"Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate": Isso é um blog de teoria e de metodologia das ciências sociais
terça-feira, 5 de maio de 2015
AGORA ELETRÔNICA: algumas reflexões teórico-metodológicas
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Religião e política: conservadores católicos e eleições presidenciais no Brasil
As campanhas eleitorais em 2010 foram pautadas fortemente pela expressão pública do religioso. As lideranças religiosas pressionaram os candidatos a se comprometerem a não promoção da descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia, com ênfase na defesa de valores cristãos. Quanto a esses compromissos, o final do primeiro turno foi marcado por uma séria de boatos e denúncias contra os candidatos à presidência, sobretudo no tocante às questões relativas ao aborto, à união civil homoafetiva e a implementação do III Plano Nacional de Direitos Humanos. No início do segundo turno estas tensões chegaram ao ápice. Os citados temas se destacaram nos meios de comunicação e nos programas de rádio e TV dos presidenciáveis, além dos inúmeros boatos espalhados nas mídias sociais. Mais do que nunca os discursos foram instrumentalizados pela religião, especialmente pela moral cristã, e novas aparições em cultos religiosos foram registradas e exploradas entre os presidenciáveis (MARIANO e ORO, 2010: 11-38).
Boatos e denunciais estiveram presentes no pleito, sobretudo na internet e nos templos, orquestradas por lideranças católicas e evangélicas, com mais ênfase à candidata Dilma Rousseff (PT). Essa sofreu fortes críticas durante toda a campanha por sua “biografia política pregressa”, por ter apoiado anteriormente a legalização do aborto e pelo fato de seu partido e seu governo defenderem o controverso III Plano Nacional de Direitos Humanos. Por motivos eleitorais, Dilma Rousseff assumiu a fé católica ainda no 1° turno, emitiu carta ao “Povo de Deus”, na qual pleiteou a oportunidade de continuar o projeto de Lula, para defender valores da cidadania, a "semente do Evangelho" e a família, prometendo manter a legislação atual sobre o aborto e censurar parte do PL 122/2006, que criminaliza a homofobia, quando atentar contra as liberdades de expressão e religiosa (MARIANO, 2011).
Obviamente pela vitória no primeiro turno e manutenção da sua liderança nas pesquisas de intenção de votos, durante o segundo pleito em 2010 bispos e padre católicos, sobretudo do Regional Sul I da CNBB[2], fizeram oposição sistemática contra a candidatura de Dilma Rousseff. A própria Regional divulgou nota da sua Comissão Episcopal Representativa do Conselho Episcopal em 26 de agosto de 2010 na qual, a partir das sinalizações pró-legalização do aborto, adotadas pelo PT, orientava os fiéis católicos a votarem em candidatos contrários a “descriminalização do aborto”. Por outro lado, católicos famosos como Frei Betto e Gabriel Chalita se empenharam em favor da candidata do PT. Essa passou a ser classificada pelos opositores católicos como “ateia”, “a favor do aborto”, “responsável pela concessão de privilégios a grupos homossexuais” e por “representar risco de implantar uma legislação liberal sobre Direitos Humanos no Brasil”.
As práticas elencadas podem ser observadas a partir do blog Acorda, Canção Nova! De que trata o citado blog? O conteúdo é direcionado aos membros da Canção Nova (CN), incluindo religiosos e leigos, e aos católicos brasileiros. A partir dos enunciados das postagens é possível identificar seus propósitos. Em tom alarmante e de denúncia, o conteúdo questiona o apoio da Igreja Católica à candidatura de Dilma Rousseff na eleição presidencial em 2010. Pode-se dizer que o blog busca demonstrar aquilo que seria, na sua perspectiva, a “incompatibilidade entre ser católico e o apoio da CN a esta candidatura”, denominada como “grave erro” e “traição a Jesus Cristo e Sua Igreja” (acordacancaonova.wordpress.com).
O sentido combativo contido no blog é constituído por três estratégias. Em primeiro lugar, o foco recai num combate personalizado à Dilma Rousseff. Há um significativo esforço por parte deste coletivo religioso tradicionalista na construção de seu capital simbólico. A candidata é caracterizada como “ex-terrorista”, a favor da “descriminalização do aborto” e do “casamento gay”, “sem uma filiação religiosa definida”, “com dúvidas quanto à existência de Deus”, “não temente a Deus” e “ante-religiosa”. Algumas imagens foram modificadas, com tons irônicos e de deboche.
A estratégia utilizada para construção do seu capital político adota a reprodução de supostas entrevistas concedidas por Dilma Rousseff nas quais algumas frases lhe são atribuídas, tais como: “nem Jesus Cristo pode impedir minha eleição”, “nesta eleição nem mesmo Cristo, querendo, me tira essa vitória; as pesquisas comprovam o que eu estou dizendo, vou ganhar no primeiro turno”. Também estão postados links de vídeos, imagens e textos nos quais a candidata “supostamente” assegura seus posicionamentos. O blog também permite ao visitante o acesso a sua suposta “ficha policial” da citada candidata (acordacancaonova.wordpress.com).
Em segundo lugar, há um sistemático questionamento das relações estabelecidas entre a Igreja Católica e o Partido dos Trabalhadores (PT). O apoio ao católico é questionado quanto ao seu posicionamento a “favor do aborto” e do “casamento gay”, além de algumas proibições que estariam para serem implementadas: 1) manifestações públicas de católicos e evangélicos; 2) redução da presença cristã na mídia televisiva; 3) obrigatoriedade de formação em jornalismo para os religiosos que atuam na mídia eletrônica; 4) prisão para religiosos que cobrarem o dízimo; 5) cobrança de impostos para dízimos, ofertas e contribuições; 5) criminalização das pregações sobre “espiritismo, feitiçaria, pornografia, ateísmo e idolatria”; 6) punições para quem veicular na mídia sobre “práticas contrárias a Palavra de Deus”; 7) perseguição às lideranças cristãs que pregarem sobre “práticas condenadas pela Bíblia Sagrada (“homoafetivismo, idolatria e espiritismo”), não terão direito de se defender por meio de ação judicial”. Além dessas ações, o blog ressalta o estabelecimento do dia do “orgulho gay e que seja oficializado em todas as cidades brasileiras e comemorado nas Instituições de Ensino Fundamental, publico e particular. Todos os opositores deverão ser punidos com as penas da lei, multa e prisão”. Ressalta-se “que as Igrejas que se negarem a realização de solenidades dos casamentos de homem com homem e de mulher com mulher, estarão fazendo ‘discriminação’, sejam multadas, fechadas e seus responsáveis sejam processados criminalmente por descriminação e desobediência civil. Com pena de multa e prisão” (acordacancaonova.wordpress.com).
O capital cultural contido em Acorda, Canção Nova! está além da adesão de setores católicos à candidatura de Dilma Rousseff. O blog apresenta-se como uma matriz geradora de traços distintivos católicos a partir da sua perspectiva conservadora. Nesse sentido, dois indícios são basilares á compreensão da tentativa de definição de um estilo católico cruzadístico em relação às ideologias de esquerda. Questiona-se a adesão dóxica ao pensamento e aos seus partidos, em particular ao PT, por lideranças cristãs sacerdotais e leigas. Quanto a isso, apresenta-se uma “lista de Bispos, Padres, Freiras e Protestantes e Leigos que são terroristas comunistas infiltrados na Igreja Católica”. A denominada “sinagoga do satanás” está constituída por bispos, padres, monges, frades, cientista políticos, professores, cantores, assessores, freiras, dentre outros (acordacancaonova.wordpress.com).
O blog ainda contém, particularmente, mensagens e críticas à postura de lideranças e fiéis que compõe a Comunidade Canção Nova. A ênfase recai sobre as denúncias feitas por religiosos católicos em relação a “situação em que o Brasil está vivendo nas eleições de 2010”. Ressaltam-se as denúncias realizadas pelos padres José Augusto e Paulo Ricardo, além dos bispos Dom Beni, Dom Aldo Pagoto. Por outro lado, algumas lideranças da Canção Nova são acusadas de negligência, covardia e “traição”. O principal alvo das críticas é o então deputado estadual Gabriel Chalita, “engajado na Comunidade Canção Nova”. Novamente questões de ordem moral e sexual são pautadas, quando se questiona a defesa do citado deputado a candidatura petista, sobretudo no tocante a suas posturas em relação à legalização do aborto em casos de estupro e má-formação dos fetos.
A reaserção conservadora católica
Acorda, Canção Nova! pode ser classificado como um caso representativo do aguerrido ativismo político de representantes da ala conservadora, incluindo membros do episcopado, de lideranças regionais da CNBB, de sacerdotes e leigos do movimento de Renovação Carismática Católica (RCC). Desde o final da tutela militar (1964-1985) o protagonismo político católico brasileiro foi exercido pela ala dita progressista, que de forma mais ou menos pública apoiou Lula e o PT em seus respectivos pleitos eleitorais (ORO e MARIANO, 2010). O discurso explicitamente social e engajado dos católicos progressistas foi sendo confrontado com o discurso da emoção e da reafirmação dos valores e práticas religiosas tradicionais por parte da Cúria Vaticana e dos coletivos religiosos conservadores. Nos últimos anos com a clara emulação provocada pelo avanço pentecostal, o catolicismo deslocou-se ainda mais longe de identidade hegemonizada pelo discurso da libertação (BURITY, 2006).
Como pode ser observado no blog aqui analisado, a reasserção conservadora católica não rompe necessariamente com a política. Como destaca Júlia Miranda, com uma identidade confessionalmente definida, a Renovação Carismática Católica juntamente com outros setores conservadores e evangélicos, se posiciona no Congresso Nacional em relação a temáticas morais, atuando, por exemplo, contra projetos de lei que visam incorporar como direitos civis questões como casamento homoafetivo e legalização do aborto (MIRANDA, 1999). Enquanto o tradicionalismo religioso é marcado pela alienação política, a reasserção conservadora contida em Acorda, Canção Nova! apresenta claros traços de reacionarismo político (BURITY, 2006). Nesse aspecto, o capital cultural divulgado pautou religiosamente a campanha presidencial quanto ao debate secular em relação às áreas de saúde pública, de medicina e dos direitos reprodutivos, assegurando a moralidade cristã tradicionalista e estrita para o conjunto da sociedade, além de se opor à secularização do debate sobre a descriminalização do aborto, a criminalização da homofobia e ao tratamento racional e humanitário às mulheres que abortam (ORO e MARIANO, 2010).
O blog aqui analisado não é uma exceção nas eleições presidenciais em 2010. Em primeiro lugar, o mesmo é reflexo das tensões inerentes ao campo católico brasileiro. A primeira impressão que se tem a partir do seu capital cultural, da sua linguagem e imagens é de que o mesmo se constitui em algo despretensioso e sem importância. Ao contrário, sua constituição e veiculação se constituem num exemplo basilar da emergência de coletivos conservadores católicos na política nacional a partir da redemocratização.
Isso se evidencia, sobretudo, nas últimas duas décadas no Brasil com a constituição de uma política de aproximação do Estado brasileiro com os movimentos sociais ligados aos coletivos feministas e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Trangêneros (LGBTT). Como ilustrativo dessa afirmativa se constata a ocupação de postos no aparelho estatal, influência nas políticas públicas na área da saúde, dos direitos sexuais e reprodutivos pelos citados coletivos. Cada vez mais, temas polêmicos passam a compor a agenda política, tais como: descriminalização do aborto, união civil homoafetiva, criminalização da homofobia, inclusão de cirurgias de readequação sexual entre os serviços do SUS. Esta nova configuração no campo político institui novas tensões entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o Estado (MACHADO, 2012).
Cada vez mais se configuram tensões entre os coletivos religiosos tradicionalistas e o Governo Federal quanto à reposição de temas de cunho moral e privado na agenda política da maioria dos grupos religiosos, a emergência de novos coletivos religiosos mais liberais (as chamadas “igrejas inclusivas”) e reposicionamento das estruturas eclesiásticas tradicionais (ativismo conservador), a tendência a judicialização dos conflitos sociais e a inclusão das campanhas eleitorais do combate ao aborto e as bandeiras dos movimentos LGBTT nas plataformas políticas de alguns candidatos, com amplo apoio das lideranças religiosas (MACHADO, 2012).
Obviamente sem estabelecer nenhum profetismo sociológico, é possível afirmar que as eleições presidenciais de 2014 também sejam marcadas pela inclusão do combate ao aborto e das bandeiras dos movimentos LGBTT nas plataformas políticas de alguns candidatos, com amplo apoio de religiosos conservadores. As tensões se constituirão em torno dos capitais simbólicos dos candidatos e das suas respectivas propostas políticas. Apesar da opção por uma separação flexível (PORTIER, , 2011) entre Estado e religião adotada no Brasil, as leituras de cunho religiosas relativas a questões de cunho moral e privada poderão estar no centro do debate. Pode-se afirmar que no pleito de 2014 os candidatos à presidência continuarão as disputas em torno do apoio de lideranças religiosas, marcando presença em templos, proliferando discursos marcados pela religião, incluindo temas religiosos nas agendas e sofrendo pressão da parte dos religiosos para que assumam publicamente certos compromissos morais e políticos.
Referências
ANDRADE, Péricles. Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil. _____; BURITY, Joanildo (orgs.). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011, p. 67-93.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.
BURITY, Joanildo. Identidade e Política no campo religioso. Recife: Ed. da UFPE, 1997.
_____. Identidade e Política no campo religioso. Recife: Ed. da UFPE, 1997.
_____. Redes, parcerias e participação religiosa nas políticas sociais no Brasil. Recife: FUNDAJ/Massangana, 2006.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Religião, cultura e política. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 32(2), 2012, p. 29-56.
MARIANO, Ricardo; ORO, Ari Pedro. Eleições 2010: religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, n. 18 (II), 2010, p. 11-38.
MIRANDA, Júlia. Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do político. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 1999.
_____. A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato. In: ANDRADE, Péricles; BURITY, Joanildo (orgs.). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011, p. 35-66.
PORTIER, Philippe. A regulação estatal da crença dos países da Europa Ocidental. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro, 31(2), 2011, p. 11-28.
ORO, Ari Pedro; MARIANO, Ricardo. Eleições 2020: religião e política no Rio Grande do Sul e no Brasil. Debates do NER, Porto Alegre, ano 10, n. 16, jul./dez. 2009, p. 9-34.
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[1] Doutor em Sociologia (UFPE, 2006). Professor Adjunto IV na UFS, lotado no Departamento de Ciências Sociais, no Núcleo de Graduação em Ciências da Religião, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia. E-mail: periclesmorais@hotmail.com
[2] O Regional Sul 1 é composto por 41 (arqui) dioceses e 6 Regiões Episcopais, divididas por 8 sub-regiões Pastorais: Aparecida, Botucatu, Campinas, Ribeirão Preto I e II, São Paulo I e II e Sorocaba (http://www.cnbbsul1.org.br/nossa-historia)
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
e-Aulas da USP
A Universidade de São Paulo lançou, recentemente, um portal que reúne uma série de aulas das disciplinas mais diversas.
Inspirados em serviços já em uso por Universidades de grande reconhecimento internacional como a Harvard, Yale, Columbia, MIT e Princeton, estamos colocando à disposição de todos um novo serviço da USP, o e-Aulas. Este novo serviço expressa o reconhecimento por parte da Universidade de que uma de suas funções é a disseminação do conhecimento, permitindo que professores disponibilizem suas vídeo aulas, e que alunos acessem vídeo aulas de diversas disciplinas da USP. Ele também é aberto ao público. A motivação para o desenvolvimento e implementação do e-Aulas USP foi devido ao grande benefício que se observa com o consumo de objetos de aprendizagem em formato de vídeo disponíveis na Web, que tem demonstrado ser um grande aliado do aluno, que pode acessar este conteúdo de onde estiver. Através deste novo recurso esperamos contribuir também para a melhoria do processo ensino/aprendizagem da Universidade de São Paulo. Este sistema foi idealizado pelo Professor Gil da Costa Marques, atual Superintendente de TI da USP (Superintendência de Tecnologia da Informação – USP). Sua implementação foi coordenada pela Profa. Regina Melo Silveira da Escola Politécnica – EPUSP, e a implantação esteve sob a responsabilidade da equipe técnica da STI – USP). A STI e a USP estão oferecendo este novo sistema, e ainda oferece suporte ao professor que desejar disponibilizar ou que desejar produzir e disponibilizar vídeo aulas no sistema e-Aulas USP.
Trata-se de um curso de leituras em torno dos conceitos de qualidade da democracia, instituições democráticas e cultura política. O foco central da discussão são as relações entre confiança política e accountability. O objeto empírico da discussão é, por um lado, o fenômeno contemporâneo de desconfiança dos cidadãos de instituições políticas e, por outro, o desempenho das instituições de representação, assim como os efeitos de ambos para o funcionamento do regime democrático. Por uma parte, serão examinados os conceitos de cultura cívica e cultura política, qualidade da democracia e confiança política em sua relação com as instituições democráticas, com base na literatura especializada recente; por outra, será discutida a significação da evidência empírica que, desde há algumas décadas, aponta para a perda sistemática ou para a formação incompleta de apoio político dos cidadãos às instituições democráticas - tanto em países de democracia consolidada, como nos que se democratizaram a partir de meados dos anos 70, a exemplo do Brasil. O desempenho do Congresso Nacional será examinado como um caso especial em sua associação com a desconfiança política. O esforço analítico se orientará em sentido comparativo, buscando apontar o significado teórico das diferentes experiências de relação entre a democratização e o modo de funcionamento das instituições.
Desejamos sucesso na empreitada e aguardamos ansiosamente os cursos na área de Sociologia.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
Twitter Revolutions?
Por Robert J. Brym
Department of Sociology, University of Toronto
rbrym@chass.utoronto.ca
Pro-democracy protests broke out immediately after the 2009 Iranian presidential election. Many Iranians felt that rigging the results in favour of the incumbent, Mahmoud Ahmadinejad, was merely the latest indignity they had suffered at the hands of a repressive regime. In 2010 and 2011, similar protests spread throughout much of the Middle East and North Africa. Tunisia, Egypt, Bahrain, Yemen, Algeria, Jordan, Libya – all of these countries were rocked by protesters, many of them young and well educated, taking to the streets and demanding regime change.
Growing working class literacy allowed pamphlets and newspapers to spread socialist ideas in nineteenth century Europe. Similarly, with more than a quarter of the Middle East and North African population connected to the Internet, Twitter and Facebook were used to voice grievances, debate tactics, publicize atrocities, and plan demonstrations in many Muslim-majority countries between 2009 and 2011 (“Internet...,” 2011). Many American commentators on CNN, Fox News, and the major television networks called the uprisings “twitter revolutions.” Is the term justified?
There can be little doubt that social networking sites helped the uprisings crystallize and spread. However, it is easy to exaggerate their importance. Only .027 percent of the Iranian population had Twitter accounts in 2009, and most tweets concerning the uprising were in English and originated in the United States and other western countries. In Egypt in 2011, the government basically pulled the plug on the Internet, after which demonstrations grew and intensified (Gladwell, 2010; Rich, 2011). These facts suggest that it was not American inventions (Twitter, Facebook, the Internet itself) that propelled the pro-democracy movement in the Middle East and North Africa so much as the brutal facts of everyday life in the region: widespread poverty and unemployment, low upward social mobility, and lack of freedom. Social media helped, but they were only a small part of the story.
More generally, it is important to note that most Facebook friends are really acquaintances and most Twitter followers don’t know the people they are following personally. It is relatively easy to get such socially distant people on social networking sites to participate in certain actions – but only if participation requires little sacrifice. The Facebook page of the Save Darfur Coalition has nearly 1.3 million members but they have donated an average of just nine cents each to the organization (Gladwell, 2010). Big sacrifices in the name of political principles require strong social ties, not the weak ties offered by Twitter accounts and Facebook pages. Typically, when individuals join a social movement, they attract clusters of friends, relatives, and members of the same unions, cooperatives, fraternities, college dorms, churches, mosques, and neighbourhoods. This pattern occurs because involvement in a social movement is likely to require big sacrifices, and you need to be close to others before you can reasonably expect them to share your ideas and willingness to sacrifice for a cause (McAdam, 1982). Relying mainly on weakly tied members of a Twitter group is insufficient. Social movement success depends on the sacrifices of dedicated activists bound together by strong social ties.
References
Gladwell, Malcolm. 2010. “Small Change.” The New Yorker 4 October. http://www.newyorker.com/reporting/2010/10/04/101004fa_fact_gladwell (retrieved 18 February 2011).
“Internet World Statistics.” 2011. http://www.internetworldstats.com/ (retrieved 18 February 2011).
McAdam, Doug. 1982. Political Process and the Development of Black Insurgency, 1930-1970. Chicago: University of Chicago Press.
Rich, Frank. 2011. “Wallflowers at the Revolution.” New York Times 5 February. www.nytimes.com (retrieved 18 February 2011).
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Ahmadinejad e Obama ou o fardo da democracia de lobbies
Tâmara de Oliveira
Outro dia, conversando aqui com cientistas sociais sobre o ataque religioso-fundamentalista em nossa última campanha eleitoral, ataque que inevitavelmente chocara laicos tão ortodoxos como costumam ser intelectuais franceses, ouvi de um deles a apresentação de outra problemática sobre a sucessão governamental no Brasil: sua “preocupação” devido ao “acordo” do governo Lula com o Irã de Ahmadinejad e seus aiatolás. Fiquei passada. Constrangida mesmo, afinal de contas quem, vivendo na Europa, não sabe que o Irã é representado quase exclusivamente como um totalitarismo religioso fianciador do terrorismo islâmico internacional, a quem governantes democráticos não devem dizer nem bom dia ?
Mas eu tinha uma resposta na ponta da língua : acho até importante que a América Latina e outros emergentes baguncem um pouco a geo-política no oriente médio, já que Israel parece-me uma democracia que cai há um bom tempo em armadilhas do fundamentalismo religioso e, considerando os efeitos geo-políticos da aliança EUA/Israel e da culpa européia pelo nazismo, isso prejudica inclusive a sustentabilidade de Israel. Todavia, o risco de que com essa resposta eu fosse acusada imediatamente por anti-semitismo-de-esquerda, era grande demais. Preferi então temperar a goela com o vinhozinho nacional deles (a França ainda tem seus encantos) e responder constrangida que as relações Brasil/Irã não implicam em afinidades entre o governo brasileiro e o fundamentalismo islâmico e que, além disso, as prioridades brasileiras são outras. Mas fiquei com aquilo atravessado na garganta. Haja vinho francês !
Pois no dia 1° de novembro, em coluna da Folha.com sobre os resultados do segundo turno, um patrício de Lisboa chamado João Pereira Coutinho pôs a mesma espinha em minha garganta :
(…)Os 3% que desaprovam Lula, aposto, desaprovam a forma indigna como ele elegeu Ahmadinejad seu amigo; como manteve relações amistosas com Chávez; como foi displicente perante os presos políticos cubanos.
Acompanhei as eleições brasileiras. Comentei-as. Escrevi a respeito. Mas, nessa hora em que Lula sai para Dilma entrar, os meus únicos pensamentos estão com os 3% que não perderam a cabeça e mantiveram-se à tona da sanidade.
Nessa noite fria de Lisboa, um brinde a eles! (acesso : http://www.folha.uol.com.br)
No lugar dele eu não apostaria muito que esses 3% estejam muito preocupados com Ahmadinejad, Cháves e os presos políticos cubanos, mesmo concordando plenamente que foram imperdoáveis as atitudes oficiais do governo Lula para com os presos políticos cubanos. Cultivo uma certa idéia : aquela que diz que nós brasileiros, apesar da globalização e da visibilidade internacional cada vez maior de nosso país, continuamos auto-centrados, torturados entre um desejo de sermos o melhor país do mundo e um sentimento ameaçante de que somos o pior, sem muito interesse em acompanhar o que acontece pelo resto do mundo ou como nossos governos relacionam-se com ele. Ou, como disse a psicóloga Mériti de Souza (1999), capturados por um dupla e sintomática fantasia : a da democracia estrangeira e da democracia formal brasileira, idealizando-a na Europa e nos Estados Unidos ao mesmo tempo em que a desvaloriza no Brasil (devido à dissociação entre seu formalismo e a experiência social cotidiana de uma democracia profundamente desigual). De qualquer forma, o que me assustou não foi essa aposta arriscada e típica de um bom liberal europeu contemporâneo, mas sim sua argumentação sobre como um país democrático deve se relacionar com teocracias e outras ditaduras « aberrantes » :
Sou um realista. Países democráticos não lidam apenas com democracias; por vezes, nossos interesses estratégicos ou econômicos exigem que sujemos as mãos com autocracias, teocracias, ditaduras e aberrações políticas. Mas devemos fazer isso com decoro; envergonhados; como um cavalheiro que frequenta o bordel e não faz publicidade de seus atos. (acesso : http://www.folha.uol.com.br)
Francamente, isso parece-me tão monstruoso quanto certas declarações do presidente iraniano sobre Israel! Mas não deixa de ser também muito significativo do état des lieux da democracia pelo mundo.
Recentemente o Cazzo divulgou o lançamento do livro de Luciano Oliveira (2010) sobre a contribuição de Claude Lefort em torno da democracia e do totalitarismo, onde este não é entendido como oposto mas como possibilidade inscrita na própria fragilidade substancial daquela. Sabe-se que a contribuição de Lefort (1999) foi importante para que a crítica do comunismo soviético entrasse no interior mesmo do horizonte da esquerda – embora até hoje tenha gente da esquerda que não o perdoa por isso e o veja como intelectual que deu legitimidade à direita liberal. Pois eu penso (já aberta às críticas aos simplismos inevitáveis de minha condição de não-leitora de Lefort) que seu conceito de poder como lugar vazio e sua argumentação sobre a potencialidade substancial de que, numa democracia viva, forças totalitárias joguem o jogo democrático para incorporarem a política de um povo, é complementar do reconhecimento de expressões outras da fragilidade substancial da democracia na contemporaneidade. Nem só de fundamentalismos religiosos vive o fardo de nossas democracias, hélas…
Refiro-me a expressões políticas que parecem saltar do conteúdo das representações desse caro João Pereira Coutinho sobre o que é legítimo em regimes democráticos, ou seja, e de meu ponto de vista, fundamentar-se no realismo estratégico-econômico e fazer da hipocrisia o modo legítimo de funcionamento e da publicidade da esfera política. Em outros termos, falo da fragilidade da democracia diante da potência objetiva e simbólica do mercado vivido e representado sem freios nem estribeiras, impregnando o funcionamento, a estrutura e as representações dos grupos de interesse ou lobbies – que aproximam-se concretamente do que parecem-me ser representações sociais moralistas de Pereira Coutinho sobre bordéis. A subsunção de campanhas eleitorais ao marketing político e suas sondagens de opinião é uma das manifestações desses « bordéis », como assistimos tristemente entre uma candidata acuando-se e outro instrumentalizando interesses político-religiosos obscurantistas, demonstrando mais uma vez que fundamentalismos religiosos e regimes democráticos não são necessariamente antagônicos e, o que é pior, que essas forças obscurantistas também funcionam como grupos de interesse politicamente organizados.
Melhor dizendo, parece evidente que os bordéis estratégico-econômicos desse mundo globalizado são os mais poderosos nos embates democráticos contemporâneos, mesmo porque pensamos que sua lógica impregna os mais diversos grupos de atores políticos. Se é difícil dizer que o mercado pode incorporar a identidade de um povo, da instituição política de uma sociedade (talvez ele seja tão lugar vazio quanto o poder na democracia), podemos dizer facilmente que seu ethos é estruturante dos corpos e mentes dos sujeitos sociais, atravessando as fronteiras identitárias mais diversas. Pensar sob os parâmetros do mercado é mais efetivamente universalizável do que quaisquer expressões identitárias e inclusive exerce, pelo menos, um papel importante de mediação em suas (re)construções.
Costumo refletir e me angustiar bastante com um fenômeno bem contemporâneo : a de que enquanto os atores políticos das categorias sociais desmunidas tem deslocado suas reivindicações e causas para horizontes ditos « culturalistas » (embora não completamente), os das categorias abastadas costumam orientar sua ação coletiva quase exclusivamente num horizonte de classe social. Mas ambas participam do jogo democrático sob a maestria de grupos de pressão que, funcionando sob a lógica de “quem dá e pode se mostrar mais”, potencializa o fator desigualdade na dinâmica política :
Uma outra simplificação, sublinhada por Michel Offerlé (1994), consiste em construir uma dicotomia rígida entre o universo – suspeito – dos movimentos sociais e aquele – mais respeitável – dos grupos de pressão. Isso deixaria escapar os elementos de continuidade e de interpenetração entre essas duas categorias que precisam ser pensadas sob o modo de uma gradação de situações.(…)
A questão da relação à publicidade (no sentido jurídico) é provavelmente um ponto de clivagem mais decisivo. Os movimentos sociais tem necessidade de publicidade : a das mídias, da argumentação pública, do barulho também. Os grupos de pressão podem fazer um uso comparável disso tudo, como mostram as ações de comunicação das indústrias do tabaco. Mas eles funcionam em princípio sob negociação discreta, sob associação permanente e frequentemente silenciosa com os processos de decisão que lhes asseguram seu reconhecimento como interlocutores pelas autoridades politico-administrativas. Os paradoxos de tal situação no que diz respeito ao ideal democrático devem ser sublinhados(…).
(…)Sim, os movimentos sociais constituem tendencialmente uma arma de grupos que, num espaço social e num tempo dados, estão do mau lado das relações de força.(…)(Erik Neveu, 2005, pp. 18-19)
Vejamos também como uma norte-americana em ruptura com o governo de Barack Obama (cuja derrota nas recentes eleições parlamentares anuncia grandes fardos democráticos) analisa a política norte-americana atual:
Muitos apontam o dedo para Washington. E acusam nosso sistema politico de paralisia devida a uma classe política dividida entre dois campos irredutíveis, incapazes do menor consenso. Eu acredito que os dois partidos caíram exatamente do mesmo modo nas mãos dos mestres da indústria, dos bancos e dos negócios que enchem suas caixas de campanha. O princípio democrático fundador, « um homem, uma voz », foi substituído pela aritmética da política dos grupos de interesse. Os lobbies e seu dilúvio de dólares invadiram Washington. Uma verdadeira tomada de poder. E o governo fixa suas prioridades no meio desse bazar de tráfico de influência.(…). Ariana Huffington, Le Monde Magazine, n° 20456, 30 de outubro de 2010.
Não se trata aqui de justificar o regime de governo iraniano, cubano ou venezuelano. Apenas de fazer incidir o conceito de poder como lugar vazio sobre o horizonte amplo das democracias concretas : o poder que grupos de interesse exercem sobre a política, cuja dinâmica exige muito dinheiro, é um problema sério para quem pensa nas possibilidades de empoderamento (ô termo esquisito, meus deuses !) dos atores políticos que não o tem, nas redes e jogos contemporâneos das nossas democracias. O fardo é grande, não só para quem tem uma expressão identitária – uma religião, um populismo nacionalista, uma ideologia comunista – incorporando a política de uma sociedade. Ou seja, é fardo que aproxima gregos e troianos ao mesmo tempo em que separa perversamente ricos de pobres, no que diz respeito às possibilidades respectivas nas decisões do legítimo e do ilegítimo na política em sentido amplo e, na políticas públicas em sentido restrito.
Mas nosso caro e lusitano Coutinho, tão cioso de seu horror diante de sua classificação particular de aberrações políticas, todas situadas ao que às vezes ainda podemos chamar de esquerda, ou relativamente comprometidas com algum tipo de redistribuição dos bens sociais para as camadas populares, talvez não veja nenhum problema na hegemonia de grupos de interesse economicamente poderosos nos embates democráticos. Será que para ele, desde que se frequente esses bordéis sem fazer publicidade, desde que a tirania objetiva e simbólica do mercado seja praticada sob uma dissimulação cavalheiresca, inclusive negociando secretamente com as tais aberrações políticas totalitárias, a democracia estará salva ? Valei-me Eça de Queirós ! Quanto a mim, se devemos ter como ideal uma Ilustre Casa de Ramires da era globalizada, continuo preferindo que o Brasil nunca cumpra aquele ideal de se tornar um imenso Portugal. Com todo o respeito a Portugal, aos portugueses e também a João Pereira Coutinho.
BIBLIOGRAFIA
COUTINHO, João Pereira. Os heróicos 3%. In : http://www.folha.uol.com.br. Acessado em 1°.11.2010.
HUFFINGTON, Arianna. Les Etats-Unis se délabrent. In : Le Monde Magazine, n° 20456, le 30 octobre 2010
LEFORT, Claude. La complication. Retour sur le communisme. Paris : Fayad, 1999.
NEVEU, Erik. Sociologie des mouvements sociaux. Paris : La Découverte, 2005.
OLIVEIRA, Luciano. O enigma da democracia. O pensamento de Claude Lefort. Piracicaba : Jacinta Editores, 2010.
QUEIRÓS, Eça de. A Ilustre Casa de Ramires. Rio de Janeiro : Ateliê Editorial, 2000.
SOUZA, Mériti. A Experiência da Lei e a Lei da Experiência – Ensaios sobre Práticas Sociais e Subjetividade. Rio de Janeiro : Revan, 1999.
sábado, 23 de outubro de 2010
Entre a Inclusão e a Democracia Digital: a atuação do Estado e do terceiro setor em comunidades pobres da Região Metropolitana do Recife
Jonatas Ferreira e Maria Eduarda da Mota Rocha
Introdução
Na análise da desigualdade, as ciências sociais têm operado ao longo dos anos vários recortes, tais como renda, etnia, acesso ao trabalho, participação política. A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento das novas tecnologias de informação e comunicação, especificamente computadores pessoais, Internet, mecanismos portáteis de armazenamento de dados, como pendrives, ipods, CDs regraváveis, entre tantas outras possibilidades postas pela tecnologia digital, uma nova forma de desigualdade surgiu. A acumulação histórica de capitais econômicos, culturais e sociais dos diversos atores sociais, como era de se esperar, vem determinando padrões qualitativamente diferenciados de acesso a estes recursos. Não parece casual, portanto, que em 2007 apenas 24% dos domicílios brasileiros tivessem computador – desse total, apenas 3% representavam domicílios com renda até R$ 380, valor que alcança os 72% quando consideramos domicílios com renda igual ou superior R$ 3.801. O acesso à Internet traz à tona uma realidade ainda mais constrangedora: apenas 1% das famílias que sobrevivem com até um salário mínimo tinham acesso à grande rede. Em geral, esse problema tem sido tratado pelas políticas públicas a partir de uma série de conceitos que convergem para as idéias polares de ‘exclusão’ e ‘inclusão digital’. O ponto de partida desse tipo de abordagem é a idéia de digital divide, tal como formulada pela National Telecomunications and Information Administration, ainda na década de 90. A partir dessa perspectiva, a solução para o problema da desigualdade se apresenta como um percurso que os atores precisam fazer de um lugar vazio, de uma tabula rasa, para outro de prosperidade, numa clara reatualização da visão dos atores em posição subalterna como seres faltantes.
Ora, esse tipo de visão tem uma penetração significativa nas ciências sociais, bastando considerar a maneira como a tradição marxista, mas não apenas ela, percebeu ao longo dos anos o papel de forças sociais não diretamente ligadas ao processo produtivo. Visão semelhante dos mais pobres como “despossuídos” aparece na idéia bourdiana de “arbitrário cultural”, em que as práticas de consumo dos dominados são avaliadas sempre em função de uma hierarquia unificada cujo cume e eixo moral são necessariamente os gostos das classes dominantes. Em função deles as práticas culturais subalternas aparecem como imitações mal-sucedidas. É certo que tal perspectiva pode ser contrastada com propostas mais matizadas, como a de Alba Zaluar, ou a de Vera Telles e sua conceituação da pobreza como “experiência da liminaridade”, em que o esforço para superar uma definição puramente negativa da pobreza como falta não flerta com uma visão populista muitas vezes subjacente à celebração das competências das classes dominadas. Críticos das implicações políticas trazidas pela idéia de exclusão digital, tais como Mark Warshauer, Henry Jenkins ou Jeffrey Young1 acreditam que a “retórica da exclusão digital mantém aberta a divisão entre usuários de ferramenta civilizados e não usuários incivilizados. Bem intencionada como iniciativa política, ela pode propiciar a marginalização e ser fonte de privilégios em seus próprios termos”. Ainda assim, no tratamento conceitual e político da desigualdade digital, a idéia de “exclusão” continua presente.
[Esse texto foi publicado na íntegra na revista eletrônica Liinc em Revista. Click aqui para baixar todo o texto em PDF]
terça-feira, 5 de outubro de 2010
O enigma da democracia

O novo livro de Luciano Oliveira, publicado pela Jacintha Editores, Piracicaba, 2010.
Em tempo: Segue o obituário de Lefort, publicado no Le Monde em 05/10 e traduzido por Tâmara Oliveira, seguido do prefácio do livro de Luciano Oliveira, por Marilena Chaui:
O filósofo Claude Lefort faleceu domingo, 03 de outubro, aos oitenta e seis anos. O desaparecimento do filósofo, cuja importante obra concentrou-se sobre a crítica do totalitarismo, foi anunciada pelo jornal Libération.
Nascido em 1924, professor e doutor em filosofia, tendo ensinado na universidade de Caen antes de se tornar diretor de estudos na Ecole des hautes études en sciences sociales (EHESS), Claude Lefort inicia sua obra em 1968 com La Brèche, escrita com Edgard Morin. Tornou-se comunista durante a juventude sob a influência de seu mestre Maurice Merleau-Ponty, o que o aproximou dos trotskistas, dos quais entretanto ele se afastou depois, progressivamente. Processo já iniciado quando ele fundou a revista Socialisme ou Barbarie com Cornelius Castoriadis, esse afastamento tornou-se definitivo quando ele descobriu L’Archipel du goulag de Alexandre Soljenitsyne, sobre o qual ele consagrou um livro, Un homme en trop (Seuil, 1973).
A partir daí, Lefort estabeleceu laços bem amarrados entre o fenômeno totalitário e as carências da democracia. Para ele, a democracia, fruto da História, é uma sociedade « sem corpo », onde reina uma radical indeterminação, constantemente em desequilíbrio e que exige de todos invenção – como ele próprio desenvolveu em sua obra L’Invention démocratique (Fayard, 1981). A democracia não seria então « boa por natureza » e não garantiria espontaneamente liberdade e justiça para todos os cidadãos.
Prefácio, por Marilena Chaui
Claro, preciso e conciso. Estes qualificativos não são pequenos par se referir ao trabalho de Luciano Oliveira quando consideramos as peculiaridades do pensador a que este livro se dedica. De fato, como salienta Oliveira, Claude Lefort é “um autor dotado do senso da fórmula e do paradoxo”, um pensador que, em lugar de definições e respostas, nos convida à interrogação, um escritor cujas longas frases e longos parágrafos, num desenvolvimento espiralado interminável, exigem atenção redobrada do leitor, que se vê diante da complicação em ato. Em suma, um “pensador da indeterminação”.
Podemos descortinar neste livro três linhas de reflexão: uma delas, biográfica, acompanha a formação filosófica e política de Claude Lefort, a partir das ideias vindas da fenomenologia de Merleau-Ponty e do marxismo; uma outra, apanha a diferença entre Lefort e os modismos intelectuais franceses dos anos 1960-1980, quando imperavam o marxismo althusseriano e o fervor pelos “pensadores da suspeita” (Nietzsche, Marx e Freud); a terceira nos leva ao núcleo da obra lefortiana como pensamento da democracia. Essas três linhas se entrecruzam e incidem umas sobre as outras, dando-nos a ver um filósofo se fazendo (para usar a expressão merleaupontyana).
Da fenomenologia, Lefort conserva a interrogação do sentido ou a busca do ser político, do social, da experiência. Discípulo de Merleau-Ponty, desconfia das teorias, do “pensamento de sobrevôo” que pretende oferecer a explicação sistemática e completa da realidade, incapaz de ver tudo quanto não seja iluminado pela luz ofuscante irradiada dele mesmo. Do marxismo, guarda a exigência de compreender “a experiência de nosso tempo, a luta de classes e o desejo de emancipação, mas afasta-se de Marx não só porque considera impossível a supressão do conflito instituído pela divisão originária da sociedade, como também julga que suprimi-lo é cair no abismo totalitário.
Com relação aos filósofos que se dedicaram ao “culto da suspeita”, Luciano Oliveira sublinha por onde passa a diferença lefortiana, escrevendo com argúcia que “à força de ir ver o que está por trás das coisas”, eles acabam deixando de ver “o que está na nossa frente”, isto é, as coisas mesmas. Assim, por exemplo, em lugar de tomar o poder como disciplina e controle que, de maneira oculta e sub-reptícia, percorre capilarmente a sociedade e não deixa qualquer espaço para a ação efetiva dos homens, submetidos irremediavelmente a uma dominação não percebida, Lefort concebe o poder como dimensão simbólica do social e a democracia como abertura temporal que acolhe o conflito e institui ações contra a tirania.
Filósofo da interrogação e da indeterminação, Claude Lefort é o pensador por excelência da democracia, situando-se à distancia da concepção liberal – que a toma por um regime político entre outros – e da crítica marxista – que a reduz à expressão política dos interesses da burguesia. Essa dupla distância tem sua raiz, de um lado, na distinção entre a política e o político e, de outro, na crítica da “boa sociedade” e do “poder incorporado”.
Graças à distinção entre a política – o conjunto de práticas e instituições que localizam o poder em algum ponto específico da sociedade – e o político – “modo de aparição e ocultação do modo de instituição da sociedade” – Lefort pode pensar a democracia com ação histórica aberta, propor a ideia de invenção democrática e o conceito surpreendente de poder como lugar vazio, esplendidamente analisados por Luciano Oliveira.
Para compreender essas duas noções, precisamos considerar a crítica lefortiana da boa sociedade e do poder incorporado. Desde seu monumental estudo sobre Maquiavel, Lefort colocou no centro do político a divisão originária da sociedade e o conflito de classes, examinando as concepções políticas antigas, às quais se opôs o pensamento maquiaveliano, enquanto fundadas nas ideias de união e indivisão sociais pressupostas nas imagens do bom regime e da boa sociedade, plenamente reconciliada consigo mesma. No estudo sobre Maquiavel, a montagem do imaginário da indivisão conduzia à imagem do bom governante virtuoso; ora, essa figura greco-latina recebeu um forte alento quando a ela se acrescentou a teologia cristã. De fato – lemos no ensaio de Lefort sobre La Boétie-, veio acrescentar-se à figura do “bom governo” o imaginário do poder incorporado, isto é, do poder inscrito num corpo do rei, portador da identidade entre o poder, a lei e o saber. Eis por que a revolução democrática acontece quando a imagem da boa sociedade una e indivisa e a do poder incorporado se esfacelam sob os efeitos concretos da divisão social e com o surgimento de um sujeito político desprovido de corpo, o povo, desfazendo a identidade entre o poder, o saber e a lei. A destruição dos referenciais antigos ou a desincorporação do político é o advento da invenção democrática. Invenção porque a ausência de corpo identificador abre brechas nas relações entre o poder, o saber e a lei, abre o tempo da ação e alcança o cerne da democracia: o poder como lugar vazio e a criação social de novos direitos.
Essa concepção da democracia incide sobre a crítica lefortiana do totalitarismo. Desde seu primeiro livro, Elementos de uma Crítica da Burocracia, Lefort já se opunha às ideias de Marx, Weber e Trotsky sobre a burocracia, afirmando, contra eles, que ela é uma forma determinada do poder, quando este se exerce conforme os princípios da hierarquia, do segredo e da rotina; e também se opunha à análise trotskista do regime soviético, assinalando, contra Trotsky, a presença inegável do totalitarismo. No entanto, somente com o desenvolvimento de seu pensamento sobre o político e a democracia Lefort pôde chegar ao nervo de sua análise do totalitarismo (distanciando-se das análises de Arendt) como tentativa insensata de erguer a boa sociedade una, indivisa e transparente recorrendo ao retorno do poder incorporado, o qual, não podendo ser o corpo do povo, pois este não o tem, ergueu-se como corpo do Partido e, finalmente, como corpo do Dirigente, no qual o poder, a lei e o saber voltariam a se identificar. Ora, o risco totalitário não se encontra apenas nas ideias de Marx – nas quais o proletariado se identifica com a dimensão simbólica do poder e a destrói - , mas também nas democráticas, porque o povo e uma “figura indecisa, porém, pronta a se atualizar, avalista sempre latente da soberania, mas portando a ameaça de uma louca afirmação de sua identidade”. O totalitarismo não é o mau poder de uma sociedade má; e a democracia não é o bom poder da boa sociedade. A indeterminação é a única chave da história.
Eis porque, como sublinha Luciano Oliveira, Lefort considera que os problemas deixados pelo totalitarismo e pelo comunismo são questões abertas para nosso presente. Ou, como sugere nas páginas finais deste livro, num tempo em que as instituições políticas tradicionais perdem credibilidade, reafirmar a forca da invenção democrática, da “palavra viva e livre capaz de produzir a massa crítica” significa que Lefort é “um autor que não deve ser esquecido”.
Luciano Oliveira se refere a Lefort como um pensador discreto, que elaborou seu pensamento à margem das correntes predominantes do pensamento francês contemporâneo. Todo leitor das obras do século XVII tem especial interesse pela figura do discreto, que Balthazar Gracián celebrizou ao distingui-la da figura do vulgar. Este, ignorante e ruidoso, contrasta com aquele, sábio e prudente. Sim, Lefort é um pensador discreto.

Lulu Oliveira posa para a posteridade
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
A discussão da Ideia de democracia digital a partir da obra de Heidegger

Jonatas Ferreira
Introdução
Em Março de 2009, o Comité Gestor da Internet no Brasil publicou os primeiros resultados da Pesquisa sobre o Uso de Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil realizada no ano de 2008. Esses primeiros resultados indicam que continuamos a avançar na difusão de tecnologias de informação e comunicação (TICs), embora os problemas apresentados nas avaliações anuais anteriores ainda não tenham sido suficientemente equacionados: i) “O custo elevado continua a ser a principal barreira para a posse do computador e da conexão à internet nos domicílios”; ii) “a falta de disponibilidade de internet passa também a figurar como um dos principais desafios para a inclusão digital em todo o país”; iii) a “posse do computador nos domicílios cresceu mais rapidamente do que a posse da conexão à internet. A diferença entre domicílios com computador e domicílios com conexão à internet era de 4 p.p. em 2005 e passou para 8 p.p. em 2008”; iv) o acesso à telefonia móvel apresenta uma penetração consideravelmente superior à da telefonia fixa em todo o país; v) a “falta de habilidade foi, mais uma vez, apontada como a principal barreira para o uso da internet”; vi) As lan houses ainda são a única possibilidade de acesso à internet para uma parte considerável da população (pobre) brasileira, o que significa pagar mais pelo acesso à internet quem menos pode pagar . Além de tudo isto, a velocidade de tranmissão continua lenta, o que restringe fortemente o acesso a conteúdos que exijam uma maior largura de banda.
Este quadro ajuda-nos sem dúvida a traçar os contornos mais gerais daquilo a que se convencionou chamar exclusão digital, e dos resultados das políticas de inclusão tentadas até o momento no Brasil. Evidentemente, este panorama requer uma análise ampla das políticas governamentais neste campo, do modo como os estados vêm assumindo os compromissos da Federação no que toca ao ingresso de largas parcelas da população na Sociedade da Informação, do modo como entidades da sociedade civil, organizações não-governamentais se têm dedicado a atenuar as desigualdades no acesso às TICs. No que se refere à necessidade de analisar os obstáculos que se colocam à inclusão digital, em particular nas regiões de maior pobreza, e entre as parcelas mais pobres da população, acredito que pensar a desigualdade a partir da perspectiva da inclusão/exclusão digital é insuficiente (Warschauer, 2003). A desigualdade nesse, como em outros casos, não deve ser tratada apenas do ponto de vista da restrição ao acesso, mas da possibilidade de apropriação criativa que essas tecnologias demandam (Maciel e Albagli, 2007). Apropriação é uma chave importante para que possamos refletir criticamente acerca do significado daquilo que se convencionou chamar inclusão digital, ou, mais propriamente, para que possamos tratar a questão política implicada na democratização da tecnologia. Dessa perspectiva, o que e garantiria exactamente a democratização das tecnologias de informação e comunicação na sociedade brasileira? A resposta parece óbvia, mas não é.
(O artigo completo foi publicado na revista Análise Social. É só clicar para baixar o arquivo PDF)
domingo, 22 de agosto de 2010
A Democracia Internética

Fernando da Mota Lima
Embora há muito desejasse expressar pública e livremente minha opinião, somente agora, graças à generosa acolhida de dois ou três editores de blogues, posso fazê-lo com alguma regularidade. O fato cuja manifestação individual represento é uma das muitas consequências da democratização gerada pela internet. Durante muito tempo o exercício da opinião pública, também do debate e do confronto ideológico, foi privilégio dos poucos que praticavam o jornalismo impresso. Essa restrição tinha a virtude de funcionar como conduto seletivo. Apesar dos desníveis e privilégios de praxe, a hegemonia ou o prestígio da opinião refletia, no geral, os méritos e virtudes dos autores. Ficando no exemplo do Brasil, foi assim que se consolidou uma tradição de excelência na crítica de rodapé testemunhada por gente como Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Antonio Candido e muitos outros.
O advento da televisão, que logo se tornaria veículo de comunicação supremo, notadamente num pais ainda assolado pelo analfabetismo, não abalou de imediato esse quadro. Pelo contrário, no curso dos anos 1950 e 1960 emergiram figuras que muitas vezes ditavam os padrões de opinião cultural: Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, estes vieram antes, Paulo Francis, Glauber Rocha, Merquior, Sérgio Augusto, José Lino Grunewald, Ruy Castro, O Pasquim, e o ainda onipresente Otto Maria Carpeaux pairando acima de todos com sua erudição estonteante. Mas logo a massificação provocada pela televisão acelerou-se, fruto imediato do capitalismo imposto pela ditadura, e logo em seguida a privatização do exercício do jornalismo. Noutras palavras, salvo as exceções de praxe, o exercício do jornalismo tornou-se direito e privilégio dos diplomados em jornalismo. Um dos problemas decorrentes da restrição imposta por essa lei corporativa reside no fato de que muita gente de talento comprovado, quando não superior, é impedida de escrever, de opinar em termos correspondentes ao do jornalista de ofício simplesmente por não ter um diploma. Ensinei sociologia da comunicação durante muitos anos na Universidade Federal de Pernambuco a alunos incapazes de escrever um parágrafo correto e legível. Mas um dia punham o diploma debaixo do braço e através de muitas vias, não poucas tortas, acabavam ditando opinião na mídia.
Por fim sobreveio a internet, a mais extraordinária revolução já ocorrida na história da comunicação humana. Sua força de difusão e desestabilização dos controles tradicionais é tão extraordinária que está arruinando jornais e veículos impressos de grande poder, assim como símbolos de autoridade intelectual, política, religiosa, moral... No caso, falar em revolução não é banalizar um termo já tão banalizado e desacreditado na história humana. A internet gerou condições objetivas para a generalização de processos democráticos sem precedentes. Como tudo, há aí muito de bom e de ruim, se me perdoam o lugar comum. Ressaltarei apenas uns poucos pontos que me parecem importantes.
Sartre observou certa vez que estávamos vivendo numa época em que se sabia de tudo, ou em que já não era possível esconder mais nada. E notem que o disse antes da internet. O que dizer hoje? De fato, hoje sabemos de tudo, pelo menos teoricamente. Escrevo nestes termos por considerar que é impossível um indivíduo saber de tudo. Mais grave ainda, há muitos que preferem não saber sequer o pouco que poderiam, pois acomodam-se na estupidez que tudo ignora e assim tudo aceita e todas as noites dormem em paz o sono alienado do gado tangido pelos donos da vida, como há muito dizia Mário de Andrade.
Outra coisa: a universalização da democracia midiática produziu inevitavelmente a babel das opiniões e dos costumes. Hoje todo mundo tem umas e outros e todos se sentem investidos do direito de exercê-los. Nada contra, pois continuo acreditando que a democracia é o menor dos males e o mundo, salvo o engano renitente dos otimistas, que não passam de pessimistas mal informados, é um mal sem conserto. Tudo que podemos e devemos fazer é torná-lo menos ruim.
A universalização da democracia internética, e portanto da opinião, acaba convertendo o cenário cultural num vale-tudo, ou terra de ninguém. Se todos têm direito à opinião, logo parece justo que todos opinem e todas as opiniões valham a mesma moeda. É aí que o cano estoura e a água suja, também a limpa, vaza por todos os espaços, que vão do megashow à universidade, dos salões supostamente educados ao bate-boca de botequim. Um pouco dessa água vaza, por exemplo, nas páginas do Cazzo, que ocasionalmente abriga artigos que assino. Mesmo eu, que raramente me pronuncio sobre temas polêmicos em tom idem, já saí de roupa suja na página de comentários onde o leitor exerce seu direito de opinar.
O livre exercício da opinião, que em princípio anula o princípio da autoridade, induz muitos ingênuos a suporem que agora fazemos o que queremos e pensamos o que nos convém. Os donos da vida, à falta de expressão menos imprópria, são os primeiros a difundir essa ilusão lucrativa para o balanço das suas empresas e a elevação das ações que negociam no mercado financeiro. Não se enganem. O espectro da informação, do intercâmbio e da circulação de ideias e mudanças sem dúvida alargou-se de modo inusitado, já o observei. Daí a concluir que agora somos todos iguais e que tudo vale tudo no reino da desigualdade e do privilégio, daí a passada é bem mais longa que a perna. É ilusório, por exemplo, supor que as figuras de autoridade social e cultural foram abolidas. O que mudou foi seu modo de ação, que foi despersonalizado. É isso o que explica a perda de poder das figuras de autoridade tradicionais como os pais e professores, além das prescrições antes impostas por instituições como a religião, a tradição, os agentes diferenciados pela idade ou o saber reconhecido dentro de determinados grupos. Reafirmo: não se iludam, pois a autoridade e seus artifícios de controle e poder mudaram de mão e de forma, mas continuam sendo autoridade, controle e poder. O problema é que se tornaram quase sempre invisíveis. Nessa medida, torna-se bem mais difícil identificá-la, a autoridade, para assim melhor combatê-la. Fomos liberados da autoridade doméstica e escolar, mas caímos nas mãos invisíveis e muito mais nefastas do publicitário e do formador de opinião, do pastor de auditório e do especialista armado com uma máquina de calcular.
Na babel em que vivemos e passamos a atuar culturalmente, o nó cego está na opinião relativa às artes e às ciências humanas. Como no caso somos sujeito e objeto, todo mundo sente-se à vontade para opinar sobre tudo. Explicando melhor, o objeto de saber do psicólogo, do sociólogo etc, é parte íntima e corrente da nossa experiência social. É por isso que todo mundo supostamente tem opinião pronta sobre qualquer questão religiosa, moral, estética... Não raro, um simples exame demonstra que muitas dessas opiniões não passam de preconceito grosseiro ou crendice assimilada de modo inconsciente no meio em que nos formamos. Uma das funções do saber crítico compreendido em sentido amplo é precisamente partir da varredura dessa névoa de lugares comuns que embaçam nossa percepção da realidade. O exemplo mais antigo e notório dessa saudável pedagogia é a chamada maiêutica socrática. Noutros termos, era o procedimento dialético adotado por Sócrates nos lugares públicos de Atenas onde sem reservas abordava alguém com quem iniciava um processo de perguntas e respostas que ia gradualmente expondo, sob a pele da suposta opinião refletida, os preconceitos e ideias feitas que entulham nossa consciência da realidade. Mas isso foi há muito, muito tempo e já não se punem seres perigosos como Sócrates com uma dose letal de cicuta. Saltando de volta para o presente, o limite irônico da nossa liberdade está no fato de repetirmos o publicitário que nos ensina a dizer: seja você mesmo, beba coca-cola.
No reino da democracia internética, todo mundo tem opinião ou assim supõe e assim se sente prontamente qualificado para exercê-la. É a nossa babel cultural, como antes salientei. Se Deus, segundo a tradição bíblica, não criou uma linguagem universal passível de forjar a concordância substantiva entre os seres humanos, o que dizer de mim? Diante disso, prefiro humildemente rematar o artigo propondo algumas perguntas cuja resposta deixo a critério do leitor. Quem discordaria de mim se eu afirmasse que Pelé é o melhor jogador de futebol do mundo? Quem afirmaria que a seleção brasileira tem algum perna de pau, mesmo quando a seleção é desclassificada? E mais: quantas pedras cairão sobre a minha cabeça se eu afirmar que Wave, Águas de Março ou Corcovado valem todo o rock do mundo? O que dirão certos leitores se eu disser que esse ruído repetitivo e grosseiro que sou forçado a ouvir nas rádios, ruas, supermercados etc nada tem a ver com música? O que dirá o leitor apaixonado por Paulo Coelho se eu disser que perto de Machado de Assis ele é apenas um escrevinhador de livros baratos que logo desaparecerão como desapareceram tantos best-sellers celebrados pela mídia, o mercado e o público desprovido de cultura literária? Pedras e tijoladas para a redação, por favor.
segunda-feira, 10 de maio de 2010
E os "desaparecidos"? A transição ainda não acabou

Luciano Oliveira - professor de Sociologia Jurídica na Faculdade de Direito do Recife; autor do livro Do Nunca Mais ao Eterno Retorno: uma reflexão sobre a tortura, São Paulo, Brasiliense, 2009 (2ª edição).
A recente decisão do STF no sentido de não se mexer na Lei de Anistia, pela folgada maioria de 7 votos a 2, põe uma pedra definitiva na questão da responsabilidade penal dos torturadores do regime militar, mas não encerra o assunto! A ditadura continua vagando como uma alma penada; e, como acontece com as almas penadas, só quando os militares pedirem reza é que o regime de 64 estará definitivamente concluído. A reza, naturalmente, deveria vir sob a forma de um mea culpa formal pelas atrocidades cometidas. Infelizmente, acho que é sonhar muito. Mas talvez possamos esperar que, definitivamente tranqüilizados quando à possibilidade de uma “revanche”, eles tenham agora a grandeza de abrir os arquivos, de dizer tudo o que sabem, de cooperar sinceramente com os esforços de se conhecer, finalmente, o destino dos desaparecidos.
Que outra pudesse ter sido a decisão da nossa Corte Suprema, nunca acreditei nisso. De resto, pessoalmente nunca fui simpático à revisão da Lei mais de trinta anos depois dos eventos que ela indubitavelmente cobre. Juristas de primeira linha e comprometidos com a causa dos direitos humanos - junto a quem, aliás, me alinho nesse engajamento - têm elaborado uma interpretação segundo a qual as torturas praticadas nos porões do regime não podem estar cobertas pela Lei nº 6.683/79, que anistiou os crimes políticos praticados no Brasil naquele período. Discordo. Afirmar que os crimes dos torturadores não foram crimes políticos, é fazer do coração tripas para demonstrar o que só pode ser “demonstrado” mediante sérias torções no bom senso! Para nossa desolação, o § 1º do art. 1º da referida Lei diz textualmente: “Consideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política” - itálicos meus. Diante de tal literalidade, não vejo como sustentar a tese do crime não político. A estrutura repressiva montada no Brasil a partir de 1968, com a edição do AI-5, notadamente os sinistros DOI-CODIs, praticou crimes horríveis e hediondos. Mas qual foi a motivação de todo aquele horror senão política?... Num exercício jurídico penoso até de ser formulado, eu diria que torturadores que extorquiram dinheiro de familiares de presos, torturadores que estupraram presas sob sua custódia - e há relatos de que esse plus de abominação aconteceu! -, esses, eu diria, não foram anistiados! A sua motivação não pode ter sido política. Os epítetos de “monstro, desnaturado e tarado”, proferidos pelo ministro Ayres Britto, um dos dois votos vencidos no julgamento, cai-lhes como uma luva. Infelizmente, porém, estão todos acobertados pelos mais de trinta anos que já transcorreram e a prescrição que os beneficia. E continuo com a minha tese.
Além da letra da lei, todos que viveram aqueles anos sabem - e os que tiveram a sorte de vir ao mundo depois podem saber consultando a história do período - que a Lei foi feita para os dois lados. Revê-la agora é desconsiderar o contexto histórico e os que, naquele momento, negociaram e aprovaram a lei. A impunidade dos torturadores, por mais que seja pouco glorioso dizê-lo, foi uma das condições para que pudéssemos ter retomado a história brasileira das mãos dos militares. A correlação de forças ainda pendia tão fortemente para o lado da ditadura, que a punição dos torturadores não era uma reivindicação realista. A grande discussão da época referia-se aos presos condenados por “crimes de sangue”, que o projeto do governo deixava de fora. Pressionado pela “linha dura”, o Planalto não cedeu, mas pactuou a revisão de sua situação. De fato, quase todos foram soltos nos meses seguintes. Ninguém sabe o que teria acontecido se não tivéssemos tido a anistia naquele momento e não se pode contar uma história que não aconteceu. O que é possível afirmar com segurança é que, sem a salvaguarda dos interesses dos “revolucionários sinceros, mas radicais” - como dizia eufemisticamente Geisel para se referir à “linha dura” e seus torturadores -, não teríamos tido a anistia de 1979. O que veio depois é tanto apesar dessa história quanto graças a essa história...
Comentando a votação no STF, Paulo Sérgio Pinheiro diz que ela “consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos” (Folha de S. Paulo, 05/05/10). De fato, países como o Chile e a Argentina repudiaram as respectivas ditaduras com uma desenvoltura que nunca se viu por aqui, e perseguiram e perseguem ainda seus torturadores - enquanto nós reafirmamos a anistia que os beneficiou. Mas há diferenças significativas entre as ditaduras. Em primeiro lugar, naqueles dois países a vida política foi extinta. Os ditadores nunca tiveram de compor com partidos políticos ou negociar apoio. No Brasil, mesmo com a “espada de Dâmocles” (imagem particularmente cara ao finado Doutor Ulysses) sobre a cabeça, as instituições mantiveram-se em funcionamento a maior parte do tempo e houve ocasiões, como nas eleições de 1974, em que o governo sofreu derrotas humilhantes. A manutenção de um Congresso funcionando fez de boa parte dos políticos brasileiros não apenas partícipes do jogo, mas servidores do regime. Logo, cúmplices. Muitos ainda estão na ativa. Além disso, ponto a não ser negligenciado é a diferença enorme nos números de mortos e desaparecidos. O número estimado de 400 mortos pelo regime militar brasileiro - entre os quais estão cerca de 140 desaparecidos - é sem comum medida com a carnificina promovida pelos regimes de Pinochet e Videla. Na Argentina, números por baixo chegam à cifra impressionante de 20 mil mortos e desaparecidos. Para a mãe ainda viva de um desaparecido brasileiro, o raciocínio pode parecer cínico e cruel. Mas, sociologicamente falando, o pequeno número de vítimas fatais, no Brasil, explica sem dúvida o fato de que movimentos como os de familiares de desaparecidos nunca foram capazes de impactar e mobilizar a sociedade brasileira em torno de um projeto punitivo para seus algozes. Ou seja, no que diz respeito às atrocidades, o Brasil ficou também - felizmente! - na rabeira daqueles países.
O julgamento no STF foi mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Foi mais um capítulo, mas não foi o último. Talvez tenha sido o penúltimo. O último precisa ser escrito. Refiro-me à exigência, inafastável, em relação ao destino dos desaparecidos – as circunstâncias de suas mortes e onde os restos mortais foram enterrados, se o foram. Aqui estamos num patamar de exigência moral de que não devemos abrir mão. É incompreensível, absurdo e inaceitável a postura das Forças Armadas que se recusam até hoje a encarar esse assunto com a seriedade e com o espírito de colaboração que ele exige. Até porque aqui já não se trata de proteger companheiros de farda - a maioria certamente já de pijama - que se dispuseram a fazer o trabalho sujo dos porões. Com o julgamento do STF, eles podem (se puderem...) dormir tranqüilos. Quanto às Forças Armadas como instituição, elas continuam em débito com o dever de tornar públicos os arquivos e informações que detenham sobre o destino desses adversários mortos. Isso, sim, as reconciliaria de vez com a Nação. Mais do que um dever ético, trata-se até do simples dever de compaixão para com as mães, irmãos e filhos dos que desaparecem na “noite e na névoa” sem deixar traço. Por isso a transição ainda não terminou. Ela não terminará enquanto uma mãe como a de Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, se perguntar todos os dias de sua vida como faz até hoje: “Onde está o meu filho?”
domingo, 7 de março de 2010
O Diverso que nos mete medo. Por que a tolerância não nos basta mais?

Por Zigmunt Bauman
Trecho da videoconferência pronunciada no congresso sobre “A qualidade da integração escolar”, na cidade de Rimini, publicado na edição do dia 16/11/09 do jornal italiano La Repubblica e republicado em Política Democrática: Revista de Política e Cultura, ano 9, no 25, 2010. Tradução de Marco Mondaini. Agradeço a Marcelo Medeiros, meu consultor para assuntos de ciência política, por me haver presenteado com uma cópia de Política Democrática após um profundo debate relâmpago via msn sobre intolerância e democracia em Slavoy Zizek e Paul Ricoeur. Agora vai de presente para Tâmara e demais leitores do Cazzo. A propósito: Política Democrática é blog friendly e autoriza a divulgação de seus artigos, desde que citada as fonte.
Cynthia
Viver com os estrangeiros – que é o fundamento demográfico e social da exposição às diferenças e a qualquer espécie de alteridade - não é de forma alguma um fato novo na história moderna. Mas antes a ideia era, grosso modo, a de que qualquer um que fosse estranho, estrangeiro, diverso de você perderia mais cedo ou mais tarde o seu caráter de estrangeiro.
A política dominante em relação aos estrangeiros, durante a maior parte da história moderna, foi uma política de assimilação: “Vocês estão aqui, estão fisicamente vizinhos; tornemo-nos, pois, vizinhos também espiritualmente, mentalmente, eticamente”, o que quer dizer aceitar os mesmos valores universais, onde, porém, como “universais”, sempre eram entendidos os “nossos” valores. Assim, com essa perspectiva, na qual o ser estrangeiro era apenas um desagradável incômodo passageiro, não existia a ideia de dever aprender a viver com o diverso.
Agora, pela primeira vez na história moderna, conseguimos nos dar conta de que as coisas não são bem assim. A modernidade sempre foi um período de migrações massivas de pessoas de um continente a outro, de uma extremidade do mundo a outra, de uma cultura a outra, e a migração aconteceu por necessidade nas circunstâncias modernas em que, para as pessoas assim chamadas em excesso, pessoas para quem não se podia encontrar uma colocação na sua sociedade de origem, não havia espaço na nova ordem, no novo estado avançado do progresso econômico, sendo forçadas a viajar.
Todavia, há uma diferença: as migrações contemporâneas têm um caráter diaspórico, não assimilatório. As pessoas que vão para um outro país não vão com a intenção de se tornar como a população hóspede. E a população hóspede, nativa, não é particularmente interessada em assimilá-las. Existem cerca de 180 diásporas que convivem em Londres, 180 diversas línguas, culturas, tradições, memórias coletivas. E o problema é que se a política de assimilação não é mais facilmente percorrível, como podemos viver, dia após dia, com os estrangeiros? Como podemos comunicar, cooperar, viver em paz sem que nós percamos a nossa identidade e que eles percam a sua – portanto, em uma coabitação que não leve à uniformidade? Em outras palavras, a questão não é mais aquela de ser tolerante a pessoas diversas.
A tolerância, na verdade, é muito frequentemente uma outra face da discriminação. “Sou tolerante em relação aos teus hábitos e aos teus modos bizarros. Sou uma pessoa muito aberta, sou superior a ti. Compreendo que o meu estilo de vida é inaceitável para ti. Tu não podes alcançar o mesmo nível. Então, permito-lhe de seguir o teu estilo de vida, mas eu não o faria nunca se estivesse em você”. O desafio com que devemos nos confrontar hoje consiste em passar dessa atitude de tolerância a um nível mais alto, isto é, a uma atitude de solidariedade. Devemos nos resignar ao fato de que existem estrangeiros, mas também aprender a extrair vantagens. A maior parte de nós vive em grandes cidades. As cidades estão sempre cheias de estrangeiros e a sua presença é inquietante porque tu não sabes como se comportariam se não os mantivesse à distância – despertam suspeitas, causam horror simplesmente porque são entidades estranhas. Os estrangeiros metem medo. Chamei esse medo típico das cidades contemporâneas de mixofobia, a fobia de misturar-se com outras pessoas, porque lá onde nos misturamos a outras pessoas em um ambiente pouco familiar tudo pode acontecer. Mas a mesma condição de mistura com os estrangeiros provoca também uma outra atitude. Existem duas reações contraditórias ao fenômeno, ambas observáveis nas cidades contemporâneas. A segunda é a mixofilia, a legria de estar em um ambiente diverso e estimulante. Hannah Arendt foi provavelmente a primeira pensadora moderna que repensando Gotthold Ephraim Lessing, um dos pioneiros do iluminismo alemão, viu nele uma das figuras mais perspicazes entre os filósofos da primeira modernidade. Segundo Lessing, não é necessário limitar-se a aceitar o fato de que a diferença seja destinada a perdurar, mas é preciso efetivamente apreciá-la, reconhecer que há nesta um potencial criativo sem precedentes. O fato de colocar juntas experiências, recordações, visões de mundo muito diversas pode levar a uma prosperidade de desenvolvimento cultural. É muito cedo para dizer quais poderão ser os desenvolvimentos porque as duas tendências contrapostas, a mixofobia e a mixofilia, têm mais ou menos força igual. Às vezes prevalece uma, às vezes a outra. A questão é incerta e estamos ainda no meio de um processo que não sabemos bem como irá acabar. Aquilo que estamos fazendo nas ruas das cidades, nas escolas primárias e secundárias, nos lugares públicos onde estamos ao lado de outras pessoas é de extrema importância não somente para o futuro das cidades onde queremos transcorrer o resto da nossa vida, ou pelo menos onde vivemos no momento, mas é de suma importância para o futuro da humanidade. Vivemos em um mundo globalizado. A globalização alcançou um ponto de não retorno, não podemos andar para trás, estamos todos interconectados e interdependentes. O que acontece em lugares remotos tem um impacto formidável sobre as perspectivas de vida e sobre o futuro de cada um de nós. Então, chegou o momento de fazer aquilo que Lessing previu que deveríamos fazer, isto é, aprender a apreciar as oportunidades criadas pelas nossas diferenças. Confrontemo-nos com as conseqüências da globalização em cada estrada das cidades em que vivemos, em cada escola que ensinamos. Mas, por outro lado, pela mesma razão, as cidades, as escolas, são o laboratório em que desenvolvemos os modos para aprender, obter benefício, entesourar e alegrarmo-nos exatamente pela natureza diaspórica da realidade contemporânea. Não estou dizendo que se trata de um dever fácil. Confrontar-se com um desafio que os nossos antepassados nunca acolheram, nos põe de frente a um dever que coloca a dura prova a nossa mente e as nossas emoções, e que devemos conseguir enfrentar nos seus desdobramentos, no curso da obra, sem dispor de soluções pré-constituídas.
sábado, 20 de fevereiro de 2010
Terminar a Ditadura

Monumento Tortura Nunca Mais, Rua da Aurora, Recife. Projeto de autoria de Eric Perman, Albérico Paes Barreto, Luiz Augusto Rangel e Demetrio Albuquerque.
Luciano Oliveira (Professor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE)
Para Celma Tavares, Roberto Efrem Filho, José Luiz Delgado e Silke Weber
pelas concordâncias, mas também pelas eventuais discordâncias.
A ditadura brasileira, que começou como “revolução”, mudou para “regime militar” e agora é tratada pelo nome que verdadeiramente lhe cabe, continua, como uma alma penada, assombrando a vida política do país. Basta ver o que acontece agora com III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e toda a celeuma que têm provocado os dispositivos relativos à memória dos anos de chumbo no que eles têm de mais explosivo: os crimes cometidos pelos torturadores e o destino dos desaparecidos. Produzido a partir de seminários realizados em todo o país com forte participação das chamadas ONGs - Organizações não Governamentais, o Plano reflete razoavelmente o clima de militância que percorre esses eventos, nos quais palavras de ordem costumam receber adesões muitas vezes automáticas e, assim, deslizam sem maiores ponderações para as propostas finais. Ao serem chanceladas pela Presidência da República e se tornarem políticas de governo, podem levantar questões que a sociedade como um todo tem legitimidade para discutir. É o que faço.
No caso, o que me interessa é a questão das violações de direitos humanos durante o regime militar e o tratamento que o Plano propõe para esse candente assunto. Nesse itinerário, porém, expandirei o arco de minhas reflexões para ir além do Plano, até porque considero que ele é apenas mais um capítulo no embate que desde o fim dos anos de chumbo tem sido travado entre os militares e o que eles chamam de “revanchistas” - muitas vezes simples mães querendo saber onde prantear um filho desaparecido, repetindo com isso o gesto de Antígona há mais de dois mil anos, ao desafiar a ordem da Polis para dar uma sepultura a seu irmão. Mas, ao contrário do que pode sugerir a observação acima acerca dos esqueletos ainda trancados no armário do regime, já não partilho uma visão maniqueísta desse assunto. Passados 25 anos da entrega do poder aos civis, é mais do que tempo de tratarmos a ditadura militar como um objeto irremovível da nossa história. Isso está a exigir uma atitude mais objetiva e serena, e menos militante, dos que se dispõem a pensá-la. Que há exigências inafastáveis, há. O destino dos desaparecidos é a mais importante delas. Isso dito, entretanto, creio que “o direito à verdade histórica” - para usar os termos do Plano - precisa considerar, e não ter medo de enfrentá-los, certos fatos daqueles anos turvos que a nossa boa consciência de derrotados na “guerra suja” prefere esquecer, bem como rever certos mitos envolvendo a luta armada que se tornaram lugares comuns e que, talvez por receio de sermos confundidos com certos órgãos da grande imprensa aplicados na arte do desprezo a tudo que cheire a esquerda - a Veja com sua arrogância habitual é um bom exemplo disso -, não ousamos questionar. Precisamos fazê-lo para, como quer o Plano, “promover a reconciliação nacional”. O que se segue é uma pequena contribuição nesse sentido.
Relembrando rapidamente, o que irritou particularmente os militares foi a Diretriz 23 do Plano, que previa “a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil”. Como sempre, a queixa castrense reporta-se ao que seria a parcialidade do documento. No Brasil teria havido uma guerra, com vítimas dos dois lados. E se um lado praticou a tortura, o outro praticou terrorismo, assaltos, seqüestros etc. Nesse caso, por que a “apuração” apenas do que fez um dos lados? Depois da celeuma provocada pela reação de alto coturno, o presidente Lula assinou decreto mudando a redação: eliminou-se a menção ao “contexto da repressão política” e ficou a previsão genérica de “examinar as violações de direitos humanos praticadas no período”. Com isso, fica aberta a possibilidade de se esclarecerem também os atos praticados pela esquerda armada, que seriam igualmente violações de direitos humanos. A emenda não resolve o soneto.
De um lado, existem autores que sustentam a tese de que só o estado, por razões a um só tempo históricas, filosóficas e programáticas, deve ser considerado violador de direitos humanos [1] - tese, aliás, que conta com minha simpatia. A autoridade do poder judiciário pode adotá-la e tudo volta à estaca zero: apurar-se-ão, como violações desses direitos, apenas os crimes praticados no “contexto da repressão política”. Ademais, de um modo geral os que praticaram atos de terrorismo já foram punidos. Ou porque foram mortos, ou porque foram condenados pela Justiça Militar. Restaram talvez impunes os que conseguiram se exilar e foram condenados à revelia, mas não cumpriram pena. Enfim, as situações são várias e só um exame dos casos concretos permitiria configurar todas as nuances do quadro. Mas, na sua moldura geral, é isso: um dos lados já foi punido. Mesmo punidos, porém, muitos desses militantes praticaram ações que sua memória preferiria talvez esquecer, mas que a “verdade histórica” não pode contornar. Correndo o risco de ser mal compreendido, acho, sim, que o Plano está tisnado de parcialidade. Antes de seguir, respondo antecipadamente à eventual objeção de que numa matéria dolorosa como a dos desaparecidos não há, desde que falemos da perspectiva dos direitos humanos, como não tomar partido. Concordo inteiramente. Essa é uma das vertentes da Diretriz 23 que conta com a minha adesão total. Em relação a outras, entretanto, não posso calar o meu incômodo com o espírito de insuficiência que presidiu sua elaboração.
De um lado, é verdade, a acusação dos militares de que se trata de “revanchismo” não é inteiramente endossável, por razões que foram explicitadas já no longínquo ano de 1985 - quando, com a volta dos civis ao poder, começaram os primeiros ensaios de revisão da Lei de Anistia - pelo presidente nacional da OAB à época, Herman Assis Baeta: “Revanchismo é torturar o torturador. E não é isso que se quer.” Mas, de outro lado, é compreensível que os militares, lendo o documento, sintam-se tratados com espírito de parcialidade. O fenômeno é curioso e merece reflexão. Deu-se aqui no Brasil, como ocorreu noutras latitudes e longitudes dessa América Latina coalhada de ditaduras no último terço do século passado, um fenômeno digno de ser matéria à reflexão da Ciência Política: a derrota - pelo menos simbólica - dos vencedores! Os da minha geração - aqueles que já eram nascidos em 1964, foram para a universidade no governo Médici e portanto sabem o que é viver sob uma ditadura - lembram-se da famosa Lei de Segurança Nacional dos militares e de um dispositivo que considerava crime a “guerra psicológica adversa”, freqüentemente ridicularizado pelos críticos do regime pelo pleonasmo contido na expressão: afinal, toda guerra é adversa... Pois bem: os militares, ao cabo do seu regime, perderam a “guerra psicológica” que lhe moveram os derrotados - massacrados psicológica e fisicamente nas câmaras de tortura.
Retomo aqui brevemente uma questão tratada mais longamente noutro lugar [2]: a condenação moral que terminou se abatendo sobre os torturadores. Com efeito, depois de ter se tornado uma política de estado e de ter vitimado milhares de pessoas, a tortura dos militares brasileiros tornou-se uma realidade em si mesma e, como tal, gerou efeitos não previstos, não controlados e, sobretudo, não desejados pelos próprios vencedores da “guerra suja”: o seu opróbrio! Nesse sentido, não se pode afirmar que eles permaneceram completamente impunes. Além das penas morais que sobre eles recaíram, houve uma espécie de “punição” (bem soft, é verdade!) no processo lento e claudicante, mas que, com idas e vindas, terminou se impondo: o do isolamento paulatino dos oficiais diretamente envolvidos na repressão política, afastando-os de postos de confiança e discretamente preterindo-os em promoções por merecimento. De tal forma que, em 1995, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o projeto de lei reconhecendo e assumindo, em nome do Estado brasileiro, “a responsabilidade das transgressões cometidas à lei e aos direitos humanos” durante o regime militar, a “linha-dura” das três forças militares estava “na reserva ou sem a mínima condição de alcançar o generalato” ─ o que tornou pífio e sem maiores repercussões o protesto de algumas vozes que nos quartéis se ergueram contra o projeto (IstoÉ, 06.09.95). O nosso e outros casos (Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo) contrariam um antigo postulado ─ o de que a história é sempre contada pelos vencedores. A “guerra suja” que se deu no Brasil e na América Latina nos anos 60 e 70 mostrou que os vencidos podem ter a última palavra ─ no caso, quando os vencedores ganham a guerra valendo-se de métodos que cobrem de vergonha aqueles que os empregam, perdendo com isso os louros da glória e a legitimidade para narrar seus feitos.
Mas o outro lado tem também feitos dos quais os próprios autores - já há bastante tempo, aliás - fizeram um mea culpa: a luta armada e as ações que lhe eram inerentes: assaltos a bancos, atentados terroristas etc. [3] Apesar disso, a verdade é que há em vigor uma espécie de senso-comum crítico do regime militar que prefere ignorar esses matizes que compõem o quadro turvo daquela época. O horror inominável das câmaras de tortura dos DOI-CODIs não autoriza que ignoremos essa parte da história ou que, quando a apresentamos, façamo-lo de maneira enviesada, como muitas vezes ocorre. Refiro-me especificamente a duas ou três notações que integram aquele senso-comum e que muitas vezes vemos circular de forma impressa em artigos de jornais e revistas: a de que a luta armada só ocorreu por causa do regime militar e em decorrência dele; que os opositores do regime eram democratas lutando pela volta do estado de direito; e, finalmente, que a pecha de terroristas foi uma etiqueta injustamente colada nas costas dos militantes pela ditadura, para indispô-los junto à população. Todas três são parcialmente verdadeiras e parcialmente falsas!
Para começar, o projeto da luta armada como forma de edificar o socialismo no Brasil é bem anterior a 1964. Para não ir muito longe - o que nos faria recuar pelo menos à Coluna Prestes -, basta lembrar o famoso racha no Partido Comunista Brasileiro, o PCB, de onde saiu o PC do B, ocorrido em 1962. A dissidência se deu justamente por causa do “pacifismo” do velho “Partidão”, naquele momento contrário às teses da insurreição armada para chegar ao poder. No Manifesto da nova organização, “as forças sociais em ascensão” são convocadas a instalar um “governo popular revolucionário”, e o exemplo cubano, bem recente, mostrava que isso não se daria pelo voto... Isso ocorreu dois anos antes de 1964. O golpe militar, obviamente, levou água ao moinho dos partidários da luta armada. Daí que, em 1967, o “Partidão” sofre uma nova cisão, dessa vez protagonizada por Marighella, que em 1967 sai do PCB e cria a Aliança Libertadora Nacional (ALN), a qual, sem meias medidas, anuncia no seu Manifesto que o seu caminho será o da “violência, do radicalismo e do terrorismo”, a seu ver as únicas armas eficazes para se contrapor “à violência inominável da ditadura”. Era o governo Castello Branco e, convenhamos, a violência até então ainda não era “inominável”. A partir de dezembro de 1968, com o Ato institucional n. 5, será.
Em resumo, essa não é uma história inteiramente maniqueísta opondo bandidos fascistas de um lado e mocinhos democratas do outro. No Brasil houve, sim, pelo menos como tentativa - canhestra, isolada, fadada ao fracasso, sem dúvida -, uma guerra revolucionária. E a resposta do regime, que já era ilegítimo porque fruto de um golpe, foi mergulhar de vez na ilegalidade com a brutalidade dos torturadores. É aqui que as notações do senso-comum são, também, parcialmente verdadeiras. A partir de determinado instante, ainda no governo Médici, já não havia mais terroristas no Brasil. Estavam mortos, presos ou exilados. Aí começou a pior das perversões. O aparato de segurança - a “tigrada”, como chama Elio Gaspari; os “revolucionários sinceros mas radicais”, como chamava o general Geisel -, ciosa do poder que havia conquistado nos desvãos do regime, começou a inventar terroristas. É nesse contexto que ocorre o assassinato - que alguns consideram ter sido uma “provocação” ao projeto de “distensão” de Geisel - de pessoas como Vladimir Herzog, comunista de carteirinha, certo, mas conhecido jornalista e pacifista convicto. Nessa época, os presos, torturados, mortos ou desaparecidos já não aspiravam outra coisa senão a volta ao estado de direito, onde a luta por uma sociedade mais justa poderia continuar nos quadros de um regime democrático. Aqui não há como não ser maniqueísta. Com isso quero dizer que são coisas diferentes, moralmente, filosoficamente, doutrinariamente falando, as execuções de revolucionários como Marighella e Lamarca, de um lado, e o assassinato abjeto de militantes como Herzog, de outro.
Segundo reporta Elio Gaspari, em determinado instante do governo Geisel oficiais lúcidos como Golbery do Couto e Silva, comprometidos com o projeto de “distensão”, perceberam que os torturadores teriam de ser isolados, “para que o Exército pudesse ser salvo”. Acho que seria dramático demais dizer, nesse momento, que essa salvação ainda está na ordem do dia. Mas continuam na ordem do dia as graves violações de direitos humanos que ele aceitou, praticamente institucionalizou e, finalmente, cobriu. Continua acobertando até hoje e, assim, arcando com as conseqüências. Passados quase trinta anos daqueles dolorosos eventos, é hora de levantar e jogar fora esse lençol. Nem que seja porque a recusa desse mea culpa continua alimentando mitologias como as que li um dia desses numa revista de sociologia a respeito da tortura que continua uma prática corriqueira da polícia no país - a de que ela seria uma “herança da época da ditadura militar”. Nada mais simplificador. Falso, até. A violência física contra presos comuns, criminosos de verdade ou simples suspeitos, é uma constante na nossa história. O que acontece durante a ditadura militar é que ela abandona o gueto popular onde normalmente está confinada e atinge setores médios e mesmo altos da sociedade brasileira. É interessante observar que o torturador emblemático dos anos de chumbo foi um civil, o delegado Sérgio Fleury, que já exercia seu execrável ofício na polícia de São Paulo antes de ter o seu know-how aproveitado pela repressão política. No capítulo da tortura política, a verdade é essa, o regime de 1964 - talvez seja mais exato dizer o regime de 1968 - não foi inteiramente original. Na ditadura anterior, a de Vargas, a polícia política comandada por Felinto Müller praticou misérias. Harry Berger, um comunista alemão que andava por aqui fomentando a revolução, preso juntamente com Luiz Carlos Prestes, foi tão torturado que enlouqueceu. Em Prestes ninguém tocou. Esses fatos estão relatados num livro hoje esquecido do jornalista David Nasser, muito apropriadamente chamado Falta Alguém em Nuremberg. Nasser era um jornalista inescrupuloso, mas o seu relato é confirmado por outras fontes, inclusive Graciliano Ramos, que conheceu as prisões do Estado Novo e narrou episódios como os descritos por Nasser no monumental Memórias do Cárcere. Na ditadura anterior, porém, o trabalho sujo ficou a cargo da polícia civil, já acostumada a esse gênero de trabalho. O Exército, como instituição, não se meteu. A partir de 1968, porém, chamou para si essa tarefa inglória.
Essa história, antiga de trinta anos, precisa passar. Mas para isso precisa ser passada a limpo. Com o que abordo a questão da Lei de Anistia e de sua revisão. O Plano não prevê isso diretamente, mas implicitamente essa possibilidade está na Diretriz nº 25, a qual prevê a “revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos Direitos Humanos ou tenham dado sustentação a graves violações” – grifei. A Lei de 1979 se enquadraria nesse último quesito. Aqui se abrem duas ordens de consideração: uma no plano do ser, outra no do dever-ser. No primeiro deles, que é o da sociologia e da história, mas também da política, não vejo essa possibilidade. Uma revogação terá de se dar mediante lei, votada pelo Congresso Nacional - e os nossos políticos, como já disse o ministro Nelson Jobim por ocasião dos trinta anos da Lei de Anistia, devem gastar energia “construindo o futuro”, não remoendo o passado (Folha de S. Paulo, 23.08.09). É comum ouvirmos referências aos casos argentino e chileno, onde as leis de auto-anistia que os militares se deram foram revogadas - ou ainda, no que é sem dúvida uma enormidade, comparações com a Alemanha hitlerista, que procedeu a uma política sistemática de desnazificação do país depois da Segunda Guerra e da volta aos quadros da democracia parlamentar. Nesse último caso, a comparação é mera retórica, não pode ser levada a sério. Mas os casos chileno e argentino, nos quais segundo alguns deveríamos nos mirar, merece ser refletido. Há, no meu modo de ver, diferenças significativas entre a ditadura dos dois países e a nossa própria experiência ditatorial. Um aspecto interessante é que, naqueles dois casos, a vida política institucional foi extinta. Os ditadores governaram sozinhos, sem terem de compor com partidos políticos, negociar apoio etc. No Brasil, mesmo que a maior parte do tempo sob a forma de simulacro, as instituições - em que pese os episódicos fechamentos do Congresso - mantiveram-se em funcionamento a maior parte do tempo. Às vezes, como ocorreu nas eleições legislativas de 1974, o governo sofreu grandes revezes. Embora não houvesse dúvidas sobre onde de fato estava o poder, a manutenção de um Congresso funcionando fez dos políticos partícipes do jogo e atores não negligenciáveis na hora em que se negociou a transição do regime. Muitos ainda estão na ativa. Alguém tem dúvidas sobre qual seria a sua posição frente a um projeto de revogação de uma lei pela qual eles foram co-responsáveis? Penso também na ministra Dilma Rousseff. Ex-torturada, pode ser a partir de 2011 a Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Brasileiras. Não creio que ela tenha nenhum interesse em hostilizar eventuais futuros comandados - de quem a primeira qualidade que exige quem comanda é a lealdade...
Diferentemente do que ocorreu por aqui - onde, inclusive, havia rotatividade nos generais presidentes, todos sacramentados por um Colégio Eleitoral -, naqueles dois países a ditadura concentrou-se em dois nomes sobre quem foi mais fácil cair todo o ódio reprimido: os generais Pinochet e Videla. Este foi finalmente substituído pelo general Galtieri, que empreendeu a campanha desastrosa de retomada das Ilhas Malvinas, provocando uma guerra com a Inglaterra que a Argentina perdeu. Humilhados pela derrota, os generais portenhos foram praticamente enxotados do poder. Além disso, ponto a não negligenciar é a diferença brutal nos números de mortos e desaparecidos. O número estimado de 400 mortos pelo regime militar brasileiro - entre os quais estão cerca de 140 desaparecidos - é sem comum medida com a carnificina promovida pelos regimes de Pinochet e Videla. No passivo argentino, números por baixo chegam à cifra impressionante de cerca de 20 mil mortos e desaparecidos. Para a mãe ainda viva de um desaparecido político brasileiro, o raciocínio pode parecer cínico e cruel. Mas, sociologicamente falando, por mais que seja triste dizer, o pequeno número de vítimas fatais, no Brasil, não me parece capaz de impactar e mobilizar a sociedade brasileira em torno de um projeto desse tipo. Note-se que, entre nós, os grupos de familiares de desaparecidos nunca tiveram a visibilidade e a importância que têm até hoje, na Argentina, as Mães da Praça de Maio.
Isso no plano do ser. E do dever-ser? Não escondo que, aqui, os julgamentos subjetivos é que comandam. De forma consciente, não me socorro das tecnicalidades jurídicas que são de inútil valia para decisões desse tipo. Igual ao que ocorre com as grandes questões que envolvem engajamentos políticos ou morais (caso da pena de morte, das quotas nas universidades etc.), dificilmente as pessoas, antes de decidir-se contra ou a favor, vão consultar as leis e, depois de um exame acurado, chegam à solução juridicamente correta. O processo é, de um modo geral, inverso: só depois que já têm uma opinião, é que as pessoas vão procurar os argumentos jurídicos para municiar, confortar e reforçar sua posição. No caso presente, por exemplo, há matéria a gosto. A tortura é crime imprescritível, dizem uns, porque o Pacto de São José da Costa Rica, de 1969, assim o considera. Mas, lembra quem tem a opinião contrária, o Pacto só foi ratificado pelo Brasil em 1992 - depois dos cometimentos dos crimes, portanto [4]. Num mesmo diapasão contra a revisão, outro jurista lembra que a condição de anistiado é direito adquirido que a Constituição vigente (art. 5º, inciso xxxvi) manda respeitar [5]. Saltando por cima de todas essas filigranas, entretanto, quem decididamente se posiciona pela revisão considera que, enquanto crime contra a humanidade, a tortura é imprescritível, independentemente disso ter sido pactuado ou não - jurisprudência moderna de que o Julgamento de Nuremberg, ao agir retroativamente, é um marco obrigatório.
De meu lado, portanto, não me valho de nenhum desses argumentos. Antes de expor meus motivos, anuncio logo de saída que sou dos que se posicionam contra a revisão da Lei de Anistia. As razões para isso são de variada ordem. Em primeiro lugar, parece-me que uma medida dessa natureza desconsidera o contexto histórico e os atores sociais que, naquele momento, negociaram, pechincharam, arrancaram promessas e, em 22 de agosto de 1979, terminaram aprovando a Lei como ela, com pequenas alterações, tinha sido proposta pelo Executivo. Não foi uma jornada fácil. O projeto terminou passando por uma votação apertadíssima: 206 a 201 - cinco votos apenas de diferença! E isso num Congresso em que o governo tinha, teoricamente, confortável controle da situação graças à esdrúxula figura do “senador biônico”, criada pelo general Geisel em 1977 para garantir a vitória da ARENA nas eleições do ano seguinte. Curiosamente, a grande questão que dividia os congressistas naquele momento não era o que fazer com os torturadores, implicitamente contemplados no slogan “anistia ampla, geral e irrestrita”, que era a bandeira da oposição e dos movimentos pela anistia. A correlação de forças ainda pendia tão fortemente para o lado da ditadura, que a punição dos torturadores não seria uma reivindicação realista. O projeto substitutivo preparado pela oposição, que terminou derrotado, nem previa isso. A grande discussão da época referia-se aos presos condenados por “crimes de sangue” ou por tentativa de reorganização de partido ilegal (o Partido Comunista, obviamente), que o projeto do governo deixava de fora. Eram pouco mais de 50 os que se encontravam nessa situação. Pressionado pela “linha dura”, o Planalto não cedeu. Off the records, porém, pactuou com os líderes da oposição que haveria revisão de sua situação. De fato, através de uma política de revisão e diminuição das penas, rapidamente adotada, quase todos foram soltos nos meses seguintes. Em dezembro daquele mesmo ano, praticamente já não havia presos políticos no país. Resumindo o sentimento então dominante, o senador Teotônio Vilela, antigo arenista que no fim da vida abraçou a causa da anistia e tornou-se o valoroso “menestrel das Alagoas, disse: “Se houve morte de parte a parte, houve sangue de parte a parte. A substância profunda da anistia está em reconciliar a nação.” Até na nossa melhor música popular isso verberou. Um dos grande sucessos de Gilberto Gil em 1979 foi a comovente Não chores mais, cujos versos - quem não lembra? - diziam:
“Amigos presos
Amigos sumindo assim
Pra nunca mais
Tais recordações
Retratos do mal em si
Melhor é deixar pra trás...”
Não creio que se deva fazer tabula rasa dessa história pelo fato de a conjuntura histórica ser hoje bem diferente. Trinta anos se passaram do reinado tenebroso dos DOI-CODIs e a impunidade dos torturadores, por mais que seja pouco glorioso dizê-lo, foi uma das condições para que pudéssemos ter retomado a história brasileira das mãos da ditadura militar. Desde então, aos trancos e barrancos, estamos construindo uma democracia no país. Os políticos que no já longínquo ano de 1979 transigiram, agiram com aquilo que Max Weber chamaria de ética de responsabilidade, diferentemente da ética de convicção, pela qual, segundo o adágio latino, fiat iustitia et pereat mundus (“faça-se justiça, mesmo que pereça o mundo”). Na vida real, às vezes é preciso deixar a justiça de lado para salvar o mundo - no caso, para salvar o processo de redemocratização então nascente. Ninguém sabe o que teria acontecido se não tivéssemos aceitado a anistia conforme proposta por Figueiredo. Não se pode contar uma história que não aconteceu, mas pode-se especular. Mesmo sabendo que a história é muitas vezes feita do inesperado, é razoável supor, considerando a correlação de forças da época, que o bloqueio da anistia proposta pelo governo teria desviado o curso da “Abertura” do presidente Figueiredo. Poderia ter sido melhor, mas também poderia ter sido pior. O que é possível afirmar com segurança é que, sem a salvaguarda dos interesses dos “revolucionários sinceros, mas radicais” (Geisel), não teríamos tido a anistia de 1979. Ainda nos momentos finais do regime, quando se tornou claro que Figueiredo não conseguiria fazer seu sucessor, mesmo num Colégio Eleitoral tão submisso no passado, o virtual novo presidente, Tancredo Neves, como bom mineiro, “articulou um pacto secreto com as Forças Armadas no qual trocou a promessa de esquecimento dos crimes cometidos nos porões do regime militar pela garantia de que, caso fosse eleito, tomaria posse.” [6]
Vinte e cinco anos depois, o contexto é bem outro, mas o espírito de corpo das Forças Armadas continua mais que sensível a essa questão, como se viu na reação ao III PNDH. Segundo Paulo Vannuchi, principal artífice do Plano, “quando chega nesse tema da apuração da verdade, é que provavelmente o sentimento corporativo se fecha. Provavelmente quem está no comando hoje não tem a mão suja de sangue, mas foi aluno de, foi subordinado de...” [7] Seria talvez interessante especular até onde iria esse espírito corporativo, caso a Lei de Anistia fosse revista. Mesmo não acreditando na possibilidade extrema de um golpe - que clima haveria, hoje, para isso? -, provavelmente assistiríamos a pronunciamentos irados, desobediência a intimações para depoimento, renúncias de ministros etc. Acho, entretanto, que esse exercício de especulação seria vão, porque, pelas razões que já apontei, não vejo nenhuma possibilidade de o Congresso Nacional rever uma decisão de trinta anos atrás que, malgrado todos os limites de então, foi negociada. Além do mais, e aqui pra nós, não consigo ver nossa classe política, na sua maioria tão rala de convicções, peitando generais irritados. Todos, ou quase todos, se refugiariam na bandeira da construção do futuro...
De resto, mesmo os que propõem a revisão ou a revogação da Lei, com a conseqüente abertura de avenidas legais para arrastar os torturadores aos tribunais, não são muito entusiasmados com os seus resultados práticos. Defendendo a revisão, o ministro Tarso Genro disse em entrevista: “Quando estamos falando em punir torturadores, não estamos dizendo que essas pessoas irão para a cadeia, porque são pessoas que normalmente têm mais de 80 anos. Os fatos têm de ser apurados e as pessoas têm de ser sentenciadas” (Folha de S. Paulo, 23.08.09). Parece, no caso, que a expectativa gira mais em torno de uma condenação simbólica do que efetiva – com cumprimento de pena, quero dizer. Ora, nesse caso, por tudo o que já disse, acho que essa condenação já existe. Se não num plano jurídico, certamente num plano moral e político.
Finalmente, resta a questão dos desaparecidos – as circunstâncias de suas mortes e onde os restos mortais foram enterrados, se o foram. Podem ter sido queimados, jogados em alto-mar – e assim por diante. Já aqui, estamos numa espécie de patamar de que não podemos nem devemos recuar! Até porque mortos insepultos, como esqueletos no armário, sempre estarão assombrando os vivos. É incompreensível, absurdo e inaceitável a postura das Forças Armadas que se recusam até hoje a encarar esse assunto com a seriedade e com o espírito de colaboração que ele exige. Até porque aqui já não se trata de proteger companheiros de farda - a maioria certamente já de pijama - que se dispuseram a fazer o trabalho sujo dos porões, o qual, de toda evidência, foi feito com o conhecimento e o aval dos altos escalões das Forças Armadas. O novelo de culpas, se puxado, vai alcançar até a memória do presidente Geisel, que em surpreendente depoimento, anos depois de deixar a presidência, confessou: “Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões [...] Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior!” [8] Esse mesmo Geisel, entretanto, que, desafiado pela “tigrada” (Elio Gaspari), acuou os torturadores depois da morte de Herzog, demitiu o ministro do Exército Sílvio Frota - candidato da “linha dura” à sua sucessão -, bancou, com idas e vindas, a “distensão” e, na saída do poder, revogou o Ato Institucional n. 5, com isso começando efetivamente o desmonte da ditadura. Realmente, Maniqueu não é o melhor patrono para a História...
E no entanto, na questão dos desaparecidos temos de permanecer maniqueístas! Não há transigência possível. As Forças Armadas brasileiras continuam em débito com o dever ético de tornar públicos os arquivos e informações que detenha sobre o destino desses adversários mortos. Isso, sim, as reconciliaria de vez com a Nação. Falei em dever ético, mas talvez seja mais forte falar no simples dever de compaixão para com as mães, irmãos e filhos dos que desaparecem na “noite e na névoa” sem deixar traço. A ética de convicção, nesse assunto, não será abandonada pelo menos enquanto uma mãe como a de Fernando Santa Cruz, desaparecido em 1974, se perguntar todos os dias de sua vida como faz até hoje: “Onde está o meu filho?” [9].
Recife / Piedade, Carnaval de 2010
Notas
[1] Ver, por exemplo, Rodrigo Uprimny, “Violência, Ordem Democrática e Direitos Humanos”, in: Lua Nova, São Paulo, CEDEC, nº 30, 1993.
[2] Luciano Oliveira, “Ecos do Porão – Segurança Nacional e Tortura: eficácia e contra-eficácia”, in: Marcos Aurélio Guedes de Oliveira (org.), Segurança e Governança nas Américas, Recife, NEA / UFPE / CNPQ, 2009.
[3] Sobre isso, remeto à extensa literatura memorialística dos que pegaram em armas contra o regime, da qual o livro paradigmático de Fernando Gabeira, O que é isso, companheiro?, é um bom exemplo.
[4] Ver entrevista com o advogado José Paulo Cavalcanti Filho, Jornal do Commercio, Recife, 10.01.2010.
[5] Ver Anistia e Tortura, texto inédito do professor de Direito Constitucional Luiz Delgado Filho, gentilmente cedido ao autor.
[6] Lucas Figueiredo, Olho por Olho – Os livros secretos da ditadura, Rio de Janeiro / São Paulo, Editora Record, 2009, p. 56.
[7] Entrevista à revista Caros Amigos, dezembro de 2009.
[8] Ver Maria Celina D’Araújo e Celso Castro, Ernesto Geisel, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1977, pp. 224-225.
[9] Título de uma coletânea organizada por Chico de Assis et alii, Onde está meu Filho?, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.