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terça-feira, 5 de maio de 2015

AGORA ELETRÔNICA: algumas reflexões teórico-metodológicas

Jonatas Ferreira e Breno Fontes



No dia 20 de junho, estávamos lá, no centro do Rio de Janeiro, Esplanada dos Ministérios, na Conde da Boa Vista, Avenida Paulista, e num grande número de artérias vitais dos grandes centros urbanos do Brasil, confrontando o que surgia nas ruas com o que noticiavam as grandes emissoras de TV. Para quem não estava de alguma forma conectado ou conectada às mídias sociais que povoam a Internet, as manifestações pareceram como um raio em céu azul. Em alguma medida, todos compartilhamos certa perplexidade, todavia. Os governos federal, estadual e municipal, 60% dos domicílios que não têm acesso à Internet, ou os 45% dos indivíduos que nunca acessaram a Internet em suas vidas (ver http://www.cetic.br/usuarios/tic/2012/), e mesmo aqueles que foram às ruas, sensíveis portanto a esse tipo de mídia, não tinham uma ideia muito exata do impacto que a mobilização, até então predominantemente virtual, poderia ter na vida social e política de diversas cidades do país nas semanas que se seguiram. André Singer compara esses acontecimento a um abalo sísmico. “Porque em certo momento os protestos adquiriram tal dimensão e energia que ficou claro estar ocorrendo algo nas entranhas da sociedade, algo que podia sair do controle. Mas nunca restou nítido o que estava acontecendo” (Singer, 2013, p. 24). Atônitos também estavam e estão as grandes emissoras de TV brasileiras: um famoso âncora de telejornalismo chegou a condenar o que se convencionou chamar de 'vandalismo', mais especificamente, a depredação e queima de um carro da TV Record: era preciso que os manifestantes soubessem que as emissoras de TV têm um papel fundamental na divulgação desses protestos, ponderou o jornalista. Havia naquele comentário muita verdade e uma discussão premente a ser levada adiante. De um modo bastante contundente, era mesmo o lugar político que os meios de comunicação de massa ocupam nas sociedades contemporâneas que estava em questão naqueles protestos – e que ali, em meio a uma pluralidade de demandas, se traduzia na reivindicação de formas alternativas de encontrar e produzir informação, de tornar visíveis pautas políticas, de mobilizar.

(para continuar, clique no link abaixo)

http://www.revista.ufpe.br/revsocio/index.php/revista/article/view/405/331

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Religião e política: conservadores católicos e eleições presidenciais no Brasil


Por Péricles Andrade[1]


As campanhas eleitorais em 2010 foram pautadas fortemente pela expressão pública do religioso. As lideranças religiosas pressionaram os candidatos a se comprometerem a não promoção da descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia, com ênfase na defesa de valores cristãos. Quanto a esses compromissos, o final do primeiro turno foi marcado por uma séria de boatos e denúncias contra os candidatos à presidência, sobretudo no tocante às questões relativas ao aborto, à união civil homoafetiva e a implementação do III Plano Nacional de Direitos Humanos. No início do segundo turno estas tensões chegaram ao ápice. Os citados temas se destacaram nos meios de comunicação e nos programas de rádio e TV dos presidenciáveis, além dos inúmeros boatos espalhados nas mídias sociais. Mais do que nunca os discursos foram instrumentalizados pela religião, especialmente pela moral cristã, e novas aparições em cultos religiosos foram registradas e exploradas entre os presidenciáveis (MARIANO e ORO, 2010: 11-38).

Boatos e denunciais estiveram presentes no pleito, sobretudo na internet e nos templos, orquestradas por lideranças católicas e evangélicas, com mais ênfase à candidata Dilma Rousseff (PT). Essa sofreu fortes críticas durante toda a campanha por sua “biografia política pregressa”, por ter apoiado anteriormente a legalização do aborto e pelo fato de seu partido e seu governo defenderem o controverso III Plano Nacional de Direitos Humanos. Por motivos eleitorais, Dilma Rousseff assumiu a fé católica ainda no 1° turno, emitiu carta ao “Povo de Deus”, na qual pleiteou a oportunidade de continuar o projeto de Lula, para defender valores da cidadania, a "semente do Evangelho" e a família, prometendo manter a legislação atual sobre o aborto e censurar parte do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia, quando atentar contra as liberdades de expressão e religiosa (MARIANO, 2011).

Obviamente pela vitória no primeiro turno e manutenção da sua liderança nas pesquisas de intenção de votos, durante o segundo pleito em 2010 bispos e padre católicos, sobretudo do Regional Sul I da CNBB[2], fizeram oposição sistemática contra a candidatura de Dilma Rousseff. A própria Regional divulgou nota da sua Comissão Episcopal Representativa do Conselho Episcopal em 26 de agosto de 2010 na qual, a partir das sinalizações pró-legalização do aborto, adotadas pelo PT, orientava os fiéis católicos a votarem em candidatos contrários a “descriminalização do aborto”. Por outro lado, católicos famosos como Frei Betto e Gabriel Chalita se empenharam em favor da candidata do PT. Essa passou a ser classificada pelos opositores católicos como “ateia”, “a favor do aborto”, “responsável pela concessão de privilégios a grupos homossexuais” e por “representar risco de implantar uma legislação liberal sobre Direitos Humanos no Brasil”.

As práticas elencadas podem ser observadas a partir do blog Acorda, Canção Nova! De que trata o citado blog? O conteúdo é direcionado aos membros da Canção Nova (CN), incluindo religiosos e leigos, e aos católicos brasileiros. A partir dos enunciados das postagens é possível identificar seus propósitos. Em tom alarmante e de denúncia, o conteúdo questiona o apoio da Igreja Católica à candidatura de Dilma Rousseff na eleição presidencial em 2010. Pode-se dizer que o blog busca demonstrar aquilo que seria, na sua perspectiva, a “incompatibilidade entre ser católico e o apoio da CN a esta candidatura”, denominada como “grave erro” e “traição a Jesus Cristo e Sua Igreja” (acordacancaonova.wordpress.com).

O sentido combativo contido no blog é constituído por três estratégias. Em primeiro lugar, o foco recai num combate personalizado à Dilma Rousseff. Há um significativo esforço por parte deste coletivo religioso tradicionalista na construção de seu capital simbólico. A candidata é caracterizada como “ex-terrorista”, a favor da “descriminalização do aborto” e do “casamento gay”, “sem uma filiação religiosa definida”, “com dúvidas quanto à existência de Deus”, “não temente a Deus” e “ante-religiosa”. Algumas imagens foram modificadas, com tons irônicos e de deboche.

A estratégia utilizada para construção do seu capital político adota a reprodução de supostas entrevistas concedidas por Dilma Rousseff nas quais algumas frases lhe são atribuídas, tais como: “nem Jesus Cristo pode impedir minha eleição”, “nesta eleição nem mesmo Cristo, querendo, me tira essa vitória; as pesquisas comprovam o que eu estou dizendo, vou ganhar no primeiro turno”. Também estão postados links de vídeos, imagens e textos nos quais a candidata “supostamente” assegura seus posicionamentos. O blog também permite ao visitante o acesso a sua suposta “ficha policial” da citada candidata (acordacancaonova.wordpress.com).

Em segundo lugar, há um sistemático questionamento das relações estabelecidas entre a Igreja Católica e o Partido dos Trabalhadores (PT). O apoio ao católico é questionado quanto ao seu posicionamento a “favor do aborto” e do “casamento gay”, além de algumas proibições que estariam para serem implementadas: 1) manifestações públicas de católicos e evangélicos; 2) redução da presença cristã na mídia televisiva; 3) obrigatoriedade de formação em jornalismo para os religiosos que atuam na mídia eletrônica; 4) prisão para religiosos que cobrarem o dízimo; 5) cobrança de impostos para dízimos, ofertas e contribuições; 5) criminalização das pregações sobre “espiritismo, feitiçaria, pornografia, ateísmo e idolatria”; 6) punições para quem veicular na mídia sobre “práticas contrárias a Palavra de Deus”; 7) perseguição às lideranças cristãs que pregarem sobre “práticas condenadas pela Bíblia Sagrada (“homoafetivismo, idolatria e espiritismo”), não terão direito de se defender por meio de ação judicial”. Além dessas ações, o blog ressalta o estabelecimento do dia do “orgulho gay e que seja oficializado em todas as cidades brasileiras e comemorado nas Instituições de Ensino Fundamental, publico e particular. Todos os opositores deverão ser punidos com as penas da lei, multa e prisão”. Ressalta-se “que as Igrejas que se negarem a realização de solenidades dos casamentos de homem com homem e de mulher com mulher, estarão fazendo ‘discriminação’, sejam multadas, fechadas e seus responsáveis sejam processados criminalmente por descriminação e desobediência civil. Com pena de multa e prisão” (acordacancaonova.wordpress.com).

O capital cultural contido em Acorda, Canção Nova! está além da adesão de setores católicos à candidatura de Dilma Rousseff. O blog apresenta-se como uma matriz geradora de traços distintivos católicos a partir da sua perspectiva conservadora. Nesse sentido, dois indícios são basilares á compreensão da tentativa de definição de um estilo católico cruzadístico em relação às ideologias de esquerda. Questiona-se a adesão dóxica ao pensamento e aos seus partidos, em particular ao PT, por lideranças cristãs sacerdotais e leigas. Quanto a isso, apresenta-se uma “lista de Bispos, Padres, Freiras e Protestantes e Leigos que são terroristas comunistas infiltrados na Igreja Católica”. A denominada “sinagoga do satanás” está constituída por bispos, padres, monges, frades, cientista políticos, professores, cantores, assessores, freiras, dentre outros (acordacancaonova.wordpress.com).

O blog ainda contém, particularmente, mensagens e críticas à postura de lideranças e fiéis que compõe a Comunidade Canção Nova. A ênfase recai sobre as denúncias feitas por religiosos católicos em relação a “situação em que o Brasil está vivendo nas eleições de 2010”. Ressaltam-se as denúncias realizadas pelos padres José Augusto e Paulo Ricardo, além dos bispos Dom Beni, Dom Aldo Pagoto. Por outro lado, algumas lideranças da Canção Nova são acusadas de negligência, covardia e “traição”. O principal alvo das críticas é o então deputado estadual Gabriel Chalita, “engajado na Comunidade Canção Nova”. Novamente questões de ordem moral e sexual são pautadas, quando se questiona a defesa do citado deputado a candidatura petista, sobretudo no tocante a suas posturas em relação à legalização do aborto em casos de estupro e má-formação dos fetos.

A reaserção conservadora católica

Acorda, Canção Nova! pode ser classificado como um caso representativo do aguerrido ativismo político de representantes da ala conservadora, incluindo membros do episcopado, de lideranças regionais da CNBB, de sacerdotes e leigos do movimento de Renovação Carismática Católica (RCC). Desde o final da tutela militar (1964-1985) o protagonismo político católico brasileiro foi exercido pela ala dita progressista, que de forma mais ou menos pública apoiou Lula e o PT em seus respectivos pleitos eleitorais (ORO e MARIANO, 2010). O discurso explicitamente social e engajado dos católicos progressistas foi sendo confrontado com o discurso da emoção e da reafirmação dos valores e práticas religiosas tradicionais por parte da Cúria Vaticana e dos coletivos religiosos conservadores. Nos últimos anos com a clara emulação provocada pelo avanço pentecostal, o catolicismo deslocou-se ainda mais longe de identidade hegemonizada pelo discurso da libertação (BURITY, 2006).

Como pode ser observado no blog aqui analisado, a reasserção conservadora católica não rompe necessariamente com a política. Como destaca Júlia Miranda, com uma identidade confessionalmente definida, a Renovação Carismática Católica juntamente com outros setores conservadores e evangélicos, se posiciona no Congresso Nacional em relação a temáticas morais, atuando, por exemplo, contra projetos de lei que visam incorporar como direitos civis questões como casamento homoafetivo e legalização do aborto (MIRANDA, 1999). Enquanto o tradicionalismo religioso é marcado pela alienação política, a reasserção conservadora contida em Acorda, Canção Nova! apresenta claros traços de reacionarismo político (BURITY, 2006). Nesse aspecto, o capital cultural divulgado pautou religiosamente a campanha presidencial quanto ao debate secular em relação às áreas de saúde pública, de medicina e dos direitos reprodutivos, assegurando a moralidade cristã tradicionalista e estrita para o conjunto da sociedade, além de se opor à secularização do debate sobre a descriminalização do aborto, a criminalização da homofobia e ao tratamento racional e humanitário às mulheres que abortam (ORO e MARIANO, 2010).

O blog aqui analisado não é uma exceção nas eleições presidenciais em 2010. Em primeiro lugar, o mesmo é reflexo das tensões inerentes ao campo católico brasileiro. A primeira impressão que se tem a partir do seu capital cultural, da sua linguagem e imagens é de que o mesmo se constitui em algo despretensioso e sem importância. Ao contrário, sua constituição e veiculação se constituem num exemplo basilar da emergência de coletivos conservadores católicos na política nacional a partir da redemocratização.

Isso se evidencia, sobretudo, nas últimas duas décadas no Brasil com a constituição de uma política de aproximação do Estado brasileiro com os movimentos sociais ligados aos coletivos feministas e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Trangêneros (LGBTT). Como ilustrativo dessa afirmativa se constata a ocupação de postos no aparelho estatal, influência nas políticas públicas na área da saúde, dos direitos sexuais e reprodutivos pelos citados coletivos. Cada vez mais, temas polêmicos passam a compor a agenda política, tais como: descriminalização do aborto, união civil homoafetiva, criminalização da homofobia, inclusão de cirurgias de readequação sexual entre os serviços do SUS. Esta nova configuração no campo político institui novas tensões entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o Estado (MACHADO, 2012).

Cada vez mais se configuram tensões entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o Governo Federal quanto à reposição de temas de cunho moral e privado na agenda política da maioria dos grupos religiosos, a emergência de novos coletivos religiosos mais liberais (as chamadas “igrejas inclusivas”) e reposicionamento das estruturas eclesiásticas tradicionais (ativismo conservador), a tendência a judicialização dos conflitos sociais e a inclusão das campanhas eleitorais do combate ao aborto e as bandeiras dos movimentos LGBTT nas plataformas políticas de alguns candidatos, com amplo apoio das lideranças religiosas (MACHADO, 2012).

Obviamente sem estabelecer nenhum profetismo sociológico, é possível afirmar que as eleições presidenciais de 2014 também sejam marcadas pela inclusão do combate ao aborto e das bandeiras dos movimentos LGBTT nas plataformas políticas de alguns candidatos, com amplo apoio de religiosos conservadores. As tensões se constituirão em torno dos capitais simbólicos dos candidatos e das suas respectivas propostas políticas. Apesar da opção por uma separação flexível (PORTIER, , 2011) entre Estado e religião adotada no Brasil, as leituras de cunho religiosas relativas a questões de cunho moral e privada poderão estar no centro do debate. Pode-se afirmar que no pleito de 2014 os candidatos à presidência continuarão as disputas em torno do apoio de lideranças religiosas, marcando presença em templos, proliferando discursos marcados pela religião, incluindo temas religiosos nas agendas e sofrendo pressão da parte dos religiosos para que assumam publicamente certos compromissos morais e políticos.

Referências

ANDRADE, Péricles. Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil. _____; BURITY, Joanildo (orgs.). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011, p. 67-93.
AS ELEIÇÕES E A CRUZADA MORAL DE CATÓLICOS E EVANGÉLICOS. Entrevista especial com Ricardo Mariano. Disponível em: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia. Acesso em 12 de dezembro de 2013.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.
BURITY, Joanildo. Identidade e Política no campo religioso. Recife: Ed. da UFPE, 1997.
_____. Identidade e Política no campo religioso. Recife: Ed. da UFPE, 1997.
_____. Redes, parcerias e participação religiosa nas políticas sociais no Brasil. Recife: FUNDAJ/Massangana, 2006.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 32(2), 2012, p. 29-56.
MARIANO, Ricardo; ORO, Ari Pedro. Eleições 2010: religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, n. 18 (II), 2010, p. 11-38.
MIRANDA, Júlia. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do político. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 1999.
_____. A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato. In: ANDRADE, Péricles; BURITY, Joanildo (orgs.). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011, p. 35-66.
PORTIER, Philippe. A regulação estatal da crença dos países da Europa Ocidental. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 31(2), 2011, p. 11-28.
ORO, Ari Pedro; MARIANO, Ricardo. Eleições 2020: religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, ano 10, n. 16, jul./dez. 2009, p. 9-34.
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[1] Doutor em Sociologia (UFPE, 2006). Professor Adjunto IV na UFS, lotado no Departamento de Ciências Sociais, no Núcleo de Graduação em Ciências da Religião, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. E-mail: periclesmorais@hotmail.com
[2] O Regional Sul 1 é composto por 41 (arqui) dioceses e 6 Regiões Episcopais, divididas por 8 sub-regiões Pastorais: Aparecida, Botucatu, Campinas, Ribeirão Preto I e II, São Paulo I e II e Sorocaba (http://www.cnbbsul1.org.br/nossa-historia)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

e-Aulas da USP



A Universidade de São Paulo lançou, recentemente, um portal que reúne uma série de aulas das disciplinas mais diversas.

Inspirados em serviços já em uso por Universidades de grande reconhecimento internacional como a Harvard, Yale, Columbia, MIT e Princeton, estamos colocando à disposição de todos um novo serviço da USP, o e-Aulas. Este novo serviço expressa o reconhecimento por parte da Universidade de que uma de suas funções é a disseminação do conhecimento, permitindo que professores disponibilizem suas vídeo aulas, e que alunos acessem vídeo aulas de diversas disciplinas da USP. Ele também é aberto ao público. A motivação para o desenvolvimento e implementação do e-Aulas USP foi devido ao grande benefício que se observa com o consumo de objetos de aprendizagem em formato de vídeo disponíveis na Web, que tem demonstrado ser um grande aliado do aluno, que pode acessar este conteúdo de onde estiver. Através deste novo recurso esperamos contribuir também para a melhoria do processo ensino/aprendizagem da Universidade de São Paulo. Este sistema foi idealizado pelo Professor Gil da Costa Marques, atual Superintendente de TI da USP (Superintendência de Tecnologia da Informação – USP). Sua implementação foi coordenada pela Profa. Regina Melo Silveira da Escola Politécnica – EPUSP, e a implantação esteve sob a responsabilidade da equipe técnica da STI – USP). A STI e a USP estão oferecendo este novo sistema, e ainda oferece suporte ao professor que desejar disponibilizar ou que desejar produzir e disponibilizar vídeo aulas no sistema e-Aulas USP.

Ainda em seu início, as Ciências Sociais contam apenas com um curso na área de Ciência Política. Ministrado pelo professor José Álvaro Moisés, o curso intitulado "Qualidade da Democracia, Instituições Democráticas e Cultura Política: A Relação entre Confiança Política e Accountability". O vídeo postado acima é o primeiro de uma série de 18 e, de acordo com informações contidas no portal:

Trata-se de um curso de leituras em torno dos conceitos de qualidade da democracia, instituições democráticas e cultura política. O foco central da discussão são as relações entre confiança política e accountability. O objeto empírico da discussão é, por um lado, o fenômeno contemporâneo de desconfiança dos cidadãos de instituições políticas e, por outro, o desempenho das instituições de representação, assim como os efeitos de ambos para o funcionamento do regime democrático. Por uma parte, serão examinados os conceitos de cultura cívica e cultura política, qualidade da democracia e confiança política em sua relação com as instituições democráticas, com base na literatura especializada recente; por outra, será discutida a significação da evidência empírica que, desde há algumas décadas, aponta para a perda sistemática ou para a formação incompleta de apoio político dos cidadãos às instituições democráticas - tanto em países de democracia consolidada, como nos que se democratizaram a partir de meados dos anos 70, a exemplo do Brasil. O desempenho do Congresso Nacional será examinado como um caso especial em sua associação com a desconfiança política. O esforço analítico se orientará em sentido comparativo, buscando apontar o significado teórico das diferentes experiências de relação entre a democratização e o modo de funcionamento das instituições.

 Desejamos sucesso na empreitada e aguardamos ansiosamente os cursos na área de Sociologia.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Twitter Revolutions?


Por Robert J. Brym
Department of Sociology, University of Toronto
rbrym@chass.utoronto.ca

Pro-democracy protests broke out immediately after the 2009 Iranian presidential election. Many Iranians felt that rigging the results in favour of the incumbent, Mahmoud Ahmadinejad, was merely the latest indignity they had suffered at the hands of a repressive regime. In 2010 and 2011, similar protests spread throughout much of the Middle East and North Africa. Tunisia, Egypt, Bahrain, Yemen, Algeria, Jordan, Libya – all of these countries were rocked by protesters, many of them young and well educated, taking to the streets and demanding regime change.

Growing working class literacy allowed pamphlets and newspapers to spread socialist ideas in nineteenth century Europe. Similarly, with more than a quarter of the Middle East and North African population connected to the Internet, Twitter and Facebook were used to voice grievances, debate tactics, publicize atrocities, and plan demonstrations in many Muslim-majority countries between 2009 and 2011 (“Internet...,” 2011). Many American commentators on CNN, Fox News, and the major television networks called the uprisings “twitter revolutions.” Is the term justified?

There can be little doubt that social networking sites helped the uprisings crystallize and spread. However, it is easy to exaggerate their importance. Only .027 percent of the Iranian population had Twitter accounts in 2009, and most tweets concerning the uprising were in English and originated in the United States and other western countries. In Egypt in 2011, the government basically pulled the plug on the Internet, after which demonstrations grew and intensified (Gladwell, 2010; Rich, 2011). These facts suggest that it was not American inventions (Twitter, Facebook, the Internet itself) that propelled the pro-democracy movement in the Middle East and North Africa so much as the brutal facts of everyday life in the region: widespread poverty and unemployment, low upward social mobility, and lack of freedom. Social media helped, but they were only a small part of the story.

More generally, it is important to note that most Facebook friends are really acquaintances and most Twitter followers don’t know the people they are following personally. It is relatively easy to get such socially distant people on social networking sites to participate in certain actions – but only if participation requires little sacrifice. The Facebook page of the Save Darfur Coalition has nearly 1.3 million members but they have donated an average of just nine cents each to the organization (Gladwell, 2010). Big sacrifices in the name of political principles require strong social ties, not the weak ties offered by Twitter accounts and Facebook pages. Typically, when individuals join a social movement, they attract clusters of friends, relatives, and members of the same unions, cooperatives, fraternities, college dorms, churches, mosques, and neighbourhoods. This pattern occurs because involvement in a social movement is likely to require big sacrifices, and you need to be close to others before you can reasonably expect them to share your ideas and willingness to sacrifice for a cause (McAdam, 1982). Relying mainly on weakly tied members of a Twitter group is insufficient. Social movement success depends on the sacrifices of dedicated activists bound together by strong social ties.

References

Gladwell, Malcolm. 2010. “Small Change.” The New Yorker 4 October. http://www.newyorker.com/reporting/2010/10/04/101004fa_fact_gladwell (retrieved 18 February 2011).

“Internet World Statistics.” 2011. http://www.internetworldstats.com/ (retrieved 18 February 2011).

McAdam, Doug. 1982. Political Process and the Development of Black Insurgency, 1930-1970. Chicago: University of Chicago Press.

Rich, Frank. 2011. “Wallflowers at the Revolution.” New York Times 5 February. www.nytimes.com (retrieved 18 February 2011).

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Ahmadinejad e Obama ou o fardo da democracia de lobbies















Tâmara de Oliveira

Outro dia, conversando aqui com cientistas sociais sobre o ataque religioso-fundamentalista em nossa última campanha eleitoral, ataque que inevitavelmente chocara laicos tão ortodoxos como costumam ser intelectuais franceses, ouvi de um deles a apresentação de outra problemática sobre a sucessão governamental no Brasil: sua “preocupação” devido ao “acordo” do governo Lula com o Irã de Ahmadinejad e seus aiatolás. Fiquei passada. Constrangida mesmo, afinal de contas quem, vivendo na Europa, não sabe que o Irã é representado quase exclusivamente como um totalitarismo religioso fianciador do terrorismo islâmico internacional, a quem governantes democráticos não devem dizer nem bom dia ?

Mas eu tinha uma resposta na ponta da língua : acho até importante que a América Latina e outros emergentes baguncem um pouco a geo-política no oriente médio, já que Israel parece-me uma democracia que cai há um bom tempo em armadilhas do fundamentalismo religioso e, considerando os efeitos geo-políticos da aliança EUA/Israel e da culpa européia pelo nazismo, isso prejudica inclusive a sustentabilidade de Israel. Todavia, o risco de que com essa resposta eu fosse acusada imediatamente por anti-semitismo-de-esquerda, era grande demais. Preferi então temperar a goela com o vinhozinho nacional deles (a França ainda tem seus encantos) e responder constrangida que as relações Brasil/Irã não implicam em afinidades entre o governo brasileiro e o fundamentalismo islâmico e que, além disso, as prioridades brasileiras são outras. Mas fiquei com aquilo atravessado na garganta. Haja vinho francês !

sábado, 23 de outubro de 2010

Entre a Inclusão e a Democracia Digital: a atuação do Estado e do terceiro setor em comunidades pobres da Região Metropolitana do Recife



Jonatas Ferreira e Maria Eduarda da Mota Rocha

Introdução


Na análise da desigualdade, as ciências sociais têm operado ao longo dos anos vários recortes, tais como renda, etnia, acesso ao trabalho, participação política. A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação, especificamente computadores pessoais, Internet, mecanismos portáteis de armazenamento de dados, como pendrives, ipods, CDs regraváveis, entre tantas outras possibilidades postas pela tecnologia digital, uma nova forma de desigualdade surgiu. A acumulação histórica de capitais econômicos, culturais e sociais dos diversos atores sociais, como era de se esperar, vem determinando padrões qualitativamente diferenciados de acesso a estes recursos. Não parece casual, portanto, que em 2007 apenas 24% dos domicílios brasileiros tivessem computador – desse total, apenas 3% representavam domicílios com renda até R$ 380, valor que alcança os 72% quando consideramos domicílios com renda igual ou superior R$ 3.801. O acesso à Internet traz à tona uma realidade ainda mais constrangedora: apenas 1% das famílias que sobrevivem com até um salário mínimo tinham acesso à grande rede. Em geral, esse problema tem sido tratado pelas políticas públicas a partir de uma série de conceitos que convergem para as idéias polares de ‘exclusão’ e ‘inclusão digital’. O ponto de partida desse tipo de abordagem é a idéia de digital divide, tal como formulada pela National Telecomunications and Information Administration, ainda na década de 90. A partir dessa perspectiva, a solução para o problema da desigualdade se apresenta como um percurso que os atores precisam fazer de um lugar vazio, de uma tabula rasa, para outro de prosperidade, numa clara reatualização da visão dos atores em posição subalterna como seres faltantes.


Ora, esse tipo de visão tem uma penetração significativa nas ciências sociais, bastando considerar a maneira como a tradição marxista, mas não apenas ela, percebeu ao longo dos anos o papel de forças sociais não diretamente ligadas ao processo produtivo. Visão semelhante dos mais pobres como “despossuídos” aparece na idéia bourdiana de “arbitrário cultural”, em que as práticas de consumo dos dominados são avaliadas sempre em função de uma hierarquia unificada cujo cume e eixo moral são necessariamente os gostos das classes dominantes. Em função deles as práticas culturais subalternas aparecem como imitações mal-sucedidas. É certo que tal perspectiva pode ser contrastada com propostas mais matizadas, como a de Alba Zaluar, ou a de Vera Telles e sua conceituação da pobreza como “experiência da liminaridade”, em que o esforço para superar uma definição puramente negativa da pobreza como falta não flerta com uma visão populista muitas vezes subjacente à celebração das competências das classes dominadas. Críticos das implicações políticas trazidas pela idéia de exclusão digital, tais como Mark Warshauer, Henry Jenkins ou Jeffrey Young1 acreditam que a “retórica da exclusão digital mantém aberta a divisão entre usuários de ferramenta civilizados e não usuários incivilizados. Bem intencionada como iniciativa política, ela pode propiciar a marginalização e ser fonte de privilégios em seus próprios termos”. Ainda assim, no tratamento conceitual e político da desigualdade digital, a idéia de “exclusão” continua presente.

[Esse texto foi publicado na íntegra na revista eletrônica Liinc em Revista. Click aqui para baixar todo o texto em PDF]

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O enigma da democracia


O novo livro de Luciano Oliveira, publicado pela Jacintha Editores, Piracicaba, 2010.

Em tempo: Segue o obituário de Lefort, publicado no Le Monde em 05/10 e traduzido por Tâmara Oliveira, seguido do prefácio do livro de Luciano Oliveira, por Marilena Chaui:

O filósofo Claude Lefort faleceu domingo, 03 de outubro, aos oitenta e seis anos. O desaparecimento do filósofo, cuja importante obra concentrou-se sobre a crítica do totalitarismo, foi anunciada pelo jornal Libération.

Nascido em 1924, professor e doutor em filosofia, tendo ensinado na universidade de Caen antes de se tornar diretor de estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales (EHESS), Claude Lefort inicia sua obra em 1968 com La Brèche, escrita com Edgard Morin. Tornou-se comunista durante a juventude sob a influência de seu mestre Maurice Merleau-Ponty, o que o aproximou dos trotskistas, dos quais entretanto ele se afastou depois, progressivamente. Processo já iniciado quando ele fundou a revista Socialisme ou Barbarie com Cornelius Castoriadis, esse afastamento tornou-se definitivo quando ele descobriu L’Archipel du goulag de Alexandre Soljenitsyne, sobre o qual ele consagrou um livro, Un homme en trop (Seuil, 1973).

A partir daí, Lefort estabeleceu laços bem amarrados entre o fenômeno totalitário e as carências da democracia. Para ele, a democracia, fruto da História, é uma sociedade « sem corpo », onde reina uma radical indeterminação, constantemente em desequilíbrio e que exige de todos invenção – como ele próprio desenvolveu em sua obra L’Invention démocratique (Fayard, 1981). A democracia não seria então « boa por natureza » e não garantiria espontaneamente liberdade e justiça para todos os cidadãos.


Prefácio, por Marilena Chaui

Claro, preciso e conciso. Estes qualificativos não são pequenos par se referir ao trabalho de Luciano Oliveira quando consideramos as peculiaridades do pensador a que este livro se dedica. De fato, como salienta Oliveira, Claude Lefort é “um autor dotado do senso da fórmula e do paradoxo”, um pensador que, em lugar de definições e respostas, nos convida à interrogação, um escritor cujas longas frases e longos parágrafos, num desenvolvimento espiralado interminável, exigem atenção redobrada do leitor, que se vê diante da complicação em ato. Em suma, um “pensador da indeterminação”.

Podemos descortinar neste livro três linhas de reflexão: uma delas, biográfica, acompanha a formação filosófica e política de Claude Lefort, a partir das ideias vindas da fenomenologia de Merleau-Ponty e do marxismo; uma outra, apanha a diferença entre Lefort e os modismos intelectuais franceses dos anos 1960-1980, quando imperavam o marxismo althusseriano e o fervor pelos “pensadores da suspeita” (Nietzsche, Marx e Freud); a terceira nos leva ao núcleo da obra lefortiana como pensamento da democracia. Essas três linhas se entrecruzam e incidem umas sobre as outras, dando-nos a ver um filósofo se fazendo (para usar a expressão merleaupontyana).

Da fenomenologia, Lefort conserva a interrogação do sentido ou a busca do ser político, do social, da experiência. Discípulo de Merleau-Ponty, desconfia das teorias, do “pensamento de sobrevôo” que pretende oferecer a explicação sistemática e completa da realidade, incapaz de ver tudo quanto não seja iluminado pela luz ofuscante irradiada dele mesmo. Do marxismo, guarda a exigência de compreender “a experiência de nosso tempo, a luta de classes e o desejo de emancipação, mas afasta-se de Marx não só porque considera impossível a supressão do conflito instituído pela divisão originária da sociedade, como também julga que suprimi-lo é cair no abismo totalitário.


segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A discussão da Ideia de democracia digital a partir da obra de Heidegger



Jonatas Ferreira

Introdução

Em Março de 2009, o Comité Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano de 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos a avançar na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs), embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados: i) “O custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à internet nos domicílios”; ii) “a falta de disponibilidade de internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; iii) a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à internet. A diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à internet era de 4 p.p. em 2005 e passou para 8 p.p. em 2008”; iv) o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; v) a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da internet”; vi) As lan houses ainda são a única possibilidade de acesso à internet para uma parte considerável da população (pobre) brasileira, o que significa pagar mais pelo acesso à internet quem menos pode pagar . Além de tudo isto, a velocidade de tranmissão continua lenta, o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma maior largura de banda.

Este quadro ajuda-nos sem dúvida a traçar os contornos mais gerais daquilo a que se convencionou chamar exclusão digital, e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento no Brasil. Evidentemente, este panorama requer uma análise ampla das políticas governamentais neste campo, do modo como os estados vêm assumindo os compromissos da Federação no que toca ao ingresso de largas parcelas da população na Sociedade da Informação, do modo como entidades da sociedade civil, organizações não-governamentais se têm dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que se refere à necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital, em particular nas regiões de maior pobreza, e entre as parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (Warschauer, 2003). A desigualdade nesse, como em outros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (Maciel e Albagli, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos refletir criticamente acerca do significado daquilo que se convencionou chamar inclusão digital, ou, mais propriamente, para que possamos tratar a questão política implicada na democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que e garantiria exactamente a democratização das tecnologias de informação e comunicação na sociedade brasileira? A resposta parece óbvia, mas não é.

(O artigo completo foi publicado na revista Análise Social. É só clicar para baixar o arquivo PDF)

domingo, 22 de agosto de 2010

A Democracia Internética




Fernando da Mota Lima

Embora há muito desejasse expressar pública e livremente minha opinião, somente agora, graças à generosa acolhida de dois ou três editores de blogues, posso fazê-lo com alguma regularidade. O fato cuja manifestação individual represento é uma das muitas consequências da democratização gerada pela internet. Durante muito tempo o exercício da opinião pública, também do debate e do confronto ideológico, foi privilégio dos poucos que praticavam o jornalismo impresso. Essa restrição tinha a virtude de funcionar como conduto seletivo. Apesar dos desníveis e privilégios de praxe, a hegemonia ou o prestígio da opinião refletia, no geral, os méritos e virtudes dos autores. Ficando no exemplo do Brasil, foi assim que se consolidou uma tradição de excelência na crítica de rodapé testemunhada por gente como Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e muitos outros.

O advento da televisão, que logo se tornaria veículo de comunicação supremo, notadamente num pais ainda assolado pelo analfabetismo, não abalou de imediato esse quadro. Pelo contrário, no curso dos anos 1950 e 1960 emergiram figuras que muitas vezes ditavam os padrões de opinião cultural: Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, estes vieram antes, Paulo Francis, Glauber Rocha, Merquior, Sérgio Augusto, José Lino Grunewald, Ruy Castro, O Pasquim, e o ainda onipresente Otto Maria Carpeaux pairando acima de todos com sua erudição estonteante. Mas logo a massificação provocada pela televisão acelerou-se, fruto imediato do capitalismo imposto pela ditadura, e logo em seguida a privatização do exercício do jornalismo. Noutras palavras, salvo as exceções de praxe, o exercício do jornalismo tornou-se direito e privilégio dos diplomados em jornalismo. Um dos problemas decorrentes da restrição imposta por essa lei corporativa reside no fato de que muita gente de talento comprovado, quando não superior, é impedida de escrever, de opinar em termos correspondentes ao do jornalista de ofício simplesmente por não ter um diploma. Ensinei sociologia da comunicação durante muitos anos na Universidade Federal de Pernambuco a alunos incapazes de escrever um parágrafo correto e legível. Mas um dia punham o diploma debaixo do braço e através de muitas vias, não poucas tortas, acabavam ditando opinião na mídia.

Por fim sobreveio a internet, a mais extraordinária revolução já ocorrida na história da comunicação humana. Sua força de difusão e desestabilização dos controles tradicionais é tão extraordinária que está arruinando jornais e veículos impressos de grande poder, assim como símbolos de autoridade intelectual, política, religiosa, moral... No caso, falar em revolução não é banalizar um termo já tão banalizado e desacreditado na história humana. A internet gerou condições objetivas para a generalização de processos democráticos sem precedentes. Como tudo, há aí muito de bom e de ruim, se me perdoam o lugar comum. Ressaltarei apenas uns poucos pontos que me parecem importantes.

Sartre observou certa vez que estávamos vivendo numa época em que se sabia de tudo, ou em que já não era possível esconder mais nada. E notem que o disse antes da internet. O que dizer hoje? De fato, hoje sabemos de tudo, pelo menos teoricamente. Escrevo nestes termos por considerar que é impossível um indivíduo saber de tudo. Mais grave ainda, há muitos que preferem não saber sequer o pouco que poderiam, pois acomodam-se na estupidez que tudo ignora e assim tudo aceita e todas as noites dormem em paz o sono alienado do gado tangido pelos donos da vida, como há muito dizia Mário de Andrade.

Outra coisa: a universalização da democracia midiática produziu inevitavelmente a babel das opiniões e dos costumes. Hoje todo mundo tem umas e outros e todos se sentem investidos do direito de exercê-los. Nada contra, pois continuo acreditando que a democracia é o menor dos males e o mundo, salvo o engano renitente dos otimistas, que não passam de pessimistas mal informados, é um mal sem conserto. Tudo que podemos e devemos fazer é torná-lo menos ruim.

A universalização da democracia internética, e portanto da opinião, acaba convertendo o cenário cultural num vale-tudo, ou terra de ninguém. Se todos têm direito à opinião, logo parece justo que todos opinem e todas as opiniões valham a mesma moeda. É aí que o cano estoura e a água suja, também a limpa, vaza por todos os espaços, que vão do megashow à universidade, dos salões supostamente educados ao bate-boca de botequim. Um pouco dessa água vaza, por exemplo, nas páginas do Cazzo, que ocasionalmente abriga artigos que assino. Mesmo eu, que raramente me pronuncio sobre temas polêmicos em tom idem, já saí de roupa suja na página de comentários onde o leitor exerce seu direito de opinar.

O livre exercício da opinião, que em princípio anula o princípio da autoridade, induz muitos ingênuos a suporem que agora fazemos o que queremos e pensamos o que nos convém. Os donos da vida, à falta de expressão menos imprópria, são os primeiros a difundir essa ilusão lucrativa para o balanço das suas empresas e a elevação das ações que negociam no mercado financeiro. Não se enganem. O espectro da informação, do intercâmbio e da circulação de ideias e mudanças sem dúvida alargou-se de modo inusitado, já o observei. Daí a concluir que agora somos todos iguais e que tudo vale tudo no reino da desigualdade e do privilégio, daí a passada é bem mais longa que a perna. É ilusório, por exemplo, supor que as figuras de autoridade social e cultural foram abolidas. O que mudou foi seu modo de ação, que foi despersonalizado. É isso o que explica a perda de poder das figuras de autoridade tradicionais como os pais e professores, além das prescrições antes impostas por instituições como a religião, a tradição, os agentes diferenciados pela idade ou o saber reconhecido dentro de determinados grupos. Reafirmo: não se iludam, pois a autoridade e seus artifícios de controle e poder mudaram de mão e de forma, mas continuam sendo autoridade, controle e poder. O problema é que se tornaram quase sempre invisíveis. Nessa medida, torna-se bem mais difícil identificá-la, a autoridade, para assim melhor combatê-la. Fomos liberados da autoridade doméstica e escolar, mas caímos nas mãos invisíveis e muito mais nefastas do publicitário e do formador de opinião, do pastor de auditório e do especialista armado com uma máquina de calcular.

Na babel em que vivemos e passamos a atuar culturalmente, o nó cego está na opinião relativa às artes e às ciências humanas. Como no caso somos sujeito e objeto, todo mundo sente-se à vontade para opinar sobre tudo. Explicando melhor, o objeto de saber do psicólogo, do sociólogo etc, é parte íntima e corrente da nossa experiência social. É por isso que todo mundo supostamente tem opinião pronta sobre qualquer questão religiosa, moral, estética... Não raro, um simples exame demonstra que muitas dessas opiniões não passam de preconceito grosseiro ou crendice assimilada de modo inconsciente no meio em que nos formamos. Uma das funções do saber crítico compreendido em sentido amplo é precisamente partir da varredura dessa névoa de lugares comuns que embaçam nossa percepção da realidade. O exemplo mais antigo e notório dessa saudável pedagogia é a chamada maiêutica socrática. Noutros termos, era o procedimento dialético adotado por Sócrates nos lugares públicos de Atenas onde sem reservas abordava alguém com quem iniciava um processo de perguntas e respostas que ia gradualmente expondo, sob a pele da suposta opinião refletida, os preconceitos e ideias feitas que entulham nossa consciência da realidade. Mas isso foi há muito, muito tempo e já não se punem seres perigosos como Sócrates com uma dose letal de cicuta. Saltando de volta para o presente, o limite irônico da nossa liberdade está no fato de repetirmos o publicitário que nos ensina a dizer: seja você mesmo, beba coca-cola.

No reino da democracia internética, todo mundo tem opinião ou assim supõe e assim se sente prontamente qualificado para exercê-la. É a nossa babel cultural, como antes salientei. Se Deus, segundo a tradição bíblica, não criou uma linguagem universal passível de forjar a concordância substantiva entre os seres humanos, o que dizer de mim? Diante disso, prefiro humildemente rematar o artigo propondo algumas perguntas cuja resposta deixo a critério do leitor. Quem discordaria de mim se eu afirmasse que Pelé é o melhor jogador de futebol do mundo? Quem afirmaria que a seleção brasileira tem algum perna de pau, mesmo quando a seleção é desclassificada? E mais: quantas pedras cairão sobre a minha cabeça se eu afirmar que Wave, Águas de Março ou Corcovado valem todo o rock do mundo? O que dirão certos leitores se eu disser que esse ruído repetitivo e grosseiro que sou forçado a ouvir nas rádios, ruas, supermercados etc nada tem a ver com música? O que dirá o leitor apaixonado por Paulo Coelho se eu disser que perto de Machado de Assis ele é apenas um escrevinhador de livros baratos que logo desaparecerão como desapareceram tantos best-sellers celebrados pela mídia, o mercado e o público desprovido de cultura literária? Pedras e tijoladas para a redação, por favor.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

E os "desaparecidos"? A transição ainda não acabou



Luciano Oliveira - professor de Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito do Recife; autor do livro Do Nunca Mais ao Eterno Retorno: uma reflexão sobre a tortura, São Paulo, Brasiliense, 2009 (2ª edição).

A recente decisão do STF no sentido de não se mexer na Lei de Anistia, pela folgada maioria de 7 votos a 2, põe uma pedra definitiva na questão da responsabilidade penal dos torturadores do regime militar, mas não encerra o assunto! A ditadura continua vagando como uma alma penada; e, como acontece com as almas penadas, só quando os militares pedirem reza é que o regime de 64 estará definitivamente concluído. A reza, naturalmente, deveria vir sob a forma de um mea culpa formal pelas atrocidades cometidas. Infelizmente, acho que é sonhar muito. Mas talvez possamos esperar que, definitivamente tranqüilizados quando à possibilidade de uma “revanche”, eles tenham agora a grandeza de abrir os arquivos, de dizer tudo o que sabem, de cooperar sinceramente com os esforços de se conhecer, finalmente, o destino dos desaparecidos.

Que outra pudesse ter sido a decisão da nossa Corte Suprema, nunca acreditei nisso. De resto, pessoalmente nunca fui simpático à revisão da Lei mais de trinta anos depois dos eventos que ela indubitavelmente cobre. Juristas de primeira linha e comprometidos com a causa dos direitos humanos - junto a quem, aliás, me alinho nesse engajamento - têm elaborado uma interpretação segundo a qual as torturas praticadas nos porões do regime não podem estar cobertas pela Lei nº 6.683/79, que anistiou os crimes políticos praticados no Brasil naquele período. Discordo. Afirmar que os crimes dos torturadores não foram crimes políticos, é fazer do coração tripas para demonstrar o que só pode ser “demonstrado” mediante sérias torções no bom senso! Para nossa desolação, o § 1º do art. 1º da referida Lei diz textualmente: “Consideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” - itálicos meus. Diante de tal literalidade, não vejo como sustentar a tese do crime não político. A estrutura repressiva montada no Brasil a partir de 1968, com a edição do AI-5, notadamente os sinistros DOI-CODIs, praticou crimes horríveis e hediondos. Mas qual foi a motivação de todo aquele horror senão política?... Num exercício jurídico penoso até de ser formulado, eu diria que torturadores que extorquiram dinheiro de familiares de presos, torturadores que estupraram presas sob sua custódia - e há relatos de que esse plus de abominação aconteceu! -, esses, eu diria, não foram anistiados! A sua motivação não pode ter sido política. Os epítetos de “monstro, desnaturado e tarado”, proferidos pelo ministro Ayres Britto, um dos dois votos vencidos no julgamento, cai-lhes como uma luva. Infelizmente, porém, estão todos acobertados pelos mais de trinta anos que já transcorreram e a prescrição que os beneficia. E continuo com a minha tese.

Além da letra da lei, todos que viveram aqueles anos sabem - e os que tiveram a sorte de vir ao mundo depois podem saber consultando a história do período - que a Lei foi feita para os dois lados. Revê-la agora é desconsiderar o contexto histórico e os que, naquele momento, negociaram e aprovaram a lei. A impunidade dos torturadores, por mais que seja pouco glorioso dizê-lo, foi uma das condições para que pudéssemos ter retomado a história brasileira das mãos dos militares. A correlação de forças ainda pendia tão fortemente para o lado da ditadura, que a punição dos torturadores não era uma reivindicação realista. A grande discussão da época referia-se aos presos condenados por “crimes de sangue”, que o projeto do governo deixava de fora. Pressionado pela “linha dura”, o Planalto não cedeu, mas pactuou a revisão de sua situação. De fato, quase todos foram soltos nos meses seguintes. Ninguém sabe o que teria acontecido se não tivéssemos tido a anistia naquele momento e não se pode contar uma história que não aconteceu. O que é possível afirmar com segurança é que, sem a salvaguarda dos interesses dos “revolucionários sinceros, mas radicais” - como dizia eufemisticamente Geisel para se referir à “linha dura” e seus torturadores -, não teríamos tido a anistia de 1979. O que veio depois é tanto apesar dessa história quanto graças a essa história...

Comentando a votação no STF, Paulo Sérgio Pinheiro diz que ela “consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos” (Folha de S. Paulo, 05/05/10). De fato, países como o Chile e a Argentina repudiaram as respectivas ditaduras com uma desenvoltura que nunca se viu por aqui, e perseguiram e perseguem ainda seus torturadores - enquanto nós reafirmamos a anistia que os beneficiou. Mas há diferenças significativas entre as ditaduras. Em primeiro lugar, naqueles dois países a vida política foi extinta. Os ditadores nunca tiveram de compor com partidos políticos ou negociar apoio. No Brasil, mesmo com a “espada de Dâmocles” (imagem particularmente cara ao finado Doutor Ulysses) sobre a cabeça, as instituições mantiveram-se em funcionamento a maior parte do tempo e houve ocasiões, como nas eleições de 1974, em que o governo sofreu derrotas humilhantes. A manutenção de um Congresso funcionando fez de boa parte dos políticos brasileiros não apenas partícipes do jogo, mas servidores do regime. Logo, cúmplices. Muitos ainda estão na ativa. Além disso, ponto a não ser negligenciado é a diferença enorme nos números de mortos e desaparecidos. O número estimado de 400 mortos pelo regime militar brasileiro - entre os quais estão cerca de 140 desaparecidos - é sem comum medida com a carnificina promovida pelos regimes de Pinochet e Videla. Na Argentina, números por baixo chegam à cifra impressionante de 20 mil mortos e desaparecidos. Para a mãe ainda viva de um desaparecido brasileiro, o raciocínio pode parecer cínico e cruel. Mas, sociologicamente falando, o pequeno número de vítimas fatais, no Brasil, explica sem dúvida o fato de que movimentos como os de familiares de desaparecidos nunca foram capazes de impactar e mobilizar a sociedade brasileira em torno de um projeto punitivo para seus algozes. Ou seja, no que diz respeito às atrocidades, o Brasil ficou também - felizmente! - na rabeira daqueles países.

O julgamento no STF foi mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Foi mais um capítulo, mas não foi o último. Talvez tenha sido o penúltimo. O último precisa ser escrito. Refiro-me à exigência, inafastável, em relação ao destino dos desaparecidos – as circunstâncias de suas mortes e onde os restos mortais foram enterrados, se o foram. Aqui estamos num patamar de exigência moral de que não devemos abrir mão. É incompreensível, absurdo e inaceitável a postura das Forças Armadas que se recusam até hoje a encarar esse assunto com a seriedade e com o espírito de colaboração que ele exige. Até porque aqui já não se trata de proteger companheiros de farda - a maioria certamente já de pijama - que se dispuseram a fazer o trabalho sujo dos porões. Com o julgamento do STF, eles podem (se puderem...) dormir tranqüilos. Quanto às Forças Armadas como instituição, elas continuam em débito com o dever de tornar públicos os arquivos e informações que detenham sobre o destino desses adversários mortos. Isso, sim, as reconciliaria de vez com a Nação. Mais do que um dever ético, trata-se até do simples dever de compaixão para com as mães, irmãos e filhos dos que desaparecem na “noite e na névoa” sem deixar traço. Por isso a transição ainda não terminou. Ela não terminará enquanto uma mãe como a de Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, se perguntar todos os dias de sua vida como faz até hoje: “Onde está o meu filho?”

domingo, 7 de março de 2010

O Diverso que nos mete medo. Por que a tolerância não nos basta mais?




Por Zigmunt Bauman


Trecho da videoconferência pronunciada no congresso sobre “A qualidade da integração escolar”, na cidade de Rimini, publicado na edição do dia 16/11/09 do jornal italiano La Repubblica e republicado em Política Democrática: Revista de Política e Cultura, ano 9, no 25, 2010. Tradução de Marco Mondaini. Agradeço a Marcelo Medeiros, meu consultor para assuntos de ciência política, por me haver presenteado com uma cópia de Política Democrática após um profundo debate relâmpago via msn sobre intolerância e democracia em Slavoy Zizek e Paul Ricoeur. Agora vai de presente para Tâmara e demais leitores do Cazzo. A propósito: Política Democrática é blog friendly e autoriza a divulgação de seus artigos, desde que citada as fonte.


Cynthia


Viver com os estrangeiros – que é o fundamento demográfico e social da exposição às diferenças e a qualquer espécie de alteridade - não é de forma alguma um fato novo na história moderna. Mas antes a ideia era, grosso modo, a de que qualquer um que fosse estranho, estrangeiro, diverso de você perderia mais cedo ou mais tarde o seu caráter de estrangeiro.


A política dominante em relação aos estrangeiros, durante a maior parte da história moderna, foi uma política de assimilação: “Vocês estão aqui, estão fisicamente vizinhos; tornemo-nos, pois, vizinhos também espiritualmente, mentalmente, eticamente”, o que quer dizer aceitar os mesmos valores universais, onde, porém, como “universais”, sempre eram entendidos os “nossos” valores. Assim, com essa perspectiva, na qual o ser estrangeiro era apenas um desagradável incômodo passageiro, não existia a ideia de dever aprender a viver com o diverso.


Agora, pela primeira vez na história moderna, conseguimos nos dar conta de que as coisas não são bem assim. A modernidade sempre foi um período de migrações massivas de pessoas de um continente a outro, de uma extremidade do mundo a outra, de uma cultura a outra, e a migração aconteceu por necessidade nas circunstâncias modernas em que, para as pessoas assim chamadas em excesso, pessoas para quem não se podia encontrar uma colocação na sua sociedade de origem, não havia espaço na nova ordem, no novo estado avançado do progresso econômico, sendo forçadas a viajar.




sábado, 20 de fevereiro de 2010

Terminar a Ditadura


Monumento Tortura Nunca Mais, Rua da Aurora, Recife. Projeto de autoria de Eric Perman, Albérico Paes Barreto, Luiz Augusto Rangel e Demetrio Albuquerque.

Luciano Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE)

Para Celma Tavares, Roberto Efrem Filho, José Luiz Delgado e Silke Weber
pelas concordâncias, mas também pelas eventuais discordâncias.


A ditadura brasileira, que começou como “revolução”, mudou para “regime militar” e agora é tratada pelo nome que verdadeiramente lhe cabe, continua, como uma alma penada, assombrando a vida política do país. Basta ver o que acontece agora com III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e toda a celeuma que têm provocado os dispositivos relativos à memória dos anos de chumbo no que eles têm de mais explosivo: os crimes cometidos pelos torturadores e o destino dos desaparecidos. Produzido a partir de seminários realizados em todo o país com forte participação das chamadas ONGs - Organizações não Governamentais, o Plano reflete razoavelmente o clima de militância que percorre esses eventos, nos quais palavras de ordem costumam receber adesões muitas vezes automáticas e, assim, deslizam sem maiores ponderações para as propostas finais. Ao serem chanceladas pela Presidência da República e se tornarem políticas de governo, podem levantar questões que a sociedade como um todo tem legitimidade para discutir. É o que faço.

No caso, o que me interessa é a questão das violações de direitos humanos durante o regime militar e o tratamento que o Plano propõe para esse candente assunto. Nesse itinerário, porém, expandirei o arco de minhas reflexões para ir além do Plano, até porque considero que ele é apenas mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Mas, ao contrário do que pode sugerir a observação acima acerca dos esqueletos ainda trancados no armário do regime, já não partilho uma visão maniqueísta desse assunto. Passados 25 anos da entrega do poder aos civis, é mais do que tempo de tratarmos a ditadura militar como um objeto irremovível da nossa história. Isso está a exigir uma atitude mais objetiva e serena, e menos militante, dos que se dispõem a pensá-la. Que há exigências inafastáveis, há. O destino dos desaparecidos é a mais importante delas. Isso dito, entretanto, creio que “o direito à verdade histórica” - para usar os termos do Plano - precisa considerar, e não ter medo de enfrentá-los, certos fatos daqueles anos turvos que a nossa boa consciência de derrotados na “guerra suja” prefere esquecer, bem como rever certos mitos envolvendo a luta armada que se tornaram lugares comuns e que, talvez por receio de sermos confundidos com certos órgãos da grande imprensa aplicados na arte do desprezo a tudo que cheire a esquerda - a Veja com sua arrogância habitual é um bom exemplo disso -, não ousamos questionar. Precisamos fazê-lo para, como quer o Plano, “promover a reconciliação nacional”. O que se segue é uma pequena contribuição nesse sentido.

Relembrando rapidamente, o que irritou particularmente os militares foi a Diretriz 23 do Plano, que previa “a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil”. Como sempre, a queixa castrense reporta-se ao que seria a parcialidade do documento. No Brasil teria havido uma guerra, com vítimas dos dois lados. E se um lado praticou a tortura, o outro praticou terrorismo, assaltos, seqüestros etc. Nesse caso, por que a “apuração” apenas do que fez um dos lados? Depois da celeuma provocada pela reação de alto coturno, o presidente Lula assinou decreto mudando a redação: eliminou-se a menção ao “contexto da repressão política” e ficou a previsão genérica de “examinar as violações de direitos humanos praticadas no período”. Com isso, fica aberta a possibilidade de se esclarecerem também os atos praticados pela esquerda armada, que seriam igualmente violações de direitos humanos. A emenda não resolve o soneto.