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terça-feira, 15 de novembro de 2011

Compreensão antropológica e objetivação participante: mais um estudo de cazzo sobre a sociologia reflexiva de Bourdieu



O delicado equilíbrio entre a objetividade e o tornar-se nativo na compreensão da alteridade


Por Gabriel Peters – Doutorando em Sociologia (IESP/UERJ)

O contato das sociedades ocidentais em expansão colonial e imperial com povos dotados de padrões de conduta significativamente diferenciados daqueles vigentes no Ocidente forneceu o impulso histórico à constituição da antropologia como disciplina intelectual. Esta elegeu aqueles povos como seu objeto de estudo, tomando-os como “primitivos” (em termos de uma concepção teleológica do desenvolvimento histórico), “simples” (a partir de um conceito de complexidade social baseado em determinados critérios analíticos, tais como nível de diferenciação institucional) ou ainda, mais recentemente, simplesmente como “outros” do ponto de vista sociocultural. É necessário advertir, entretanto, que, tal como acontece com sociólogos e filósofos, uma parte essencial do que fazem os antropólogos é definir e redefinir (ad infinitum?) aquilo que fazem. Nesse sentido, entraríamos em território muito mais controverso caso partíssemos desta quase consensual referência histórico-descritiva à antropologia como universo disciplinar e arriscássemos uma definição mais ostensivamente epistêmica. Por exemplo, a própria tese de que a antropologia estaria necessariamente voltada ao estudo da alteridade social e cultural (a ideia da antropologia como uma espécie de sociologia do outro, enquanto a sociologia seria algo como a antropologia do mesmo) parece por demais restritiva ao excluir de seu alcance a estratégia heurística de antropólogos como Louis Dumont, que mobilizam achados oriundos de seu trabalho de pesquisa em contextos sociais que lhes são estrangeiros para jogar uma luz nova e inesperada sobre o próprio universo sociocultural em que estão imersos (no caso de Dumont, o Ocidente moderno permeado pela ideologia individualista [e.g., Dumont, 1997; 2000]).

O caso de Bourdieu é algo similar. Foi após seu treinamento acadêmico formal como filósofo que ele se voltou para as ciências sociais, desembocando na sociologia em seguida aos trabalhos de investigação etnológica que dedicou à sociedade argelina, cruciais para a crítica imanente do estruturalismo que resultaria na sua teoria praxiológica do mundo social. A singularidade de sua trajetória intelectual teve como conseqüência um modus operandi sociocientífico que faz da “imaginação etnológica” (Kurasawa, 2004) um elemento constitutivo da própria sociologia. Como Dumont, Bourdieu passou a fazer uso de insights sobre a agência humana e a vida social obtidos no estudo de contextos sociais dos quais não era nativo para interrogar-se, de maneira mais reflexiva, crítica e criativa, acerca do próprio ambiente societário em que estava imerso. Um exemplo claro dessa manobra é o procedimento pelo qual o autor se apropria da tese durkheimiano-maussiana da correspondência entre estruturas sociais objetivas e estruturas mentais de percepção do mundo, transpondo-a da análise das chamadas sociedades “primitivas” para o próprio estudo da sociedade francesa contemporânea (Bourdieu, 2007), bem como do campo científico onde ele mesmo se situava como um “jogador” estruturalmente posicionado (Bourdieu, 1988).

Como membro orgulhoso de uma tradição de teoria crítica da dominação atenta aos mecanismos sócio-simbólicos por meio dos quais condições de existência historicamente contingentes são vivenciadas e reproduzidas como ordenamentos naturais e evidentes das coisas para o senso comum, sua obra dá testemunho de que uma percepção desnaturalizante das configurações sociais pode ser mais facilmente alcançada a partir do momento em que a cientista social torna-se capaz de situar-se, ao menos intelectualmente, em múltiplos universos de experiência humana. A passagem pela antropologia também é relevante para a reflexão sobre os desafios metodológicos colocados à interpretação dos estados subjetivos e manifestações comportamentais dos atores humanos. A antropologia cultural impôs aos seus praticantes uma tarefa semelhante àquela enfrentada pelos historiadores que serviram de base para as epistemologias da compreensão de Dilthey e Weber, qual seja, a penetração em visões de mundo que se apresentam ao pesquisador, de início, como estranhas e aparentemente ininteligíveis. O tocante (ou ao menos fofucho) discurso de Malinowski ao final de sua obra magna (1976) evidencia uma postura metodológica aparentada à visão diltheyana, postura que se reflete no seu compromisso último com a captação do “significado íntimo e...realidade psicológica de tudo que, numa cultura diferente, é superficialmente estranho e compreensível à primeira vista” (Op.cit: 374). Tal captação, continua o antropólogo polonês, estaria calcada na diligente coleta de dados propiciada pela imersão etnográfica, mas seria dependente também de certa disposição de espírito por parte do etnógrafo.

Segundo a leitura contemporânea de Geertz, o acento de Malinowski sobre as qualidades de sensibilidade necessárias à compreensão antropológica do ponto de vista nativo contribuiu para a criação de um mito: o “mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tato, paciência e cosmopolitismo” (1997, p.85). Ironia da história: a publicação póstuma e não autorizada de Um diário no sentido estrito do termo (Malinowski, 1997), em que o etnógrafo polonês dava livre curso à expressão de toda espécie de insatisfações intensas em relação aos nativos com quem convivia, serviu como demonstração acachapante da implausibilidade do mito segundo o qual o conhecimento da forma nativa de pensar e sentir o mundo deriva, em última instância, de “algum tipo de sensibilidade extraordinária” (Geertz, 1997, p.86). Rejeitado este caminho, resta a questão: “o que acontece com o verstehen [a compreensão] quando o einfühlen [a empatia] desaparece?” (idem). Substituindo qualquer concepção psicologizante de produtos culturais como expressões de intenções e qualidades mentais inefáveis por uma perspectiva textualista (Reckwitz, 2002, p.248; Peters, 2011: 324) que os toma em seu caráter publicamente encarnado em eventos, símbolos e condutas humanas, o antropólogo estadunidense ensaia uma resposta hermenêutica, concebendo o entendimento antropológico em termos de diálogo e tradução intercultural voltados ao ideal da “fusão de horizontes” (Gadamer, 1997, p.457) entre pesquisador e pesquisados.

A despeito de sua partilha do ceticismo de Geertz no que toca a artifícios empáticos como a “reprodução psíquica” (Dilthey) ou a “transferência intencional sobre o outro” (Husserl), Bourdieu rejeita não apenas a proposta geertziana, mas também, e ainda mais causticamente, as versões radicalizadas e pós-modernizantes do interpretativismo que desembocaram em uma estirpe particular de antropologia “reflexiva” (Marcus e Clifford, 1986). Animadas por “considerações falsamente sofisticadas sobre ‘o processo hermenêutico de interpretação cultural’ e a construção da realidade através da etnografia”, estas correntes teriam levado a “uma explosão de narcisismo” em resposta à “repressão positivista” (Bourdieu, 2003b, p.282) que outrora obstava a expressão narrativa da etnografia como experiência particular de uma subjetividade parcial e situada.

Opondo-se en bloc ao subjetivismo empático, ao dialogismo hermenêutico, ao objetivismo estruturalista e, finalmente, ao apelo à “reflexividade narcísica da antropologia pós-moderna” (Op.cit, p.281), o sociólogo francês advoga um procedimento de “objetivação participante” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.253; 2003b) baseado no diagnóstico sociocientífico das condições, inseparavelmente sociais e epistêmicas, de teorização e pesquisa acerca de um contexto sociocultural estrangeiro. Este caminho metodológico representa a aplicação específica, na investigação etnológica, da inflexão particular que Bourdieu empresta à reflexividade epistêmica nas ciências sociais, capazes de aplicar ao entendimento de si próprias os instrumentos de objetivação cunhados no seu interior para a elucidação de outras realidades empíricas (Bourdieu, 1993b, p.274).

Voltada, assim, à objetivação da relação subjetiva que o antropólogo mantém com seu objeto e das condições sociais de possibilidade de tal relação, a etnografia reflexiva advogada por Bourdieu não leva “a um subjetivismo relativista ou mais ou menos anticientífico” que deságua na tese derridiana de que “tudo é...nada além de...texto”. A objetivação participante é pensada, ao contrário, como uma estratégia metodológica para a conquista da “objetividade científica genuína” (Bourdieu, 2003b, p.282). O retorno reflexivo do sujeito objetivador sobre suas próprias categorias de entendimento, bem como sobre os interesses que motivam seu trabalho de objetivação, permitiria a ele controlar as influências distorcivas de tais pressupostos e interesses sobre o retrato do universo societário que ele pretende construir.

Nesse ponto, críticos poderiam evocar o lukácsiano Michael Löwy (1994), que comparou pitorescamente a ideia de que a objetividade do conhecimento poderia ser obtida através de um mero ato de boa vontade intelectual ao fantástico feito em que o famoso mitomaníaco Barão de Munchausen escapara do pântano em que afundava puxando a si próprio pelos cabelos. No entanto, uma vez que a auto-objetivação sociocientífica propugnada por Bourdieu não recorre à mera introspecção ou à apologia das boas intenções epistemológicas, mas a uma explicação-compreensão sociológica de si, ele poderia retrucar que os instrumentos de objetivação acumulados pela história da ciência social são como cipós ou galhos de árvores nos quais o estudioso pode se agarrar para sair do pântano de seus preconceitos sociocognitivos:
Tomar a inserção social do pesquisador como um obstáculo insuperável para a construção de uma sociologia científica é esquecer que o sociólogo encontra armas contra as determinações sociais na própria ciência que as ilumina, e portanto em sua consciência. A sociologia da sociologia, que permite mobilizar, contra a ciência que se faz, as aquisições da ciência já feita, é um instrumento indispensável do método sociológico: fazemos ciência – e sobretudo sociologia – tanto em função de nossa própria formação como contra ela” (Bourdieu, 2001: 5-6).
Para oferecermos um exemplo, vejamos as investigações de Bourdieu sobre as estratégias matrimoniais na sociedade Cabila (Bourdieu, 1977; Bourdieu, 1990b). Naturalmente, ele aqui denuncia com veemência a abolição fictícia da distância epistêmica e social entre pesquisador e pesquisados pelo mero recurso à observação participante, como se fosse preciso apenas uma intenção sincera para colocar-se em pensamento e experiência no lugar do nativo. O mestre francês afirma que o necessário para se “aproximar” verdadeiramente do nativo é objetivar reflexivamente todos os pressupostos tacitamente inscritos na própria situação de objetivação exterior e distanciada. Isto vale, em particular, para o abismo que separa o etnógrafo - que busca decodificar atos, eventos e símbolos por meio do entendimento explícito - e o nativo - um “ser-no-mundo” (Heidegger) continuamente engajado nas respostas às demandas práticas urgentes do mesmo, apoiando-se em um entendimento tácito, ao mesmo tempo infraconsciente e imediato, do universo em que está imerso. Estando fora do teatro do qual é espectador, o pesquisador estrangeiro está tentado a perder de vista as limitações analíticas acarretadas por essa distância, as quais ele só tem condições de superar retornando, por um esforço auto-reflexivo, à sua experiência de ator situado no seu próprio mundo – portanto, descobrindo o “nativo” dentro de si e inserindo em sua teoria da prática uma teoria da diferença entre um relacionamento teórico e um relacionamento prático com o universo social. A ignorância irrefletida de tal diferença leva o antropólogo projetar inadvertidamente sua relação desprendida com o mundo etnografado na mente do próprio nativo, o que dá ensejo, segundo Bourdieu, a diversas formas da “falácia escolástica” (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.123) - por exemplo, as caracterizações intelectualistas das motivações da conduta individual que assumem na teoria da escolha racional ou no “legalismo” artificial que supõe da parte dos atores uma conformidade consciente com normas explicitamente estatuídas (Bourdieu, 1990a, p.21).

Portanto, a “familiarização do exótico” reclamada para a apreensão do ponto de vista nativo deveria ser perseguida, segundo o sociólogo francês, não por meio da imersão empática pura e simples na sociedade indígena ou de uma situação hermenêutica de “fusão de horizontes” interpretativos, mas sim por uma objetivação participante, capaz de ultrapassar tanto a “imersão mistificada” quanto o objetivismo do “olhar absoluto” preconizado pelo seu mestre estruturalista Lévi-Strauss (Bourdieu e Wacquant, 1992, p.68). Além disso, o procedimento duplo de objetivação simultânea do objeto e da relação (social e epistêmica) do sujeito cognoscente com tal objeto não reclama apenas um novo percurso para a familiarização do exótico, no caso da investigação de contextos sociais estrangeiros ao cientista social. Ele também importa no processo correspondente de “exotização” ou estranhamento metodologicamente construído do familiar nas situações em que os pesquisadores estudam os próprios universos em que estão imersos - em particular, é claro, o terreno onde é constituído e atua o Homo academicus, título de um estudo (1988) que constitui, nesse sentido, tanto uma análise histórico-sociológica substantiva do mundo universitário francês quanto um exercício experimental de método.

Seja no caso da familiarização, seja no da exotização do objeto, o que está em jogo é a tentativa de explicar e explicitar as dimensões motivacionais e recursivas das práticas sociais que são invisíveis à cognição consciente dos agentes, precisamente por serem taken for granted, como diria Schutz. A dissolução da antinomia entre objetivismo e subjetivismo resulta, assim, em uma abordagem que combina ambas as formas pelas quais a sociologia buscou tradicionalmente iluminar o saber de senso comum: a) a objetivação de circunstâncias estruturais que influenciaram os atores a tergo, isto é, “pelas suas costas”, à revelia de sua volição e consciência, ou precisamente através da moldagem socializante de seus interesses volitivos e “hábitos diretrizes da consciência” (Mauss); b) a explicitação fenomenológica e discursiva de dimensões da motivação, da cognição e da conduta dos atores que operam em nível implícito ou tácito.

É claro que a proposta de Bourdieu não está isenta de problemas, mas, se ainda estiver vivo, falarei sobre isso em outro post.

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Bibliografia
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________Homo academicus. Stanford: Stanford University Press,1988.
________Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990a.
_______The logic of practice. Stanford: Stanford University Press, 1990b.
________Lições da aula. São Paulo, Ática, 2001.
_______Participant objectivation. Journal of the Royal Anthropological Institute, v.9, n.2, p.281-294, 2003b.
________A distinção: crítica social do julgamento do gosto. São Paulo/Porto Alegre: Edusp/Zouk, 2007.
BOURDIEU, P; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
CLIFFORD, J.; MARCUS, G. (eds). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986.
DUMONT, Louis. (1997), Homo hierarchicus. São Paulo: Edusp.
________(2000), Homo aequalis. São Paulo: Edusc.
GADAMER, H.G. Verdade e método. Petrópolis: Vozes, 1997.
GEERTZ, C. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997.
KURASAWA, F. The ethnological imagination: a cross cultural critique of modernity. University of Minnesota Press, 2004
LOEWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchausen. São Paulo: Cortez, 1994.
MALINOWSKI, B. Os argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
________Um diário no sentido estrito do termo. Rio de Janeiro: Record, 1997.
PETERS,G. Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu
--> http://uerj.academia.edu/Gabrielpeters/Papers/404388/Percursos_na_teoria_das_praticas_sociais_Anthony_Giddens_e_Pierre_Bourdieu . 2011. 
RECKWITZ, A. Toward a theory of social practices: a development in culturalist theorizing. European Journal of Social Theory, V.5, N.2, p. 243-263, 2002.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Pierre Bourdieu e Raymond Boudon : sacos da mesma farinha ?!


Tâmara de Oliveira


Outro dia, pesquisando sobre a segregação escolar na França, deparei-me com uma dessas declarações que fazem a gente matutar : o que esse cara está realmente querendo dizer com isso ? O cara foi François Dubet que, formado na trilha dos Novos Movimentos Sociais com Alain Touraine, mas há tempos voando muito bem na sociologia da educação por suas próprias asas, afirmou em entrevista, comme si de rien n’était, que Pierre Bourdieu (1964 ; 1970) e Raymond Boudon (1984) fizeram uma sociologia da educação sem atores sociais.
Uma declaração dessas a propósito de Bourdieu e saindo da boca de um ex-aluno de Touraine, vá lá : consigo imediatamente contextualizá-la e articulá-la às dificuldades que muita gente boa pelo mundo encontra diante do excesso de estrutura com o qual Bourdieu quis resgatar a dimensão construtiva dos agentes sociais (aproveito para declarar para todos os fins que não uso o termo agência porque me lembra banqueiro) na produção/reprodução social. Mas afirmar que o francês do individualismo metodológico fez uma sociologia da educação sem atores, já pede maiores explicações. E quando, ainda por cima, coloca-se esses adversários pouco cordiais como farinha do mesmo saco, assim sem mais nem menos, pode-se estar criando problema para pobres professores obrigados à explicação das diferenças entre a sociologia de Bourdieu e a de Boudon.
Mas a verdade é que, além de ser sociólogo respeitável, Dubet não é o único a aproximar esses dois. Leitores do Cazzo familiarizados com o MAUSS (Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales) já devem conhecer uma posição persistente de seu fundador, Alain Caillé, segundo a qual Pierre Bourdieu e Raymond Boudon, cuja oposição teórico-metodológica é a base do que aprendemos sobre eles na faculdade, possuem uma convergência essencial, relacionada ao que ele chama de virada individualista geral nas ciências sociais e na filosofia política, tornada visivelmente hegemônica a partir dos anos 1980. A primeira vez que tive conhecimento dessa posição de Caillé, meu problema foi o contrário  : falar em individualismo sobre Boudon pode até ser redundante, mas juntar Bourdieu a isso como se os dois fossem sacos diferentes de uma mesma farinha, pode abalar a reputação do sociólogo das estruturas estruturantes estruturadas (desconfio que Bourdieu revolve-se em sua sepultura até hoje, quando lembra do dito de Caillé).
Agora durma com um barulho desse : Dubet criticando os dois Bs por uma sociologia sem indivíduos ; Caillé criticando-os igualmente, por fazerem uma sociologia individualista ! Minha avó diria que é o comunismo chegando, tudo de ponta-cabeça, a bola de fogo descendo…Para escapar desse barulho é importante lembrar que indivíduo e individualismo são termos deslizantes, daqueles que exigem muita atenção para saber do que se está falando com eles.
Dubet estava falando antes de tudo em metodologia, de sua convicção de que a representação estatística dos indivíduos em escolarização foi um instrumento pertinente para estudar o que a sociedade faz com a escola (ponto de vista de Bourdieu e Boudon), mas não o que a escola faz com os indivíduos. Este último sendo o ponto de vista que ele e outros de sua geração teriam adotado em sociologia da educação, implicando em técnicas de pesquisa que partem diretamente dos próprios atores sociais – experiência, sentimentos, relações, motivações, enfim, uma metodologia de inspiração compreensiva e preferencialmente qualitativa, sem contudo renegar o quantitativo.
Ora, de fato o individualismo metodológico de Boudon que, em certo momento, foi explicitamente inspirado pela teoria dos jogos (Boudon, 1992), não é uma sociologia compreensiva e, embora as motivações dos indivíduos estejam em linha de frente em sua sociologia da educação (Boudon, 1984), elas são abordadas a partir de um pressuposto abstrato : o das escolhas individuais como causa e a reprodução social como efeito. Quanto a Bourdieu (1989 ; 1970 ; 1964), sua metodologia parte dos campos da ação e, embora os habitus dos agentes sejam socialmente estruturantes, o são no interior de campos estruturados que por sua vez estruturam os habitus (é inevitável para mim ter a sensação de círculo vicioso diante de Bourdieu). Num caso como noutro, por pressupostos diversos, a possibilidade metodológica de representar as práticas e as representações dos indivíduos em séries estatísticas está facilmente colocada.
Ora, Durkheim (1982) tinha a representação estatística dos fatos sociais como regra metodológica, justificada por uma concepção onto-epistemológica e, cá pra nós, obsessiva, sobre o necessário isolamento metodológico do coletivo, nas expressões individuais dos fatos sociais. A propósito, lembrei de um doutorando em sociologia que conheci quando eu também estava fazendo doutorado em Aix-Marseille, nos idos de 1999. Fazendo uma tese comparativa do ensino da sociologia em diferentes universidades européias, esse estudante francês costumava declarar hilário que a sociologia francesa, mesmo quando exibe desprezo pela herança durkheimiana, ainda era uma presa da sociologia de Durkheim. Será que a reflexão de Dubet sobre a sociologia da educação de Bourdieu e de Boudon refere-se a essa prisão – da qual sua sociologia mais compreensiva sentir-se-ia liberta ?
Em outros termos, não podemos esquecer que metodologia, base da declaração de Dubet, não é uma mera questão de técnicas de pesquisa ; ela envolve princípios onto-epistemológicos, base da posição de Caillé. Este, de fato, não está falando especificamente em metodologia mas em um axioma que, segundo ele, torna-se visivelmente dominante nos anos 1980 e contra o qual desde então se insurge o MAUSS :
Cette manière de penser était parfaitement congruente avec l'évolution récente de la sociologie dont je m'étais alarmé dans un article de Sociologie du travail : « La sociologie de l'intérêt est-elle intéressante ? » (1981) dans lequel je pointais la surprenante convergence, au moins sur un point essentiel, entre des auteurs en apparence diamétralement opposés : Raymond Boudon et Michel Crozier, du coté libéral, Pierre Bourdieu du côté néomarxiste. Pour les uns comme pour les autres l'intégralité de l'action sociale s'expliquait par des calculs d'intérêt, conscients pour les deux premiers, inconscients pour le troisième. Tous trois, par delà leurs divergences criantes, communiaient ainsi dans ce que j'ai appelé l'axiomatique de l'intérêt(…). Pour cette sociologie alors dominante l'homo sociologicus n'était au fond qu'une variante, un avatar ou un déguisement de 'homo œconomicus. Caillé, In : http://valery-rasplus.blogs.nouvelobs.com/archive/2011/02/27/10-questions-a-alain-caille.html

Raciocinando em termos construtivistas em sentido largo (em argumentação que nos remete imediatamente à dupla hermenêutica de que fala Giddens), o fundador do MAUSS entende ainda que tal axioma não se reduz a princípio de conhecimento, mas é também construtor de uma realidade social assentada sob o cálculo dos interesses individuais como fundamento das interações e estruturas sociais, em texto que faz da science économique standard um genuíno « objeto » da sociologia do dom, como abaixo traduzido:
A evidência histórica é que as ciências sociais bem menos interpretaram e descreveram o mundo moderno do que contribuiram à sua edificação e à sua transformação. Na feitura deste último, elas jogaram um papel que sem dúvida não é menos importante do que o do cristianismo na modelagem da Europa. Isso não é nenhum pouco contraditório com sua vocação de conhecimento. Pelo contrário. Há mais chances de se compreender e analisar melhor uma realidade para a qual nós contribuímos fortememente a criar, do que fatos totalmente estrangeiros. E aliás, o cristianismo também, como todas as religiões, não era exclusivamente prescritivo, ele oferecia igualmente uma explicação do mundo. A diferença, com certeza, é que as religiões subordinam todo objetivo de compreensão à enunciação de normas de conduta, que elas só emitem julgamentos de realidade desde que estas concordem e subordinem-se aos seus juízos de valor, enquanto as ciências sociais, quando desembocam em juízos de valor, frequentemente implícitos e não assumidos enquanto tais, entendem ou pretendem deduzi-los de julgamentos de fato, de realidade ou de racionalidade. Mas essa dependência proclamada da dimensão normativa à pretensão cognitiva não proíbiu às ciências sociais de jogarem um papel de parteiras simbólicas da modernidade(…)
(…)Nesse papel de parteiras da modernidade, nem todas as ciências sociais tiveram a mesma importância em todos os momentos e em todos os países. Considerando um período longo, digamos que dois séculos e meio, não há quase dúvida de que o principal papel, eminente, determinante, foi jogado pela ciência econômica. Melhor dizendo, pela economia política transmutada pouco a pouco em ciência econômica(…)
(…)Digamos as coisas mais simples e sinteticamente : o mundo moderno é, em larga medida, a realização do sonho (the dream come true), da profecia e da predicação da ciência econômica. Chegando até ao pesadelo, às vezes. E isso torna-se cada dia mais verdadeiro, em escala planetária, onde nada mais parece dotado de realidade, além dos constrangimentos econômicos e financeiros, da busca do enriquecimento pessoal e material. Face a estes, tudo – todo valor, toda crença, toda ação empreendida por ela mesma, para o prazer, toda existência que não é consagrada à busca da utilidade – tudo parece doravante ilusório, inoperante, sem valer à pena, supérfluo, irreal. (Caillé, 2007, pp. 6/7)

O que poderia haver de convergente no aparente paradoxo entre a declaração de Dubet (os dois Bs fizeram uma sociologia sem atores, logo, sem indivíduos) e a crítica de Caillé (os dois Bs tem em comum uma orientação científica subordinada ao axioma individualista que domina as ciências sociais e a filosofia política) ? Para tentar vislumbrar uma hipótese, continuarei citando longamente François Dubet e Alain Caillé, mesmo porque a preguiça agora não me permite argumentar mais livremente sobre eles – e preguiça é coisa que respeito cada vez mais. Primeiro Dubet, quando este fundamenta sua crítica ao princípio meritocrático da igualdade de oportunidades dos sistemas de ensino democratizados – a partir do caso francês, sua especialidade:
J’en ai tire deux conclusions. La première, c’est que dans une société non aristocratique, l’égalité des chances est le seul principe de justice sur lequel peur s’appuyer l’école : il faut bien que les individus se hiérarchisent selon leur mérite. La seconde, c’est que ce principe est extrêmement difficile à mettre en œuvre. D’une part, les élèves n’ont pas les mêmes chances au départ, en raison de leur origine sociale, de leur capital culturel, d’autre part, c’est un principe très cruel, qui dit aux bons « vous avez droit à tout » et aux mauvais « tant pis pour vous ».
On peut pondérer ce principe, en faisant par exemple valoir ce que John Rawls appelle le principe de différence : il faut faire en sorte que le déroulement de la compétition méritocratique ne dégrade jamais la sort des vaincus. D’où ma défense du collège unique, qui ne doit pas servir à sélectionner des enfants, mais à les amener tous au même niveau.
Ensuite, si les inégalités scolaires ne sont pas parfaitement justes, il est injuste qu’elles déterminent à leur tour les inégalités sociales. L’école ne devrait pas être la seule institution susceptible de distribuer les individus dans la société. Il y a des moyens de détendre un peu le jeu, comme par exemple le développement d’une véritable formation professionnelle, pour que les enfants qui échouent à l’école puissent se dire que leur vie ne s’arrête pas là.
Enfin, je m’inquiète actuellement du fait que l’école française n’a pas, ou plus, de projet éducatif. Les seules questions sont désormais : « les élèves ont-ils un bon niveau ? » et « la sélection est-elle juste ? » Ce que l’école fabrique comme individu, la totalité de l’échiquier politique s’en désintéresse. Pourtant, la seule manière d’éviter que l’école devienne complètement un marché serait de fixer à l’école des objectifs éducatifs : tout élève qui sort de l’école doit par exemple avoir le sentiment d’avoir de la valeur, ou être capable de s’exprimer en public sans avoir honte…( Dubet, 2008)
 
Agora Caillé, em texto coletivo intitulado Un quasi-manifeste institutionaliste :
Aucune communauté politique moderne ne peut être édifiée sans se référer à un idéal de démocratie. La caractéristique d'un régime et d'une société démocratique est qu'ils se soucient de manière effective de donner du pouvoir (empowerment) au plus grand nombre de gens possible et qu'ils le prouvent en les aidant à développer leurs capabilités. Aucune communauté politique ne peut être édifiée et perdurer si elle ne partage pas certaines valeurs centrales, et elle ne peut pas être vivante si la majorité de ses membres n'est pas persuadée - à travers quelque forme de common knowledge et de certitude partagée - que le plus grand nombre d'entre eux (et tout spécialement les leaders politiques et culturels) les respecte en effet. C'est le partage plus ou moins massif des valeurs communes qui rend plus ou moins fort le sentiment que la justice règne, ce sentiment qui est le ciment premier de la légitimité politique.
Si l'existence, la durabilité et la soutenabilité de la communauté politique ne sont pas considérées comme allant de soi mais, au contraire, comme quelque chose qui doit être produit et reproduit, alors il apparaît aussitôt qu'est nécessaire d'étendre la Théorie de la justice de John Rawls. Car il ne suffit pas de dire que les inégalités ne sont justes que dans la mesure où elles contribuent à l'amélioration du sort des plus mal lotis (même si c'est bien sûr tout à fait important). Il convient d'ajouter que les inégalités ne sont supportables que si elles ne deviennent pas excessives au point de faire éclater et de mettre en pièce la communauté morale et politique. Si la démocratie n'est pas vue seulement comme un système politique et constitutionnel, si on la pense en relation, de manière plus générale, avec la dynamique de la montée en puissance (empowerment) des gens, alors il ne suffit pas d'imaginer un système de division des pouvoirs et de contre-pouvoirs au sein du système politique (quelque nécessaire que ce soit par ailleurs), entre l'exécutif, le législatif et le judiciaire (à quoi il faudrait ajouter le quatrième pouvoir, celui des médias). Il est également nécessaire d'instaurer un système d'équilibre des pouvoirs entre l'État, le Marché et la Société ainsi que, du strict point de vue économique, entre l'échange marchand, la redistribution étatique et la réciprocité sociale. »

Democracia (ou sociedade não aristocrática), necessário controle institucional do mercado, desigualdades e justiça sociais e, teoria da justiça de John Rawls: eis alguns dos termos que aparecem tanto na argumentação ao mesmo tempo crítica e prescritiva de Dubet sobre o que a escola democratizada faz com os indivíduos (ponto de vista que, segundo ele, Bourdieu e Boudou teriam negligenciado metodologicamente), quanto na de Caillé para sustentar um projeto societal para além do dominante axioma indivualista do interesse (que, segundo ele, é uma convergência onto-metodológica entre os divergentes Bourdieu e Boudon). Minha hipótese é então a seguinte : a convergência entre Dubet e Caillé no que diz respeito às suas posições sobre Bourdieu e Boudon pode ser traduzida citando Adorno e Horkheimer (1978), num velho texto quase inteiramente impiedoso e unilateral contra a sociologia : « Quanto menos são os indivíduos, tanto maior é o individualismo ».
Com efeito, Adorno e Horkheimer afirmam ali que a disciplina sociológica, pretendendo libertar-se de todas as teleologias para conformar-se à verificação dos vínculos causais e regulares dos fenômenos sociais, abandonou o « impulso de possível transformação do SER, por obra do DEVER-SER, que é próprio da filosofia », dando « margem à sóbria aceitação do SER como DEVE-SER (Adorno/Horkheimer, 1978, p. 17). Todavia, apesar dessa crítica, esses autores reconhecem no mesmo trabalho que :
Sob a influência do liberalismo, da teoria da livre concorrência, surgiu o costume de considerar as mônadas como algo absoluto, um ser em si. Por isso nunca será demais realçar o valor da obra realizada pela sociologia e, antes desta, pela filosofia especulativa da sociedade, quando abalaram essa crença e mostraram que o próprio indivíduo é socialmente mediado ». (Adorno/Horkheimer, 1978, p. 47)

Em suma, quando Dubet critica relativamente e integra Bourdieu e Boudon argumentando que ambos fizeram uma sociologia da educação sem atores, incapaz de compreender o que os indivídos concretos tem na cabeça sobre o que a sociedade lhes faz, diria que ele está nos remetendo à pretensão da sociologia clássica, pelo menos àquela devedora do positivismo comteano que marcou Durkheim e a sociologia francesa posterior, de conformar-se à verificação dos vínculos causais e regulares dos fenômenos sociais. Por outro lado, quando Caillé os critica por participarem, de maneiras diferentes, do mesmo axioma individualista do interesse, diria que ele está nos remetendo à interpenetração entre dimensão normativa e dimensão cognitiva das ciências sociais, ao fato de que o conhecimento sociológico é inevitavelmente mediado pelas visões de mundo (Weber, 1992) do contexto sócio-histórico em que ele se desenvolve. Assim, embora Bourdieu, ao contrário de Boudon, sempre recusou-se teórico-metodologicamente a abordar os fenômenos sociais pelas escolhas individuais (além de ser um crítico vigoroso da sociedade neo-liberal), teve sua sociologia mediada pela hegemonia do princípio do cálculo dos interesses enquanto orientação normativa e cognitiva de seu tempo.
Concluo declarando que sei que este texto está confuso e que espero que algum leitor faça a caridade de apontar problemas. Escrevi-o porque considero que o tema é prometor e o Cazzo um excelente espaço para amadurecer idéias. Pretendo reler Boudon e Bourdieu, sobretudo quando escrevem sobre Durkheim, para esclarecer um caminho para um futuro artigo.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, T. / HORKHEIMER, M. Temas básicos de sociologia. São Paulo, Cltrix, 1978.
BOUDON, R. L’inégalité des chances. Paris : Hachette Littérature, 1984.
__________Tratado de sociologia.São Paulo: Jorge Zahar Editor, 1992.
BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Lisboa : Difel, 1989.
BOURDIEU, P. / PASSERON, J.-C. La réproduction – éléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris : Les Editions de Minuit, 1970.
CAILLÉ, A. et alii. Un quasi-manifeste institutionnaliste, suivi de Vers une économie politique institutionnaliste ? In : Revue du Mauss n° 30. Paris : La Découverte/MAUSS. Second semestre 2007.
DUBET, F. Déscolariser la société – Rencontre avec F. Dubet. In : Sciences Humaines n° 199. Article de la rubrique « Rencontre avec… ». Paris, décembre 2008.
WEBER, M. Metodologia das Ciências Sociasi (Parte I). São Paulo : Cortez, 1992.

domingo, 17 de abril de 2011

A sociologia reflexiva como ferramenta de autotransformação: Pierre Bourdieu e a política da vida


Por Gabriel Peters (IESP/UERJ)

Preâmbulo: o habitus e a estruturação das estruturas

A teoria da prática do saudoso Bourdieu carrega em seu núcleo uma hipótese comum a uma multiplicidade de perspectivas sociológicas e antropológicas contemporâneas. Trata-se da ideia de que as estruturas de personalidade de quaisquer agentes individuais são moldadas pela trajetória experiencial percorrida por estes agentes em contextos sociais específicos. Isto implica que o modo de “ser-no-mundo” (Heidegger) de qualquer ator traz necessariamente consigo as marcas das circunstâncias sócio-históricas no interior das quais se desenrola sua biografia. Tal moldagem social da subjetividade individual abarca tanto os seus aspectos volitivos – as vontades, intenções e desejos que os atores perseguem no curso de suas vidas – quanto recursivos – as habilidades cognitivas, expressivas e práticas que capacitam tais agentes a intervir sobre o mundo social.

A menção aos aspectos recursivos da subjetividade é fundamental para ressaltarmos que, na perspectiva de Bourdieu, a estruturação socializadora da personalidade individual não é apenas restritiva (i.e., uma fonte de proibições exteriores aos cursos de ação possíveis aos atores), mas também habilitadora, na medida em que fornece aos agentes um conjunto de recursos com os quais eles tornam-se aptos a contribuir para a reprodução ou transformação das formações sociais em que estão imersos. Esta ideia é centralíssima, por sua vez, para a tese de que a constituição dos indivíduos pela sociedade está dialeticamente articulada à constituição da sociedade pelos indivíduos. Na praxiologia estrutural bourdieusiana, uma versão retrabalhada da velha e venerável noção aristotélico-tomista de habitus desempenha precisamente este papel de mediação entre o individual e o social, designando uma “subjetividade socializada” (Bourdieu & Waquant, 1992: 126) que contribui, por sua vez, para constituir e reconstituir o próprio mundo social objetivo em que está imersa. A ênfase na circularidade do habitus perpassa toda a obra de Bourdieu, na qual o conceito retrata o princípio gerador, socialmente gerado, de práticas e representações; ou ainda, para citar um dos seus casos mais famosos (ou infames) de acrobacia estilística, como uma “estrutura estruturada predisposta a funcionar como estrutura estruturante” das mesmas estruturas que o estruturaram (Bourdieu, 1979: 72). Desse modo, a realidade social não é concebida por Bourdieu apenas como exterioridade (à maneira do Durkheim de As regras do método sociológico) ou interioridade (à maneira da sociologia fenomenológica de Schutz), mas simultaneamente como exterioridade objetiva e interioridade subjetiva; ou melhor – para tornar a pintura mais dinâmica e dialética, prestando de quebra uma homenagem a um estilo que rompe com todos os manuais jornalísticos de sanidade estilística -, como exterioridade objetiva subjetivamente interiorizada e interioridade subjetiva objetivamente exteriorizada.

O caráter tácito do habitus

Além de retratar a conduta individual como socialmente constituída e constituinte, a categoria do habitus aponta para o caráter predominantemente tácito ou infraconsciente dos motores subjetivos da ação humana. Através dela, Bourdieu sublinha o papel inventivo dos agentes na construção e reconstrução do universo social ao mesmo tempo em que sustenta, em conformidade com “o princípio da não consciência”, que o ator não possui um acesso consciente e reflexivo às “determinações internas e externas” que o levam “a agir como agiu, a pensar como pensou, a sentir como sentiu” (Lahire, 2004: 21-25). Com efeito, seria precisamente a “cumplicidade ontológica” entre estruturas objetivas e subjetivas o que tornaria possível que as diversas condutas fossem objetivamente orientadas para determinados fins sem que estes tivessem de ser explicitamente visados pelos indivíduos que as realizariam. Bastaria para isso que os mesmos atualizassem seus habitus (ou habiti, para latinistas ortodoxos) de maneira prático-intuitiva quando exigidos nas diferentes situações de sua existência social – daí a referência a um “senso prático”[1].

A insistência no modo pré-reflexivo e não discursivo de ajustamento criativo dos habitus às suas circunstâncias sociais de funcionamento implica uma rejeição vigorosa, na esteira de autores como Heidegger, Merleau-Ponty e Wittgenstein, dos retratos excessivamente intelectualistas das ações e motivações humanas. Seja no caso das teorias que concebem a conduta individual como movida pelo cálculo racional e consciente, seja no caso daquelas que a tomam como resultante da obediência explícita a normas de comportamento, o intelectualismo daria ensejo a modelos do agente humano que mais pareceriam “uma espécie de monstro com a cabeça do pensador pensando a sua prática de modo reflexivo e lógico montado sobre o corpo de um homem [sic, acrescentam as feministas] de ação engajado na ação” (Bourdieu & Wacquant, 1992: 123).

Habitus e reflexividade 1: o efeito de histerese

Diversos críticos de Bourdieu acentuam que não é preciso superestimar o grau de autotransparência motivacional dos atores leigos para chegar à conclusão de que sua ênfase sobre o funcionamento tácito do habitus, ainda que valiosa, leva-o a negligenciar o relativo controle reflexivo e consciente que aqueles atores podem exercer sobre suas próprias disposições práticas de conduta. Na maior parte de sua obra, Bourdieu permanece tremendamente cético quanto à possibilidade de que os próprios atores tematizem reflexivamente as propriedades de seus habitus e transformem-nas criativamente em certa medida. No entanto, ainda que ressalte ser o habitus o motor mais freqüente da ação humana, o autor não chega a negar a possibilidade de condutas causalmente eficazes motivadas por deliberações explicitamente articuladas na mente dos atores. Ele mantém, no entanto, que tal forma de comportamento dependeria de condições sócio-históricas específicas de possibilidade:
...o habitus é um princípio dentre outros de produção das práticas e, ainda que esteja indubitavelmente em jogo de maneira mais freqüente que quaisquer outros – ‘Somos empíricos’, disse Leibniz, ‘em três quartos das nossas ações’ –, não se pode descartar que ele possa ser substituído em certas circunstâncias – certamente em situações de crise que rompem o ajustamento imediato do habitus ao campo – por outros princípios, como a computação racional e consciente (Bourdieu, 1990b: 108).
As situações de crise de ajustamento a que o mestre se refere são por ele denominadas, sem medo de estranheza, “efeito de hysteresis”. As circunstâncias de histerese correspondem aos contextos de ruptura da cumplicidade ontológica entre habitus e campo, situações nas quais a ativação das disposições encarnadas no habitus é exigida em contextos diferentes daqueles que o produziram. Tais contextos sócio-históricos de desajuste entre as condições de produção e as condições de funcionamento do habitus constituem a fonte de mudança social mais discutida na obra de Bourdieu (como na sua análise do Maio de 68 em Homo Academicus). Do ponto de vista de suas concepções acerca das engrenagens que movem a conduta individual, essa análise também é elucidativa, pois a quebra da cumplicidade ontológica entre disposições subjetivas e condições objetivas do milieu societário abre espaço para que a conduta tacitamente motivada do habitus possa ser substituída por motivações reflexivas demandadas por aquela dissonância. Como um desafio prático colocado ao ator, esta última estimularia, assim, a recuperação discursiva e a crítica explícita do que até então tinham sido assunções “doxicamente” aceitas, a transmutação da praxis em logos, a passagem do senso prático à elaboração discursiva e à consideração consciente de alternativas de ação:

A crítica que traz o não-discutido à discussão, o não-formulado à formulação, tem como sua condição de possibilidade a crise objetiva, a qual, quebrando o laço imediato entre as estruturas subjetivas e as estruturas objetivas, destrói a auto-evidência no âmbito prático (Bourdieu, 1979: 169).

Habitus e reflexividade 2: a sociologia como ética e política da autotransformação

Mais importante para os propósitos deste texto, no entanto, é o fato de que, segundo o sociólogo francês, afora o descompasso histórico entre disposições subjetivas e circunstâncias objetivas, a tentativa de domínio reflexivo do próprio habitus também pode ser amparada pela própria sociologia quando esta é mobilizada como um ferramental de auto-análise:

... não apenas pode o habitus ser transformado praticamente (sempre dentro de fronteiras definidas) pelo efeito de uma trajetória social levando a condições de vida distintas daquelas iniciais, como também pode ser controlado por meio do despertar da consciência e pela socioanálise (1990b: 116).

O projeto de uma sociologia reflexiva, que Bourdieu considera como sua principal contribuição às ciências sociais, assenta precisamente na possibilidade de que disposições impensadas de pensamento e comportamento possam ser racionalmente controladas ao acederem ao nível da consciência. No âmbito epistemológico, trata-se de uma atualização sociológica da noção kantiana de crítica, originalmente concebida como a capacidade de reflexão do pensamento ou razão acerca de seus próprios pressupostos e limites. Tais pressupostos e limites são historicizados e sociologizados por Bourdieu, isto é, não mais pensados como propriedades inerentes a um sujeito “transcendental”, mas como resultantes da inserção do/a pesquisador/a em uma formação sócio-histórica que emoldura seu modus cognoscendi.

Ainda que, no mais das vezes, Bourdieu sustente a importância da reflexividade sobretudo como uma ferramenta metodológica indispensável ao trabalho sociocientífico, ele também veio a atribuir a esta um valioso papel ético-político. Trata-se precisamente de conscientizar os atores acerca dos determinismos sociais que pesam, externa e internamente, sobre suas condutas, abrindo aos mesmos “a possibilidade de uma emancipação fundada na consciência...dos condicionamentos por que se passou”; um conhecimento que poderia, ainda, dar ensejo ao cultivo reflexivo de novos habitus, isto é, de “novos condicionamentos duravelmente cunhados para contrabalançar...[os] efeitos” de uma socialização anterior (Bourdieu, 1999, p. 340).

Em virtude de suas óbvias intenções e implicações morais, o projeto sociocientífico de Bourdieu pode ser classificado como uma variante da “teoria crítica”, concebendo-se essa expressão no seu sentido mais abrangente, para além de sua redução à chamada Escola de Frankfurt. A noção de crítica suposta em sua versão de teoria crítica une o sentido kantiano de escavação sistemática de pressupostos do pensamento e da ação a um sentido mais afeito ao marxismo, associado ao desvendar de modalidades ideologicamente mascaradas de dominação e exploração. Isto porque as categorias de percepção e orientação da conduta que garantem a inteligibilidade do mundo social para os agentes são, na visão do sociólogo francês, as mesmas que os levam a naturalizar e essencializar as assimetrias duráveis de poder que perpassam esse mesmo mundo – precisamente o processo que ele batiza de “violência simbólica”, que forma com habitus e campo a Santíssima Trindade de conceitos da sociologia bourdivina.

Nesse sentido, a obra de Bourdieu pretende contribuir para a desnaturalização dessas relações de dominação, desnudadas como arbitrariedades históricas contingentes, falsamente travestidas como ordenamentos naturais das coisas para a (in)consciência comum. Com efeito, ainda que eu discorde, pelo menos a partir de uma mirada global sobre a sua obra, das tentativas de demonstrar que Bourdieu é um marxista em última instância (sic), a tentativa de expor como falso, porém ideologicamente funcional, o caráter de necessidade percebido em dadas circunstâncias sócio-históricas certamente aproxima-o de críticas marxistas da reificação, como aquelas levadas a cabo por Lukács e pelos frankfurtianos (Vandenberghe, 2009).

Seja como for, a diagnose sociológica das formas de dominação e violência simbólica, ao apontar para seus efeitos cognitivos, morais, emocionais e corpóreos nas próprias estruturas de personalidade (ou habitus) dos indivíduos, possui implicações inseparavelmente políticas e existenciais. No seu Esboço de auto-análise [2] , Bourdieu faz votos de que seus instrumentos sociológicos sejam utilizados como ferramentas de auto-reflexão e auto-ajuda, compreendendo-se essa última expressão, é claro, no sentido da tradição filosófica clássica de reflexão sobre os modos de aplacar o sofrimento e os caminhos da “boa vida” (Aristóteles), não daquela indústria bibliográfica contemporânea tão desprezada (não tão justamente, segundo Giddens [3]) por um contingente substancial de intelectuais:

nada me deixaria mais feliz do que lograr levar alguns dos meus leitores ou leitoras a reconhecer suas experiências, suas dificuldades, suas indagações, seus sofrimentos, etc. nos meus e a poder extrair dessa identificação realista, justo o oposto de uma projeção exaltada, meios de fazer e viver um pouco melhor aquilo que vivem e fazem (Bourdieu, 2005: 135)

A despeito da diferença de teses e métodos, a referência implícita à psicanálise na noção de socioanálise serve para manifestar o enraizamento comum no projeto socrático da autoconsciência como primeiro locus da liberdade, no propósito de expandir o nível da consciência humana para dimensões determinantes da sua conduta as quais, se deixadas intocadas por esse esforço reflexivo, permanecem escondidas, reprimidas, inconscientes, dissimuladas. No combate aos sofrimentos psíquicos derivados dessa condição, Freud havia erigido como princípio básico da terapia psicanalítica o imperativo “onde havia id, que passe a haver ego” (Wo Es war, soll Ich Werden). A premissa desse lema é: quanto menos conhecemos nossos impulsos inconscientes, mais somos escravos e joguetes dos mesmos, mais eles nos controlam sem que sequer saibamos disso. Nesse sentido, a primeira condição para o incremento da minha liberdade, concebida como capacidade de autodeterminação racional, consciente e deliberada, é precisamente o conhecimento das minhas disposições inconscientes de comportamento, dos móbeis que até então motivavam minhas ações e representações sem que a eles eu tivesse acesso consciente.

Sendo, como Freud, um racionalista ético tremendamente sensível aos obstáculos impensados à autodeterminação racional, Bourdieu persegue, no entanto, um inconsciente distinto daquele pensado pelo pai da psicanálise: a matriz socialmente interiorizada de onde florescem as ações que configuram nosso modo de ser no mundo, isto é, nosso habitus. Se, como afirma Durkheim, “o verdadeiro inconsciente é a história”, o auto-analista sociologicamente municiado pelo pensamento de Bourdieu conhece a si mesmo/a como “história feita corpo”, personalidade socialmente constituída, ser dotado de um habitus que, em princípio, o possui, mais do que é possuído por ele. A dimensão de desencanto dessa linha de análise é inescapável, dado que ela não nos pinta como seres irredutíveis ao mundo, mas mundanos, demasiado mundanos, moldados nos territórios mais íntimos de nossa personalidade por determinações sócio-históricas exteriores a nós, porém objetivadas na nossa subjetividade mesma.

Todas essas implicações podem possuir, entretanto, um caráter potencialmente emancipatório sob as lentes de Bourdieu, na medida em que esse esforço sociológico-reflexivo de “anamnese” (Platão) possibilita um trabalho de auto-reapropriação. Em uma esfera de realidade onde não estão em operação as leis trans-históricas da natureza, reconhecer as forças que agem sobre nós e, em particular, “dentro” ou “através” de nós, é adquirir uma ferramenta para fazer alguma coisa a respeito, agindo sobre ou contra tais forças. Trazendo a pretensão “clínica” ou “délfica” [4] para o campo das ciências sociais, Peter Berger viu nessa auto-reflexão potencialmente liberatória a própria razão de ser moral da Sociologia:

Voltemos mais uma vez à imagem do teatro de marionetes. Vemos as marionetes dançando no palco minúsculo, movendo-se de um lado para outro levadas pelos cordões, seguindo as marcações de seus pequeninos papéis. Aprendemos a compreender a lógica desse teatro e nos encontramos nele. Localizamo-nos na sociedade e assim reconhecemos nossa própria posição, determinada por fios sutis. Por um momento, vemo-nos realmente como fantoches. De repente, porém, percebemos uma diferença decisiva entre o teatro de bonecos e nosso próprio drama. Ao contrário dos bonecos, temos a possibilidade de interromper nossos movimentos, olhando para o alto e divisando o mecanismo que nos moveu. Este ato constitui o primeiro passo para a liberdade. E neste mesmo ato encontramos a justificação definitiva da sociologia como disciplina humanística (Berger, 1972: 194).

É inspirado pelo mesmo espírito que Bourdieu propõe a tese de que “a sociologia liberta libertando da ilusão de liberdade” (Bourdieu, 1990: 28). O verbo “libertando”, nesse caso, é tudo menos uma repetição pedante e desnecessária, pois comunica a idéia de que a possibilidade de liberdade oferecida pela objetivação dos condicionantes societários do pensamento e da conduta vai além do resignado e impotente “reconhecimento da necessidade” (Spinoza/Hegel). Sendo as “necessidades” operantes no mundo social historicamente constituídas e reproduzidas através das ações e representações dos atores humanos, o reconhecimento daquelas pode dar ensejo ao seu questionamento, combate ou destruição. Ao amplificar a consciência dos determinismos que coagem a conduta social, sobretudo daqueles interiorizados nos corpos e mentes dos agentes, Bourdieu pretende oferecer armas eficientes de contra-atuação sobre essas estruturas e mecanismos coativos, contribuindo, assim, com a consecução de uma margem de liberdade em relação aos mesmos. Em uma singular combinação entre “pessimismo do intelecto” e “otimismo da vontade”, Bourdieu poderia chegar a dizer que sua busca incansável dos modos de constituição social da subjetividade - isto é, o “determinismo” de seu enfoque teórico-sociológico - é precisamente o que pode fazer de sua sociologia uma ferramenta libertária de resistência à dominação e de autotransformação individual. É nesse sentido que o projeto de sua sociologia reflexiva torna-se relevante não apenas para a política da Cidade justa, mas também, e inseparavelmente, para a ética da boa vida.

Notas

[1] Também seria útil traduzir a noção de “sens pratique” por “sentido prático”, apontando para a tentativa bourdieusiana de avançar uma compreensão não dualista da relação mente/corpo, refletida na própria duplicidade da noção de “sentido”, simultaneamente referente ao aparato sensorial por meio do qual nossos corpos experienciam sua imersão na realidade social (“sentido sensório”) e aos instrumentos simbólico-interpretativos que imbuem essa experiência de significados subjetivos (“sentido significante”).

[2] Graças à epígrafe do livro, “Isto não é uma autobiografia” (2005: 36), Bourdieu conseguiu produzir um caso raro de autobiografia não autorizada.

[3] Em A transformação da intimidade, o sociólogo britânico afirma: “Um recurso que utilizei extensamente talvez necessite aqui de algum comentário: a literatura de auto-ajuda. Desprezada por muitos, para mim ela oferece insights de outro modo impossíveis, e eu me coloco deliberadamente tão próximo do gênero quanto possível, no desenvolvimento dos meus próprios argumentos” (Giddens, 1993: 7). Naturalmente, é possível rejeitar como insatisfatórias algumas ou até a maioria das obras de um gênero de reflexão e discurso sem que se precise estender esse juízo ao gênero em si. Pensada no sentido lato, como uma reflexão sobre a condição humana orientada para fornecer aos indivíduos ferramentas existenciais com as quais eles possam aplacar algumas das suas fontes de sofrimento e obter um pouco mais de felicidade, a literatura de “auto-ajuda” não nasceu com Lair Ribeiro, mas constitui um universo de discurso que engloba parte do que a filosofia ocidental produziu de melhor ao longo dos últimos vinte e tantos séculos. 


Bibliografia
ALEXANDER, Jeffrey. “O novo movimento teórico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.2, 1987.
BERGER, Peter. Perspectivas Sociológicas. Petrópolis, Vozes, 1972.
BOURDIEU, Pierre. Outline of a theory of practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1979.
______Coisas Ditas. São Paulo, Brasiliense, 1990.
______“Reply to some objections”. In: In other words. Stanford, Stanford University Press, 1990b.
______ “Scattered remarks”. In: European Journal of Social Theory, v.2, n.3, 1999.
______Esboço de auto-análise. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
BOURDIEU, Pierre & WACQUANT, Loic. An invitation to reflexive sociology. Chicago, Chicago University Press, 1992.
LAHIRE, Bernard. Retratos Sociológicos. Porto Alegre, Artmed, 2004.
PETERS, Gabriel. “Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu”. Cadernos Sociofilo, 2011. Disponível em: http://sociofilo.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2011/03/Habitus-reflexividade-e-neo-objetivismo-Peters.pdf
VANDENBERGHE, Frédéric. A philosophical history of German sociology. London, Routledge, 2009.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Frédéric Vandenberghe sobre a globalização da sociologia



Frédéric é professor do Iuperj e trabalha com teoria social.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Entrevista com Bernard Vernier; novembro 2009



Por : Tâmara de Oliveira

Bernard Vernier é etnólogo e sociólogo, professor-pesquisador da Université Lyon II e está no Brasil entre novembro e dezembro de 2009 para uma série de conferências em três universidades : Universidade Federal de Sergipe, Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Seus principais trabalhos são : La prohibition de l'inceste et la dénégation des rapports sociaux. Critique de Françoise Héritier. Paris : Harmattan, 2009; Le visage et le nom. Contribution à l'étude des systèmes de parenté, Paris : PUF, 1999 ; La genèse sociale des sentiments: aînés et cadets dans l'île grecque de Karpathos, Paris : Editions de l'Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, C.N.R.S 1991. Ele concedeu-me gentilmente uma entrevista que cedo, também gentilmente, aos leitores do Cazzo.

TO : Suas pesquisas são estudos monográficos comparativos sobre diferentes sociedades vilarejas, objetivando porém a construção de hipóteses de largo alcance – incluíndo sua análise estatística da sociedade francesa contemporânea, sobre a qual o senhor afirma que a percepção das semelhanças entre crianças e parentes, longe de ser determinada apenas pelas características objetivas das crianças, é inconscientemente também estruturada por certos princípios (ao mesmo tempo cognitivos, afetivos e práticos) relacionados ao sistema de parentesco. O senhor sustenta essa abordagem em nome da interdependência epistemo-metodológica entre a sociologia e a antropologia. Poderia nos explicar como o senhor pensa essa interdependência ?

BV : Pierre Bourdieu denunciou frequentemente o caráter artificial da separação entre a antropologia e a sociologia. Ele demonstrou isso amplamente pelo exemplo de seu próprio trabalho. Foi a partir de seus estudos kabyles (admirados pelos antropólogos) que ele forjou a teoria do habitus e da ação humana que está no centro de sua sociologia. Seu trabalho sobre o celibato no Béarn (região onde ele nasceu) foi saudado como uma obra-prima de análise sócio-antropológica, utilizando ao mesmo tempo métodos estatísticos e observação participante – considerados, à época, como métodos de duas disciplinas diferentes. Sabe-se que a História, desde o movimento dos Anais, tem sido fortemente marcada pela antropologia. Sobre Bourdieu, pode-se com certeza dizer que ele é o mais antropólogo dos sociólogos. Poderíamos das inúmeros exemplos disso. Darei dois : sua análise das funções das grandes escolas e de suas classes preparatórias, tomando emprestado muito da análise dos ritos de iniciação feita por Van Gennep ; igualmente, sua preocupação em levar em conta a gênese social das categorias cognitivas. Esquece-se muito isso, mas Bourdieu foi muito influenciado pelo estruturalismo de Lévi-Strauss. Aliás, ele reivindica para si mesmo um estruturalismo genético que, diferentemente de Lévi-Strauss, analisa a gênese social das estruturas (inclusive das estruturas mentais, como as categorias do julgamento professoral, etc.) Aluno de Bourdieu, eu interiorizei sem esforço essa complementaridade fecunda entre duas abordagens. Eu inclusive fiz o esforço de sociologizar a bela análise do sentido da honra de seus estudos kabyles, mostrando que eles mantinham-se sob uma certa relação culturalista e que o sentido da honra pode variar segundo características sociológicas. Na ilha graga de Kárpathos o sentido da honra não é o mesmo, segundo se é primogênito ou caçula, camponês rico ou pobre. Falando rapidamente, a separação entre a sociologia e a antropologia constitui um obstáculo real para o progresso das ciências sociais. O sociólogo não pode encontrar melhor meio para escapar da cegueira à qual tende a condená-lo a imersão na sociedade que ele estuda que o de operar um desvio pela análise de uma das sociedades que interessam aos etnólogos. Quanto a estes, não há melhor meio para dar às suas descobertas seu verdadeiro alcance e para se curar da ilusão nociva segundo a qual eles estudam sociedades e práticas radicalmente diferentes que o de reinvestir, as questões e as problemáticas que eles elaboraram durante o estudo de uma dessas sociedades ditas exóticas, sobre sua sociedade de origem.

TO : O senhor sustenta que seu estudo sobre a gênese social da percepção das semelhanças entre crianças e parentes é um prolongamento do trabalho durkheimiano de Bourdieu, sobre as relações entre as estruturas sociais e as estruturas mentais. Como o senhor descreveria as relações teóricas e metodológicas entre Durkheim e Bourdieu ?

BV : Eu não posso responder realmente a essa questão de história das ciências – que merece uma reflexão muito aprofundada em poucas frases. Parece-me que Bourdieu tinha a mesma confiança contagiosa que Durkheim na possibilidade da sociologia explicar o mundo – aí compreendendo o mundo mental e afetivo. Durkheim dizia mais ou menos o seguinte : não é a existência anterior dos sentimentos familiares que explica a família, é a família (sua estrutura) que explica os sentimentos familiares. Seria necessário examinar as relações entre a noção de habitus e a extrema importância dada por Durkheim à socialização. Como o Durkheim de O Suicídio, Bourdieu esforça-se em utilizar as estatísticas de maneira demonstrativa – e não somente ilustrativa. Mauss, o sobrinho de Durkheim, quando analisa o dom nas sociedades primitivas, parece-me ter anunciado a superação, desejada por Bourdieu, entre subjetivismo e objetivismo. Sua análise faz-se ao mesmo tempo em termos de estrutura (ele extrai a noção de troca) e de práticas (existem de fato dons e contra-dons que precisam ser explicados pelos interesses em jogo). Mas vocês sabem que Bourdieu se reclamava também de outros mestres (Marx, Weber, etc.)

TO : Em seu último livro (VERNIER, B. La prohibition de l'inceste. Critique de Françoise Héritier. Paris : l'Harmattan. 2009), apresentando a herdeira de Lévi-Strauss na França como aquela que reproduz, sobre o incesto, o mesmo erro universalista/substancialista que seu mestre cometeu sobre a teoria dos matrimônios, o senhor afirma que há uma razão metodológica e uma epistemológica que explicam esse erro. Poderia nos explicar isso ?

BV : Quando eu falo dos erros metodológicos e epistemológicos de Françoise Héritier, eu quero dizer o seguinte : essa antropóloga afirma muitas vezes, em seu livro As Duas Irmãs e Sua Mãe que é preciso « escutar o que as pessoas dizem ». É um excelente princípio metodológico (mas também epistemológico). Ora, cada vez que as pessoas ou os textos explicam as razões políticas (no sentido largo), econômicas ou simbólicas das proibições com uma aliada, Héritier as invalida ou as declara secundárias. A Bíblia diz explicitamente em O Levítico « Não tomarás a irmã de sua mulher para fazer dela uma rival ». Françoise Héritier evacua o que põe problema à sua teoria, traduzindo rival por co-esposa e dá como razão da proibição o contato entre idênticos (duas irmãs), lá onde a Bíblia fala explicitamente de uma proibição pela rivalidade gerada entre duas irmãs. O caso das Danaídes (tragédia grega), do qual eu falei, é exemplar : Héritier pula uma frase que não cola com sua teoria. No caso dos Hititas, ela utiliza um verseto, o 191, interpretando-o mal (mulher livre tornando-se mulher não casada), embora o texto seja claro : trata-se de uma mulher livre em oposição a uma mulher escrava. E ela não leva em consideração os versetos seguintes que contradizem sua teoria. Seu erro epistemológico maior é, com certeza, o de dissolver a antropologia social na antropologia do simbólico. Na importância sem medidas que ela confere ao simbólico, pode-se ler a expressão de uma espécie de etnocentrismo profissional, ligado ao professorado de alto nível. Sua colocação entre parênteses das relações sociais repete de maneira caricatural a posição estruturalista da autonomização dos objetos de estudo (a língüa de Saussure, a troca das mulheres de Lévi-Strauss, etc.). Ela pretende ultrapassar Lévi-Strauss, conservando-o. Entretanto, afirmando que a razão da proibição do incesto de primeiro tipo (com consanguíneos) deve ser buscada no incesto de segundo tipo (pois o que é proibido no primeiro tipo seria também um contato entre idênticos), ela toma por totalmente secundária a noção de função social que Lévi-Strauss tinha dado, seguindo Santo Agostinho, à proibição do incesto e que ele utilizou (apesar de seu desprezo às explicações funcionalistas), inclusive em suas construções mais abstratas, como a de seu átomo de parentesco ou do equilíbrio lógico (duas relações positivas e duas negativas), tendo por função o equilíbrio da estrutura social. O que eu lhe reprovo [a Héritier], em sua análise dos textos, é de ter negligenciado os dois imperativos categóricos da análise : a regra do co-texto (não se seleciona a parte do texto que nos é cômoda) e a do contexto (deve-se referir os textos à sociedade e às relações sociais que os produziram e que lhes dão sentido).

TO : O senhor faz uma relação entre a recepção positiva extraordinária da tese « unidemensional e autonomizada » de Héritier sobre o incesto e, a visibilidade contemporânea da homossexualidade. Poderia nos explicar essa relação ?

BV : A questão das relações homossexuais é uma das grandes questões sociais do momento. Ela encontra sua expressão na rua, com a Gay Pride. Adotar o ponto de vista dos dominados (as classes populares com Marx há muito tempo, as mulheres e os homossexuais mais recentemente), fez a sociologia progredir e esses temas estão, digamos assim, no « ar dos tempos ». Então não é completamente impossível que exista um pouco de fascinação pela questão homossexual na insistência dessa antropóloga em descobrir relações homossexuais escondidas (por exemplo, entre Édipo e seu pai), lá onde o senso comum via apenas relações heterossexuais (a relação sexual de Édipo com sua mãe).

TO : Para cientistas sociais brasileiros, sua argumentação sobre a posição acadêmica de Françoise Héritier pode surpreender, sugerindo que o estruturalismo lévi-straussiano ainda é hegemônico no campo etnológico francês. O Senhor acredita que se trata realmente de uma verdadeira hegemonia (epistemológica e metodológica) ou trata-se apenas de hegemonia « das redes », quer dizer, de uma herança dos territórios acadêmicos graças a relações estratégicas entre antigos estruturalistas e jovens pesquisadores – no fundo indiferentes às implicações teóricas do estruturalismo?

BV : Em grande parte, vocês têm razão. Ainda existe uma boa quantidade de pesquisadores estruturalistas. Mas a dominação do estruturalismo, declarada morta em Maio de 68, ainda existia institucionalmente de fato na França, até recentemente. Foi Françoise Héritier, discípula de Lévi-Strauss, quem lhe sucedeu como professor de antropologia no Collège de France. Lévi-Strauss elaborou sua teoria das diversas formas de troca de mulheres apoiando-se sobre a análise do que se chama as estruturas elementares do parentesco, onde existem cônjuges prescritos (sabe-se de antemão quem deve-se casar com tal tipo de parente ou membro de tal classe matrimonial). O livro O Exercício do Parentesco, aquele que tornou Françoise Héritier célebre, esforça-se em demonstrar que, como tinha suspeitado Lévi-Strauss, os sistemas de parentesco semi-complexos (que funcionam como o nosso, sob proibições e não sob obrigações, mas onde as proibições recaem sobre numerosos grupos de parentes), conhecem as mesmas formas de trocas que os sistemas elementares. Isso ampliava consideravelmente o campo de aplicação da teoria lévi-straussiana, porque os sistemas onde os cônjuges são realmente prescritos (e não preferenciais ) são raros. Dessa forma, o cargo do Collège de France foi ocupado até muito recentemente por uma estruturalista. Parece-me que isso tinha uma certa influência sobre o recrutamento dos pesquisadores do Laboratório de antropologia social – que era o mais importante da França. Isso também exercia efeitos sobre o recrutamento dos professores da EHESS, onde as relações de força eram entretanto mais complicadas devido a importância dos historiadores, mas o candidato antropólogo era aconselhado a fazer uma visita ao professor do Collège de France para se assegurar de seu apoio. Isso também exercia influência sobre o conteúdo da principal revista francesa de antropologia, L’Homme. Darei apenas meu próprio exemplo : essa revista recusou publicar o artigo crítico que eu enviei para explicar que a teoria de Françoise Héritier dava uma importância considerável à relação homossexual, sem se perguntar em nenhum momento se as sociedades consideravam essa relação como uma relação entre idênticos. Trata-se de detalhes significativos. Também quando eu publiquei meu livro sobre Kárpathos, La genèse sociale des sentiments en 1991, eu quis mencionar na apresentação que meu trabalho criticava o estruturalismo lévi-straussiano. O livro não foi censurado de maneira alguma, mas pediram-me encarecidamente para retirar essa menção « indelicada ». Mas isso refere-se à história das ciências sociais e o que eu digo é apenas uma impressão pessoal.
TO : O senhor seria um bourdieusiano “pur et dur”?

BV : Pierre Bourdieu foi um dos grandes sociólogos de seu tempo. Para mim, ele está um pouco para a sociologia como Proust está para a literatura. Um encontro raro entre uma grande sensibilidade e uma potente vontade científica. Mas não se deve jamais continuar prisioneiro de seus mestres. Para um discípulo, a crítica se faz principalmente de duas maneiras. Pela leitura intensiva da obra, permitindo reparar as contradições lógicas ; pelo trabalho de campo que às vezes traz um desmentido à teoria. Às vezes é o próprio trabalho de campo que, contradizendo certos aspectos da teoria, permite notar as contradições lógicas – foi o que aconteceu comigo com a noção de estratégia. Eu utilizei bastante essa noção em meu trabalho sobre Kárpathos. Mas eu vi claramente que os karpathiotas desenvolviam estratégias conscientes – enquanto Bourdieu falava mais frequentemente em estratégias inconscientes.

TO : Muito obrigada por ter estado conosco na Universidade Federal de Sergipe e por esta entrevista para os colaboradores do Cazzo. Esperamos seu retorno para falar mais especificamente da sociologia de Pierre Bourdieu.