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quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Romeu, Julieta e Peter Winch (Parte II)



Descrever as condições de possibilidade do conhecimento é considerado por Winch como uma pergunta essencial para as ciências sociais na medida em que a vida social depende do nosso conhecimento acerca dela ou, dito de outra forma, as relações sociais entre as pessoas dependem das nossas idéias sobre a realidade e sobre essas relações. Daí sua famosa frase: “as relações sociais são expressões de idéias sobre a realidade” (Ibid.: 23). A aproximação, quase ao ponto identitário, entre filosofia e sociologia é então estabelecida: esta é entendida como a disciplina que procura entender a natureza dos fenômenos sociais; entender a natureza dos fenômenos sociais significa elucidar o conceito de forma de vida, que é também o objetivo da epistemologia. Winch admite que o ponto de partida da sociologia é diferente do ponto de partida da epistemologia, no entanto, as duas estariam de fato muito próximas: a sociologia é concebida por ele como uma “epistemologia que foi mal planejada”, isto é, ele acredita que os problemas da sociologia foram mal construídos e, portanto, mal manejados, dado que foram tratados como problemas científicos. E isto ocorreu, em parte, porque o tratamento da linguagem foi, até Wittgenstein, colocado de forma equivocada: não é que inicialmente exista uma linguagem na qual as palavras têm um significado estabelecido e as sentenças podem ser tratadas como verdadeiras ou falsas e, depois, esta linguagem entra nas relações sociais. Na verdade, para o autor, as categorias de significado são, elas próprias, logicamente dependentes (para que tenham sentido) das relações entre as pessoas. Pense, por exemplo, no significado de uma palavra como negro: seu significado depende das relações sociais no seio das quais o termo é usado e não da cor da pele que se apresenta objetivamente aos nossos sentidos.

É por esta razão que as idéias são consideradas o próprio objeto das instituições sociais e o que nós pensamos acerca da realidade social, ou os conceitos que usamos para nos referirmos a ela, constituem o objeto das ciências sociais. Mas o que eu penso acerca da realidade não constitui um sentido privado e cada forma de vida a partir da qual meu sentido deriva refere-se a um aspecto particular da realidade (a jogos de linguagem específicos) e tais aspectos não podem ser comparados. É isto que gera um certo hermetismo em relação às formas de vida, tornando a tradução impossível – e impossibilitando que os leões sejam compreendidos.

Recapitulando: compreender a natureza de um fenômeno social é elucidar o significado de uma forma de vida e, dado que este também é o objetivo da epistemologia, as ciências sociais têm uma relação como esta que não encontra equivalência nas ciências naturais. Isto significa, para Winch, que o objeto das ciências sociais é mais complexo que o das ciências naturais e sua maior complexidade implica conceitos logicamente distintos daqueles utilizados na explicação causal.

A inadequação da explicação causal para as ciências sociais é demonstrada por meio da crítica à visão de J. S. Mill de que “compreender uma instituição social consiste em observar as regularidades no comportamento de seus participantes e expressar tais regularidades sob a forma de generalizações” (Winch, 1968: 86). O problema que Winch percebe nesta abordagem diz respeito à questão de como observar tais regularidades: a fim de estabelecer que o mesmo tipo de fenômeno ocorreu em duas situações diferentes (uma condição da generalização), o cientista natural deve se referir às regras que regem a investigação científica; para estabelecer que o mesmo tipo de comportamento ocorreu em duas situações distintas, o cientista social deve se referir não apenas às regras que regem a investigação social, mas também àquelas que definem o que, numa situação específica, conta como “estar fazendo a mesma coisa”. Neste sentido, embora Winch não descarte a possibilidade de se identificar regularidades na vida social, a forma como apreendemos essas regularidades é fundamentalmente diferente da forma como um cientista natural o faz.

Essas diferenças também são enfatizadas na crítica que ele faz ao processo weberiano de se checar a validade das interpretações em termos daquilo que Weber chama de “conhecimento nomológico” (com base na formulação de regularidades estatísticas baseadas na observação empírica). Na verdade, Winch questiona a idéia de que o Verstehen é logicamente incompleto, devendo ser complementado por um método naturalista. Para ele, uma interpretação equivocada deve ser substituída por uma interpretação melhor, não por algo logicamente diferente. Aqui, talvez Winch esteja contaminado por uma interpretação positivista de Weber. Como William Outhwaite (1986) argumentou, Weber coloca a necessidade de verificar a validade de uma interpretação naquelas circunstâncias em que uma pluralidade de explicações parecem fazer igualmente sentido em uma forma de vida. Isto sugere que, para Weber, não existe uma diferença muito nítida entre motivos, razões e causas e o ponto realmente importante levantado por ele foi o de que a compreensão das ações envolve a compreensão de intenções, motivos e razões.

A exclusão de relações causais do domínio da sociedade humana confere uma forma muito particular à compreensão advogada por Winch. As conexões lógicas envolvidas nas ciências sociais dizem respeito a conceitos, não a eventos empíricos, e tais conexões apresentam um caráter intrínseco (ou necessário), no sentido de que a existência dos fenômenos sociais não apenas é dependente dos conceitos usados para descrevê-los, mas idêntica a eles! O ideal e o real parecem coincidir de forma absoluta. Se é este o caso, apesar das afirmações de Winch em contrário, a linguagem dos cientistas sociais deve coincidir com a linguagem “nativa” – o que leva ao questionamento da utilidade das ciências sociais.

Acredito que parte do problema que leva a isto é uma concepção excessivamente hermética da idéia de forma de vida. Winch adere a uma perspectiva holística radical segundo a qual a linguagem (e as formas de pensamento) de uma cultura só são compreensíveis em seus próprios termos e isto, no limite, impede a compreensão, pelo menos a compreensão daquilo que interessa: não apenas o estrangeiro não pode penetrar na linguagem nativa, dado que não pode se livrar de seus próprios horizontes, mas isto geraria um problema mesmo para a socialização infantil. Como a criança nascida em uma determinada comunidade poderia aprender a linguagem de seus pais e assimilar sua cultura se ela não compartilha dos seus conceitos antes de aprendê-los?

Este holismo radical pressupõe, ainda, que as idéias de uma dada cultura ou sociedade são absolutamente homogêneas, e todos sabemos que este não é o caso. Especialmente depois dos pós-estruturalistas, sabemos que os diversos significados atribuídos por grupos sociais distintos estão em uma luta constante por hegemonia, isto é, eles são contestados, negociados, desestabilizados.

Foi contra este essencialismo lingüístico radical que Julieta se insurgiu quando pediu a Romeu que renunciasse ao seu nome. Ao contestar as referências simbólicas que identificavam um Montecchio com um inimigo, ela estava contestando os pressupostos, valores e práticas de sua forma de vida. Além disso, contrariamente a Winch, que defende que o significado de uma ação deriva exclusivamente do sistema de regras que guia o comportamento, e nunca de suas intenções, ao levar a sério a resposta de Romeu, Julieta reintroduz a subjetividade do agente de uma forma que Winch jamais conseguiu fazer. E Romeu? Ah, carcamano do inferno...

Gellner, Ernest. (1974) The New Idealism: Cause and Meaning in the Social Sciences. Anthony Giddens (ed.) Positivism and Sociology. Londres: Heinemann.
Outhwaite, William (1986). Understanding Social Life: The Method Called Verstehen. Lewes: The Beacon Press.
Winch, Peter (1958) The Idea of a Social Science: and its Relation to Philosophy. Londres: Routledge.

Cynthia Hamlin

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Romeu, Julieta e Peter Winch



O Renascimento é geralmente considerado uma das principais fontes da noção moderna de indivíduo, concebido como uma essência interna única, autônoma, universal. Dentre os autores renascentistas, não há ninguém maior do que Shakespeare. De fato, já se afirmou que o bardo inglês foi o inventor da “natureza humana” e que a obra de Freud não era nada mais do que Shakespeare em prosa. Não sei se isto é verdade e deixo esta questão para os meus colegas psi resolverem. Mas o fato é que, sempre que leio Peter Winch, vem-me à mente a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta. A minha hipótese é a de que, se Julieta tivesse lido A Idéia de uma Ciência Social, jamais teria dado aquele mole que hoje nos faz perceber a impossibilidade do amor romântico. Deixo vocês, por um instante, com os dois amantes, numa tradução portuguesa que encontrei na Internet, embora sem os devidos créditos ao tradutor ou tradutora:

“Jardim de Capuleto

(Entra Romeu)

ROMEU- Só se ri das cicatrizes aquele que nunca sentiu uma ferida. (Julieta aparece à janela) Mas... devagarinho! Qual é a luz que brilha através daquela janela? É o oriente, e Julieta é o Sol. Ergue-te, ó Sol resplandecente, e mata a Lua invejosa, que já está fraca e pálida de dor ao ver que tu, sua sacerdotisa, és muito mais bela do que ela própria. Não queiras mais ser sua sacerdotisa, já que tão invejosa é! As roupagens de vestal são doentias e lívidas, e somente os loucos as usam. Deita-as fora! Esta é a minha dama! Oh, eis o meu amor! Se ela o pudesse saber! O seu olhar é que fala e eu vou responder-lhe... Sou ousado de mais; não é para mim que ela fala. Duas das mais belas estrelas de todo o firmamento, quando têm alguma coisa a fazer, pedem aos olhos dela que brilhem nas suas esferas até que elas voltem. Oh! Se os seus olhos estivessem no firmamento e as estrelas no seu rosto! O esplendor da sua face envergonharia as estrelas do mesmo modo que a luz do dia faria envergonhar uma lâmpada. Se os seus olhos estivessem no Céu, lançariam, através das regiões etéreas, raios de tal esplendor que as aves cantariam, esquecendo que era noite. Vede como ela encosta a face à sua mão. Oh! quem me dera ser a luva dessa mão, para poder tocar a sua face.

JULIETA- Ai de mim!

ROMEU- Está a falar... Oh! continua, anjo resplandecente! Porque esta noite tu brilhas tão esplendorosamente sobre a minha cabeça como um alado mensageiro do Céu perante o olhar extasiado dos mortais, que escondem a íris nas pálpebras ao inclinarem-se para o contemplar quando ele perpassa por entre as nuvens indolentes e navega no seio do ar.

JULIETA- Oh! Romeu, Romeu! Mas porque és tu Romeu? Renega o teu pai, o teu nome; ou, se o não quiseres fazer, jura apenas que me amas e deixarei eu de ser uma Capuleto.

ROMEU (aparte)- Deverei eu continuar a ouvi-la, ou responder-lhe?

JULIETA- É apenas o teu nome que é meu inimigo; tu és tu mesmo, e não um Montecchio. E que é um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte que pertença a um homem. Oh! Sê qualquer outro nome! O que é que existe num nome? Aquilo a que nós chamamos rosa teria o mesmo perfume embora lhe déssemos outro nome! Assim, Romeu, ainda que não se chamasse Romeu, conservaria a mesma perfeição que agora possui. Romeu, renuncia ao teu nome, e em vez dele, que não faz parte de ti mesmo, apodera-te de mim!

ROMEU- Aceito. Chama-me apenas teu amor, e far-me-ei de novo baptizar. De ora avante nunca mais serei Romeu.”

A questão que deve me guiar aqui é uma espécie de exercício weberiano de explicação contrafactual (tá legal, tá legal, tô exagerando nos termos, mas façam uso de um pouco de caridade interpretativa pelo bem do argumento): Se Julieta tivesse lido Winch, e concordasse com a leitura que ele faz de Wittgenstein (essa é uma condição importante!), jamais teria acreditado que Romeu pudesse renunciar ao próprio nome sem modificar sua essência. Vejamos.

Peter Winch é um autor pouco explorado no Brasil, o que é uma pena, pois ele consegue relacionar um autor relativamente complexo, Wittgenstein, a questões sociológicas clássicas e bastante familiares aos cientistas sociais. Acredito que ele faça isso emprestando ao pensamento deste último um certo essencialismo lingüístico que não tenho certeza se Wittgenstein aprovaria. Apesar disso, acho que é um dos melhores caminhos para se introduzir a virada lingüística nas ciências sociais, especialmente para alunos de graduação.

De certa forma, Winch inverte um dos princípios de Wittgenstein acerca dos jogos de linguagem. Como argumentou Ernest Gellner (1974), se para Wittgenstein o significado das expressões corresponde ao uso que se faz delas, para Winch, o uso de expressões (e de qualquer outro comportamento social) é igual ao seu significado. Colocando em outros termos, o que Winch se propõe é a explicar as “formas de vida” em termos de jogos de linguagem.

Sua obra principal, A Idéia de uma Ciência Social, exemplifica um argumento anti-naturalista radical que afirma que o entendimento dos fenômenos naturais ocorre em termos de causas relativas a leis gerais, enquanto o entendimento dos fenômenos sociais se dá em termos de motivos e razões das ações dos indivíduos em uma dada comunidade. Mais tarde, depois que os críticos praticamente arrancaram seu couro, especialmente os de origem neo-kantiana, Winch admite que motivos e razões podem ser concebidos como causas, embora não como causas naturais regidas por leis gerais (veja, por ex., a introdução à segunda edição de seu livro).

O anti-naturalismo de Winch é defendido a partir de uma aproximação entre os objetos da filosofia e das ciências sociais, o que ele faz por meio de uma crítica às concepções usuais das duas disciplinas. Seu objetivo é poder afirmar que as ciências sociais são, na verdade, uma forma filosófica de se produzir conhecimento e que a filosofia, por seu turno, envolve o conhecimento da sociedade humana. O que é, então, filosofia, para este autor? Contrariamente a posições defendidas pelos positivistas do Círculo de Viena (e pelos positivistas, em geral) este ramo do conhecimento não deve ser concebido como um mero ajudante de obra das ciências, no sentido de eliminar as confusões lingüísticas relativas a determinados termos científicos - como nas infindáveis discussões dos autores do Círculo acerca do significado de termos teóricos como “solúvel”. Winch argumenta que a atividade filosófica não depende da atividade científica, pois enquanto as questões da ciência são empíricas, as da filosofia são conceituais. Assim, o problema da filosofia é muito mais amplo do que acreditavam os membros do Círculo, pois trata de esclarecer como o pensamento se relaciona com a realidade.

Seguindo Wittgenstein de perto, Winch retoma a idéia de que os limites da minha linguagem constituem os limites do meu mundo e afirma que “nossa idéia do que pertence ao mundo nos é dada pela linguagem que usamos. Os conceitos que nós temos definem para nós a forma de experiência que temos do mundo [...] O mundo é para nós aquilo que nos é apresentado por meio dos nossos conceitos” (Winch, 1958:15). Por esta razão, ele confere à epistemologia (teoria do conhecimento) uma dimensão central na filosofia, já que ela pode ser concebida como as formas pelas quais pensamos sobre o mundo. Sendo assim, a tarefa da filosofia é “descrever as condições que devem ser satisfeitas, caso existam critérios de compreensão” (Ibid.: 21) ou, reformulando em termos mais kantianos, descrever as condições de possibilidade do conhecimento.

(Continua...)

Cynthia Hamlin