Acaba de ser lançado o primeiro número da Revista Latinoamericana de Metodología de la Investigación Social, editada em Buenos Aires. Abaixo, a introdução de artigo de minha autoria, cujo texto integral pode ser acessado aqui, juntamente com os demais.
Cynthia Hamlin
Resumo: O propósito deste artigo é demonstrar que as questões metodológicas, entendidas no sentido da reflexão crítica de todas as etapas envolvidas no processo de pesquisa, estão no cerne das ciências sociais desde sua institucionalização. A fim de demonstrar isso, discorro brevemente sobre o processo de institucionalização da sociologia a partir da obra dos chamados “pais fundadores”. Argumento que as posições metodológicas destes autores estão indissociavelmente ligadas a questões ontológicas, epistemológicas e teóricas marcadas por um debate implícito entre cientificismo e humanismo, com ênfase em uma concepção fundamentalmente positivista de ciência. Esta concepção torna-se hegemônica com a internacionalização da sociologia no Pós-Guerra, patrocinada, sobretudo, pelo governo dos EUA, por agências como a Ford e a Rockefeller, assim como por organizações internacionais como a Unesco. A partir da década de 1960, o cientificismo positivista é questionado, abrindo espaço para concepções alternativas de ciência e de tradições de caráter mais humanístico, conforme representado pelo pragmatismo, pela fenomenologia, pela filosofia da linguagem, dentre outros. Por fim, a crítica aos elementos da filosofia moderna que fundamentam a produção científica, a partir da década de 1980, terminam por expandir as reflexões metodológicas, no sentido da inclusão de questões relativas aos significados da ciência, de suas instituições, tecnologias, aplicações e outros elementos relativos à cultura e à prática científica.
Introdução
As ciências naturais falam de seus resultados. As ciências sociais, de seus métodos.
A epígrafe acima, atribuída a Henri Poincaré (cf. Gerring, 2001:xi), aponta para o caráter reflexivo das ciências sociais, um caráter interpretado por muitos como sinal de sua imaturidade intrínseca. Tal interpretação deriva de uma perspectiva extremamente simplista de acordo com a qual a reflexão acerca de questões supra-empíricas - relativas, por exemplo, à formação de conceitos, à natureza das relações causais, do que constitui a realidade, a verdade, a objetividade, assim como das técnicas e instrumentos mais adequados para apreender o real – devem ser meramente pressupostas, mas nunca debatidas entre os cientistas naturais, exceto naquilo que Thomas Kuhn (1989) caracterizou como crises paradigmáticas. Ainda que autores como o próprio Kuhn e, por vias bastante diversas, Gadamer, Latour, dentre outros, tenham contribuído para a ideia de que essas práticas são irremediavelmente contaminadas por preconceitos e visões de mundo, permanece como hegemônica a noção de que as questões metodológicas podem e devem ser excluídas das ciências naturais[1].
Em contraste com isso, a metodologia sempre assumiu um papel central nas ciências sociais. Pretendo argumentar aqui que, longe de representar um sinal de imaturidade, as questões metodológicas não apenas são constitutivas destas, mas representam uma prática reflexiva saudável. Neste sentido, o propósito deste artigo é tentar promover uma reflexão sobre o papel da metodologia nas ciências sociais: uma metametodologia, por assim dizer. Dadas as limitações de espaço, limitar-me-ei a uma breve exposição da forma como as questões metodológicas estiveram no cerne do processo de institucionalização das ciências sociais (da sociologia, em particular), ajudando a delimitar o contorno da área. O foco do artigo refere-se, portanto, àquelas gerações de sociólogos mais diretamente envolvidas no processo de institucionalização da sociologia, o que significa dizer também em seu processo de internacionalização no Pós-Guerra.
De forma geral, o termo “metodologia” refere-se a duas áreas de interesse nas ciências sociais: “questões derivadas de, e relacionadas a, perspectivas teóricas, como a metodologia funcionalista, marxista ou feminista; e, segundo, questões de técnicas, conceitos e métodos de pesquisa específicos” (Outhwaite e Turner, 2007: 2). Longe de caracterizarem uma mera descrição de métodos e técnicas de pesquisa, as reflexões metodológicas estão indissociavelmente ligadas a um conjunto de questões metateóricas relacionadas à ontologia, à epistemologia e à teoria, quer isso seja feito de forma explícita ou não. De fato, como a própria origem etimológica do termo “método” (de meta - depois, além - e hodos, caminho) indica, a metodologia refere-se ao estudo dos caminhos adotados na pesquisa: trata-se de uma espécie de elemento de ligação entre o empírico e o supra-empírico, entre a realidade e tudo aquilo que é construído e acionado por nós para apreendê-la. Sendo assim, diz respeito à reflexão sobre todas as etapas envolvidas na produção de conhecimento sobre o mundo empírico que, no caso das ciências sociais nascentes, assumiu características particulares.
[1] Não se trata, obviamente, de uma ausência de reflexão acerca dos significados das práticas dos cientistas, conforme atestam a obra de autores tão diversos quanto Bruno Latour, Steve Fuller ou Michel Foucault, mas do fato de que essas reflexões são efetuadas de “fora” da ciência. Como Harding certa vez declarou em uma entrevista, “as tradições dominantes na ciência sempre evitaram lidar com os significados da ciência. [...] Elas tentaram restringir suas preocupações às referências da ciência [e] consideram ‘não-cientificos’ seus significados, instituições, tecnologias, aplicações e uma série de aspectos da ciência relativos à cultura e à prática” (Hirsch e Olson, 1995). Exceções importantes têm, entretanto, aparecido, como é o caso de Anne Fausto-Sterling, cujas reflexões acerca das políticas de gênero na construção de conceitos etc. são efetuadas de “dentro” da biologia (cf. Fausto-Sterling, 2000).
9 comentários:
Cynthia,
espero que não esteja cansada de meus argumentos e não se importe com minha curiosidade interessada(apesar de leiga), quase sempre alheia aos elementos meta/supra teórico-metodológico, sobre os quais você discorre com tanta clareza.
Gostaria de dizer que sempre me impressionou, não apenas nos seus textos, mas também em suas aulas, essa capacidade sua de tonar inteligíveis esses temas que pelo grau de abstração exigido para o bom entendimento deles, normalmente ganham ares obtusos e opacos.O exemplo do paralelo feito entre o Durkheim do As Regras e o de sua obra substantiva, ilustra bem essa característica sua(a um só tempo didática e rigorosa), pois, ao descrever no que consiste a distância entre o que ele fez e o que ele diz para ser feito, você realmente ilustra o argumento, tornado clara uma preocupação descritiva em termos de epistemologia:o que de fato os sociólogos fazem quando dizem estar fazendo sociologia? Eu acho isso algo excelente nos seus trabalhos.
Dito isso, eu ouso dizer mais em minha leitura leiga. Eu penso que esse foco mais substancial de seu artigo, perde em densidade quando você assume o ponto de vista do espistemólogo mais interessado nas questões meta-metodológicas em sentido específico.Sentido esse que está contido nessa frase sua:" Limitar-me-ei aqui a uma delas [você fala aqui das antinomias como as de Durkheim e Weber muito bem descritas no seu artigo], que me parece central à questão que guiou boa parte das preocupações dos sociólogos até, pelos menos, o fim da hegemonia positivista: a relação entre naturalismo (positivista) e anti-naturialismo." Explico-me: se me sirvo de seu argumento para com as antinomias em Durkheim e Weber para enteder seu próprio artigo, eu poderia defender que ao identificar os trabalhos nos quais as preocupações dessa ordem aparecem, ou seja, no exmeplo dos "intérpretes positivistas de Weber", eu poderia defender, repito, apoiado na distinção entre trabalho metodológico e trabalho substantivo, que a sua frase está se refirindo mais precisamente à reflexão que guiou grande número de "intérpretes das obras sociológicas em questão"(as aspas aqui é para destaque, não indicam palavras suas no texto). O que a meu ver já traz (por conta do tipo de trabalho em questão)toda uma ordem de preocupações taxonômicas sobre essas mesmas obras: um intérprete de obras sociológicas tende a ter o mesmo tipo de preocupação metodológica que um sociólogo? Faço essa pergunta que pode soar meio retórica porque sabemos que há intérpretes e intérprestes, sociólogos e sociólogos. Mas ela tem o propósito de colocar em perspectiva algo que, justamente no período de maior influência do positivismo empiricista, não me parece plausível creditar aos sociólogos, que é a preocupação com questões meta-metodológicas.
Bem, como fiz questão de ressaltar, falo tudo isso como leigo, no sentido de não ter me debruçado com a mesma intensidade e especialidade nos tipos de trabalho que ajudam na sua reflexão. Reconheço que posso ter simplificado demais elementos do seu raciocínio que exigem mais nuances de minhs parte. Achei importante, em todo caso, deixar essas minhas palavras, talvez aqui menos para fomentar um dabate, mas para explicitar algumas dessas incompreenções recorrentes minhas no que diz respeito aos debates que já tivemos aqui no Cazzo! Não sei dizer se estou rodando no círculo, mas minha impressão é de que ao colocarmos os mesmo pontos de vista em ocasiões e debates disntintos, no meu caso ao menos, tem me feito refletir bastante sobre minha redundância.
Abraços,
e parabéns por mais esse belo artigo,
Jampa
Oi, Jampa,
Obrigada por seus comentários e, não, eu não estou cansada deles, que também me ajudam a refletir.
Eu concordo com vc que a análise de Durkheim é mais densa do que as demais, mas isso não se deve ao caráter "metametodológico" das outras, e sim ao fato de que recentemente precisei me debruçar mais detidamente nas contradições teórico-metodológicas deste autor a fim de aplicar sua teoria em uma pesquisa empírica sobre suicídio entre os Guarani-Kaiowá.
O que chamei aqui de metametodologia refere-se simplesmente a uma reflexão sobre a importância das questões metodológicas nas ciências sociais que, no caso dos 3 clássicos, procurei ilustrar de 3 maneiras distintas: no caso de Marx, mostrando como as questões ontológicas, teóricas, epistemológicas estão indissociavelmente relacionadas, existindo, ainda, um conjunto de métodos e técnicas compatíveis com essas posições. E isso se aplica a todos os autores, embora tenha sido ilustrado via Marx.
No caso de Durkheim, o propósito era demonstrar que não basta simplesmente considerar o que os autores dizem que fazem (i.e., ler sua obra metodológica), mas que as reflexões metodológicas têm uma dimensão descritiva que considera o que foi de fato feito nas pesquisas.
Por fim, no caso de Weber, a ideia geral era ilustrar como determinadas concepções podem ser apropriadas de formas distintas por autores de tradições metodológicas diferentes, gerando pesquisas de cunho mais explicativo ou interpretativo, assim como um conjunto de métodos e técnicas inteiramente diversificados. O que chamei de intérpretes de Weber não eram necessariamente o que você chama de "teóricos e não-sociólogos" (uma distinção que para mim continua sem fazer muito sentido), mas de pessoas que, ao interpretar Weber de uma forma particular, acabaram por produzir pesquisas empíricas com características particulares. No fim das contas, os "sociólogos" sempre interpretam as teorias antes de aplicá-las ao mundo empírico, e algumas interpretações são melhores do que outras...
Espero que tenha esclarecido um pouco.
Bjs
Cytnhia,
Tô aqui doidinha para ter um tempinho para ler seu texto inteiro: ele promete e, segundo Jampa e sua resposta, cumpre! Beijão, Tâmara
Você viu como escrevi seu nome?! Prova de minha falta de tempo.
Oi, Tâmara! Espero que o texto lhe seja útil. Quanto às promessas, é sempre mais fácil fazê-las do que cumpri-las...
Beijão
Cynthia,
Ótimo artigo. Sua argumentação em favor do papel positivo desempenhado pelas questões metodológicos no que se refere a institucionalização, desenvolvimento e mesmo nas mudanças teóricas e conceituais pela quais passou a Sociologia ao longo do século XX, me parece bastante acertada. A reflexidade própria à Sociologia - produto também do fato de ser desde o início uma Ciência marcada por diversas orientações teóricas e paradigmas - com respeito as questões téoricas e metodológicas necessariamente envolvidas em seu empreendimento é, entre outras coisas, uma de suas mais importantes molas no sentido do progresso, cumulatividade e mudanças em sua matriz conceitual.
Bem, sobre seu artigo, acho que além do debate entre humanismo e cientificismo, ou mesmo relacionado a esse, há, ou melhor, houve um outro debate também importante a próposito do papel das posições metodológicas dos pais fundadores, do valor imputado a estas pela Sociologia em geral. Esse debate é travado, em especial, entre a literatura realista e a poesia, de um lado, e os intelectuais vinculados às Ciências Sociais e à Sociologia nascente, de outro, acerca da prerrogativa da explicação da realidade social. Wolf Lepenies aborda esse debate num formidável livro "As três culturas" no qual argumenta que a enfase na cientificidade e nos aspectos mais próximos ao positivismo por parte de alguns nomes da Sociologia nascente, como marca da sua orientação inicial, se deve a relação de concorrencia estabelecida com a literatura no decorrer do século XIX e início do XX pelo poder de fornecer o quadro explicativo dos comportamentos e do mundo social; uma estratégia de diferenciação e de hegemonia.
Enfim, o conflito Humanidades/Humanismo e cientificismo é bastante nuançado. A meu ver, o Lepenies apresenta um viés que, em certo sentido, pode dialogar e contribuir com a perspectiva que você adota. Até,
Oi, Alyson,
muito obrigada pela referência, que não conhecia. Na verdade, nunca nem ouvi falar dessa disputa com a literatura realista, embora ela faça todo sentido do mundo. Com certeza vou procurar o livro do Lepenies. Valeu!
Abraço.
PS. O argumento do livro tem alguma relação com as duas culturas do C.P. Snow?
Olá, Cynthia, não há de que pela referência. Fico feliz em poder ajudar em algo, haja vista o tanto de coisas que eu já descobri por aqui graças ao trabalho de vocês.
Sobre sua dúvida, Wolf Lepenies parte exatamente da ideia de C.P Snow para defender que a Sociologia é uma espécie de "Terceira Cultura" entre as Ciências Naturais, de um lado, e as Humanidades e a literatura de outro. Como disse anteriormente, trata-se de um livro fascinante e muito agradável.Pois, discorre sobre emergência da Sociologia sob um foco pouco lembrado, a saber: os debates e disputas travadas com o campo literário e artístico na França, Alemanha e Inglaterra. Lembrei-me do livro ao ler seu artigo porque também Leppenies aborda a situação conflituosa da Sociologia e de seu desenvolvimento em termos de uma tensão permanente entre uma orientação cientificista, segundo o imperativo de imitação do modelo das Ciências Naturais, e uma atitude hermeneutica, cujas fontes relacionam-se fortemente com a Literatura, a poesia, o Romantismo. Só que o foco dele recaia sobre as relações da Sociologia Nascente com a Literatura.
Portanto, o conflito entre uma concepção positivista e outra concepção interpretativista de Ciência, ou entre a primeira e o Humanismo passa também pelas relações de hostilidade e reciprocidade que Sociologia, Literatura e as Artes estabeleceram entre si dentro de tradições nacionais e culturais específicas. A obra de Leppenies toca exatamente aí mostrando como essas relaçoes foram fundamentais para a constituição e desenvolvimento de um tipo particular de Sociologia. Até mais, abraços.
Aaaaah! Deve vir daí o uso do termo "terceira cultura" por parte do Bernard Lahire. Sempre achei o conceito engenhoso, mas nunca parei para pensar que podia decorrer de uma análise aprofundada dessa relação entre sociologia e literatura. Valeu mesmo, Alyson!
Abçs
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