
Descrever as condições de possibilidade do conhecimento é considerado por Winch como uma pergunta essencial para as ciências sociais na medida em que a vida social depende do nosso conhecimento acerca dela ou, dito de outra forma, as relações sociais entre as pessoas dependem das nossas idéias sobre a realidade e sobre essas relações. Daí sua famosa frase: “as relações sociais são expressões de idéias sobre a realidade” (Ibid.: 23). A aproximação, quase ao ponto identitário, entre filosofia e sociologia é então estabelecida: esta é entendida como a disciplina que procura entender a natureza dos fenômenos sociais; entender a natureza dos fenômenos sociais significa elucidar o conceito de forma de vida, que é também o objetivo da epistemologia. Winch admite que o ponto de partida da sociologia é diferente do ponto de partida da epistemologia, no entanto, as duas estariam de fato muito próximas: a sociologia é concebida por ele como uma “epistemologia que foi mal planejada”, isto é, ele acredita que os problemas da sociologia foram mal construídos e, portanto, mal manejados, dado que foram tratados como problemas científicos. E isto ocorreu, em parte, porque o tratamento da linguagem foi, até Wittgenstein, colocado de forma equivocada: não é que inicialmente exista uma linguagem na qual as palavras têm um significado estabelecido e as sentenças podem ser tratadas como verdadeiras ou falsas e, depois, esta linguagem entra nas relações sociais. Na verdade, para o autor, as categorias de significado são, elas próprias, logicamente dependentes (para que tenham sentido) das relações entre as pessoas. Pense, por exemplo, no significado de uma palavra como negro: seu significado depende das relações sociais no seio das quais o termo é usado e não da cor da pele que se apresenta objetivamente aos nossos sentidos.
É por esta razão que as idéias são consideradas o próprio objeto das instituições sociais e o que nós pensamos acerca da realidade social, ou os conceitos que usamos para nos referirmos a ela, constituem o objeto das ciências sociais. Mas o que eu penso acerca da realidade não constitui um sentido privado e cada forma de vida a partir da qual meu sentido deriva refere-se a um aspecto particular da realidade (a jogos de linguagem específicos) e tais aspectos não podem ser comparados. É isto que gera um certo hermetismo em relação às formas de vida, tornando a tradução impossível – e impossibilitando que os leões sejam compreendidos.
Recapitulando: compreender a natureza de um fenômeno social é elucidar o significado de uma forma de vida e, dado que este também é o objetivo da epistemologia, as ciências sociais têm uma relação como esta que não encontra equivalência nas ciências naturais. Isto significa, para Winch, que o objeto das ciências sociais é mais complexo que o das ciências naturais e sua maior complexidade implica conceitos logicamente distintos daqueles utilizados na explicação causal.
A inadequação da explicação causal para as ciências sociais é demonstrada por meio da crítica à visão de J. S. Mill de que “compreender uma instituição social consiste em observar as regularidades no comportamento de seus participantes e expressar tais regularidades sob a forma de generalizações” (Winch, 1968: 86). O problema que Winch percebe nesta abordagem diz respeito à questão de como observar tais regularidades: a fim de estabelecer que o mesmo tipo de fenômeno ocorreu em duas situações diferentes (uma condição da generalização), o cientista natural deve se referir às regras que regem a investigação científica; para estabelecer que o mesmo tipo de comportamento ocorreu em duas situações distintas, o cientista social deve se referir não apenas às regras que regem a investigação social, mas também àquelas que definem o que, numa situação específica, conta como “estar fazendo a mesma coisa”. Neste sentido, embora Winch não descarte a possibilidade de se identificar regularidades na vida social, a forma como apreendemos essas regularidades é fundamentalmente diferente da forma como um cientista natural o faz.
Essas diferenças também são enfatizadas na crítica que ele faz ao processo weberiano de se checar a validade das interpretações em termos daquilo que Weber chama de “conhecimento nomológico” (com base na formulação de regularidades estatísticas baseadas na observação empírica). Na verdade, Winch questiona a idéia de que o Verstehen é logicamente incompleto, devendo ser complementado por um método naturalista. Para ele, uma interpretação equivocada deve ser substituída por uma interpretação melhor, não por algo logicamente diferente. Aqui, talvez Winch esteja contaminado por uma interpretação positivista de Weber. Como William Outhwaite (1986) argumentou, Weber coloca a necessidade de verificar a validade de uma interpretação naquelas circunstâncias em que uma pluralidade de explicações parecem fazer igualmente sentido em uma forma de vida. Isto sugere que, para Weber, não existe uma diferença muito nítida entre motivos, razões e causas e o ponto realmente importante levantado por ele foi o de que a compreensão das ações envolve a compreensão de intenções, motivos e razões.
A exclusão de relações causais do domínio da sociedade humana confere uma forma muito particular à compreensão advogada por Winch. As conexões lógicas envolvidas nas ciências sociais dizem respeito a conceitos, não a eventos empíricos, e tais conexões apresentam um caráter intrínseco (ou necessário), no sentido de que a existência dos fenômenos sociais não apenas é dependente dos conceitos usados para descrevê-los, mas idêntica a eles! O ideal e o real parecem coincidir de forma absoluta. Se é este o caso, apesar das afirmações de Winch em contrário, a linguagem dos cientistas sociais deve coincidir com a linguagem “nativa” – o que leva ao questionamento da utilidade das ciências sociais.
Acredito que parte do problema que leva a isto é uma concepção excessivamente hermética da idéia de forma de vida. Winch adere a uma perspectiva holística radical segundo a qual a linguagem (e as formas de pensamento) de uma cultura só são compreensíveis em seus próprios termos e isto, no limite, impede a compreensão, pelo menos a compreensão daquilo que interessa: não apenas o estrangeiro não pode penetrar na linguagem nativa, dado que não pode se livrar de seus próprios horizontes, mas isto geraria um problema mesmo para a socialização infantil. Como a criança nascida em uma determinada comunidade poderia aprender a linguagem de seus pais e assimilar sua cultura se ela não compartilha dos seus conceitos antes de aprendê-los?
Este holismo radical pressupõe, ainda, que as idéias de uma dada cultura ou sociedade são absolutamente homogêneas, e todos sabemos que este não é o caso. Especialmente depois dos pós-estruturalistas, sabemos que os diversos significados atribuídos por grupos sociais distintos estão em uma luta constante por hegemonia, isto é, eles são contestados, negociados, desestabilizados.
Foi contra este essencialismo lingüístico radical que Julieta se insurgiu quando pediu a Romeu que renunciasse ao seu nome. Ao contestar as referências simbólicas que identificavam um Montecchio com um inimigo, ela estava contestando os pressupostos, valores e práticas de sua forma de vida. Além disso, contrariamente a Winch, que defende que o significado de uma ação deriva exclusivamente do sistema de regras que guia o comportamento, e nunca de suas intenções, ao levar a sério a resposta de Romeu, Julieta reintroduz a subjetividade do agente de uma forma que Winch jamais conseguiu fazer. E Romeu? Ah, carcamano do inferno...
Gellner, Ernest. (1974) The New Idealism: Cause and Meaning in the Social Sciences. Anthony Giddens (ed.) Positivism and Sociology. Londres: Heinemann.
Outhwaite, William (1986). Understanding Social Life: The Method Called Verstehen. Lewes: The Beacon Press.
Winch, Peter (1958) The Idea of a Social Science: and its Relation to Philosophy. Londres: Routledge.
Cynthia Hamlin