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domingo, 19 de junho de 2011

Tendências desterritorializadoras e territorializadoras nas tecnologias da vida: o caso da pesquisa nanobiotecnológica no Brasil


Jonatas Ferreira

A cada tipo de sociedade, evidentemente, pode-se fazer corresponder um tipo de máquina: máquinas simples ou dinâmicas para as sociedades de soberania, as máquinas energéticas para as de disciplina, as cibernéticas e os computadores para as sociedades de controle” (Deleuze, 2000, p. 216).

Introdução de uma comunicação apresentada no I Simpósio Internacional de Geografia do Conhecimento e Inovação


Em um texto hoje bastante conhecido, Foucault disse a respeito de Deleuze, não sem uma ponta de ironia, que o século vinte seria conhecido como o “século deleuziano”, que o filósofo da esquizoanálise seria o último pensador de sistemas. Num mundo fragmentado pelos fluxos vertiginosos do capitalismo, teríamos esse anacronismo: alguém que se dedica a pensar o mundo a partir de um princípio único, o desejo, e também a propor a imanência do desejo, que a tudo se conecta, contra o seu amesquinhamento sob o regime capitalista. Pois o capitalismo também é uma máquina de produzir conexões, e isso tem sido enfatizado numa larga literatura sobre globalização, mas o faz de forma automática e restritiva, impedindo a ação criativa em nome da previsibilidade lucrativa. Embora meus interesses teóricos sempre tenham passado ao largo da difícil prosa deleuziana - difícil e surpreendente se a comparamos com o discurso cristalino de suas aulas -, vejo, nisso que entendo ser a base da contribuição deleuziana, possibilidades de análise bastante ricas quando consideramos nossos envolvimentos tecnológicos na contemporaneidade. E me explico imediatamente: sob a influência da cibernética, das tecnologias da informação e comunicação, as ciências hoje operam como máquinas desejantes, sob o impulso de decompor, atomizar, e ao mesmo tempo colocar tudo, mundo vivo e inanimado, o visível e o invisível, numa comunicação absoluta. Ao reduzir tudo a moléculas e átomos, a estruturas genéticas, a bits, e propor a produção de novos materiais, novas formas de vida, novos processos técnicos, as ciências promovem na contemporaneidade algo como uma orgia da matéria. E, ao mesmo tempo, a energia que acena com a realização desse desejo parece ser demasiado reduzida, demasiado territorializada pela máquina de produção capitalista, para poder realizar essas promessas de liberdade e de uma ética da imanência, tal como propunha Gilles Deleuze.

Não me entendam mal. Sou um intelectual para quem certos ecos da geração de 1968 soam já estranhos; sou demasiado tímido para as promessas do desejo; demasiado analisado, neurótico para me entregar as promessas da esquizoanálise. E se a filosofia deleuziana me coloca como alternativas uma filosofia que busca o sentido e outra que busca entender o mecanismo das coisas, não tenho dúvidas de qual seria minha opção: ainda sou um anjo caído, protestante que fui em minha formação, ainda tenho saudades de um sentido que oriente a vida. Entretanto, o vitalismo deleuziano lança um desafio teórico que acredito ser produtivo para alguém que, como eu, se dedica a pensar as novas tecnologias da vida. E o desafio inicial é precisamente entender que o vitalismo sempre propôs, de alguma forma, entender a máquina de produção da vida para tentar libertá-la do mecanismo, da repetição empobrecedora. Em Nietzsche, Bergson ou Deleuze, busca-se um princípio que estabelece a contingência, e não a lei mecânica, como momento ético de afirmação do ser humano como ser capaz da criação, de estabelecer o novo. Neste sentido, eles seriam bons companheiros para pensar as ciências da vida.

Inicialmente eu afirmaria, usando o jargão deleuziano a contrapelo, que há algo de ‘maquínico’ e ‘desejante’ na dinâmica do capitalismo contemporâneo que cabe analisar - Deleuze talvez diria que teríamos diante de nós apenas o desejo transformado culturalmente numa pulsão, em algo previsível, automatizado. O capitalismo transforma tudo para não precisar mudar os princípios destrutivos sobre os quais opera. Há aqui, portanto, a necessidade de um esclarecimento. Distinguindo entre um poder de “autoprodução” e um poder de “antiprodução”, para Deleuze: “Na produção, o desejo é inteiramente imanente no processo; não há capacidades não realizadas deixadas de lado, e uma máquina funciona tão bem quanto ela pode, consumindo e transformando a si mesma no processo – ela se afeta a si própria. Na antiprodução, entretanto, não há suficiente energia ou desejo para criar relações plenas, consistentes, e mutuamente afetivas entre as engrenagens [assemblages] que se encontram” (Goodchild, 1996, p. 73). Neste sentido, a máquina capitalista não pode ser plenamente desejante pois sua energia é constantemente reterritorializada de acordo com as necessidades de reprodução do sistema. O capitalismo não pode se abrir à contingência das conexões entre os seres humanos, por exemplo, ou destes com outros seres vivos, pois a pulsão que o guia se territorializa como necessidade de controle, como previsibilidade, como vontade de aceleração, como compulsão de extenuação das forças vitais.

Ao longo dos últimos dez anos, venho insistindo na importância da cibernética para entendermos tanto os elementos “desterrritorializadores”, nômades, quanto os elementos “reterritorializadores” das novas tecnologias da vida. Primeiro, há sempre neste contexto a tentativa de decompor a vida, a matéria, nos elementos básicos constitutivos. Se na teoria da comunicação, como bem sabemos, esse elemento é o bit, para a biologia molecular é o gene, a sequência de DNA; na nanotecnologia, teríamos o átomo, a estrutura nanométrica. A pergunta que a ciência contemporânea se faz é sempre: o que esses elementos básicos podem expressar, atualizar no mundo das coisas concretas, vivas? Pensada como codificação de uma língua franca, o que a estrutura do DNA pode expressar que a natureza, deixada à sua dinâmica própria, não pode? E novas propriedades a matéria estruturada em dimensão nanoscópica pode expressar? Assim, em todo caso, uma questão linguística, uma questão de sintaxe sempre se coloca. Que organização atômica, ou genética produz efeitos tais ou quais? Que combinações possíveis entre essas estruturas “linguísticas” básicas produzem resultados relevantes para a indústria de cosméticos, de fármacos, de comunicação?

Além disso, as máquinas que operam sob esse novo modelo técnico e científico devem ser entendidas, como as entende Deleuze, isto é, como sistemas abertos, inacabados, sempre aptos a estabelecer, com o meio exterior, relações que as transformarão. Um tear opera como um sistema fechado no sentido de que ela não se adapta por si às variações de seu meio ambiente; um computador, por outro lado, realizará tarefas bastante flexíveis - em todo caso, tarefas paras as quais for programado. Tomemos outro exemplo. Os medicamentos inteligentes produzidos pela nanobiotecnologia, tal qual mísseis teleguiados, são desenhados para identificar alvos específicos no organismo vivo e a partir dessa identificação estabelecer uma relação específica, atacar uma célula tumoral e apenas ela, por exemplo. A nanobiotecnologia tem se preparado teórica e tecnicamente no sentido de fornecer uma gama ampla de aparatos como esses capazes, não apenas de despejar fármacos no organismo, com os efeitos colaterais que esse método acarreta, mas de analisar, diagnosticar e entregar medicamentos em alvos pré-determinados. Um medicamento pensado como máquina inteligente, eis aqui a base de uma inovação considerável.

Para que isso ocorra, todavia, o próprio corpo não é mais pensado como conjunto de engrenagens, como o concebeu a medicina do século XIX, mas como território. Um território com sua defesas, topografias, invasores, por certo, mas sobretudo um território produzido por códigos, mensagens, pela ação de máquinas moleculares – uma topografia virtual. Assim, se nos séculos XIX e XX o corpo do operário deveria ser disciplinado para obedecer a comandos de forma previsível, eficiente e imediata, ou seja, se a disciplina militar era o paradigma de adestramento dos “corpos dóceis”, de que fala Foucault, na sociedade de controle, por outro lado, o corpo é pensado como um campo cujo produtividade, cuja performance deve ser constantemente intensificada. Se o corpo do soldado é o ideal para a da indústria dos séculos XIX e XX, o corpo do atleta, constantemente excitado pelas demandas da indústria do espetáculo, é o paradigma de corporeidade no contexto da sociedade da informação, do controle, ou como a queiram chamar. Em livros como Máquina de visão, Política e velocidade, Paul Virilio disse a esse respeito que aceitamos passivamente a aceleração sem sentido de nossas vidas, de nossos corpos, porque a sociedade da informação implodiu as distâncias, o tempo, deixando-nos sem profundidade reflexiva para resistir. Não creio que Virilio esteja certo, mas acredito que coloque questões que merecem nossa atenção.

Tomemos o conceito de doping genético como ilustração. Mediante a inserção de DNA transgênico no corpo do atleta, forçando-o a produzir substâncias que melhorem o seu desempenho: a produção de glóbulos vermelhos, por exemplo. Em fevereiro de 2010, a Folha de São Paulo publicava entrevista com Mark Frankel, “especialista em modificação genética e bioética da Associação Americana para o Avanço da Ciência”. Acerca da perspectiva do doping genético, ele declarava:
“Nós sabemos agora que existem genes com impacto na velocidade, nos músculos, na resistência. Acho que, nos próximos anos, vamos saber cada vez mais sobre eles e sobre outros genes. Mas ainda temos muito a aprender sobre o que os genes controlam no corpo humano. Além disso, existem outros fatores que importam no desempenho de um atleta, como o tipo de vida que ele tem, o seu treinamento. Mas a comunidade olímpica precisa estar preparada para o próximo grande passo do doping, que envolve os genes. Até onde sabemos, o doping genético ainda não aconteceu, mas vai. É inevitável.”1

Mais recentemente, li na Internet que cientistas alemães já haviam descoberto um método de identificar esse tipo de doping com uma margem de segurança de até dois meses. As experiências de terapia genética, até poucos anos, tinham redundado não apenas em fracassos, mas em desastres. Geralmente, o vetor de introdução da informação genética desejada no organismo sob intervenção terapêutica eram vírus, o que acarretava em reação sistêmica do organismo ao procedimento. Os pacientes submetidos a tal procedimento morriam sangrando por todos os poros. Hoje, a nanobiotecnologia tem auxiliado a criar processos de intervenção menos arriscados. Mas é curioso que um número considerável de avanços no campo das biotecnologias sirvam, ao mesmo tempo, para corrigir configurações orgânicas que poderíamos considerar patológicas e para intensificar a produtividade, a performance do corpo humano. Pensemos nas promessas da terapia gênica, por exemplo, mas também no uso que hoje damos a medicamentos como o Viagra, ou a Ritalina (FERREIRA E SILVA, 2011).

Em todo caso, o corpo pensado como território, ou um ciberterritório, é passível de uma desterritorialização profunda com relação aos processos ditos naturais. E há neste contexto, evidentemente, oportunidades consideráveis para a saúde humana, para a melhoria das condições de vida no planeta na exata medida em que nos damos conta daquilo que talvez Deleuze chamasse de intensidade do desejo de estabelecer conexões inusitadas entre os organismos vivos. O mapeamento do genoma humano serviu para mostrar que sem nos apropriarmos de sequências genéticas de certas bactérias, por exemplo, jamais seríamos os seres que somos. Temos aqui efetivamente uma lição importante a aprender no que diz respeito ao vínculo fundamental que temos com o meio ambiente, com o planeta, com os seres vivos. Podemos aprender essa lição? Sob a territorialização do capitalismo contemporâneo, todavia, os corpos são compelidos não ao prazer, à possibilidade de fazer nascer a diferença, à ação criativa, mas à agitação constante, a super-excitação vazia, ao automatismo.

O que pretendemos mostrar nesta breve comunicação é precisamente como esse processo duplo de desterritorialização e territorialização é produzido na biologia molecular no Brasil. Faremos isso operando uma análise que se opera em dois planos: buscamos entender, por um lado, como a ciência elabora uma compreensão de corpo em que esses dois movimentos prevalecem; buscamos entender, por outro, como a própria prática científica estabelece essa dupla dimensão.
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1 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u694117.shtml