A Universidade de São Paulo lançou, recentemente, um portal que reúne uma série de aulas das disciplinas mais diversas.
Inspirados em serviços já em uso por Universidades de grande reconhecimento internacional como a Harvard, Yale, Columbia, MIT e Princeton, estamos colocando à disposição de todos um novo serviço da USP, o e-Aulas. Este novo serviço expressa o reconhecimento por parte da Universidade de que uma de suas funções é a disseminação do conhecimento, permitindo que professores disponibilizem suas vídeo aulas, e que alunos acessem vídeo aulas de diversas disciplinas da USP. Ele também é aberto ao público. A motivação para o desenvolvimento e implementação do e-Aulas USP foi devido ao grande benefício que se observa com o consumo de objetos de aprendizagem em formato de vídeo disponíveis na Web, que tem demonstrado ser um grande aliado do aluno, que pode acessar este conteúdo de onde estiver. Através deste novo recurso esperamos contribuir também para a melhoria do processo ensino/aprendizagem da Universidade de São Paulo. Este sistema foi idealizado pelo Professor Gil da Costa Marques, atual Superintendente de TI da USP (Superintendência de Tecnologia da Informação – USP). Sua implementação foi coordenada pela Profa. Regina Melo Silveira da Escola Politécnica – EPUSP, e a implantação esteve sob a responsabilidade da equipe técnica da STI – USP). A STI e a USP estão oferecendo este novo sistema, e ainda oferece suporte ao professor que desejar disponibilizar ou que desejar produzir e disponibilizar vídeo aulas no sistema e-Aulas USP.
Ainda em seu início, as Ciências Sociais contam apenas com um curso na área de Ciência Política. Ministrado pelo professor José Álvaro Moisés, o curso intitulado "Qualidade da Democracia, Instituições Democráticas e Cultura Política: A Relação entre Confiança Política e Accountability". O vídeo postado acima é o primeiro de uma série de 18 e, de acordo com informações contidas no portal:
Trata-se de um curso de leituras em torno dos conceitos de qualidade da democracia, instituições democráticas e cultura política. O foco central da discussão são as relações entre confiança política e accountability. O objeto empírico da discussão é, por um lado, o fenômeno contemporâneo de desconfiança dos cidadãos de instituições políticas e, por outro, o desempenho das instituições de representação, assim como os efeitos de ambos para o funcionamento do regime democrático. Por uma parte, serão examinados os conceitos de cultura cívica e cultura política, qualidade da democracia e confiança política em sua relação com as instituições democráticas, com base na literatura especializada recente; por outra, será discutida a significação da evidência empírica que, desde há algumas décadas, aponta para a perda sistemática ou para a formação incompleta de apoio político dos cidadãos às instituições democráticas - tanto em países de democracia consolidada, como nos que se democratizaram a partir de meados dos anos 70, a exemplo do Brasil. O desempenho do Congresso Nacional será examinado como um caso especial em sua associação com a desconfiança política. O esforço analítico se orientará em sentido comparativo, buscando apontar o significado teórico das diferentes experiências de relação entre a democratização e o modo de funcionamento das instituições.
Desejamos sucesso na empreitada e aguardamos ansiosamente os cursos na área de Sociologia.
Acaba de ser lançado o primeiro número da Revista Latinoamericana de Metodología de la Investigación Social, editada em Buenos Aires. Abaixo, a introdução de artigo de minha autoria, cujo texto integral pode ser acessado aqui, juntamente com os demais.
Cynthia Hamlin
Resumo: O propósito deste artigo é demonstrar que as questões metodológicas, entendidas no sentido da reflexão crítica de todas as etapas envolvidas no processo de pesquisa, estão no cerne das ciências sociais desde sua institucionalização. A fim de demonstrar isso, discorro brevemente sobre o processo de institucionalização da sociologia a partir da obra dos chamados “pais fundadores”. Argumento que as posições metodológicas destes autores estão indissociavelmente ligadas a questões ontológicas, epistemológicas e teóricas marcadas por um debate implícito entre cientificismo e humanismo, com ênfase em uma concepção fundamentalmente positivista de ciência. Esta concepção torna-se hegemônica com a internacionalização da sociologia no Pós-Guerra, patrocinada, sobretudo, pelo governo dos EUA, por agências como a Ford e a Rockefeller, assim como por organizações internacionais como a Unesco. A partir da década de 1960, o cientificismo positivista é questionado, abrindo espaço para concepções alternativas de ciência e de tradições de caráter mais humanístico, conforme representado pelo pragmatismo, pela fenomenologia, pela filosofia da linguagem, dentre outros. Por fim, a crítica aos elementos da filosofia moderna que fundamentam a produção científica, a partir da década de 1980, terminam por expandir as reflexões metodológicas, no sentido da inclusão de questões relativas aos significados da ciência, de suas instituições, tecnologias, aplicações e outros elementos relativos à cultura e à prática científica.
Introdução
As ciências naturais falam de seus resultados. As ciências sociais, de seus métodos.
A epígrafe acima, atribuída a Henri Poincaré (cf. Gerring, 2001:xi), aponta para o caráter reflexivo das ciências sociais, um caráter interpretado por muitos como sinal de sua imaturidade intrínseca. Tal interpretação deriva de uma perspectiva extremamente simplista de acordo com a qual a reflexão acerca de questões supra-empíricas - relativas, por exemplo, à formação de conceitos, à natureza das relações causais, do que constitui a realidade, a verdade, a objetividade, assim como das técnicas e instrumentos mais adequados para apreender o real – devem ser meramente pressupostas, mas nunca debatidas entre os cientistas naturais, exceto naquilo que Thomas Kuhn (1989) caracterizou como crises paradigmáticas. Ainda que autores como o próprio Kuhn e, por vias bastante diversas, Gadamer, Latour, dentre outros, tenham contribuído para a ideia de que essas práticas são irremediavelmente contaminadas por preconceitos e visões de mundo, permanece como hegemônica a noção de que as questões metodológicas podem e devem ser excluídas das ciências naturais[1].
Em contraste com isso, a metodologia sempre assumiu um papel central nas ciências sociais. Pretendo argumentar aqui que, longe de representar um sinal de imaturidade, as questões metodológicas não apenas são constitutivas destas, mas representam uma prática reflexiva saudável. Neste sentido, o propósito deste artigo é tentar promover uma reflexão sobre o papel da metodologia nas ciências sociais: uma metametodologia, por assim dizer. Dadas as limitações de espaço, limitar-me-ei a uma breve exposição da forma como as questões metodológicas estiveram no cerne do processo de institucionalização das ciências sociais (da sociologia, em particular), ajudando a delimitar o contorno da área. O foco do artigo refere-se, portanto, àquelas gerações de sociólogos mais diretamente envolvidas no processo de institucionalização da sociologia, o que significa dizer também em seu processo de internacionalização no Pós-Guerra.
De forma geral, o termo “metodologia” refere-se a duas áreas de interesse nas ciências sociais: “questões derivadas de, e relacionadas a, perspectivas teóricas, como a metodologia funcionalista, marxista ou feminista; e, segundo, questões de técnicas, conceitos e métodos de pesquisa específicos” (Outhwaite e Turner, 2007: 2). Longe de caracterizarem uma mera descrição de métodos e técnicas de pesquisa, as reflexões metodológicas estão indissociavelmente ligadas a um conjunto de questões metateóricas relacionadas à ontologia, à epistemologia e à teoria, quer isso seja feito de forma explícita ou não. De fato, como a própria origem etimológica do termo “método” (de meta - depois, além - e hodos, caminho) indica, a metodologia refere-se ao estudo dos caminhos adotados na pesquisa: trata-se de uma espécie de elemento de ligação entre o empírico e o supra-empírico, entre a realidade e tudo aquilo que é construído e acionado por nós para apreendê-la. Sendo assim, diz respeito à reflexão sobre todas as etapas envolvidas na produção de conhecimento sobre o mundo empírico que, no caso das ciências sociais nascentes, assumiu características particulares.
[1]Não se trata, obviamente, de uma ausência de reflexão acerca dos significados das práticas dos cientistas, conforme atestam a obra de autores tão diversos quanto Bruno Latour, Steve Fuller ou Michel Foucault, mas do fato de que essas reflexões são efetuadas de “fora” da ciência. Como Harding certa vez declarou em uma entrevista, “as tradições dominantes na ciência sempre evitaram lidar com os significados da ciência. [...] Elas tentaram restringir suas preocupações às referências da ciência [e] consideram ‘não-cientificos’ seus significados, instituições, tecnologias, aplicações e uma série de aspectos da ciência relativos à cultura e à prática” (Hirsch e Olson, 1995). Exceções importantes têm, entretanto, aparecido, como é o caso de Anne Fausto-Sterling, cujas reflexões acerca das políticas de gênero na construção de conceitos etc. são efetuadas de “dentro” da biologia (cf. Fausto-Sterling, 2000).
Para César e Brenno, por tudo que só a amizade convivida traduz.
Como há ainda quem confunda o modernismo brasileiro com um movimento restrito ao campo das artes e da literatura, talvez convenha começar este artigo ressaltando seu caráter de movimento cultural muito mais amplo. Antes de tudo, por ser esse o modo adequado de fazer justiça à sua real amplitude; em seguida, porque meu propósito, já explícito no título deste artigo, é descrever algumas das suas conexões mais fortes com o desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Antonio Candido frisa num dos seus ensaios mais citados, “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”, que a literatura ocupou posição central no desenvolvimento da nossa vida espiritual. À diferença de outros países, onde a filosofia e mesmo as ciências sociais desempenharam papel similar, aqui a literatura incorporou à sua expressão propriamente estética um caráter de função socialmente interessada à margem da qual seria impossível compreender o sentido abrangente e sociologicamente relevante da obra de autores como José de Alencar, Machado de Assis, Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Gilberto Freyre... Suponho que duas razões óbvias desse fenômeno radicam na ausência de uma sólida tradição universitária e no consequente desenvolvimento tardio das ciências sociais. Privado de uma tradição rica e intelectualmente diferenciada, o escritor brasileiro sente-se investido de uma missão socialmente elástica inexistente nas culturas cujas instituições e processos de divisão do trabalho intelectual já estão consolidados. Este é um fato facilmente aferível na obra dos autores acima citados, assim como em muitos dos seus contemporâneos.
O ensaio de Antonio Candido acima referido contém ainda uma outra intuição que igualmente tomarei como ponto de apoio para muitas das considerações deste artigo. Aludo à intuição segundo a qual ele sugere que o conjunto da nossa vida espiritual é regido pela dialética entre localismo e cosmopolitismo. Variando os termos, até por melhor convirem a escritores como Mário e Oswald de Andrade, diria nacional versus universal, que no caso equivale à tradição intelectual europeia. A distinção parece-me exata para que melhor se compreenda a evolução do modernismo que logo nitidamente se diferenciará dos congêneres europeus nos quais de resto se inspirou.
Mesmo os estudiosos aderentes a uma perspectiva nacionalista do modernismo reconhecem que ele se formou sob o influxo das correntes vanguardistas de procedência europeia. Mário de Andrade, por exemplo, reconhece este fato no seu ensaio de síntese do movimento, “O Movimento Modernista”, no meu entender ainda insuperado não só como lúcida apreciação panorâmica do movimento, mas diria que sobretudo devido à intensidade dramática do texto que, nas suas páginas finais, reveste-se de inusitado tom de exame e exasperação moral. É nesse ponto que Mário procede a um impiedoso balanço ideológico do movimento, chegando mesmo às raias de uma injustificada apreciação autopunitiva.
Embora rebata no seu ensaio os críticos que acusam o modernismo de excessiva subordinação às modas e correntes estéticas europeias, Mário de Andrade não deixa de reconhecer o quanto os impulsos iniciais do movimento deviam à Europa, notadamente à França. Talvez sua crítica visasse indiretamente Gilberto Freyre, já que à altura da sua conferência de celebração de vinte anos do modernismo, cujo texto é o já citado “Movimento Modernista”, Freyre e seus discípulos, sobretudo José Lins do Rego, reivindicavam para o regionalismo nordestino um papel de pioneirismo nacionalista e de valorização da cultura brasileira opostos ao modernismo paulista, que erradamente caracterizavam como subserviente às modas culturais europeias.
Pondo à margem essas disputas polêmicas, não raro deformadoras do real sentido aferível na análise do processo cultural efetivo, os fato evidenciam que, a partir de 1924, o modernismo desloca sua rota em direção a um nítido nacionalismo programático. É a dialética do nacional e do universal mais uma vez operando no desenvolvimento da nossa vida espiritual, como assinalaria Antonio Candido. Pois, se de fato precisou beber nas fontes europeias para atualizar-se esteticamente, para produzir uma arte consentânea com a realidade urbano-industrial emergente sobretudo na capital paulista, logo ficaram também evidentes as especificidades artísticas e sociais observáveis entre os movimentos de vanguarda europeus e o brasileiro.
De certo modo, foi a própria presença no Brasil de um dos símbolos da poesia de vanguarda europeia que favoreceu o deslocamento do modernismo para a realidade brasileira. Aludo, noutras palavras, à presença de Blaise Cendrars no Brasil, sobretudo à viagem que fez às cidades históricas mineiras ciceroneado pelos modernistas de São Paulo. Essa viagem foi tão decisiva para a nacionalização do modernismo que seus próprios líderes passaram significativamente a designá-la como a viagem de descoberta do Brasil. Dela procedem não apenas a redescoberta do barroco mineiro, a composição de um poema seminal como Noturno de Belo Horizonte, de Mário de Andrade, mas também o contato fecundo dos paulistas com a nova geração de escritores mineiros. É daí que nasce a correspondência entre Mário e Drummond, documento valioso para que melhor se compreenda o amadurecimento da poesia do segundo, que em Mário encontrou um orientador qualificado e generoso, além de evidências do adensamento de uma consciência nacionalista na obra de Mário e na daqueles expostos à sua influência. Eis aí mais uma vez reposta a dialética do nacional e do universal. Trocando em miúdos, a presença viva e concreta do outro europeu, Blaise Cendrars, atua como rebatedor especular no qual os próprios intelectuais brasileiros melhor reconhecem sua diferença.
Importaria ressaltar, tendo em vista os propósitos deste artigo, que a inflexão nacionalista do modernismo não fica de modo algum restrita ao campo artístico e literário. Maior que a ambição explícita de criar uma arte nacional, o que Mário e os modernistas mais consequentes ambicionam é realizar um projeto de cultural nacional, pesquisar suas fontes e definir sua identidade, combater ostensivamente a influência europeia para reforçar um sentido de diferenciação particularista típico, aliás, de todos os movimentos de inspiração romântica. E aqui ressalta um outro dado significativo: a revalorização da nossa tradição romântica. Ela se traduz na ênfase sobre a particularidade ou diferenciação da cultura brasileira compreendida em sentido amplo: diferenciação artística, linguística, histórica, etnográfica etc.
Uma das expressões mais nítidas dessa valorização entusiasta do Brasil, da busca de suas raízes populares mais profundas, espelha-se nas duas viagens que Mário de Andrade empreendeu através do Nordeste e Norte do Brasil entre 1927 e 1929. É sintomático que ele as identifique como viagens etnográficas. De fato, elas representaram um outro capítulo, ainda mais amplo e rico, das suas explorações, da pesquisa, descoberta e interpretação da cultura brasileira e daquilo que muitos estudiosos, não apenas Mário, presumem ser a nossa identidade cultural. Muito da documentação que então coligiu foi assimilado à composição de Macunaíma, obra suprema do modernismo nacionalista.
A leitura atenta das matrizes sócio-antropológicas de Macunaíma demonstra isso que venho assinalando como sendo o caráter abrangente do modernismo. Se os escritos de Mário convencionalmente classificados como literários encerram tantos elementos de interesse para as ciências sociais, sua obra de interesse diretamente sociológico reforça o sentido que venho reiterando para a justa compreensão do movimento. Além de pioneiro na compreensão sócio-antropológica do folclore nacional, assim como no conjunto das nossas expressões culturais, Mário distinguiu-se como musicólogo, crítico de arte, agente modernizador do aparelho institucional da educação e da cultura brasileira.
O estudo dos periódicos produzidos pela história do modernismo, que infelizmente não caberia apreciar nos limites deste artigo, também representa outro dado significativo para a compreensão do caráter amplamente nacionalista do modernismo. Na história desses periódicos, assim como no rico processo de institucionalização da cultura nos anos 1930, que Antonio Candido apropriadamente designou como o processo de rotinização do modernismo, ou sua conversão de movimento de desagregação em movimento triunfante, ou assimilado às estruturas de poder social, atuaram intelectuais cuja obra transbordou para o plano das ciências sociais. É o caso de Sérgio Buarque de Holanda, que se inicia prematuramente como crítico literário e co-editor de um dos periódicos mais importantes do movimento, a revista Estética, e acaba escrevendo uma das obras fundamentais de interpretação do Brasil. Daí orientou seus estudos de forma definitiva para a pesquisa histórica, da qual resultaram obras marcantes da historiografia brasileira. Outro que também orientou parcialmente sua obra para os estudos de sociologia e história foi Sérgio Milliet. Antes dele, um paulista da geração precedente, mas ostensivamente vinculado ao modernismo desde suas origens, escreveu um ensaio de interpretação histórico-sociológica também fundamental num gênero típico do processo de constituição das ciências sociais no Brasil: o ensaio de interpretação da nossa formação cultural e histórica. Refiro-me evidentemente a Paulo Prado e sua obra mais importante: Retrato do Brasil. Alias, acrescentaria assim de passagem que a crítica não deu ainda atenção devida aos vínculos observáveis entre esta obra e Macunaíma, de resto publicadas no mesmo ano, 1928.
Do processo de institucionalização cultural acima aludido brotaram a Universidade de São Paulo e a Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Um projeto ambicioso, infelizmente logo sufocado pelas forças políticas conservadoras, propiciou a mais renovadora experiência de democratização institucional da cultura, também em São Paulo. Refiro-me à instituição do Depto. de Cultura ideado e liderado por Mário de Andrade e Paulo Duarte. Para o seu sucesso contribuíram de forma decisiva vários dos modernistas provenientes dos anos 1920, como Sérgio Milliet, diretor da seção de pesquisa social, e Rubens Borba de Moraes, diretor da seção de biblioteconomia. A essas realizações poderíamos associar, em âmbito nacional, a instituição do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, baseado em projeto encomendado a Mário de Andrade, e o projeto da enciclopédia brasileira, também obra de Mário de Andrade.
Voltando ao exemplo da Universidade de São Paulo, acima indicado, seria sustentável afirmar que a solidez de sua eminência cultural e institucional deriva de duas fontes fundamentais: da lição dos professores franceses, formadores da geração fundadora da universidade, e do legado procedente do modernismo, notadamente aquele transmitido pela obra e a viva participação de dois nomes seminais: Mário de Andrade e Sérgio Milliet. O legado de Sérgio Buarque de Holanda é também notável, sobretudo na esfera da historiografia. Mas, como se sabe, sua atuação institucional mais decisiva ocorreu a partir dos anos 1950. Também o de Oswald de Andrade mereceria alguma menção, embora importe acentuar que foi muito limitado devido ao papel institucionalmente marginal que sempre desempenhou.
Importaria ainda acrescentar que Florestan Fernandes, expressão máxima da chamada escola de sociologia paulista, formou-se também sob os influxos do modernismo. Embora nitidamente se diferencie em termos de trajetória sociológica e formação de Antonio Candido, com quem consensualmente divide a honra de representar o legado intelectual mais elevado da USP, sofreu nítida influência de Mário de Andrade, sobretudo dos estudos deste referentes ao folclore e à etnografia.
Para que este artigo de síntese apressada não resulte demasiado omisso, importaria concluir relacionando em traços corridos o modernismo e o regionalismo nordestino que se concentra em Recife sob a poderosa liderança de Gilberto Freyre. Já acima brevemente aludi à atmosfera polêmica que cerca a relação entre ambos. A própria natureza polêmica que os cerca, assim como as relações de competição e luta por hegemonia cultural observável entre Mário de Andrade e Gilberto Freyre, tem de ordinário embaçado uma compreensão mais lúcida e isenta desses movimentos. Um dos primeiros a propor a questão em termos mais adequados foi José Aderaldo Castelo numa obra há muito esgotada: José Lins do Rego – Modernismo e Regionalismo. Mais recentemente, assentada a poeira de rivalidades antigas devido ao abrandamento das tensões ideológicas mais intransigentes, além da própria morte de Gilberto Freyre, pode-se felizmente observar a publicação de artigos e livros mais isentos na consideração do problema. Seria o caso de mencionar dois artigos assinados por Gilda de Melo e Souza e Antonio Dimas, além do livro de Valéria da Costa e Silva: A Modernidade nos Trópicos. Este, bem mais recente, constitui contribuição importante para o estudo da questão, embora reponha em tom por vezes francamente passional o caráter polêmico dessa desavença regional simbolizada no parentesco turbulento que divide e aproxima paulistas e pernambucanos. Como não sou daqui, deixo que se entendam, ou desentendam.
Nenhum desses estudiosos, diria ainda nenhuma pessoa hoje devidamente formada e bem informada, ignora a importância fundamental desses dois movimentos na história da cultural brasileira do século XX. Ambos, dentro de suas especificidades evidentes, concorreram como fontes seminais para a revalorização necessária da nossa cultura; ambos se inscrevem nesse longo e ainda atual processo de nacionalização da cultura brasileira, ou valorização nacional da nossa cultura em face da nossa ainda insuperada herança colonial crivada por relações de dependência e, internamente, relações de atraso, padrões iníquos de desigualdade social e privilégios também inconcebíveis numa sociedade legitimamente moderna. É esta, em síntese, nossa herança maldita, como por aí dizem os próprios que dela se beneficiam. Enquanto não superarmos esses problemas, que vão muito além dos generosos sentimentos e interpretações nacionalistas dos apóstolos da nossa identidade, continuarem procurando o homem brasileiro, a mulher brasileira e a identidade de ambos no lugar errado.