Nem é preciso dizer que uma das características mais proeminentes da experiência social contemporânea é o contato contínuo com o sofrimento à distância, isto é, com uma enorme profusão de informações e imagens de tragédias humanas transmitidas por meios de comunicação de massa como o jornal, o rádio, a televisão e a Internet. Tais tragédias são marcadas pelo signo da multiplicidade, tanto no que toca às suas vítimas, situadas nas mais diversas regiões do globo – embora, a crer nas ênfases diferenciais das coberturas midiáticas, os males do mundo sejam muito desigualmente distribuídos -, quanto no que respeita às suas feições, que vão desde catástrofes naturais como furações, tsunamis e terremotos até condições socioeconômicas persistentes de extrema penúria, guerras, atentados terroristas e genocídios étnicos.
A forte presença de mensagens midiáticas relativas a contextos distantes em nossa existência diária já é inclusive suficiente para gerar, com freqüência, uma situação ética inversa àquela temida por Jonas e Bauman. Enquanto estes diagnosticam um descompasso entre a globalização em avanço e a velha ética fundada na proximidade física (“miopia moral”), temos agora também casos múltiplos de “hipermetropia moral”, condições em que uma preocupação com o destino de habitantes de locais remotos (e.g, crianças mortas em um atentado terrorista em Beslan) oblitera a percepção de demandas morais presentes em circunstâncias locais (e.g, crianças dormindo na calçada, em meu caminho para o trabalho).
Ab initio, o conceito de “sofrimento à distância”, na expressão feliz (sic) de Luc Boltanski (1999), deve ser compreendido no sentido mais lato, de modo a incluir qualquer situação complexa envolvendo um episódio ou circunstância durável de sofrimento em massa, a produção e circulação de documentos visuais e textuais do mesmo e o variado espectro de respostas por parte de agentes individuais e coletivos, tais como organismos transnacionais, estados-nação, movimentos sociais, organizações humanitárias e cidadãos “comuns”. Sem perder de vista a multidimensionalidade do fenômeno, é fundamental não fugir às questões sociopsicológicas mais básicas: o que vai pela mente de uma pessoa confrontada com notícias sobre as aflições de estranhos em contextos remotos? Através de quais crenças éticas, esquemas cognitivos e horizontes culturais os “sofredores” e demais atores relevantes (perpetradores, benfeitores, etc.) são percebidos? A avalanche de reportagens internacionais sobre desastres humanitários modifica substancialmente as atitudes e práticas dos espectadores? Os consumidores das mensagens dos meios de comunicação vêem a si mesmos como parte de um único mundo? Ou a overdose de tragédias midiatizadas leva, ao contrário, à “fadiga da compaixão”?
Pelo menos a uma mirada panorâmica, a literatura a respeito do tema parece notavelmente polarizada entre “otimistas” e “céticos”. Segundo os primeiros, a multiplicação de informações quanto ao sofrimento alheio, ao tornar a alegação de ignorância como justificação da inatividade cada vez menos crível, contribui para instilar algo como um imaginário moral da “cidadania cosmopolita”, uma disposição de agir em favor de outros distantes através de múltiplas formas: pressão política sobre governos nacionais, doação de dinheiro ou suprimentos, assinatura de petições, etc. O aumento da acessibilidade e a pluralização de fontes de informação abririam o self moderno-tardio a discursos e vivências não-locais, a uma consciência crescente dos efeitos distantes de eventos próximos (bem como dos efeitos próximos de eventos distantes) e, por fim, a uma preocupação genuína com o destino de estranhos vivendo em contextos remotos.
O que dizem os céticos? Longe de estimular tais disposições, a lógica de produção e veiculação das notícias reforçaria moral e psicologicamente, nos seus receptores, um senso de pertencimento a determinadas comunidades territoriais, étnicas e/ou socioculturais. A referência ao reforço de predisposições éticas comunitárias vem muitas vezes atada à já velha crítica ao caráter mercadorizado da geração e recepção de bens midiáticos, que faria com que a apresentação das notícias tivesse de se encaixar na demanda por entretenimento informacional (o gênero do “infotenimento” [
infotainment]), antes que na lógica da relevância humanitária, com direito à hegemonia dos traços mais marcantes do primeiro, como a mistura de sensacionalismo (foco em detalhes dramáticos e espetaculares) e descontextualização histórica e política (ausência de referência às causas dos eventos retratados e/ou a alternativas de intervenção).
Bauman pode ser reencontrado nesse pólo cético/pessimista do debate (o que não é lá grande surpresa). Traindo a influência de sua visão levinasiana sobre as fontes primárias da moralidade como oriundas do contato presencial com a “face” do outro, ele afirma, nas breves reflexões que devota ao tema no seu Ética pós-moderna, que os indivíduos “telemediados” (1997: 203) perdem sua substância humana e integridade moral, sendo reduzidos ao status de “puras superfícies”. Retomando, à sua maneira, o discurso sobre os efeitos da mercadorização, o sociólogo polonês ressalta que a “telecidade” constitui o
locus da substituição dos imperativos morais pelo prazer estético: o outro é apenas objeto de entretenimento,
no strings attached. Além disso, a forma espetacularizada de apresentação dos eventos, narrados sem alusões a causas que os tornem inteligíveis ou a ações construtivas que possam ser avançadas em resposta a eles, provocaria nos espectadores, antes de tudo, o desejo de se desengajar desse mundo “lá fora”, assustador e fora de controle, e a recolher-se defensivamente aos seus próprios “lares”.
Há, por fim, o conhecido argumento do efeito de saturação ou
compassion fatigue. O estudo da apresentação cotidiana de notícias do sofrimento humano veiculadas nos meios de comunicação atesta a presença persistente, dia após dia, de registros de novos eventos e circunstâncias trágicas que afetam, grosso modo, as mesmas categorias de indivíduos e/ou desenrolam-se nos mesmos contextos sociogeográficos. O impacto psicológico de tal exposição sobre os receptores provocaria nestes a propensão a tomar por banais e até mesmo inevitáveis, porque interminavelmente reproduzidas, as tragédias que afetam certas categorias “preferenciais” de vítimas. Assim, mesmo reconhecendo-se a singularidade última dos indivíduos empíricos atingidos, seu enquadramento em esquemas de tipificação (não apenas na recepção, mas na própria produção da notícia) faria com que algumas notícias trágicas provocassem não muito mais do que uma sensação de
dejà vu. Aristóteles afirmou que o conhecimento começa pelo espanto. Se pudéssemos dizer o mesmo acerca da compaixão, seria possível sustentar que certas notícias e imagens de dor e sofrimento perdem seu poder de sensibilizar emocionalmente os espectadores precisamente em função da perda correlata de sua capacidade de provocar nos mesmos assombro e perplexidade, substituídos pela percepção de que, dito grosseiramente, as pessoas de certos lugares desafortunados do mundo estão sempre sofrendo e morrendo.
Portanto, enquanto otimistas apontam para uma cosmopolitização da consciência ética e uma superação relativa de distâncias geográficas e socioculturais por um senso de “proximidade” moral e emocional, céticos sustentam que critérios éticos de importância política e humanitária são menos decisivos à produção das notícias do que os requisitos do entretenimento informacional, uma vez que tais notícias não se dirigem a cidadãos de um mundo compartilhado, mas a um mero consumidor (ou
voyeur) de espetáculos de sofrimento – um consumidor, de resto, tornado blasé diante de tantas crises humanitárias.
A maneira mais profícua de adentrar essa discussão parece ser a da busca de uma via media capaz de avaliar os respectivos méritos analíticos e, ao mesmo tempo, escapar ao caráter simplificador destas duas posições ideal-típicas sobre as conseqüências da recepção midiática de imagens e informações do sofrimento à distância. Uma dose leve de rabugice sociológica é suficiente para rejeitarmos qualquer visão ingênua segundo a qual a mera disseminação de imagens das tragédias humanas seria suficiente para engendrar compaixão e alguma forma de engajamento humanitário. Mas também é simplista, unilateral e empiricamente falso sustentar, por outro lado, que a exposição midiática do sofrimento é sempre, ou inerentemente, desmobilizadora do ponto de vista ético, seja em função do caráter mercadorizado, estetizado e espetacularizado da sua construção e transmissão simbólicas, seja em virtude da síndrome moderna da fadiga da compaixão.
Contra as visões unilaterais do fenômeno, sejam as céticas que só observam voyeurismo e espetacularização mercadológica, sejam as otimistas que se apressam em celebrar a ampliação da imaginação moral desencadeada pela globalização de notícias, é fundamental reconhecer (e estudar empiricamente) as múltiplas maneiras pelas quais a situação de outros distantes é retratada na mídia, bem como os múltiplos efeitos que tais retratos provocam em diferentes receptores. Bauman
et caterva certamente captam uma modalidade freqüente de experiência do contato com o outro na telecidade, mas faz sentido supor que ela se aplica a todos os casos? E as situações em que as mensagens midiáticas sobre a dor alheia são vividas como moralmente desafiadoras, despertando sentimentos de compaixão, encorajando a reflexão ou o discurso ético-político (Boltanski, 1999), ou ainda desencadeando alguma espécie de engajamento prático em relação ao destino dos outros distantes retratados na tela?
Notícula sobre universalismo e relativismo
O conceito de uma via média – “caminho do meio” (Aristóteles), “meio-termo” ou do “equilíbrio” (como diz Seu Miyagy, um dos meus gurus de infância) – é tremendamente relevante também para atacarmos outra questão central no debate sobre ética e globalização, qual seja, a controvérsia entre universalismo e relativismo. A problemática assume uma proeminência considerável no atual contexto, em que uma doutrina de direitos humanos com pretensões universalistas é obrigada a travar contato com práticas culturais orientadas por quadros morais de referência distintos daqueles presentes na paisagem normativa do pensamento ocidental, inclusive no que toca às definições do que constituiriam atos de violação da integridade moral e/ou física dos seres humanos, isto é, atos de violência. Um exemplo-padrão das complicações envolvidas nesse contato é o da controvérsia em torno da prática da circuncisão genital feminina (Diniz, 2001), considerada uma mutilação bárbara do ponto de vista da moral ocidental (se me permitem colocar a questão nesses termos insatisfatoriamente imprecisos) e um signo simbólico-cultural desejável de reconhecimento e pertencimento social no interior de certas culturas do mundo africano. Trazendo a problemática para o âmbito da sociologia, podemos perguntar: é legítimo (no sentido descritivo, normativo ou em ambos, conforme a visão) que um/a sociólogo/a identifique uma determinada situação como de violência quando esta não é subjetivamente reconhecida e vivenciada como tal de acordo com as coordenadas culturais interiorizadas pelos atores envolvidos (e, em particular, por aqueles indivíduos percebidos pelo/a pesquisador/a como vítimas do ato supostamente violento em causa)?
É claro que o problema não admite uma resposta fácil, pois o típico ataque pós-moderno ao universalismo moral como um particularismo absolutizado e “tirânico” (Lyotard) topa facilmente com uma contra-acusação ao relativismo moral como implicando, em última instância, um completo niilismo normativo, desprovido de recursos para distinguir entre o justo e o injusto. Além disso, autores que trabalham na esteira das tradições de crítica da ideologia poderiam argumentar que, ao se deixar levar exclusivamente por aquilo que os próprios atores reconhecem como opressão, dominação e violência, a sociologia abandonaria um de seus mais importantes recursos emancipatórios, qual seja, a capacidade de decodificar práticas de dominação e violência cujo caráter é justamente o de não se apresentarem como tais para aqueles que as sofrem (e mesmo para aqueles que as praticam), devido às restrições ou distorções de natureza simbólico-ideológica que compõem seus ambientes sociais e orientam suas representações acerca dos mesmos. Como afirma um representante dessa posição, apostando na possibilidade de que a dominação ou violência antes dissimuladas sejam retrospectivamente percebidas como tais a partir de uma mudança de perspectiva intelectual ou de condições de existência:
não se trata de afirmar que os oprimidos acalentam alguma alternativa pronta para a sua infelicidade; significa que, uma vez que se tenham libertado das causas desse sofrimento, devem ser capazes de olhar para trás, reescrever suas histórias de vida e reconhecer que aquilo de que desfrutam agora é o que teriam desejado anteriormente, caso tivessem podido estar conscientes disso (Eagleton, 1997: 14).
De todo modo, a controvérsia universalismo/relativismo é recheada de mal-entendidos quanto ao alcance semântico dos respectivos termos, o que é responsável pela profusão de associações apressadas entre universalismo e arrogância etnocêntrica, de um lado, ou entre relativismo e cinismo/permissividade moral, de outro. Ainda que tais correspondências sejam plausíveis no caso de adesões simplistas e radicais a um dos pólos dessa aporia, diversas discussões contemporâneas demonstram a possibilidade de outras explorações da questão. Elas estão expressas, por exemplo, naquelas tentativas de construção de um universalismo “interativo” (Benhabib), “contextual” (Beck), “emergente” (Walzer) ou (auto)crítico, o qual não abdica de diretrizes morais (relativas, por exemplo, a direitos humanos tidos como básicos e invioláveis), mas é capaz de rever e questionar continuamente seus próprios pressupostos a partir de uma abertura dialógica para a diferença, o que também implica a propensão a tratar do problema de maneira contextual ao invés de procurar “solucioná-lo” de uma vez por todas no plano da especulação ético-filosófica.
Referências
BAUMAN, Z. Ética pós-moderna. São Paulo, Paulus, 1997.
________Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
BOLTANSKI, L. Distant suffering. Cambridge, Graham Burchell, 1999.
DINIZ, Débora. Conflitos morais e bioética. Brasília, Letras Livres, 2001.
EAGLETON, T. Ideologia: uma introdução. São Paulo, Boitempo, 1997.
GINZBURG, C. “Matar um mandarim chinês”. In: Olhos de madeira. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
HARVEY, D. A condição pós-moderna. São Paulo, Loyola, 2001.
JONAS, H. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro, PUC, 2006.
KURASAWA, F. “A message in a bottle: bearing witness as a mode of transnational practice”. Theory, culture and society, 26(1), pp.92-111, 2009a.
PETERS, G. “Em face do sofrimento alheio: preliminares a uma investigação sobre responsabilidade moral, proximidade e distância”. Trabalho Apresentado no 33º Encontro Anual da Anpocs, GT “Para onde vai a teoria social?”. Caxambu, 2009.
SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário