segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Ô da Rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo


E para quem está em São Paulo, o lançamento do novo livro de Fraya Frehse, que nos enviou o resumo abaixo.

Ô da Rua! O Transeunte e o Advento da Modernidade em São Paulo / Fraya Frehse. São Paulo, Edusp, 2011; 632 pp.; ilustrações; 23 cm; Prefácio de José de Souza Martins; Texto da Orelha de Lilia Moritz Schwarcz.

Inspirado numa problemática de longa duração nas ciências sociais brasileiras - a das lógicas de apropriação de práticas sociais e culturais historicamente modernas no Brasil no decorrer do século XIX -, este livro se propõe a repensar criticamente o papel conceitual da cidade de São Paulo nesse debate hoje colocando em questão, na chave de uma sociologia da vida cotidiana que entrelaça de maneira sui generis contribuições em particular de Henri Lefebvre e de Erving Goffman, o urbano que é produzido em São Paulo pelo advento da modernidade, entre o início do século XIX e o início do século XX. Que sociedade urbana emerge nessa cidade no bojo desse processo histórico? Em busca de respostas, nada como uma etnografia das transformações histórico-sociais e socioculturais das regras de comportamento corporal e de interação social dos pedestres nas ruas do centro histórico de São Paulo entre 1808 e 1917, assumindo-se como referências empíricas imagens desse espaço produzidas por viajantes, (ex-)estudantes da Academia de Direito, ex-meninas de elite, jornalistas e fotógrafos de rua durante esse longo período. Com efeito, nesse ínterim as ruas do centro da cidade vão paulatinamente sendo tomadas pelo transeunte, personagem até então inexistente nas plagas paulistanas. Em meio a uma complexa dinâmica histórico-social que une, ao mesmo tempo em que separa, viajantes, (ex-)estudantes, ex-meninas de elite, jornalistas e fotógrafos de rua em torno da temática da civilidade, o corpo do transeunte é mediação reveladora de uma sociedade na qual todos os pedestres tendem a circular, mas suas formas de interagir nas ruas centrais mobilizam ativamente, ao lado da impessoalidade, uma pessoalidade historicamente própria de referenciais socioculturais estamentais. No espaço da rua, e no espaço que é o corpo do transeunte. Coisas do passado? Certamente não. Produtos de uma rua muito específica, em termos histórico-sociais: um espaço eminentemente cerimonial engolfado pela modernidade.

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domingo, 27 de novembro de 2011

As Ciências Sociais e os Pioneiros nos Estudos sobre Crime, Violência e Direitos Humanos no Brasil



A Fundação Joaquim Nabuco e o PPGS/UFPE convidam para o lançamento do livro As Ciências Sociais e os Pioneiros... organizado por Renato Lima e José Luiz Ratton.

Quando: Terça-feira, 29 de novembro, 19:00h

Onde: Sala Antônio Magalhães, Fundaj, Derby

Ratton e Lulu Oliveira estarão lá.  Parabéns aos dois!


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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Páginas úteis, pero no mucho (como convém)



Aproveito a falta de tempo para escrever para chamar atenção para dois novos super mega cool links na nossa lista de "páginas úteis" (quem de nós três inventou esse título infame?).

O primeiro é o da Pittacos - Revista de Cultura e Humanidades, editada pelo José Eisenberg, professor de Filosofia do Direito na UFRJ (ninguém é perfeito, nem mesmo o Eisenberg). O segundo é O Chihuahua Anão - um blog de antropologia aleatória, de autoria de Igor Machado, professor de Antropologia da UFSCar (ah, os antropólogos...).

Cynthia

domingo, 20 de novembro de 2011

A sociologia do mundo rural e as questões da sociedade no Brasil Contemporâneo



XV Congresso Brasileiro de Sociologia
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.

Conferência: Maria Nazareth Wanderley (UFPE)

A Sociologia do Mundo Rural e as questões da Sociedade no Brasil Contemporâneo

A sociologia rural é antes de tudo sociologia. Porém, ao mesmo tempo, seu objeto exige um tratamento teórico próprio, de forma a explicar porque e como o meio rural permanece na sociedade como "um espaço singular e um ator coletivo", o que faz da sociologia rural uma sociologia específica. Sociologia do trabalho, sociologia da família, sociologia dos movimentos sociais, sociologia política... Como incluir, nestes campos, a experiência dos trinta milhões de brasileiros que vivem nas áreas rurais do nosso país? Se não podemos, nem desejamos explicar sozinhos o mundo rural é, também, impossível amputar a parte rural das preocupações dos estudiosos da realidade brasileira.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida




XV Congresso Brasileiro de Sociologia
Realizado de 26 a 29 de julho de 2011, em Curitiba-PR.

Conferência: Margaret Archer (UK)
(Apresentação: Cynthia Hamlin)

Socialização como engajamento reflexivo: moldando uma vida

As teorias sociológicas  da socialização correntes não podem apreender a dinâmica dos processos de construção de identidade na sociedade morfogenética nascente. De fato, elas são altamente viesadas no sentido de uma orientação às características estruturais e culturais que caracterizam a sociedade Moderna e que não mais se sustentam no novo contexto societal. Com base nos insights da abordagem morfogenética-realista e da teoria social relacional, busca-se uma reconceitualização da socialização como um  engajamento reflexivo, o que dá conta dos dois desafios básicos colocados pela sociedade morfogenética para as pessoas jovens no sentido de desenvolver uma identidade pessoal e social: a "necessidade de seleção" e a "necessidade de moldar uma vida". Trata-se, portanto, de uma interpretação de como pessoas jovens decidem sobre seu próprio conjunto de preocupações, estabelecendo prioridades e encaixes [em relação às suas preocupações] e investindo seu tempo e energia em um projeto de vida. Tal abordagem também consiste numa crítica de todas aquelas teorias que reduzem a socialização a relações linguisticamente mediadas, e articula a condição relacional dos sujeitos humanos em relação às ordens natural, prática e social. Também argumenta que o tempo da socialização por internalização de hábitos ou habitus terminou.  

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Compreensão antropológica e objetivação participante: mais um estudo de cazzo sobre a sociologia reflexiva de Bourdieu



O delicado equilíbrio entre a objetividade e o tornar-se nativo na compreensão da alteridade


Por Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ)

O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de padrões de conduta significativamente diferenciados daqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência histórico-descritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição mais ostensivamente epistêmica. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]).

O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia. Como Dumont, Bourdieu passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sociais dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo, transpondo-a da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988).

Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que a cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de experiência humana. A passagem pela antropologia também é relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos. A antropologia cultural impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374). Tal captação, continua o antropólogo polonês, estaria calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas seria dependente também de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo.

Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu para a criação de um mito: o “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão de toda espécie de insatisfações intensas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como demonstração acachapante da implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen [a compreensão] quando o einfühlen [a empatia] desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248; Peters, 2011: 324) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica, concebendo o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados.

A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada.

Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274).

Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”. A objetivação participante é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias de entendimento, bem como sobre os interesses que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria a ele controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir.

Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a ideia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:
Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).
Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do nativo. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada. Isto vale, em particular, para o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-no-mundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123) - por exemplo, as caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem na teoria da escolha racional ou no “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21).

Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação hermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante, capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação (social e epistêmica) do sujeito cognoscente com tal objeto não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico, no caso da investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método.

Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas das práticas sociais que são invisíveis à cognição consciente dos agentes, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito.

É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post.

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Bibliografia
BOURDIEU, P. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
________Homo academicus. Stanford: Stanford University Press,1988.
________Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990a.
_______The logic of practice. Stanford: Stanford University Press, 1990b.
________Lições da aula. São Paulo, Ática, 2001.
_______Participant objectivation. Journal of the Royal Anthropological Institute, v.9, n.2, p.281-294, 2003b.
________A distinção: crítica social do julgamento do gosto. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007.
BOURDIEU, P; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (eds). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
DUMONT, Louis. (1997), Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp.
________(2000), Homo aequalis. São Paulo: Edusc.
GADAMER, H.G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997.
KURASAWA, F. The ethnological imagination: a cross cultural critique of modernity. University of Minnesota Press, 2004
LOEWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen. São Paulo: Cortez, 1994.
MALINOWSKI, B. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
________Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
PETERS,G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu
--> http://uerj.academia.edu/Gabrielpeters/Papers/404388/Percursos_na_teoria_das_praticas_sociais_Anthony_Giddens_e_Pierre_Bourdieu . 2011. 
RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, V.5, N.2, p. 243-263, 2002.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Entre o sim e o não, uma boa ética da discussão pode resolver: notícias de um célebre projeto de especialização no ensino médio de sociologia
















Por Tâmara de Oliveira

Em 12 de setembro último, o Cazzo contribuiu para tornar pública uma polêmica envolvendo professores, estudantes e egressos do Departamento de Ciências Sociais (DCS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS), mas que merece a atenção de qualquer cientista social do país: aquela envolvendo o projeto MEC/CAPES de curso de "Especialização em Ensino de Sociologia no Ensino Médio - modalidade à distância." O centro de educação à distância da UFS, CESAD, aderiu ao projeto e o professor que elaborou a proposta local, membro do DCS, decidiu que o Departamento de Ciências Sociais deveria ser a primeira instância a se pronunciar sobre a mesma. Daí sua tramitação no DCS/UFS, posto que, em geral, os projetos do CESAD gozam de autonomia em relação aos departamentos de nossa universidade que, dessa forma, limitam-se a aprovar ou não a participação eventual de seus professores.

Acho que nosso colega tomou uma excelente decisão, atravessada pelo que Habermas (2003) reflete através de sua ética da discussão. Com efeito, ao invés de se proteger sob as asas de papéis institucionais que, no caso, tornavam prescindível a necessidade da aprovação departamental do projeto, ele escolheu submeter seu trabalho à discussão pelo Conselho Departamental, permitindo que a polêmica aparecesse e que os cientistas sociais da UFS se ocupassem com um assunto que, regra geral, só interessa àqueles que se envolvem mais diretamente com as licenciaturas e/ou com o ensino médio da sociologia no país.

O núcleo dessa polêmica envolveu duas variáveis importantes do ensino da sociologia no ensino médio, mas que na prática podem se chocar: o aperfeiçoamento de jovens graduados para uma melhor inserção profissional, diante da demanda crescente do ensino da sociologia e num contexto de funcionamento precário da legislação federal sobre o exercício da profissão de sociólogo; a formação continuada de professores já atuando precariamente nesse ensino. No primeiro polo da polêmica, a preocupação era que esse projeto, como formulado, legitimasse a resistência do governo estadual à abertura de vagas para sociólogos e à mudança da legislação estadual sobre o exercício do ensino médio da sociologia, ao especializar, numa só “fornada”, 150 professores para preencher carga horária, enquanto seus próprios graduados não tem oportunidade de aperfeiçoamento. No segundo polo, a preocupação referia-se a uma reivindicação antiga de profissionais envolvidos com as licenciaturas e com o ensino médio da sociologia no Brasil, qual seja a de se agir contra a fragilidade dos conteúdos ministrados – muitas vezes oscilando entre lamentáveis conteúdos da não saudosa Educação Moral e Cívica e questionáveis conteúdos de militantismo político –, através da formação continuada de professores já atuando nesse ensino.

Estávamos assim, entre os convictos de que o projeto representava um “duro golpe nos alunos licenciados” e os convencidos de que ele apenas poderia “atenuar a necessidade de formação continuada de professores já atuando”, quando houve a primeira reunião do Conselho Departamental sobre a proposta local de adesão ao projeto MEC/CAPES. Reunião histórica, cuja condução teria animado Habermas e sua teoria da ação comunicativa (1999) e, à qual já me referi aqui no Cazzo. Aquela mesma que precisou acontecer no auditório de Psicologia e Ciências Sociais, porque muita gente quis estar de corpo presente na discussão.

E foi durante essa reunião que eu fui tendo a impressão de que havia no ar algo mais grave do que a polarização entre duas posições, e que, possivelmente, estava na raiz dela própria: boa parte dos conselheiros, assim como do público da reunião, não conhecia suficientemente (ou não conhecia de jeito nenhum) o projeto em discussão. Inclusive esta que vos escreve! Fui trocando olhares com meus colegas e percebendo que muitos deles estavam como eu: mezzo perdidos/mezzo perplexos e bastante preocupados. Matutando sobre isso enquanto a discussão continuava, considerei que aprovar, reprovar ou reformular fosse lá o que fosse numa situação de tamanho desconhecimento do que estava em questão, seria uma tremenda irresponsabilidade acadêmica coletiva. Foi assim que pedi vista do processo e o justifiquei – que foi acatado pela Presidente do Conselho e recebido com alívio por aqueles que, como eu, estavam convencidos de que ainda era cedo e o clima estava muito quente para uma decisão.

Apresento a seguir as principais considerações de minha análise do projeto, da discussão e da decisão departamental, considerando que o Cazzo, por ter contribuído para tornar pública nossa polêmica, é um espaço mais do que legítimo para tornar pública sua resolução.

Enquanto lia o projeto MEC/CAPES e a proposta de adesão local UFS/CESAD, eu ia pensando: é verdade..., programas e projetos referentes a políticas públicas nos chegam cada vez mais acabados, verticalizando a interação instâncias governamentais/universidades. Surgem uns “pacotes prontos” e corremos o risco de virar meros executores de políticas das quais desconhecemos as motivações concretas e, sobretudo, as tensões entre os parceiros que as formulam e/ou sustentam. Conhecemos apenas os princípios genéricos e ideais que os animam, como por exemplo: elevar o nível do ensino médio da sociologia no país, fomentar uma educação escolar para a ética, a cidadania e a diversidade; combater a violência urbana; etc., etc. Podemos nos submeter voluntariamente ao que mal conhecemos ou desconhecemos completamente, mesmo se com as melhores intenções do mundo. Desde que eles citem democracia, direitos, diversidade, desnaturalização e tolerância, podem enfeitiçar nossa reflexividade e nos conformar bovinamente às políticas públicas. Logo nós, que, por ofício, e inspirando-me aqui no que Cynthia Hamlin (2011) comenta sobre o Realismo Crítico de Margaret Archer, deveríamos cultivar a metarreflexividade, ou seja, aquele tipo de reflexividade que desafia a comodificação e a burocratização das relações humanas.

Com efeito, embora o professor que elaborou o programa tenha convidado todos os professores da área de sociologia do departamento à participação no curso, mesmo aqueles que aceitaram e tem seu nome no projeto demonstraram, durante a polêmica, não o terem lido com suficiente atenção – ou não o terem lido de forma alguma. Não fomos suficientemente responsáveis. Como se funcionássemos por piloto automático, supomos que um projeto específico de formação continuada de professores de sociologia do ensino básico é, a priori, bom e não perdemos tempo para conhecer sua formulação e perspectivas concretas.

Todavia, inspirando-me agora no construtivismo à moda de P. Berger e Thomas Luckmann (1990), a fonte central de mudança da realidade social (tanto a objetiva quanto a subjetiva) está nos problemas, ou seja, em experiências problemáticas que põem em cheque nossas formas tipificadas/institucionalizadas de pensar, sentir e agir. Viva então aquela polêmica para cuja publicidade o Cazzo contribuiu! Tremo só em pensar que, se não fosse por ela, poderíamos ter aprovado o projeto MEC/CAPES assim, sem mais nem menos, como bons soldados acadêmicos sem tempo para pensar. Ou tê-lo reprovado sob um tipo de convicção que nunca é boa conselheira: aquela que não vem de uma argumentação fundamentada no conhecimento reflexivo do assunto em discussão, mas em informações vagas e/ou leituras apressadas. A polêmica e nossa primeira reunião nos deram tempo para conhecer o projeto, pensá-lo e assim podermos resgatar nossa responsabilidade acadêmica.

Em primeiro lugar, formulando perguntas legítimas: qual a pertinência do processo de seleção dos projetos locais, já que o da UFS/CESAD foi aprovado sem conter um diagnóstico efetivo que pudesse prognosticar seu impacto no terreno local e justificar sua execução em Sergipe? Não seria mais útil equilibrar as vagas entre regiões do interior e da Grande Aracaju (onde o número de turmas do ensino médio da sociologia é muito maior), mesmo que isso significasse alterar um ou dois dos polos de educação à distância visados? Não teria sido mais estratégico, para a CAPES, grande financiadora do aperfeiçoamento de cientistas sociais do país, num contexto em que a regulamentação da profissão de sociólogo é na prática precária, que especializações voltadas para graduados em ciências sociais fossem, se não priorizadas, pelo menos melhor contempladas pelo projeto? Ainda pensando no funcionamento precário do exercício da profissão de sociólogo, fato problemático para a viabilidade das licenciaturas em ciências sociais do país, por que o projeto pedagógico MEC/CAPES define seu público-alvo como, cito, « professores graduados que estão atuando nos sistemas públicos de ensino e ministram aulas nos Ensinos Fundamental e Médio »? Ora, com definição de tamanha amplitude, abre-se sim a possibilidade de que projetos locais de adesão contribuam ativamente para a ocupação de parte da demanda de professores de sociologia por professores de qualquer área de conhecimento que, não lecionando essa matéria, percebam que esse curso é uma oportunidade de ouro para completar sua carga horária.

Dir-se-ia que nada disso tem importância. Apenas que projetos fechados consigam aderentes, que vagas sejam ofertadas (sem nenhuma justificativa sobre sua quantidade) e verbas sejam utilizadas, em projetos rápidos e recheados de princípios ideais das entidades parceiras. Afinal de contas, a democratização do ensino superior que, no Brasil, exprime-se também pela expansão universitária, constrói-se apenas para fornecer a ilusão de inserção social, via ensino superior de jovens – como disse pertinentemente o sociólogo Stéphane Beaud (2003) sobre a democratização escolar francesa – ou para possibilitar efetivamente que eles adquiram uma profissão socioeconomicamente viável?

As perguntas acima tornavam compreensível a petição pública elaborada por estudantes e egressos para que o DCS reprovasse o projeto como estava formulado, remetendo à possibilidade de que ele dissimule uma intenção de remedeio do ensino médio de sociologia através da formação para inserção de professores de qualquer área de conhecimento no ensino da matéria, evitando assim que a demanda crescente por turmas de sociologia obrigue a abertura de vagas para graduados em ciências sociais. Ou, mesmo que não evite, oferecendo margem de manobra a governos estaduais, em sua economia política de vagas. Para analisar a pertinência dessa argumentação, tivemos que ponderar sobre a dimensão legal que envolve o ensino médio da sociologia, articulando-a a formulação do público-alvo pelo projeto de adesão local (projeto UFS/CESAD).

Neste sentido, levamos em conta o fato de que um curso de especialização lato senso não significa diploma de habilitação, mas certificado de formação aperfeiçoada em uma área de conhecimento. Ou seja, um profissional não graduado na área, apenas especializado, não será um concorrente de graduados em ciências sociais, no que diz respeito a vagas que se abram para cientistas sociais no ensino médio público. Além disso, fato manifestando que a proposta local equilibrou melhor as duas variáveis aqui já colocadas do que a do MEC/CAPES, o projeto UFS/CESAD recortou mais seu público-alvo, definindo-o como, cito, « professores graduados que estão atuando nos sistemas públicos de ensino e ministram aulas de Sociologia no Ensino Médio ». Lembramos também que o público-alvo do projeto local, professores já atuando no ensino médio da sociologia das redes públicas, não deixará mais de atuar nesse ensino – com ou sem especialização.

Sendo assim, a proposta UFS/CESAD de fornecer formação em sociologia e ciências sociais para esses professores, atendendo reivindicação antiga de profissionais envolvidos com as licenciaturas e com o ensino médio da sociologia, é mais do que legítima. Não se pode supor que 150 vagas para uma especialização à distância de professores já ensinando sociologia, possam ameaçar a abertura de vagas para habilitados na rede pública de educação. Melhor dizendo, este curso poderia apenas fornecer, ao menos idealmente, melhor conhecimento da disciplina àqueles que já a ensinam e vão continuar ensinando-a, em regiões do estado que são potencialmente recusadas por graduados em ciências sociais – como aconteceu com alguns aprovados do concurso de 2003.

Diante disso, o que continuava válido no saber pano-de-fundo (Habermas, 1999) da reivindicação de estudantes e egressos, era a constatação de que a formação de nossos licenciados na graduação ainda sofre de uma estrutura curricular pensada predominantemente para o nosso bacharelado. Sendo assim, considerar que incluir nossos egressos no público-alvo do projeto UFS/CESAD faz parte das necessidades básicas para o ensino da sociologia no ensino médio em Sergipe, é absolutamente legítimo. Justificar que as instituições formadoras e os sistemas de ensino locais tem a necessidade de reformular seu próprio público-alvo seria uma argumentação válida para propor sua alteração.

Mas a análise do projeto revelou outro problema, estrangeiro à polêmica que o envolvia até então e referente ao próprio objetivo central do MEC e da CAPES, qual seja o de fornecer formação continuada a professores já atuando no ensino médio, para melhorar a qualidade dos conteúdos e da orientação metodológico-pedagógica. Um primeiro estranhamento: por que a bibliografia do curso também está pré-determinada (embora se preveja verba para complementação bibliográfica), já que a elaboração do material didático de outros cursos do CESAD foi atribuição dos professores responsáveis pelas disciplinas? Em outros termos, porque retirar a esse ponto a autonomia de professores universitários em relação aos conteúdos que eles ensinam, justamente num curso de especialização à distância? Além disso, uma análise preliminar dos programas e bibliografias das disciplinas revelou que, se em geral os módulos são bem elaborados, as disciplinas teóricas tem conteúdos adequados e as disciplinas pedagógicas são configuradas de modo a fomentar, pelo menos potencialmente, um ensino dinâmico e dialógico, nem todas as disciplinas parecem ter recebido o mesmo cuidado na elaboração da ementa, do programa e da bibliografia. Apresentando alguns desses problemas:

a) Participação política e cidadania: além de uma profusão dificilmente administrável de temas entre a descrição geral, a ementa, os conteúdos e os objetivos, pode-se perceber uma possível identificação entre sociologia política e formação política – o que pode significar contaminação por uma das tendências preocupantes no ensino médio da sociologia no Brasil, qual seja a de sua identificação com militantismo político – estudantil, de minorias ou categorias organizadas, etc., tornando o ensino da sociologia potencialmente refém de vieses ideológicos, esses inibidores nem um pouco naturais da reflexividade – seja dos que ensinam a sociologia, seja dos que a aprendem. Ora, tendo em vista que o projeto MEC/CAPES tem como princípios norteadores do curso as noções de desnaturalização e estranhamento, princípios estes que fundamentam o olhar sociológico sobre as realidades sociais, essa possível identificação entre sociologia política e formação política os fere irremediavelmente.

b) Estrutura e mudanças sociais: enquanto a descrição, a ementa, os objetivos e os conteúdos parecem perfeitamente adequados às ambições do curso, a bibliografia parece longe de ser capaz de contemplá-los.

c) Espaço escolar: renovações teóricas importantes e fundamentais para as ambições do curso, principalmente porque são resultantes de pesquisas empíricas e comparadas, como aquelas resultantes de análises de formas contemporâneas de desigualdade e segregação sociais produzidas pela escola, demandariam uma complementação bibliográfica.

Depois de uma longa, serena e ética discussão sobre esses aspectos problemáticos e problematizados do projeto, em reunião aos 05.10.2011 (também histórica, também no auditório, diga-se de passagem), o DCS/UFS chegou a uma decisão (quinze votos a favor, nenhum contra e uma abstenção) que sintetizo a seguir:

Considerando que o projeto de curso proposto não elaborou o necessário diagnóstico das carências efetivas do sistema público de ensino médio de sociologia em Sergipe; considerando que o projeto do curso não ponderou suficientemente sobre o necessário equilíbrio local entre, por um lado, formação continuada de professores da rede pública já atuando no ensino médio de sociologia e, por outro lado, o aperfeiçoamento de nossos graduados em ciências sociais para que eles possam atender com melhor qualidade à demanda crescente do ensino médio de sociologia em Sergipe; considerando que os dois aspectos acima colocados implicam na necessidade potencial de reequilibrar o público-alvo do curso proposto; considerando que o projeto do curso não analisou os programas e bibliografias das matérias do curso, para construir necessárias complementações bibliográficas e ajustes metodológico-pedagógicos consonantes com os princípios norteadores do projeto MEC/CAPES, a saber, desnaturalização e estranhamento sociológicos; considerando que, caso reformulado, o curso proposto pode contribuir para a formação permanente dos profissionais da área de sociologia, o Conselho Departamental decide por uma aprovação condicional do projeto UFS/CESAD, ou seja, sob a condição de que seja reformulado segundo as considerações acima, por uma comissão designada pelo Conselho Departamental de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe. Designamos os membros da comissão na mesma reunião e estamos cuidando de reformulá-lo até a última reunião do ano do DCS, quando ele será novamente discutido para deliberação – reflexiva e responsavelmente, como devem agir os acadêmicos.

Bibliografia

BEAUD, S. 80% au bac...et après? Les enfants de la démocratie scolaire. Paris: La Découverte, 2003.
BERGER, P. / LUCKMANN, T. La construction sociale de la réalité. Paris: Masson/Armand Colin, 1996.
HABERMAS, J. Droit et démocratie. Paris: Gallimard, 1999.
HABERMAS, H. L’éthique de la discussion et la question de la vérité. Paris: Grasset, 2003.
HAMLIN, C. Apresentação da Conferência de Margaret Ascher no XV Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia. Que Cazzo é esse. Recife, jul. 2011. Disponível em: http://quecazzo.blogspot.com/2011_07_01archive.html




terça-feira, 1 de novembro de 2011

Habermas, o papa do humanismo


Por Frédéric Vandenberghe -Professor e Pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). Texto originalmente publicado em Boletim Cedes, Out - Dez 2011. Disponível em http://www.soc.puc-rio.br/cedes/. Cedido ao Cazzo pelo autor.


Parece que Habermas está escrevendo um livro sobre as religiões. Com certeza, não será um tratado de Teologia. Talvez, nesta obra, tenha um pouco de teologia política, mas tudo indica que seu objetivo maior será a proposição de uma reflexão mais sistemática e politicamente motivada sobre o pós-secularismo e o papel das religiões no mundo atual. Convenhamos que a “situação espiritual do nosso tempo” – para retomar o titulo de um famoso texto de Karl Jaspers, de 1931 – é bastante preocupante, especialmente no Velho Continente. Em nome do racionalismo, do secularismo, do humanismo e mesmo do feminismo – que acabaram por inverter e perverter tudo o que sempre houve de melhor na tradição ocidental –, a Europa tem se tornado intolerante em relação às outras tradições que, eventualmente, criticam a sua propalada tolerância e questionam as bases morais de seu modo de viver.

A Europa é humanista, secular, liberal, esclarecida, democrática, pacífica, ou em uma palavra, habermasiana. Supostamente, em nome da liberdade de expressão, se pode ofender o Profeta e os muçulmanos. Nesta situação de recrudescimento das tensões religiosas, a última coisa que se deseja é o estímulo a um debate público sobre as religiões. Já sabemos quais podem ser as consequências desse processo: uma polarização dos espíritos, seguida quase invariavelmente de uma despedida oficial do “multiculturalismo” pelas mais altas autoridades dos países europeus – Balkenende, na Holanda; Cameron, na Inglaterra; Sarkozy, na França; e Merkel, na Alemanha. Confrontado com o ressurgimento da intolerância e a virulência da xenofobia, Habermas, em um momento de “desespero”, confessou, em uma entrevista para Giovanna Borradorri, que, às vezes, ele mesmo duvida da sua filosofia da comunicação e do consenso.[1]

Historiadores do presente e estudiosos das relações internacionais dizem que a globalização significa o fim da “ordem de Westfalia” com os seus Estados soberanos e territórios com fronteiras bem delimitadas. Os processos globais que acontecem em cima, através e embaixo do Estado têm posto em xeque sua soberania e a autodeterminação de uma maneira tão radical que a estrutura estabelecida com a Paz de Westfalia (1648) seria hoje em dia ultrapassada pela realidade das redes e dos fluxos transnacionais. Esta tese não é falsa, mas a volta em todos os lugares do fanatismo religioso sugere não apenas que estamos além, mas também de volta ao século XVII, com a diferença que agora as “guerras das religiões” – ou, o “choque das civilizações”, para falar como Huntington –, não só acontecem entre os Estados, mas também dentro deles. Na atual conjuntura, diversas tensões são intensificadas não somente entre as religiões, mas também entre a religião e o secularismo.

Estas tensões explodiram de maneira espetacular num onze de setembro. Em vez de tratar o ato terrorismo como um crime (um crime contra a humanidade), o presidente Bush considerou o ataque como uma declaração de guerra e lançou as suas tropas em dois conflitos, reagindo a uma provocação com uma reação desproporcional que já custou 3 trilhões de dólares e deu início ao declínio do império americano. Se o 11/09 se configurou como um êxito inesperado do ponto de vista dos fundamentalistas muçulmanos – que, como todos terroristas, buscam provocar uma reação violenta do Estado –, deve-se dizer que, para as minorias muçulmanas nos Estados Unidos e na Europa, o mesmo foi uma verdadeira catástrofe. A “Islamofobia” se tornou tão virulenta que, mal disfarçada por uma cortina culturalista mais politicamente correta, trouxe à tona o velho racismo, que trata o Islã, no melhor dos casos, como uma religião atrasada e, no pior, como uma ideologia política incompatível com a civilização européia.

Ainda que Habermas tenha se despedido há muito tempo de um secularismo militante que desconsidera, como outrora o próprio Marx, a religião como mera ideologia – na Teoria da Ação Comunicativa, por exemplo, a religião era racionalizada e, portanto, eliminada como uma espécie de atavismo –, foi somente na ultima década que ele começou a se interessar pelo tema da fé. [2] Em 2001, o mais conhecido dos filósofos vivos ganhou o prestigioso prêmio da Paz das Livrarias Alemãs. Algumas semanas depois dos ataques terroristas nos Estados Unidos, ele proferiu uma palestra na Pauluskirche, em Frankfurt, com o título “Crer e saber”. Já em 2005, ele debateu com o então Cardeal Joseph Ratzinger sobre a relação entre a razão e a fé nas sociedades pós- seculares.

Olhando sob certo prisma, pode parecer que o velho Habermas tem se empenhado em uma busca pela reabilitação das religiões. Mas os humanistas podem ficar tranquilos: o filosofo é fiel ao Iluminismo até o fim e “sem amém”. Ele não divaga sobre a espiritualidade e fica agnóstico, mas se coloca aberto para ouvir e aprender com os crentes. Habermas, inclusive, fala do “núcleo opaco” da experiência religiosa que permanece inacessível a ele. Tenho, inclusive, a impressão que o “Papa do Esclarecimento” usa e instrumentaliza a religião para seu próprio projeto crítico que carece de fundo e de forças motivacionais. Diferentemente dos “fundamentalistas do Esclarecimento”, ele estima – ainda que não diga isto de maneira tão aberta quanto eu – que a religião, antes de ser um problema, faz, na verdade, parte da solução. O que as religiões universais compartilham com o humanismo são os princípios da solidariedade e a defesa dos valores suaves. Não é apesar da, mas graças à fé, que eles mantêm, em tempos duros e violentos de transições como o nosso, uma sensibilidade para injustiça e o sofrimento do próximo. Nos desvios psicológicos e nas patologias sociais, o crente repara os sinais de um mundo desencantado, sem significado, esperança ou alegria.

Enquanto os “fundamentalistas do Esclarecimento” e os “Islamofascistas” só falam a respeito de e sobre os outros, Habermas fala com e para os crentes. Isto faz toda a diferença, até mesmo porque a tolerância, entendida como “dissenso racional” – de forma semelhante a Rainer Forst, o seu ex-assistente e a figura principal da quarta geração da Escola de Frankfurt, [3] – só começa além do racismo. Em vez de danações fanáticas e excomunhões midiáticas, ele lança mão de uma “advocacia pós-metafísica”, de um “humanismo multicultural e confessional”, democraticamente esclarecido, que não é só consciente da sua própria dependência arqueológica da religião – o humanismo do século XXI é o herdeiro do humanismo da Renascença de Pico e Erasmo –, mas sabe também das suas cegueiras e dos limites da razão. Uma sociedade pós-secular é uma sociedade que aceita a crítica do outro e pratica a auto-crítica.

Sabendo que as religiões não desparecerão, ela reconhece que a trajetória européia não é mais o modelo para todos, mas a exceção. Não é mais possível reduzir a religião à superstição. Ao contrário, Habermas frisa o teor utópico e escatológico do Evangelho e insiste sobre a necessidade de se fazer justiça às intuições morais dos crentes. As religiões não são só uma expressão que vem do fundo do desespero, mas também uma fonte ilimitada de esperança. Diferentemente da velha crítica racionalista e iluminista que queria banir a religião do mundo, a nova crítica mostra-se disposta a ouvir e aprender com ela, partido do pressuposto segundo o qual o outro pode ter razão. É uma “crítica redentora” (rettende Kritik) que pretende traduzir o potencial semântico e o conteúdo teológico da religião em um discurso pós-metafísico que seja, a princípio, compreensível e aceitável para agnósticos e ateus. [4]

A radicalização ecumênica pressupõe que todos os participantes no debate “inter” e “transreligioso” estão dispostos a adotar a perspectiva do outro. O ateu tem que ser capaz de aceitar que a sua própria doutrina seja tão falível quanto aquela professada pelo seu interlocutor. Como emenda ao liberalismo político de John Rawls, Habermas estima que não é fair impor o secularismo aos crentes. Contra Rawls, ele acha que a religião não é um elemento restrito à vida privada. Elementos religiosos podem ser introduzidos no debate público. Mas a disposição para conversar e discutir tem que vir de todas as partes. Além dos direitos humanos, os crentes têm que aceitar os princípios básicos da democracia. Nesse sentido, a secularização deve ser entendida como um processo de aprendizagem em mão dupla, no qual humanistas e crentes têm que estar dispostos a relativizar seus próprios fundamentos em nome de uma sociedade capaz de lidar com as diferenças. Essas diferenças, e também aqueles que as defendem, continuarão a existir.

A sociedade pós-secular é uma sociedade multicultural, com a consciência de que as diferenças podem ser exacerbadas, inclusive conduzindo a disputas. Mas, no fim das contas, não é essa a essência da democracia? Um processo inacabado de aprendizagem de diferenças e disputas? Sim, de fato, a democracia é o regime no qual existe um consenso segundo o qual não é sempre possível se chegar a um consenso. Não resta dúvida de que Habermas entrará na história como o filósofo do consenso, mas o que ele tem defendido agora não é nada mais, mas também nada menos, do que o dissenso racional.

Habermas é bem consciente do paradoxo do Estado Democrático de Direito. Precisamente porque ele sabe que a cultura política da tolerância não pode mais ser considerada como uma aquisição, ele lança um apelo às religiões. O Estado de Direito precisa da religião da mesma maneira que a religião precisa do Estado, até mesmo porque é ele quem garante a liberdade religiosa na Constituição. Quando o humanismo secular e o racionalismo se convertem em fundamentalismo do Iluminismo, a religião oferece um fundo motivacional para escutar e ouvir o outro. Como esta insistência sobre a necessidade de ouvir o outro, a teoria da ação comunicativa se torna mais receptiva. Não são mais os atos de fala que estão no cerne da discussão, mas a receptividade e a abertura ao outro. Este outro não é qualquer outro, mas é um outro como eu, ele ou ela, isto é, um homem ou uma mulher, talvez um amigo potencial, mas com certeza, um cidadão com quem posso aprender e com quem devo conviver.

A disposição para aprender com o outro caracteriza a sociedade pós-secular. A aprendizagem só pode continuar na e pela comunicação. Isto não vale só para os crentes, mas também para nós, humanistas e republicanos. O Esclarecimento só merece ser defendido sob a condição de estar consciente dos seus próprios limites e de se afastar de uma afirmação agressiva do secularismo. Neste sentido, o pós-secularismo é uma etapa da realização de um multiculturalismo verdadeiro, que seria ao mesmo tempo cosmopolita e ecumênico.

Notas

[1] HABERMAS, Jürgen. “Fundamentalismus und Terror”. In: Der Gespaltene Westen. Kleine politische Schriften X. Frankfurt: Suhrkamp, 2004, pp. 22-23.

[2] Os textos principais sobre a religião foram publicados em Zwischen Naturalismus und Religion. Philosophische Aufsätze, Frankfurt: Suhrkamp 2005. Outras peças do debate sobre a religião podem ser encontrados em Langthaler, R. e Nagl-Docekal, H. (Org.): Glauben und Wissen. Ein Symposium mit Jürgen Habermas, Vienna: Oldenbourg-Verlag 2007; Reder, M. e Schmidt, J. (Org.): Ein Bewuβtsein von dem, was fehlt. Eine Diskussion mit Jürgen Habermas, Frankfurt: Suhrkamp 2008.

[3] FORST, R. Toleranz im Konflikt: Geschichte, Gehalt und Gegenwart eines umstrittenen Begriffs, Frankfurt: Suhrkamp, 2004.

[4] Sobre a “crítica redentora”, ver o artigo excepcional “Bewusstmachende oder rettende Kritik. Die Aktualität Walter Benjamins”, in HABERMAS, J. Kultur und Kritik. Verstreute Aufsätze. Frankfurt, Suhrkamp, 1973.