanto lutava para se livrar do pai da menina, que tentava a todo custo impedir a ressuscitação. O antropólogo que acompanhava pai e filha tentava segurá-lo enquanto traduzia seus gritos desesperados de que parassem com aquilo porque o espírito dela já havia partido. Minha mãe solicitou aos enfermeiros que o tirassem dali e prosseguiu com a ressuscitação. Para o bem ou para o mal, a menina morreu. Mais tarde, o antropólogo explicou que, caso a menina “voltasse”, seria com um espírito diferente do seu e não seria mais aceita na tribo. Perguntei à minha mãe por que ela simplesmente não deixou a menina morrer, e ela disse que aquilo se chocaria profundamente com seus princípios éticos.
Anos mais tarde, em 1994, um de meus irmãos me apresentou um problema semelhante: num artigo publicado naquele ano no New England Journal of Medicine, um médico estadunidense se perguntava o que fazer quando mulheres que já haviam passado por uma infibulação - a forma mais radical de mutilação genital feminina, envolvendo a remoção do clitóris, dos pequenos lábios e de parte dos grandes lábios, que são depois costurados - solicitavam que ele as costurasse novamente após o parto. Naquela época, diversos estados dos EUA proibiram a prática, sob a alegação de que constituía violação dos direitos humanos. Embora concordasse com o argumento presente no discurso universalista que embasava a legislação, o médico dizia empatizar com o que poderíamos qualificar de dimensão particularista do problema presente no discurso das mulheres que o procuravam: sem a infibulação, perderiam sua identidade étnica, seriam rejeitadas por seus maridos, sentir-se-iam “sujas”, “feias” e pouco “femininas”. Ciente de que sua recusa levaria muitas dessas mulheres a voltar aos seus países de origem e efetuar o procedimento com ajuda de uma pessoa não-qualificada do ponto de vista médico e sob condições de higiene inadequadas, ele se perguntava se a coisa certa a fazer não era ir adiante e fazer o que elas pediam.
Como se vê, o juramento hipocrático de não fazer o mal não admite uma interpretação única, especialmente diante do contato entre pessoas ou grupos de valores culturais distintos. Apesar disso, à medida que práticas como a Mutilação Genital Feminina (MGF, ou Circuncisão Feminina, para os adeptos de uma terminologia mais “neutra”) tornam-se mais visíveis nos meios de comunicação de massa, parece haver um aumento da tendência de interpretá-las a partir de uma perspectiva universalista que desconsidera todo e qualquer elemento contextual em sua caracterização. Creio que o problema não é tanto a adoção de uma perspectiva universalista no que diz respeito a determinadas posturas éticas, mas o fato de que não é possível compreender e, mais ainda, alterar, práticas como essas sem a referência aos significados atribuídos pelos grupos em questão. De fato, o tratamento unidimensional efetuado pelos meios de comunicação de massa – a este respeito, remeto ao filme “Flor do Deserto”, que conta a história da modelo somali Waris Dirie, ou aos inúmeros vídeos existentes no youtube – pode mesmo gerar uma espécie de backlash, ou de contra-reação por parte dos grupos envolvidos, sob a alegação de colonialismo. A defesa da prática torna-se, em parte, legitimada pelo próprio direito à diversidade cultural, um direito invocado pelas mulheres de origem islâmica na França no recente debate sobre o uso do véu (ver post de Tâmara de Oliveira: Véus Muçulmanos na França e Olhar Sociológico).
Neste sentido, creio que todos nós temos muito o que aprender com os antropólogos em relação ao uso do relativismo cultural como recurso metodológico, embora não necessariamente ético. A fim de compreender essa distinção, é preciso ter em mente que o relativismo cultural, ou a tendência a se julgar cada cultura a partir de seu próprio contexto, aparece como um antídoto àquelas posturas etnocêntricas que buscam transformar o/a outro/a em uma cópia (imperfeita) do Homem do Iluminismo. Nas palavras de Ellen Gruenbaum (2001:26), o relativismo cultural não consiste em um posicionamento ético último, mas numa
técnica mental para ajudar as pessoas a evitar julgamentos negativos acerca de, por exemplo, preferências culinárias, formas de cumprimento, costumes maritais. [...] Ao passo que uma abordagem relativista cultural incorpora determinados dilemas éticos, ela consiste em um ponto de partida benéfico para a promoção do entendimento intercultural. Embora consista em um exercício mental útil para evitar um etnocentrismo não-refletido, o relativismo cultural geralmente requer algum grau de suspensão de valores éticos.
E a questão que imediatamente se coloca é o quão longe podemos ou devemos ir nessa suspensão. Essa não é uma questão simples e o problema tem se tornado mais concreto à medida que o processo de globalização tem possibilitado um maior contato entre culturas distintas, inclusive por meio de ondas migratórias das ex-colônias em direção aos países centrais do mundo globalizado. Não por acaso, a sociedade francesa se viu diante de um dilema acerca do uso do véu e, de forma crescente, os países centrais têm sido forçados a refletir sobre quanta diferença tolerar em suas sociedades. Só a titulo de ilustração, no mês de julho o jornal britânico The Guardian publicou 2 artigos (aqui e aqui) sobre a MGF, um deles chamando atenção para o fato de que entre 500 e 2000 meninas britânicas em idade escolar seriam submetidas à prática no verão de 2010, e conclamando as autoridades a aplicarem a lei - desde 1985, a MGF é proibida no Reino Unido e, desde 2003, a prática é proibida em qualquer mulher que resida permanentemente no país, mesmo se desempenhada em outro lugar. Apesar disso, nunca houve condenações por prática de MGF no país.
Claramente, a “dor do outro distante”, tratada no excelente post de Gabriel Peters, tem se tornado cada vez mais próxima. Mas será que a forma como o problema vem sendo exposto nos meios de comunicação de massa não tem contribuído para gerar um efeito contrário ao pretendido, isto é, a visão de um outro desumanizado, incivilizado e, portanto, não sujeito a determinados valores éticos? O que explicaria, por exemplo, a não aplicação da lei no Reino Unido? Seria isso uma espécie de “indiferença” ao sofrimento alheio? Talvez. Embora não pretenda sugerir aqui que os meios de comunicação de massa são responsáveis diretos por este fenômeno, acredito que isso pode ser percebido como uma espécie de efeito perverso, ou conseqüência negativa não-pretendida, da forma unilateral como a MGF é caracterizada. Aquilo que Gabriel chamou de “via média” entre o otimismo e o ceticismo relativo às consequências da recepção midiática de imagens da dor do outro (e de si próprio!) requer, antes de tudo, uma via média na produção dessas imagens. Como fazer, por exemplo, com que as mulheres se reconheçam na “estória única” contada pelos meios de comunicação de massa e pelas agências humanitárias e organismos internacionais, como é o caso da Organização Mundial de Saúde? E se não se reconhecem da forma como são descritas, como (ou por que) alterar seus valores e práticas? Como evitar que a forma desumanizada como o islã vem sendo retratado não degenere num backlash movido por um sentido de resistência ao imperialismo cultural?
Ellen Gruenbaum, que desenvolveu uma extensa pesquisa sobre MGF no Sudão na década de 1990, demonstra que as razões dadas por pais e mães que decidiam operar suas filhas, ou por mulheres que decidiam ser reinfibuladas, eram selecionadas a partir de um conjunto de razões culturalmente disponíveis em função daquelas que pareciam melhor se adequar à situação específica. Em outras palavras, os por quês da circuncisão feminina não admitem uma resposta única, nem mesmo quando se considera uma única sociedade. Em uma pesquisa efetuada no Sudão com uma amostra de 1.804 mulheres e 1.787 homens, Rushwan e seus colegas descobriram que a maioria dos homens (59%) alegavam motivos religiosos, mas apenas 14% das mulheres alegavam esse motivo. A maioria das mulheres (42%) responderam que se tratava de “uma boa tradição”, mas só 28% dos homens recorreram a este motivo. Vinte e oito por cento dos homens e 19% das mulheres afirmaram que ela promovia a higiene, ao passo que apenas uma minoria se referiu ao aumento de fertilidade (1% das mulheres e 2% dos homens). A proteção da virgindade, uma das principais razões mencionadas nos meios de comunicação de massa, aparece como motivo para apenas 10% das mulheres e 11% dos homens, enquanto que o “aumento nas chances de arranjar um marido” é mencionado por 9% das mulheres e incríveis 4% dos homens. Por fim, 13% das mulheres e 21% dos homens se referiram ao aumento do prazer do marido como razão para efetuar a circuncisão feminina ou a reinfibulação (apud Gruenbaum, 2001: 49).
Claro que compreender as razões de determinadas práticas não implica em simplesmente aceitar como verdade aquilo que é oferecido como explicação. De fato, se fosse esse o caso, seria melhor concordar com os defensores de um relativismo epistemológico que colocam no mesmo nível explanatório ciência, literatura e religião. Entretanto, é necessário reconhecer que as crenças (mesmo as falsas) têm um impacto causal na ação das pessoas. E isso implica não apenas identificar corretamente o repertório de crenças disponíveis em uma determinada cultura, mas também os contextos específicos nos quais elas são mobilizadas por agentes e grupos de agentes particulares. Isso certamente não é possível sem a suspensão temporária de valores éticos que possibilite a abertura ao diálogo e, portanto, ao entendimento mútuo.
Mais uma vez, não se trata de negar que a MGF é uma prática que deve ser abolida. A questão é que sua própria abolição requer um entendimento mais profundo do tema do que o que vem sendo propagado pela grande mídia. Por que, por exemplo, um filme como “Flor do Deserto” não poderia ter focado um pouco mais nos dilemas e escolhas que certamente as mulheres de sua família devem ter encontrado? Seria sua mãe uma simples idiota cultural, para tomar emprestada a expressão de Garfinkel, incapaz de questionar os valores de sua cultura, ou alguém cujas circunstâncias particulares não possibilitaram uma escolha diferente da sua?
Dito isto, um dos melhores tratamentos que vi ao tema veio da literatura. Em um excelente livro intitulado Possessing the Secret of Joy (“Possuindo o Segredo da Alegria”), Alice Walker (1991) narra a estória de Tashi, suspensa entre dois universos morais incomensuráveis e para quem a única resposta possível é a loucura. O livro foi brilhantemente resumido e analisado por Débora Diniz (2000; ver também Diniz, 2001), de quem faço uma citação extensa:
O romance de Walker se passa em uma comunidade imaginária da África Setentrional, os Olinkas, uma região endêmica da cirurgia de mutilação genital. O enredo tem como fio-da- meada a infeliz biografia da personagem principal, Tashi, que também esteve presente no livro “A Cor Púrpura”. O início do livro narra a chegada de missionários protestantes à aldeia de Tashi. Esta cena inicial é de fundamental importância para a compreensão da história, pois aponta para um enigma que somente ao final do romance o leitor poderá compreender. Ao contrário de toda a aldeia que se encontrava em festa pela chegada dos missionários, Tashi e sua mãe, Nafa, estavam profundamente abatidas. As duas mulheres viviam o luto pela morte de Dura, a única irmã de Tashi. Para o leitor, a razão da morte de Dura permanece desconhecida até quase as últimas páginas do livro. O fato é que a morte da primeira filha fez com que Nafa decidisse preservar Tashi da cerimônia de iniciação ritual, não permitindo que a mutilassem. Definitivamente, esta era uma opção impensável para a estrutura social a que estas mulheres estavam inseridas.
Mas, em nome desta infração da mãe, um ato seguramente imoral para os padrões valorativos da sociedade Olinka, Tashi não encontra outra saída senão se casar com um estrangeiro, o único homem capaz de aceitar seu corpo não-iniciado. Tashi casa-se, então, com o filho do missionário protestante de sua aldeia e vai com ele morar nos Estados Unidos. A distância geográfica e social de seu povo a permitia sobreviver na imoralidade do corpo não-mutilado. Na verdade, a integridade genital era a condição para a normalidade e a moralidade em sua nova pátria. Tashi foi capaz de viver alguns anos felizes com o marido, até o dia em que seu povo decidiu proclamar a liberdade colonial. Mais tardiamente que os povos vizinhos, os Olinkas engajaram-se no movimento pela independência dos estados africanos. Ouviam-se histórias de massacres, de abandono de aldeias, de dissolução do grupo. Este sentimento de perda das origens provocou em Tashi um vazio quanto à sua identidade cultural, um deslocamento afetivo de seu povo como nunca antes havia sentido. Tashi passou a se sentir uma cidadã sem referências, uma imigrante vinda de lugar nenhum.
Dominada por este sentimento confuso sobre sua nacionalidade, Tashi resolveu fugir e alistar-se nos campos de refugiados dos Olinkas. Sua decisão era fazer parte do exército de libertação de seu povo. No entanto, para os Olinkas, Tashi era uma figura confusa ou mesmo inesperada: uma mulher casada com um estrangeiro e não-mutilada. A desconfiança em relação a ela era enorme. Definitivamente, Tashi não era uma mulher Olinka. Era um híbrido de mulher. Em nome disso, Tashi resolveu submeter- se, mesmo que tardiamente, à cirurgia de mutilação genital. Para ela, este seria o “selo” definitivo da cultura Olinka em seu corpo. De posse desta marca cultural, ela não seria mais alvo de desconfiança ou repúdio, podendo ser aceita como uma mulher comum. Com a mutilação, Tashi não era mais uma mulher imoral; devolveram-lhe a dignidade da moralidade. Mas se a cirurgia de mutilação genital já apresenta sérios riscos à saúde e à integridade física das meninas, mesmo quando executadas em tempos de paz, a cirurgia de Tashi nos campos de guerra deixou graves seqüelas no seu corpo. Foi exatamente neste período de convalescência pós- cirúrgica que seu marido a encontrou.
De volta aos Estados Unidos, Tashi, já recomposta, engravida. E é exatamente a gravidez de Tashi o que inicia o segundo momento narrativo do livro: a nova imoralidade de Tashi, isto é, ser uma mulher não-mutilada para os Olinkas era um fato tão inesperado quanto ser uma mulher mutilada para nos Estados Unidos. Tashi tornou-se uma peça alegórica nos hospitais e clínicas onde passava. Seu corpo era objeto de análises e estudos. Sem esperar, Tashi retorna ao espaço solitário da imoralidade, da anormalidade da diferença. Sua moralidade Olinka é algo inesperado e repudiado pelos estadunidenses. Um corpo mutilado como o seu deveria ser escondido, banido ou, se possível, recomposto. Ora, esta passagem da imoralidade para a moralidade Olinka e desta para a imoralidade estadunidense foi mais forte do que Tashi poderia suportar. Apesar dos esforços no sentido de devolver-lhe a dignidade, a narrativa final de Walker apresenta Tashi como uma personagem louca. E a loucura de Tashi é exatamente a absoluta falta de perspectiva para julgar os padrões de certo e errado, da moralidade ou da imoralidade. A liberdade insana de Tashi a tornou uma figura sem referências no mundo cultural: uma estranha para os Olinkas, uma escrava para os estadunidenses. Uma mulher sem amparo cultural. Mas definitivamente uma mulher livre.
A história de Tashi, e para isso pouco importa os limites da narrativa ficcional de Walker, tem a propriedade de desnudar os limites da crítica cultural. Sim, ao mesmo tempo que é preciso e urgente a crítica moral, a pergunta que permanece é como deve ser conduzido este processo, para que se consiga evitar o abandono dos indivíduos à liberdade da loucura. Libertar os indivíduos das amarras opressivas de cada código moral não é o mesmo que torná-los insanos. A dúvida moral é um processo saudável e necessário, mas para que possa ser levado adiante é preciso que estejamos aptos a viver em um mundo recheado de imorais livres e não de indivíduos moralizados e vítimas de códigos culturais opressivos. Tashi é um exemplo radical de submissão aos códigos morais: sua mãe a confinou à imoralidade Olinka, seu casamento à moralidade estadunidense, a guerra à moralidade Olinka, sua gravidez à imoralidade estadunidense. Não houve outra saída senão a loucura. Mas, infelizmente, como diz o dito popular, “não é louco quem quer”. Tashi foi vítima da loucura. (Diniz, 2000: 2-3).
Embora não tenha aqui a pretensão de responder à questão colocada por Diniz em relação a como a crítica cultural deve ser efetuada, certamente o caminho não é o tratamento unilateral e desumanizador adotado pela grande mídia e que tem se revelado incapaz de estabelecer o diálogo necessário ao entendimento mútuo, por um lado, e o questionamento de nossas próprias práticas, por outro. Ou ninguém aqui ouviu falar do sucesso das cirurgias plásticas genitais que tem gerado um exército de vulvas de designer no Ocidente?

Refêrencias
Diniz, Débora (2000) A Cirurgia de Mutilação Feminina. SérieAnis, Vol. 11, Brasília, LetrasLivres, pp. 1-3, junho. Disponível em: http://www.anis.org.br/serie/visualizar_serie.cfm?IdSerie=17. Consultado em 06 de setembro de 2010.
________ (2001) Antropologia e os Direitos Humanos: O dilema moral de Tashi. In Regina Reyes Novaes Roberto Kant de Lima (orgs) Antropologia e Direitos Humanos. Niterói, Ed. da UFF.
Gruenbaum, Ellen (2001) The Female Circumcision Controversy: an anthropological perspective. Philadelphia, University of Pennsylvania Press.
Walker, Alice (1991). Possessing the Secret of Joy. Londres, Vintage.
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Entrevista com Bernard Vernier; novembro 2009

Por : Tâmara de Oliveira
Bernard Vernier é etnólogo e sociólogo, professor-pesquisador da Université Lyon II e está no Brasil entre novembro e dezembro de 2009 para uma série de conferências em três universidades : Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Seus principais trabalhos são : La prohibition de l'inceste et la dénégation des rapports sociaux. Critique de Françoise Héritier. Paris : Harmattan, 2009; Le visage et le nom. Contribution à l'étude des systèmes de parenté, Paris : PUF, 1999 ; La genèse sociale des sentiments: aînés et cadets dans l'île grecque de Karpathos, Paris : Editions de l'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, C.N.R.S 1991. Ele concedeu-me gentilmente uma entrevista que cedo, também gentilmente, aos leitores do Cazzo.
TO : Suas pesquisas são estudos monográficos comparativos sobre diferentes sociedades vilarejas, objetivando porém a construção de hipóteses de largo alcance – incluíndo sua análise estatística da sociedade francesa contemporânea, sobre a qual o senhor afirma que a percepção das semelhanças entre crianças e parentes, longe de ser determinada apenas pelas características objetivas das crianças, é inconscientemente também estruturada por certos princípios (ao mesmo tempo cognitivos, afetivos e práticos) relacionados ao sistema de parentesco. O senhor sustenta essa abordagem em nome da interdependência epistemo-metodológica entre a sociologia e a antropologia. Poderia nos explicar como o senhor pensa essa interdependência ?
BV : Pierre Bourdieu denunciou frequentemente o caráter artificial da separação entre a antropologia e a sociologia. Ele demonstrou isso amplamente pelo exemplo de seu próprio trabalho. Foi a partir de seus estudos kabyles (admirados pelos antropólogos) que ele forjou a teoria do habitus e da ação humana que está no centro de sua sociologia. Seu trabalho sobre o celibato no Béarn (região onde ele nasceu) foi saudado como uma obra-prima de análise sócio-antropológica, utilizando ao mesmo tempo métodos estatísticos e observação participante – considerados, à época, como métodos de duas disciplinas diferentes. Sabe-se que a História, desde o movimento dos Anais, tem sido fortemente marcada pela antropologia. Sobre Bourdieu, pode-se com certeza dizer que ele é o mais antropólogo dos sociólogos. Poderíamos das inúmeros exemplos disso. Darei dois : sua análise das funções das grandes escolas e de suas classes preparatórias, tomando emprestado muito da análise dos ritos de iniciação feita por Van Gennep ; igualmente, sua preocupação em levar em conta a gênese social das categorias cognitivas. Esquece-se muito isso, mas Bourdieu foi muito influenciado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Aliás, ele reivindica para si mesmo um estruturalismo genético que, diferentemente de Lévi-Strauss, analisa a gênese social das estruturas (inclusive das estruturas mentais, como as categorias do julgamento professoral, etc.) Aluno de Bourdieu, eu interiorizei sem esforço essa complementaridade fecunda entre duas abordagens. Eu inclusive fiz o esforço de sociologizar a bela análise do sentido da honra de seus estudos kabyles, mostrando que eles mantinham-se sob uma certa relação culturalista e que o sentido da honra pode variar segundo características sociológicas. Na ilha graga de Kárpathos o sentido da honra não é o mesmo, segundo se é primogênito ou caçula, camponês rico ou pobre. Falando rapidamente, a separação entre a sociologia e a antropologia constitui um obstáculo real para o progresso das ciências sociais. O sociólogo não pode encontrar melhor meio para escapar da cegueira à qual tende a condená-lo a imersão na sociedade que ele estuda que o de operar um desvio pela análise de uma das sociedades que interessam aos etnólogos. Quanto a estes, não há melhor meio para dar às suas descobertas seu verdadeiro alcance e para se curar da ilusão nociva segundo a qual eles estudam sociedades e práticas radicalmente diferentes que o de reinvestir, as questões e as problemáticas que eles elaboraram durante o estudo de uma dessas sociedades ditas exóticas, sobre sua sociedade de origem.
TO : O senhor sustenta que seu estudo sobre a gênese social da percepção das semelhanças entre crianças e parentes é um prolongamento do trabalho durkheimiano de Bourdieu, sobre as relações entre as estruturas sociais e as estruturas mentais. Como o senhor descreveria as relações teóricas e metodológicas entre Durkheim e Bourdieu ?
BV : Eu não posso responder realmente a essa questão de história das ciências – que merece uma reflexão muito aprofundada em poucas frases. Parece-me que Bourdieu tinha a mesma confiança contagiosa que Durkheim na possibilidade da sociologia explicar o mundo – aí compreendendo o mundo mental e afetivo. Durkheim dizia mais ou menos o seguinte : não é a existência anterior dos sentimentos familiares que explica a família, é a família (sua estrutura) que explica os sentimentos familiares. Seria necessário examinar as relações entre a noção de habitus e a extrema importância dada por Durkheim à socialização. Como o Durkheim de O Suicídio, Bourdieu esforça-se em utilizar as estatísticas de maneira demonstrativa – e não somente ilustrativa. Mauss, o sobrinho de Durkheim, quando analisa o dom nas sociedades primitivas, parece-me ter anunciado a superação, desejada por Bourdieu, entre subjetivismo e objetivismo. Sua análise faz-se ao mesmo tempo em termos de estrutura (ele extrai a noção de troca) e de práticas (existem de fato dons e contra-dons que precisam ser explicados pelos interesses em jogo). Mas vocês sabem que Bourdieu se reclamava também de outros mestres (Marx, Weber, etc.)
TO : Em seu último livro (VERNIER, B. La prohibition de l'inceste. Critique de Françoise Héritier. Paris : l'Harmattan. 2009), apresentando a herdeira de Lévi-Strauss na França como aquela que reproduz, sobre o incesto, o mesmo erro universalista/substancialista que seu mestre cometeu sobre a teoria dos matrimônios, o senhor afirma que há uma razão metodológica e uma epistemológica que explicam esse erro. Poderia nos explicar isso ?
BV : Quando eu falo dos erros metodológicos e epistemológicos de Françoise Héritier, eu quero dizer o seguinte : essa antropóloga afirma muitas vezes, em seu livro As Duas Irmãs e Sua Mãe que é preciso « escutar o que as pessoas dizem ». É um excelente princípio metodológico (mas também epistemológico). Ora, cada vez que as pessoas ou os textos explicam as razões políticas (no sentido largo), econômicas ou simbólicas das proibições com uma aliada, Héritier as invalida ou as declara secundárias. A Bíblia diz explicitamente em O Levítico « Não tomarás a irmã de sua mulher para fazer dela uma rival ». Françoise Héritier evacua o que põe problema à sua teoria, traduzindo rival por co-esposa e dá como razão da proibição o contato entre idênticos (duas irmãs), lá onde a Bíblia fala explicitamente de uma proibição pela rivalidade gerada entre duas irmãs. O caso das Danaídes (tragédia grega), do qual eu falei, é exemplar : Héritier pula uma frase que não cola com sua teoria. No caso dos Hititas, ela utiliza um verseto, o 191, interpretando-o mal (mulher livre tornando-se mulher não casada), embora o texto seja claro : trata-se de uma mulher livre em oposição a uma mulher escrava. E ela não leva em consideração os versetos seguintes que contradizem sua teoria. Seu erro epistemológico maior é, com certeza, o de dissolver a antropologia social na antropologia do simbólico. Na importância sem medidas que ela confere ao simbólico, pode-se ler a expressão de uma espécie de etnocentrismo profissional, ligado ao professorado de alto nível. Sua colocação entre parênteses das relações sociais repete de maneira caricatural a posição estruturalista da autonomização dos objetos de estudo (a língüa de Saussure, a troca das mulheres de Lévi-Strauss, etc.). Ela pretende ultrapassar Lévi-Strauss, conservando-o. Entretanto, afirmando que a razão da proibição do incesto de primeiro tipo (com consanguíneos) deve ser buscada no incesto de segundo tipo (pois o que é proibido no primeiro tipo seria também um contato entre idênticos), ela toma por totalmente secundária a noção de função social que Lévi-Strauss tinha dado, seguindo Santo Agostinho, à proibição do incesto e que ele utilizou (apesar de seu desprezo às explicações funcionalistas), inclusive em suas construções mais abstratas, como a de seu átomo de parentesco ou do equilíbrio lógico (duas relações positivas e duas negativas), tendo por função o equilíbrio da estrutura social. O que eu lhe reprovo [a Héritier], em sua análise dos textos, é de ter negligenciado os dois imperativos categóricos da análise : a regra do co-texto (não se seleciona a parte do texto que nos é cômoda) e a do contexto (deve-se referir os textos à sociedade e às relações sociais que os produziram e que lhes dão sentido).
TO : O senhor faz uma relação entre a recepção positiva extraordinária da tese « unidemensional e autonomizada » de Héritier sobre o incesto e, a visibilidade contemporânea da homossexualidade. Poderia nos explicar essa relação ?
BV : A questão das relações homossexuais é uma das grandes questões sociais do momento. Ela encontra sua expressão na rua, com a Gay Pride. Adotar o ponto de vista dos dominados (as classes populares com Marx há muito tempo, as mulheres e os homossexuais mais recentemente), fez a sociologia progredir e esses temas estão, digamos assim, no « ar dos tempos ». Então não é completamente impossível que exista um pouco de fascinação pela questão homossexual na insistência dessa antropóloga em descobrir relações homossexuais escondidas (por exemplo, entre Édipo e seu pai), lá onde o senso comum via apenas relações heterossexuais (a relação sexual de Édipo com sua mãe).
TO : Para cientistas sociais brasileiros, sua argumentação sobre a posição acadêmica de Françoise Héritier pode surpreender, sugerindo que o estruturalismo lévi-straussiano ainda é hegemônico no campo etnológico francês. O Senhor acredita que se trata realmente de uma verdadeira hegemonia (epistemológica e metodológica) ou trata-se apenas de hegemonia « das redes », quer dizer, de uma herança dos territórios acadêmicos graças a relações estratégicas entre antigos estruturalistas e jovens pesquisadores – no fundo indiferentes às implicações teóricas do estruturalismo?
BV : Em grande parte, vocês têm razão. Ainda existe uma boa quantidade de pesquisadores estruturalistas. Mas a dominação do estruturalismo, declarada morta em Maio de 68, ainda existia institucionalmente de fato na França, até recentemente. Foi Françoise Héritier, discípula de Lévi-Strauss, quem lhe sucedeu como professor de antropologia no Collège de France. Lévi-Strauss elaborou sua teoria das diversas formas de troca de mulheres apoiando-se sobre a análise do que se chama as estruturas elementares do parentesco, onde existem cônjuges prescritos (sabe-se de antemão quem deve-se casar com tal tipo de parente ou membro de tal classe matrimonial). O livro O Exercício do Parentesco, aquele que tornou Françoise Héritier célebre, esforça-se em demonstrar que, como tinha suspeitado Lévi-Strauss, os sistemas de parentesco semi-complexos (que funcionam como o nosso, sob proibições e não sob obrigações, mas onde as proibições recaem sobre numerosos grupos de parentes), conhecem as mesmas formas de trocas que os sistemas elementares. Isso ampliava consideravelmente o campo de aplicação da teoria lévi-straussiana, porque os sistemas onde os cônjuges são realmente prescritos (e não preferenciais ) são raros. Dessa forma, o cargo do Collège de France foi ocupado até muito recentemente por uma estruturalista. Parece-me que isso tinha uma certa influência sobre o recrutamento dos pesquisadores do Laboratório de antropologia social – que era o mais importante da França. Isso também exercia efeitos sobre o recrutamento dos professores da EHESS, onde as relações de força eram entretanto mais complicadas devido a importância dos historiadores, mas o candidato antropólogo era aconselhado a fazer uma visita ao professor do Collège de France para se assegurar de seu apoio. Isso também exercia influência sobre o conteúdo da principal revista francesa de antropologia, L’Homme. Darei apenas meu próprio exemplo : essa revista recusou publicar o artigo crítico que eu enviei para explicar que a teoria de Françoise Héritier dava uma importância considerável à relação homossexual, sem se perguntar em nenhum momento se as sociedades consideravam essa relação como uma relação entre idênticos. Trata-se de detalhes significativos. Também quando eu publiquei meu livro sobre Kárpathos, La genèse sociale des sentiments en 1991, eu quis mencionar na apresentação que meu trabalho criticava o estruturalismo lévi-straussiano. O livro não foi censurado de maneira alguma, mas pediram-me encarecidamente para retirar essa menção « indelicada ». Mas isso refere-se à história das ciências sociais e o que eu digo é apenas uma impressão pessoal.
TO : O senhor seria um bourdieusiano “pur et dur”?
BV : Pierre Bourdieu foi um dos grandes sociólogos de seu tempo. Para mim, ele está um pouco para a sociologia como Proust está para a literatura. Um encontro raro entre uma grande sensibilidade e uma potente vontade científica. Mas não se deve jamais continuar prisioneiro de seus mestres. Para um discípulo, a crítica se faz principalmente de duas maneiras. Pela leitura intensiva da obra, permitindo reparar as contradições lógicas ; pelo trabalho de campo que às vezes traz um desmentido à teoria. Às vezes é o próprio trabalho de campo que, contradizendo certos aspectos da teoria, permite notar as contradições lógicas – foi o que aconteceu comigo com a noção de estratégia. Eu utilizei bastante essa noção em meu trabalho sobre Kárpathos. Mas eu vi claramente que os karpathiotas desenvolviam estratégias conscientes – enquanto Bourdieu falava mais frequentemente em estratégias inconscientes.
TO : Muito obrigada por ter estado conosco na Universidade Federal de Sergipe e por esta entrevista para os colaboradores do Cazzo. Esperamos seu retorno para falar mais especificamente da sociologia de Pierre Bourdieu.
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