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domingo, 17 de janeiro de 2016

Sobre o amor romântico: algumas reflexões a partir de Derrida e Levinas (preliminares)



Jonatas Ferreira
Devo ao livro de John Caputo, Deconstruction in a Nutshell, a constatação em alguma medida indireta de que existiria um vínculo teórico entre Derrida e Levinas que nos remeteria diretamente ao tema do amor e da ética no amor. Nunca havia pensado sobre a relevância da obra de Derrida para pensar esse tema e, no entanto, após ler o livro de Caputo, essa possibilidade pareceu-me muito atraente. Mas aqui cabe algum cuidado, para que, cumprindo o dever da gratidão, não procure validar minhas conclusões com a sombra da autoridade intelectual do filósofo e teólogo. De fato, suas considerações acerca de temas como “comunidade”, “hospitalidade” e “identidade, tal como apresentados num capítulo central do Deconstruction in a Nutshel, parecem levar mais diretamente a discussões acerca de ética e sociabilidade, ética e política de um ponto de vista amplo. Pouco autorizaria a inferir dali algo sobre amor e, menos ainda, sobre amor romântico, como pretendo. E, no entanto, o tema do amor como elemento ontológico, como possibilidade primeira da abertura para o outro está presente em todas estas outras formulações. 

A explanação de linhas centrais do pensamento derridiano, realizada por Caputo, ao tratar de tais temas, cumpre a promessa de facilitar a leitura da obra deste autor que Cynthia Hamlin reputa como um dos mais chatos e abstrusos que já existiram – com tantos candidatos na sociologia, eu não sei o motivo de não privilegiarmos nossos próprios pares. De qualquer forma, Caputo faz um trabalho de mestre ao lançar luz sobre o gosto derridiano pelos paradoxos, pelas aporias. E o faz a partir da discussão de temas que interessariam, em princípio, bem mais à sociologia política do que parece contribuir para a discussão que pretendo trazer neste Cazzo.

Vejamos, pois, a partir de Caputo, o que Derrida tem a nos oferecer acerca de ideias como comunidade, hospitalidade, identidade. Para ele, é preciso perceber que se vamos continuar mobilizando a ideia de comunidade em nossas discussões políticas e éticas, é necessário atentarmos para a forma como essa ideia vem sendo elaborada no ocidente - e isso bem antes que Ernst Troeltsch a definisse a partir da ideia de unidade sentimental, de herança comum de valores compartilhados. Consideremos a esse respeito a oposição entre civilizados, e bárbaros, tão cara ao pensamento grego. Para Derrida, o próprio esclarecimento etimológico da palavra comunidade indica que no seio do comum - daquilo que nos permite falar em uníssono, isto é, da «fusão» - pulsaria a beligerância, o conflito, o agonismoOs ecos mais arcaicos desta palavra ofereceriam evidência para essa postulação: 
«O que ele não gosta na palavra comunidade é sua conotação de "fusão" e "identificação". No final das consta, comunhão é uma palavra para uma formação militar e uma prima próxima da palavra "munição"; estar em comunhão é estar fortificado de todos os lados, construir uma "defesa" comum (munis), tal como uma muralha é posta em volta de uma cidade para manter um estranho ou estrangeiro do lado de fora» (Caputo, p. 108) [1]
Já aqui nos parece que a influência da ética levinasiana se instaura poderosamente. A alteridade não é aquilo que eu devo procurar extinguir, negar, mas aquele, ou aquela, que instaura a possibilidade de minha própria existência. A radicalidade do pensamento derridiano nos remeteria, para além do humanismo de Levinas, a suas meditações sobre a alteridade do animal, de como ele se constituiu como o absolutamente outro no pensamento ocidental, e ao mesmo tempo aquilo que resta por pensar, o desafio filosófico por excelência. É a radicalidade da presença da  alteridade, mesmo quando a reprimimos, que se coloca como desafio para pensarmos processos identitários, comunitários. Neste caso específico, ou seja, nas reflexões que ele oferece em O animal que logo sou, para além das reflexões foucaultianas e agambenianas sobre a centralidade do bios na política e sociabilidade modernas, ou, mais amplamente, da política e cultura ocidentais, o animal permanece como alteridade absoluta que nos acena e para o qual nos fechamos. A região limítrofe em que o outro conclama meus próprios processos identitários é a zona obscura onde Derrida propõe que pensemos[2].

Se a deconstrução pode se instalar como pensamento desafiador, como algo que nos diz respeito, sem que seja propriamente bem-vindo, em sua abstrusão, é por aceitar de frente a necessidade ética de ouvir o clamor deste outro, sua face, diria Levinas. E isso não é fácil. Tomemos um exemplo. Se uma política antifascista, de recusa ao ódio, pode ser instalada, como nos lembra de modo algo irônico Marcia Tiburi[3], é preciso poder conversar com o ódio e com o fascismo, sem cancelarmos o outro como algo já dado, já sabido, e sem nos perdermos em qualquer forma de conivência, de leniência diante do autoritarismo, da intolerância. 
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A questão é: a deconstrução não recusa a ideia de comunidade por identificar, no seio da vontade de fusão, uma vontade de negação do outro, no seio da hospitalidade, a hostilidade, como se tivéssemos aqui apenas um problema de higienização lógica. Trata-se antes de entender que (i) o outro é o que há de mais bem-vindo (quem mais poderia sê-lo senão o outro, a outra em sua alteridade?), mas é também o mais desafiador e que (ii) a ideia de comunidade deveria estar aberta a essa evidência e dificuldade política. No caso controvertido que nos traz Tiburi, trata-se para mim de poder discutir o fascismo não como algo que não me diz respeito, algo que só se coloca nas práticas alheias, mas antes que me envolve de modo radical. 

Não se trata, é preciso dizer, de capitular por princípio diante da outra pessoa, do outro grupo ideológico. Tampouco de negá-la a priori. Não se trata de escamotear de algum modo o conflito, mas antes encará-lo de frente. O outro em seu caráter desafiador é, antes, a possibilidade de que continuemos vivos e de seguirmos produzindo uma relação generosa com aquilo que nos mobiliza – o que no caso de alguém que por princípio recusa o diálogo, convenhamos, é um desafio incontornável, caso não percebamos que o fascismo nos diz respeito de modo mais fundamental.

Assim, a reivindicão de Derrida no sentido de buscarmos uma “comunidade sem comunidade” é, não apenas um desejo de postar seu pensamento em zonas de curto-circuito, em paradoxos vazios, mas um compromisso ético e político. Por isso mesmo, ele também procura sempre pensar as possibilidades abertas dentro, e não fora, da sua tradição, ali mesmo onde a ideia de comunidade se abre como um problema. Por isso mesmo as aporias do pensamento ocidental - as zonas limites do filosofar em que identidade e alteridade se encontram em confronto - constituem seu locus privilegiado de reflexão. Essas são zonas de “indecidibilidade”, campos em que toda decisão carrega sempre consigo o fantasma daquilo que está sendo excluído. E isso nos dá uma ideia do motivo pelo qual o tema da hospitalidade é também relevante neste contexto: 

«Há uma "auto-limitação" essencial construída dentro da própria ideia de hospitalidade, que preserva a distância entre o si mesmo e o estrangeiro, entre entre possuir nossa propriedade e convidar o outro para dentro de nossa casa. Assim, há sempre um pouco de hostilidade  em todo ato de hospedagem e hospitalidade, constituindo uma certa hostil/pitalidade”» (Caputo, p. 110). 
Essa ambiguidade é um tema, como sabemos, também psicanalítico. Freud já alertava acerca da agressividade que os gestos mais amorosos comportam, e vice-versa: sempre que o ódio se instalar, sempre que a negação do outro se fizer presente, é necessário que levemos em conta a possibilidade de fascínio que esse outro exerce.

A relação identidade-alteridade, que afinal é também o que discutimos até aqui, é um tema fenomenológico clássico. A própria intencionalidade de nossos processos cognitivos, como propõe Husserl, requer e só se torna possível pela aceitação das demandas que a alteridade nos faz. Essa é, aliás, a forma como Levinas percebe a influência da fenomenologia husserliana e Heideggeriana em seu próprio pensamento – ou seja, neste sentido, a consciência não é o elemento fundante da fenomenologia, mas o desafio que  a alteridade lhe lança. Heidegger, no entanto, para Levinas, é um pensador da casa, do próprio, da clareira, da lareira, da autenticidade. Derrida e Levinas, por outro lado, são pensadores do clamor ético do limite, do compromisso que sempre nos mobiliza eticamente em direção à alteridade, sem que nunca possamos atender a tal apelo de modo satisfatório. 

E, no entanto, é preciso enfatizarmos isso devidamente: «Quando eu digo "bemvindo(a)" para o(a) outro(a), "venha, cruze o meu umbral", eu não estou capitulando minha propriedadade ou identidade. Não me ponho na posição de khôra que dá boas-vindas a tudo como um receptáculo aberto. Se eu digo "Bem-vindo(a)!, não estou renunciando a meu domínio”. Dizer bem-vindo, portanto, não seria possível se realizássemos qualquer sonhos místico de fusão com o outro, com a outra pessoa. E mais adiante nós lemos: «Como tudo o mais na deconstrução, a possibilidade da hospitalidade é sustentada por sua própria impossibilidade; hospitalidade realmente só se põe a caminho quando "experimentamos" (o que significa viajar ou atravessar) essa paralisia (a incapacidade de se movimentar)» (Caputo, p. 111). Essa impossibilidade parece-nos a forma como o pensamento derridiano pensa a questão da transcendência, ou seja, entendendo-a como algo finito, sem uma resolução absoluta, essencial. A impossibilidade nos mobiliza aqui por que nela reconhecemos o trágico de nossa precariedade ontológica.

Eu diria então que o verdadeiro gesto ético, o reconhecimento da alteridade, só pode ser inaugurado quando tal impossibilidade nos coloca fora do terreno das decisões automatizadas, quando o decidir é perturbador, quando nossa identidade é posta em xeque nesta mesma decisão. Como tudo isso é diferente da ideia liberal de uma comunidade fundada na tolerância mútua de identidades auto-referentes! Etimologicamente, a palavra tolerar significa suportar pacientemente a carga… Derrida, por outro lado, “quer distinguir uma identidade impermeável, homogênea, idêntica a si mesmo, de uma identidade que difere de si mesma» (Caputo, p. 114). 

O verdadeiro gesto ético só surge quando a face do outro, da outra, surge em sua absoluta singularidade, quando as regras para julgá-lo, ou julgá-la, são insuficientes. Orestes, por exemplo, diante da decisão de honrar os compromissos com seu pai, ou com sua mãe, estava em uma tal situação. Ou, mais propriamente ainda, poderíamos nos reportar aos apuros em que se mete Sancho Pança ao ser colocado diante de uma decisão sobre a vida de alguém que, se executado, morreria inocente; poupado, viveria na impunidade de seu delito. A decisão sobre o indecidível na famosa passagem do Dom Quixote, tem um sabor derridiano: Na dúvida, na impossibilidade de uma decisão logicamente perfeita, Sancho pondera, deixe viver porque a vida de um ser humano, em sua singularidade, é maior que o compromisso com qualquer compromisso com o rigor lógico. A justiça, neste caso, não pode se abrigar na aplicação cega da lei. O verdadeiro gesto ético, assim, abriga-se em nossa precariedade diante da outra pessoa, de sua face. Estranho abrigo!

«”We” all require “culture”, but let us cultivate (colere) a culture of self-differentiation, of differing with itself, where “identity” is an effect of difference, rather than cultivating “colonies” (also from colere) of the same in a culture of identity which gathers itself to itself in common defence against the other” (Caputo p. 115).

Assim, também as considerações derridianas sobre a dádiva, que encontramos em livros como Donner la mort, e que são uma parte importante de sua ideia de justiça, funda-se no pressuposto de que o dom requer algo para além de qualquer possibilidade de contra-dom, algo que “não pode ser reapropriado”. O dom é aquilo que passa pela circularidade das trocas e que a excede, que supõe um tempo circular – em que o dado deve retornar até o seu doador - e que instala uma interrupção no seio desta circularidade. É isto que nos indica as seguintes linhas de Donner le temps: 
«La circularité ne devrait pas être nécessairement fuie ou condamnée, comme le serait une mauvaise repetition, un circle vicieux, un processus régressif ou sterile. Il faut, d’une certaine manièrebien sûr, habiter le cercle, tourner en lui, y vivre une fête de la pensée, et le don, le don de la pensée, n’y serait pas étranger» (Derrida, p. 20).
Algumas linhas abaixo, no entanto, temos: 
«Que partout où il y a du temps, partout où le temps domine ou conditionne l’expércience en general, partour où domine le temps comme cercle […], le don est impossible. Un don ne saurait être possible, il ne peut y avoir don qu’à l’instant où toute circulation aura été interrompu et à la condition de cet instant»[3] (Derrida, p. 21).
O que essas tensões implicam para pensarmos a ideia de justiça em Derrida em oposição à estabilidade e automatismo da lei? «This “idea of justice” seems irreducible in its affirmative character, in its demand of gift without exchange, without circulation, without recognition of gratitude, without circularity, without circulation and without rules, without reason and without rationality» (Caputo, p. 141). Para ele, uma dádiva que é retribuída, ou que é reconhecida como tal, já anula a si mesma neste ato: pois qual seria o dom, o sobrevalor, o excesso necessário de algo que é reconhecido e, como tal, retribuído? 

Há no pensamento francês uma tradição de tentar pensar o lugar do excesso nas economias humanas. Isso é o que temos na economia erótica de que nos fala Bataille, ou nas reflexões de Foucault sobre a loucura, e é também o que se apresenta nesta ética do dom que nos propõe Derrida. O que se espera da dádiva é que ela seja excessiva em relação à racionalidade das trocas. Esse seria seu sentido ético, bem próximo ao erotismo tal como concebido por Bataille. Uma relação amorosa reduzida a um contrato de obrigações e contra-obrigações precisas perder-se-ia numa fria relação contratual. «The gift “calls” upon an expenditure without reserve, for a giving that wants no payback, for distribution with no expectation of retribution, reciprocity, or reappropriation». A ética do dom, assim, não pode buscar a soma zero da retribuição. Por isso mesmo, a dádiva em si é impossível. Mas é a possibilidade dessa impossibilidade que nos mobilizaria eticamente diante da presença do outro, da outra. 
«The gift is our passion. “Economy”, on the other hand, denotes the domain of presences, of presents, of the commercial transactions, the reasonable rules, the law of customary exchanges, the plans and projects, the rites and rituals, of ordinary life and time» (Caputo, p. 145).
Derrida não quer negar a economia e as trocas proporcionais. Pelo contrário, ele apenas entende que nossos próprios impulsos narcisistas, que procuram afirmar o eu como destino de todos as nossas “despesas” (aqui no sentido batailleano), que o retorno de nossos investimentos libidinais, só fazem sentido diante de uma abertura fenomenológica que tem como fundamento a (im)possibilidade da dádiva, a presença do outro, da outra. Assim: 
«Derrida thus points to a double injunctive, which is a bit of a double bind (that’s a surprise), both to give and to commerce, to love God and mammon. He is saying at one and the same time; (1) Give, but remember how to gift limits itself. Because there never is a gift (don), the gift is the impossible that we all desire; because it annuls itself the instant it would come to be, if it ever does, the gift is what we most want to make present. The gift is our passion and our longing, what we desire, what drives us mad with desire, and what drives us on» (Caputo, p. 147).

Neste ponto, podemos passar a tratar mais diretamente o tema sobre o qual prometemos discorrer no começo deste texto. Som na caixa!


É em direção à ambivalência que há entre narcisismo e dádiva que chamaríamos atenção, ou seja, à inexistência de uma «distinção clara entre dádiva e economia», entre «narcisismo e não narcisismo, mas apenas certos graus, gradações, ou economias do narcisismo”. É neste terreno precário, indecidível, que a ideia de uma quase-identidade se torna possível como âmbito de uma ética amorosa. Para Derrida, então, é necessário ver essas gradações que tornam o amor-próprio «mais ou menos egoísta» (Caputo, p. 148). 
«We are all more or less narcissistic, for that is what the agente/subject is. […] The agent, Aristotle and the medieval said, acts for its own good. If the agent expends all its energies on the other without return, that is after all what the agent wants, and that how the agent gets her kicks». 
Desde Freud, sabemos que o narcisismo é um investimento, uma estrutura, fundamental da psique humana: sem ela, sem a descontinuidade que ela instaura (como diria Bataille) não seria absolutamente possível qualquer amor, erotismo, qualquer impulso em direção ao outro, à outra, qualquer excesso. Porém o que diz Derrida é mais radical, mais lacaniano (mais levinasiano, certamente): sem o outro, a outra, mesmo o narcisismo e o investimento numa economia da troca e da recuperação do investimento seria impossível. Se é possível imputar à ideia de erotismo em Bataille um desejo místico da continuidade, indiferenciação, entre os seres, um desejo orgiástico, uma certa pulsão de morte, para Derrida é a partir da constatação  da existência paradoxal entre impulsos de continuidade e descontinuidade – ou seja, entre um impulso generoso com respeito à alteridade, por um lado, e nossa própria certificação na descontinuidade, na subjetividade autodelimitada, nosso próprio «narcisismo ininterrupto», «pusilânime», por outro - que devemos pensar nossa relação com a outra pessoa, ser. Essa relação ficaria mais evidente se a definirmos como uma relação amorosa, isto é, como investimento em direção à outra pessoa, a algo não dado, excessivo e, ao mesmo tempo, em direção a algo que nos é o mais próximo.

Isso não significa, evidentemente, que consigamos nos manter dentro daquilo que é nosso chamado apelo ético, embora mesmo ao negá-lo não consigamos deixar de parar a sua pulsação. As frustrações amorosas promovidas por uma cultura narcisista são uma evidência nessa direção. Não costumo citar Bauman, e não gosto muito do Amor líquido, e pelo que saiba Bauman não está nem um pouco preocupado com isso. Há ali, no entanto, uma observação que nos diz respeito diretamente. A partir de Benedict Anderson e Richard Sennett, Bauman fala da transformação de categorias políticas em psicológicas, da transmutação da ideia de uma comunidade política para uma “comunidade imaginada” a partir das emoções. Dada a estrutura deste texto, é preciso prevenirmos o leitor ou leitora de que não pretendemos corroborar de modo inocente com esse tipo de transmutação, ou seja, procurar um fundamento sentimental comunitário como solução à dificuldade de discussão política do âmbito social. 

Ocorre-nos, entretanto, que uma hipertrofia da subjetividade, e de estruturas narcisistas de reprodução da vida comunitária, parecem ocorrer precisamente quando a subjetividade, quando o indivíduo narcisisticamente investido se apresenta como uma impossibilidade. Ora, quem em sã consciência, poderia falar hoje da viabilidade política, cultural, de um autocentramento subjetivo, tal como o concebeu o pensamento liberal? É essa impossibilidade aliás que marca certa angústia, nostalgia, que percebemos em obras como Corrosão do Caráter, de Sennett, ou em toda a obra de Paul Virilio. E no entanto é o narcisismo radical de um sujeito autocentrado que procura a todo custo maximizar o seu prazer, o controle de seus investimentos eróticos como um todo, com que a sociedade do consumo nos acena diuturnamente. Extenuamo-nos para realizar um gozo que não é nosso, mas que afinal aparece como se fosse.

O outro lado deste impulso é algo paradoxal com respeito a este desejo de retorno seguro de investimentos libidinais. O amor romântico parece também se investir como desejo de encontrar unidade, consenso, coesão, precisamente quando expectativas de construção política da comunidade se esvaem. O ponto aqui que merece reflexão, naturalmente, é tanto a ideia de amor romântico que temos em mente quanto a noção de comunidade em questão. Deve estar bastante clara com respeito a esta última que a suposição de um consenso identitario está longe daquilo que temos em mente. A nostalgia baumaniana, sennettiana e viriliana, portanto, não nos dizem diretamente respeito. 

Com respeito ao amor romântico, prosseguiremos o nosso texto através do auxílio de Levinas, que acreditamos, como Caputo, constituir uma referência fundamental para entender a ética derridiana. Para tal, nos valeremos das entrevistas que ele concede no Ética e Infinito. Ali ele realiza um apanhado abrangente de sua obra. Interessante perceber nessas entrevistas o caminho que Levinas faz ao lado da fenomenologia de base ontológica de Martin Heidegger, e, a partir de certo ponto, para fora da solidão da existência, do “há”, e em direção a uma ética fundamentada no absoluto da alteridade – num certo gesto religioso que comporta essa profissão de fé. Assim: «A solidão era um tema “existencialista”. A existência descrevia-se na época como o despertar da solidão, ou como o isolamento na angústia» (Levinas, p. 49). Os termos em que a diferenciação levinasiana com respeito à fenomenologia de base “existencial” se anuncia, já em De l’existance a l’existant, não deixa dúvidas sobre o seu sentido, sua direção: trata-se aqui de uma ética do amor, não importa quão desgastada essa palavra soe, com toda à sua carga de moderno subjetivismo. «Desconfio da palavra “amor”, que está estragada, mas a responsabilidade por outrem, o ser-para-o-outro, pareceu-me desde esta época parar o rumor anónimo e insiginificativo do ser. É sob a forma de uma tal relação que me surgiu a libertação do “há”» (Ibid.). Isto é, libertação com respeito ao “há”, ao seu confinamento em algum modo narcisista.

Este outro que é o meu destino ético é alguém que eu conheço, mas que não pode ser cingido em meu conhecer, antes o desafia. É preciso por certo conhecer o outro, a outra, a quem se ama. No entanto, uma ética amorosa pararia cedo demais, abortada, nestes limites. Toda tentativa de conhecer, mapear, de desnudar o outro, a outra, é, para Levinas, uma tentativa também de dominá-lo, de dominá-la: é necessário pois aceitar a irredutibilidade da outra pessoa aos meus processos cognitivos. Nunca verdadeiramente saberemos onde o outro em sua alteridade esteve, está, pretende estar… Segundo esta ética amorosa, a outra pessoa é inesgotável; nada aqui pode anunciar, portanto, o conforto de uma harmonia entre almas tal qual anunciado no Banquete, ou um retorno a nossa essência. E se a alteridade marca assim os nossos processos de identificação, amorosos, estaremos para sempre à deriva.

Levinas, assim, força seu caminho para os lados da fenomenologia e, nesse gesto, influencia toda a aporética do pensamento derridiano – no que pese o fato de Derrida postar o seu gesto ético no terreno indecidível entre o conhecer e o abrir-se irredutivelmente, entre Deus e Mamon, entre a dádiva absoluta e a troca econômica, como dissemos acima. Para Levinas (p. 53): «O conhecimento mais audacioso e distante não nos põe em comunhão com o verdadeiramente outro; não substitui a socialidade: é ainda uma solidão». O gesto ético, dessa perspectiva, é também a aceitação de um tempo aberto em que a outra pessoa pode “surpreender” sempre. Dissemos “surpreender, e, todavia, essa palavra ainda não é adequada, na medida em que ela se define como um certo luto/júbilo da cognição: «O livro [Le temps et l’autre] mostra, em primeiro lugar, na relação com o outro, estruturas que não se reduzem à intencionalidade. Põem em dúvida a ideia husserliana de que a intencionalidade representa a própria espiritualidade do espírito. E o livro procura compreender o papel do tempo nesta relação: o tempo não é uma simples experiência da duração, mas um dinamismo que nos leva para outro lado diferente das coisas que possuímos» (ibid.). O desejo de posse, neste sentido, é um desejo de parar esse tempo em que o outro pode não comparecer, pode não me atender, mas tal abertura temporal é a única possibilidade de que a alteridade da outra pessoa continue viva e inesgotável. Curioso como essa visão aparentemente idealizada do amor pode afinal se apresentar como não idealista.

«Totalmente em oposição ao conhecimento que é supressão da alteridade e que, no “saber absoluto” de Hegel, celebra a “identidade do idêntico com o não-idêntico”, a alteridade e a dualidade não desaparecem na relação amorosa. A ideia de um amor que seria uma confusão entre dois seres é uma falsa ideia romântica. O patético da relação erótica reside no facto de serem dois, e de o outro ser aí absolutamente outro» (Levinas, p. 58).
Para quem pensa que o irracionalismo é a consequência necessária dessa ética amorosa, Levinas esclarece: «O não-conhecer não deve aqui compreender-se como uma privação do conhecimento. A imprevisibilidade só é a forma da alteridade relativamente ao  conhecimento. Para este, o outro é essencialmente o que é imprevisível. Mas a alteridade, no eros, não é sinónimo de imprevisibilidade. Não é como um malogro do saber que o amor é amor» (Ibid.). É para além desse malogro que o gesto amoroso parece se colocar, segundo essa perspectiva, ou seja, para além de uma fenomenologia que tenha como base a consciência ou o ser. Por isso mesmo:

«O patético do amor consiste […] numa dualidade insuperável entre os seres; é uma relação com aquilo que se esquiva para sempre. A relação não neutraliza, ipso facto, a alteridade, mas conserva-a» (Levinas, p. 59).
A relação ética e amorosa com a alteridade, seu aceno não narcisista, fica patente ao adentramos o terreno sensual da carícia. A carícia pode obviamente ser entendida como uma técnica de excitação da outra pessoa, certamente. Neste sentido, ela é racionalizável, controlável, procura efeitos específicos, sequências bem-sucedidas. Para Levinas, entretanto, o acariciar tem algo de intrinsecamente nômade. A carícia desta perspectiva é algo essencialmente não objetivável ou racionalizável: «Quem é acariciado não é, propriamente falando, tocado. Não é o aveludado ou a tepidez desta mão dada no contacto, que a carícia procura. É a procura da carícia que constitui a sua essência, pelo facto de a carícia não saber o que procura. Este «não saber», este desordenamento fundamental é-lhe essencial. É como um jogo com algo que se esconde e um jogo absolutamente sem projecto nem plano, não como aquilo que pode tornar-se nosso e nós, mas como qualquer coisa de outro, sempre outro, sempre inacessível, sempre por chegar. E a carícia é a espera desse puro fruto, sem conteúdo» (Levinas, p. 61).

Poderíamos pensar que na carícia me encontro postado diante da imanência do outro, de sua presença irretorquível. Mas essa presença é em si uma abertura, algo que só se oferece como esperança nas promessas vagas e sensuais do futuro. A alteridade não está dada, e esse não estar dado é o que me impulsiona, o que me comanda a ir também mais adiante, a estabelecer uma relação generosa, não objetal comigo próprio, com a outra pessoa e com o tempo. Pelo fato de que a alteridade se oferece como abertura amorosa, sensual, existencial, mantenho-me eu próprio aberto.

Este texto inicia discorrendo acerca de algumas dificuldades éticas em torno do político e se desdobra em algumas considerações básicas sobre o amor. Em si esse percurso é politicamente problemático. Toda comunidade afetiva como base do político constitui um problema, uma ameaça a convicções verdadeiramente democráticas. No entanto, essa conclusão não poderia estar mais distante da perspectiva derrideana acerca do político, do ético ou do amor. Derrida, como adverte Caputo, foi injustamente criticado como um teórico das reivindicações nacionalistas na Europa. A ideia de comunidade afetiva como base emocional das reivindicações nacionalistas não lhe poderia ser atribuída. Uma resposta a esse tipo de acusação é dada pela própria ideia de “comunidade sem comunidade”, pelo agonismo que lhe é essencial, tal como a esboçamos aqui. A tensão e a contradição, a hostilidade e a hospitalidade, são elementos fundantes de uma comunidade que em princípio estaria paradoxalmente aberta para o seu outro. São também, obviamente, elementos vitais do amor.

Neste ponto, percebemos o quanto o problema de pensar a política a partir da ideia de uma comunidade afetiva, ou, mais precisamente, pensar o papel do afeto no estabelecimento de laços políticos, não parece ser exatamente um problema, como parece supor Zygmunt Bauman. O problema é a noção de afeto e comunidade que temos em mente. Pensemos num exemplo concreto, pensemos na base afetiva de lutas políticas como as diversas “ocupações” que prosperam hoje no Brasil. Parece-nos claro a reivindicação democrática, por exemplo, do Ocupe Estelita, de sua defesa de uma comunidade afetiva (cultural e historicamente determinada), para além da defesa de um patrimônio arquitetónico, da transitabilidade etc. O afeto não parece ali uma defesa retrógrada de um passado idealizado, de uma comunidade fechada à alteridade do futuro. Pelo contrário, em primeira instância, esse movimento requer uma redefinição da estrutura política e social de ocupação do espaço urbano que está em questão. Isso passa por questões como educação, enfrentamenteo da violência, democratização das decisões, entre muitas outras. A política, nesse  contexto, pode ser afetiva sem ser retrógrada, conservadora. E vice-versa: o conservadorismo, autoritarismo, prosperam exatamente onde o afeto não é possível, onde o discurso de sabor tecnocrático esconde o interesse tacanha, a objetificação, redução da alteridade.

As ponderações ética sobre o político, tal qual as expusemos acima, apenas abriram espaço para reflexões mais específicas sobre ética no amor. Ocorrem-me as dificuldades em que Feuerbach se mete ao tentar fazer algo numa mesma direção ao pensar os seus Princípios para uma Filosofia do Futuro. Afinal, esse amor pelo absoluto da alteridade seria apenas uma transmutação de um sentimento religioso e, como tal, acena com as promessas da negatividade, do curto-circuito que presença do outro proporciona – este certo “sentimento oceânico” no qual gozamos negativamente, diria Freud. Ainda aqui estaríamos de certo modo no terreno do narcisismo. Essa ética que se funda nas demandas da alteridade poderia ser recriminada pelo uso de certos conceitos de sabor religioso - conceitos judaicos, mais claramente. Isto ocorre, por exemplo, quando constatamos que a alteridade se abre para nós, de acordo com tal perspectiva, como uma promessa - uma promessa aberta, sem telos, mas uma promessa. O mergulho no absoluto da alteridade nos coloca diante de um tipo de messianismo sem Messias. O futuro nos chama - e no entanto esse futuro é como um significante vazio, nada está propriamente lá, nada está propriamente dado ou dito, mas sempre em processo de ser enunciado. Rigorosamente, tanto Derrida quanto Levinas aceitam esse tipo de ponderação e acreditam que o pensamento ocidental não pode negar a tradição religiosa dentro da qual negocia sua existência (ver Caputo, caps. 5 e 6). Ajuda a entender o que aqui está em jogo quando percebemos que essa promessa, esse “messianismo sem Messias”, busca nos oferecer uma dimensão do político e do ético radicalmente desessencializados e que, por isso mesmo, não pode recusar a sua historicidade, o chão sobre o qual pode ou não se abrir. A fuga do essencialismo é a forma como o ético e o político podem adquirir um apelo francamente, radicalmente democrático. Mas é também a maneira como as promessas do amor podem continuar vivas em nós.





[4] Parece evidente a maneira como Derrida se coloca diante de uma tradição de pensar a dádiva que encontra em Mauss seu ponto mais alto.”Bien que toutes les anthropologies, voire métaphysiques du don, aient, à juste titre et avec raison, traite ensemble, comme un système, le do net la dette, le do net le cycle de restitution, le do net l’emprunt, le do net le crédit, le do net le contre-don, nous nous départissons ici, de façon vive et tranchante, de cette tradition».

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Tramas de Babel: subjetividade e tradução em tempos de rede



Cristina Petersen Cypriano


Nas páginas que encerram o texto “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Jacques Lacan propõe aos psicanalistas uma espécie de compromisso com a prática clínica. Ele sugere “que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo da tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra continua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas” (Lacan, 1998, p. 322).
Dessa colocação de Lacan nascem os três feixes temáticos que norteiam as questões exploradas nesse breve ensaio: um que diz respeito à subjetividade de nossa época, outro que se volta para a espiral que hoje nos arrasta na obra contínua de Babel e um terceiro que nos coloca a refletir sobre a função de intérprete na corrente discórdia das línguas.
A marcação da contemporaneidade no tratamento dessas questões é aqui feita pela crescente presença em nossas vidas das redes tecnológicas de informação e comunicação, de modo que toda a discussão se dá em torno do intenso uso da internet, principalmente por parte das gerações que nascem e crescem assimilando essas tecnologias aos seus modos de ser e de se ligar uns aos outros. Trata-se de crianças e adolescentes que dificilmente se separam de seus celulares, smartphones, tablets ou computadores e que vivem conectados às redes sociais online.

Aprés l’Orgie

No início de um trabalho sobre os fenômenos extremos, Jean Baudrillard (1990) formula em caixa alta a seguinte questão: “QUE FAIRE APRÉS L’ORGIE?”, ou seja, o que fazer depois da orgia? Ele propõe essa questão como uma formulação coletiva diante de uma atualidade que sucede a um momento explosivo: “o da liberação em todos os domínios. Liberação política, liberação sexual, liberação das forças produtivas, liberação das forças destrutivas, liberação da mulher, da criança, das pulsões inconscientes, liberação da arte”. (Baudrillard, 1990, p.11).
Essa questão que foi colocada por Baudrillard nos anos 1990 pode ser atualizada pouco mais de uma década depois da ampla liberação das tecnologias de conexão às redes informáticas para uso de adolescentes e crianças. O que fazer com os casos extremos nos modos de relação com essas tecnologias?
Em 2012, o grupo de dependência de Internet, do ambulatório de transtornos do impulso vinculado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo oferecia orientação aos pais de adolescentes e jovens que faziam uso excessivo de Internet e/ou Jogos on-line. Em 2014, a mesma instituição convidava os próprios adolescentes para se inscrever no tratamento: “o Hospital das Clínicas de São Paulo abre inscrições para tratamento de adolescentes paulistanos viciados em Internet. A instituição convida pessoas de ambos os sexos, entre 12 e 17 anos e 11 meses, que se considerem dependentes do acesso à Web”.
A China foi o primeiro país a considerar, desde 2008, o vício à internet como um distúrbio mental e não tardou a construir centros de reabilitação para adolescentes e jovens adictos Em 2009 já haviam sido construídos 300 centros e em 2014 chegaram em torno de 400. As dúvidas sobre como lidar com esses jovens e adolescentes mobiliza não apenas médicos, psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. Persiste entre pais, professores e adultos em geral uma dificuldade em conviver cotidianamente com esses jovens que, por todos os lugares, fixam os olhos nas reluzentes telas de suas máquinas e por elas deslizam seus polegares, ora entretidos, ora sorrindo, ora apáticos.
Recentemente exibido no Brasil, o filme “Homens, mulheres e filhos” reúne uma gama de situações que dão testemunho das dúvidas e das dificuldades que os adultos têm para lidar com essa espécie de onipresença da Internet na vida cotidiana deles próprios e de seus filhos. Os personagens do filme não sabem como proceder quando as tecnologias de conexão em rede começa a fazer parte das relações amorosas, sexuais, afetivas, de maneira ilimitada. O que fazer?
    Ocorre que também os próprios jovens se mostram perdidos, sem saber como lidar com os atrativos das novas tecnologias e com as facilidades expressivas que são oferecidas pelos serviços online. Em sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo, Rosely Sayão relata: “um jovem de 17 anos escreveu contando que abriu uma conta no Twitter, mas que estava prestes a fechar porque percebera que muita gente, inclusive ele, escreve coisas impulsivamente e depois se arrepende, mas aí é tarde demais porque o texto já se espalhou”.
Foi também uma jovem que publicou em sua página pessoal no Twiiter uma crítica bem humorada à expressividade ilimitada que vem sendo praticada nos sites de redes sociais. Ela escreve: “ai vc vai mandar um ‘oi’ e sem querer erra a tecla e manda ‘eu te amo vc é tudo na minha vida, vamos casar’”
Esse breve texto dá mostras de como a expressividade amorosa que vigora nas redes sociais online – principalmente no Twitter – caracteriza-se pela fugacidade que acompanha uma espécie de injunção ao ato de comunicar, a quem queira saber, uma experiência afetiva. É como se as palavras deslizassem das esferas de intimidade na direção de um público heterogêneo e, não raro, desconhecido

Palavras de Amor

Mesmo antes da ampla assimilação da Internet como “espaço relacional onde os indivíduos, em vez de se encontrarem fisicamente, conversam e trocam dados através de terminais e redes interpostos” (Nora, 1995, p. 11), já se observava nas interações online a forte presença de temas ligados ao amor e à sedução. Em uma investigação feita há mais de uma década sobre as emoções na Internet, Ben-ze’ev (2004) perguntava-se por que ali eram tão intensos os afetos, uma vez que sempre havia a mediação de uma máquina, o que poderia redundar em distanciamento e frieza. O anonimato e a imaginação eram, então, elementos fundamentais das relações afetivas e/ou eróticas engendradas no milieu digital. Isso porque as interações que aconteciam nas salas de bate-papo e nos fóruns de discussão acolhiam participantes “sem nome” e “sem rosto” que se apresentavam por apelidos ou codinomes, favorecendo a impessoalidade e a fantasia.
De lá para cá, entretanto, com a crescente exposição dos indivíduos em sites de rede social, o anonimato e a imaginação perderam a força como principais propulsores de emoções na Internet. As declarações de amor que hoje são proferidas nas redes sociais aparecem nas páginas pessoais de quem não somente se dá a conhecer por meio de fotos e textos, como frequentemente o faz com riqueza de detalhes. Os sentimentos se manifestam com a publicação de depoimentos e testemunhos que acompanham a partilha de experiências cotidianas, sejam elas prosaicas ou significativas, superficiais ou profundas. De modo que a intensidade afetiva das relações em ambiente digital tem crescido juntamente com a mudança de perfil nos modos de apropriação social da Internet: se no início do século XXI a utilização das redes tecnológicas era prioritariamente instrumental, hoje os usos dessas redes privilegiam as relações sociais, compondo uma “web relacional” (GENSOLLEN, 2010) infiltrada por emoções.
Hoje, a publicação online de palavras de amor se insere com muita naturalidade em meio a outras modalidades de expressão afetiva.  A maneira como os jovens e adolescentes proferem seus sentimentos nas redes sociais faz surgir um “discurso amoroso” (Barthes, 1981) inteiramente alheio ao encadeamento linear das narrativas românticas, pelas quais o ser amado é inserido em uma trajetória pessoal duradoura. Não raro o amor declarado nessas redes é expresso por abreviadas unidades de sentido (Lash, 2001). São também muito comuns no ambiente digital os enunciados que exprimem tão somente o desejo ou a vontade de amar, “esse impulso surdo e sem objeto, em particular na juventude, em direção a qualquer coisa a ser amada”, como definiu Simmel (2001, p. 127). Não há nesses enunciados, como naqueles com destinatário definido, fortes indícios de que se trata de algum tipo de atualização da busca do romance que encontra na expectativa do amor compartilhado um processo ativo de engajamento com o futuro (Giddens, 1993, p. 62).
As peculiaridades nos modos de expressão afetiva dos jovens integrantes das redes sociais online ficam mais evidentes quando tomamos como referência o amor romântico, cujo significado é vinculado a atributos tais como as nítidas partições que distinguem entre o racional e o sentimental, o público e o privado, o objetivo e o subjetivo, o gênero masculino e o feminino, e assim por diante. É também o amor romântico que em grande medida dá sentido à nuclear família moderna e às atribuições sociais da maternidade e da paternidade.
O amor que vem sendo declarado nas redes online não se parece com nenhum tipo de aprimoramento ou de decadência qualitativa em relação às trocas afetivas pautadas pelo romance. Tem muito a dizer, entretanto, de uma geração que cresce habituada a estabelecer relações tecnologicamente mediadas. Os sites de redes sociais operam mediações que agregam padrões tecnológicos às relações de seus frequentadores. Variam as lógicas pelas quais são modelados os padrões que regem os distintos tipos de mediação que eles exercem, contudo, existe em todos eles um incentivo à formação de laços emocionalmente investidos. Talvez o mais emblemático fomentador de laços afetivos seja o polegar em riste do Facebook que dispensa qualquer outro recurso de linguagem: você curte minha foto, eu curto seu post, você curte meu comentário, eu curto seu compartilhamento, e assim, eu sinto que você me curte e vice-versa. Ficam dadas as condições para o recíproco prazer do sentimento correspondido e nada mais.
É nesse tipo de site que tanto facilita as interações puramente emocionais que vêm sendo publicadas as palavras de amor. E são esses mesmos sites que favorecem os desvios, “os contágios, as epidemias, os ventos” (Deleuze & Parnet, 1998, p. 57) que interferem ali, onde o eu se dirige ao tu do amor. Nesse momento, a pergunta se impõe: afinal, como esse eu do enunciado amoroso se liga ao tu do amor pela mediação das redes tecnológicas?
Não se trata, entretanto, de atitudes isoladas. Entre os jovens e os adolescentes, o proferimento amoroso em rede vem se tornando parte edificante de uma espécie de acervo de práticas significativas, princípios de conduta e valores que são por eles mesmos legitimados. Trata-se de processos de legitimação pelos quais as experiências compartilhadas nos sites de redes sociais passam por um processo de “sedimentação intersubjetiva”, ou seja, se inserem em um processo de objetivação que “abstrai a experiência de suas ocorrências individuais biográficas” e as torna “uma possibilidade objetiva para todos” (Berger & Luckmann, 1985, p. 97).
Um olhar para o âmbito da cultura de nossa época nos permite perceber que a emergência desse tipo de acervo está relacionada a decisivas redefinições em alguns dos códigos fundamentais que regem nossas linguagens, valores, hierarquias de práticas, trocas e mesmo os nossos esquemas perceptivos – tomando como referência a perspectiva de Michel Foucault (1981). Redefinições de códigos que constituem um produto cultural de nosso tempo, com o qual temos que lidar e no qual havemos de nos encontrar, ainda que não estejam muito claros quais sejam os novos parâmetros – ou, para usar os termos de Lacan, qual seja a espiral que nos arrasta na obra contínua de Babel (Lacan, op. cit.).
É importante considerar que a vigência de um novo produto cultural não corresponde necessariamente ao abandono ou ao esquecimento dos códigos fundamentais que o antecedem e que já estão profundamente enraizados em nossos modos de ser e de estar no mundo. Não se trata de uma superação ou substituição do velho pelo novo. Há, antes, um estado de coexistência entre o novo e o que existia antes que proporciona sobreposições e tensões cada vez mais frequentes e profundas. Tais tensões estão incorporadas no habitual conflito geracional que conta hoje com um particular ingrediente: um estranhamento que é, por vezes, inconciliável, pois parecem por demais abruptas algumas das diferenças entre os modos de ser e de viver que distinguem a nossa geração da geração que nos sucede. Tais diferenças suscitam as questões que compõem o feixe temático que se volta para a subjetividade de nossa época.

Estrangeiros e habitantes

A indagação de Michel Serres (2012, p. 6) diante de seus alunos assimila a inquietação de muitos professores, pais e adultos em geral: “quem se apresenta, hoje, na escola, no colégio, no liceu, na universidade?”. Essa pergunta tão genérica quanto profunda é formulada a partir da constatação de que “pelo celular, eles acessam todas as pessoas; pelo GPS, todos os lugares; pela web todo o saber: eles assombram um espaço topológico de vizinhanças, ao passo que habitamos um espaço métrico, referenciado por distâncias” (Serres, 2012, p. 13). Nesse espaço de vizinhanças, “resta inventar novos laços. Testemunho disso é o recrutamento do Facebook”, sendo que de maneira completamente diversa, “nós, adultos, não inventamos nenhum laço social novo. A dominação da crítica e da suspeita faz mais é destruí-los” (Serres, 2012, p. 16).
A demarcação de diferenças observada por Serres implica em compreendermos que, de alguma maneira, o mundo que esses jovens habitam nos provoca todo tipo de estranhamento, embora seja também o lugar onde vivemos. Com muita frequência, nós, adultos, utilizamos o Google para fazer pesquisas, o GPS para chamar um táxi ou encontrar um endereço, assim como nutrimos perfis em redes sociais, principalmente no Facebook e no Whatsapp. Mantemos, no entanto, uma certa desconfiança quanto à natureza dos laços que são cultivados nessas redes sociais online. A pergunta padrão é: são todos realmente amigos? Existe também uma ênfase mais quantitativa para a mesma questão, que indaga se existe alguém que realmente tenha centenas de amigos. Questão que nos é própria e que dificilmente é colocada pelos integrantes das novas gerações.
Os jovens de hoje nascem e crescem em um mundo onde aquilo que “nós designamos convencionalmente pelo nome de ‘amizade’ é um tipo de ligação inteiramente específica dos ambientes sociais da Web”, como observou Antonio Casilli (2010, p. 270) em um trabalho sobre as ligações numéricas. Isso significa aceitar que, embora possua a mesma designação de um vínculo social offline, trata-se de um tipo de laço que não existe senão nas dinâmicas típicas do mundo online. Na língua inglesa “essa amizade assistida por computador toma o nome de friending. O neologismo designa o ato de ‘amigar’ ou de ‘tornar-se amigo de’ alguém” (Casilli, 2010: 271). Não é de se admirar que essa forma de ligação assuma o estatuto de uma ação, uma vez que abarca o movimento voluntário e persistente de constituir redes sociais, cujas interações atravessam transversalmente as relações face a face.
Cabe lembrar que os sistemas tecnológicos são exímios fomentadores desse tipo de ação. No incentivo à conectividade que engendra ligações sociais, tais serviços recorrem à aplicação de hipóteses formuladas no âmbito dos estudos de rede, tal como ocorre com a operacionalização da propalada ideia de “mundo pequeno”, segundo a qual, é “provável que o mundo esteja globalmente conectado”, uma vez que “praticamente qualquer par de indivíduos pode se conectar através de uma cadeia curta de intermediários” (Watts, 2009: 52). É bom lembrar que, na Internet, esse encadeamento é sustentado por tecnologias que tornam de fato exíguas as distâncias geográficas. Mais uma vez fica posta a questão: que espécie de laço social está sendo cultivado com a participação desses sistemas tecnológicos baseados em rede?
A persistência da dúvida muito se justifica pelo fato de que nosso regime de subjetividade está vinculado a outro mundo, onde as distâncias são métricas, como notou Serres. Nós nascemos e crescemos em outro tempo-espaço, em que as relações se traçam olhos nos olhos e as amizades acontecem numa cumplicidade da experiência que é compartilhada na duração. Nascemos e nos tornamos sujeitos em um mundo no qual as palavras evocam o som da voz, um mundo em que os emoticons ou emojis não fazem parte dos códigos essenciais da cultura.
Atualmente, a presença desses ícones entre as palavras que são digitadas nos teclados dos tablets, smartphnes e celulares já foi considerada “uma transformação sem precedentes em 1400 anos de língua inglesa”, como avalia Paul Payack, presidente do instituto Global Language Monitor. Ele nota que, “com esses ícones, o alfabeto ganha caracteres a uma velocidade impressionante”. A forte presença desses ícones na língua inglesa chega ao ponto de o desenho do “coração” ter sido identificado como a “palavra” do ano em 2014. É evidente que esse tipo de transformação não se restringe à língua inglesa e que, como vários outros processos vinculados às redes informáticas, a assimilação dos emojis nos códigos linguísticos constitui um fenômeno de alcance mundial.
Não há como negligenciar a questão de que essas mudanças na língua podem intervir nos modos de subjetivação de crianças que, cada vez em mais tenra idade, manipulam os ícones nas telas dos celulares e tablets de seus pais. Considerando, com Lacan, que existe um momento no qual “a criança começa a se comprometer com o sistema do discurso concreto do ambiente, reproduzindo mais ou menos aproximativamente, em seu Fort! e em seu Da!, os vocábulos que dele recebe” (Lacan, 1998, p. 320), podemos, no limite, indagar se estamos diante de jogos Ford-Da que se dão com as pontas dos dedos manipulando os coloridos ícones que se movimentam sob as telas lisas e cintilantes de uma máquina. Silenciosamente.
Embora essa questão, assim como outras aqui formuladas, dificilmente nos conduza a uma resposta conclusiva, ao menos nos faz notar o quanto estamos nos tornando estrangeiros em mundo onde os habitantes são nossos filhos, sobrinhos, alunos e jovens clientes, cuja subjetividade se forma em um ambiente no qual os recursos tecnológicos já fazem parte do “sistema do discurso concreto”. Vivemos a dualidade da experiência de estarmos ocasionalmente muito próximos desses habitantes sem que para isso deixemos de estar algo distante deles.
 Isso não significa dizer que somos turistas no contemporâneo, que estamos aqui a passeio, ao contrário, nos provoca a impressão de sermos alguém que “chega hoje e amanhã fica”, como definiu Georg Simmel (1983, p. 182) a respeito do estrangeiro. Muito de nossa ambiguidade nesse tempo-espaço decorre do fato de sermos integrantes dessas sociedades que assimilam as redes tecnológicas como modo de mediação com o mundo, sem, entretanto, deixarmos de ser estranhos a elas. Trazemos nossas bagagens de alhures, o que inclui nossa língua pátria e nossa oralidade.
Grande parte da dualidade que vivemos em relação às novas circunstâncias de vida sociocultural reside no fato de que não pertencemos a elas desde sempre, o que, por sua vez, nos dá chances de nelas introduzir elementos provenientes do contexto de onde viemos. Mas, para isso, temos que desvelar, ao menos um pouco da dialética que nos compromete com essas vidas num movimento simbólico, como propôs Lacan na assertiva que provoca esse ensaio. Qual será, afinal, a dialética que nos compromete com esses sujeitos que, há mais ou menos uma década, se apresentam atrelados a seus aparelhos tecnológicos? A nostalgia não tem se mostrado a melhor companheira para nos aproximarmos dessa questão. Se há como trazermos nossas bagagens para a contemporaneidade, precisamos saber onde alojá-las, superando mesmo os mais inquietantes estranhamentos.
Para tanto, é fundamental considerar que, “a maneira como tu és e como eu sou, a maneira como nós homens somos sobre a terra é o buan, a habitação”, como propôs Martin Heidegger (1958, p.173). Nessa concepção, habitar equivale a construir, cultivar, edificar não somente esse ser no mundo, mas também o mundo onde se é. Trata-se de uma abordagem que vê o habitante como aquele que constrói o mundo onde se torna sujeito. Ele é o que é à medida que habita. Ele se faz onde habita, mas também faz seu habitat. Cultiva e é cultivado enquanto permanece, cuida, constrói.
Por essa perspectiva, o habitante das novas formas socioculturais é conectado às múltiplas redes que se encadeiam através da interface de um celular ou de qualquer aparelho da mesma linhagem. De modo que, para dar prosseguimento à indagação sobre a subjetividade de nossa época, fica colocada uma nova pergunta: que habitat é esse que vem sendo cultivado por esses sujeitos? Essa questão conduz para outro feixe temático, o que se volta para a espiral que atualmente nos arrasta na obra contínua de Babel.

Interface

Vivemos hoje muitas condições do que Scott Lash (2001) denomina “formas tecnológicas de vida”. Isso significa entender que frequentemente “atribuímos sentido ao mundo através de sistemas tecnológicos” (Lash, 2001: 107), o que implica em comunicar aos outros, através dessas tecnologias, o sentido cotidiano do viver, assim como em uma abreviação das formas de transmitir esse sentido do mundo vivido. Como alternativa às narrativas que são fruto de longa reflexão, vem sendo disseminado o uso do texting, ou seja, o recurso aos brevíssimos textos que são digitados nos aparelhos tecnológicos e instantaneamente enviados às redes sociais. Nota-se aí uma abreviação das unidades de sentido refletida em costumeiras contrações de palavras – como, por exemplo, a fração “vc” onde se escreveria “você”, ou a abreviatura “abc” em substituição à saudação “um abraço”.
Marcado pela brevidade e pelo efêmero, o sentido que é comunicado às redes de relações sociais está aberto à intervenção daqueles com quem é compartilhado. E essas comunicações se dão em fluxo contínuo e de longo alcance. O fugaz sentido da vida cotidiana que é partilhado por indivíduos tecnologicamente conectados está apto a atravessar longas distâncias e a fluir permanentemente pelas configurações reticulares dessas novas formas sociais.
Nas formas tecnológicas de vida também os vínculos que estabelecemos uns com os outros são tecidos pela interface com as máquinas. De maneira que as ligações que compõem a intrigante topologia reticular dessas formas tecnológicas de vida “são conectadas não por laços sociais per se, mas sim por vínculos sócio-técnicos. Elas são unidas por conexões tão técnicas quanto sociais” (Lash, 2001: 112). Daí decorre a desconcertante impressão de que “já não se sabe ao certo se existem relações específicas o bastante para serem chamadas de ‘sociais’”, ao mesmo tempo em que “o social parece diluído por toda parte e por nenhuma em particular”, como observa Latour (2012: 19) a propósito da redefinição daquilo que entendemos hoje por social.
Boa parte dos modos de ser que dizem respeito a essas novas formas sociais não é senão a “realização objetiva”, para usar os termos de Simmel (2005, p. 52), das subjetividades que há uma década cultivam essas ligações em rede. Jovens, adolescentes e mesmo crianças que convivem com a interface como se ela não existisse.
Nós, adultos, encontramos na interface uma espécie de fronteira porosa que oferece passagens e que, entretanto, traça os limites que distinguem entre o mundo online e o offline. Lidamos com ela como lidamos com os outros limites que orientam nossos modos de vida, reconhecendo-a e transpondo-a. As fronteiras da interface aparecem cada vez que é desligado um computador ou qualquer outro tipo de aparelho de conexão.
Os integrantes das novas gerações, por sua vez, parecem não se ater a esse tipo de delimitação. Para eles não há muita relevância nessa espécie de fronteira que demarca uma exterioridade do outro lado da interface. Eles não dão muita importância à ideia de uma distinção entre o lado de cá e o lado de lá. Não se posicionam aquém ou além da interface. Nasceram e vivem em um mundo onde são corriqueiras as translações entre os acontecimentos locais e os fluxos de alcance global, onde as trocas podem ser indefinidamente prolongadas através dos encadeamentos sociotécnicos, sem que para isso ocorram rupturas. É esse o mundo que eles habitam, o mundo onde eles são.
Podemos nos perguntar, então, de que maneira a onipresença da interface com os sistemas tecnológicos participa da espiral que nos arrasta na obra contínua de Babel? Essa questão nos conduz para o terceiro eixo temático desse ensaio, o que procura refletir sobre a função de intérprete na corrente discórdia das línguas.

A tarefa do tradutor

Sobre a tarefa do tradutor vale remeter à exposição de Walter Benjamin (2000) e à posterior discussão de Derrida (2006) a esse respeito. Benjamin faz uma elaboração em torno das relações entre o original e sua tradução que foi minuciosamente examinada por Derrida e que nos permite uma aproximação muito singular do que pode significar o ato de interpretação.
Benjamin encontra entre a tradução e o original muito mais que uma transmissão de significado, antes, uma “correlação de vida”. Ele argumenta que “do mesmo modo como as manifestações da vida, sem nenhum significado para o vivo, estão com ele na mais íntima correlação, assim a tradução procede do original. Certamente menos de sua vida que de sua ‘sobrevida’” (Benjamin, 2000, p. 246).
A noção de sobrevida é central nesse contexto de pensamento. É interessante notar que Benjamin evoca a concepção de vida a partir de uma perspectiva histórica e não orgânica. Ele considera a sobrevida como uma possibilidade de existência do original para além do tempo e do lugar onde ele tem vida. Sobrevida como vida para além da vida. Na tradução, diz Benjamin, “a vida do original, em sua constante renovação, conhece seu desenvolvimento o mais tardio e o mais expandido” (Benjamin, 2000, p. 247).
Derrida (2006) retoma essa concepção de Benjamin e explora a ideia de sobrevida que dá consistência ao ato de tradução. Ele observa que “se o tradutor não restitui nem copia um original, é que este sobrevive e se transforma. A tradução será na verdade um momento de seu próprio crescimento, ele aí completar-se-á engrandecendo-se” (Derrida, 2006, p. 46). Derrida procura eximir o tradutor do eterno dever de restituir ao original seu sentido, pois essa exigência o coloca na condição de endividado, de alguém que se encontra em situação de devolver ao original algo que foi retirado. Remetendo a Benjamin, Derrida define a posição do tradutor como “agente de sobrevida”, frisando que “tal sobrevida dá um pouco mais de vida, mais que uma sobrevivência” (Derrida, 2006, p. 33). Por esse ponto de vista, a tradução está muito distante da noção de cópia infiel, ela assume o status de uma transposição poética que transgride os limites do que é traduzido e o transforma ampliando-o, estendendo-o.
Essa concepção da tradução nos possibilita pensar nossa função de intérpretes no mundo de hoje como facilitadores de transposições poéticas que abrem brechas para a vida além das formas tecnológicas de vida. Isso nos exige, entretanto, saber de algum modo desfazer as tramas das ligações sóciotécnicas.

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